hieróglifos contemporâneos

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Uma reflexão breve sobre nossa relação com a cidade a partir dos escritos de graffiti. Artigo para o Caderno C2+Pensar, de A Gazeta.

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Hieróglifos contemporâneos

gas gavetas, devemos concordar com Leminski em ao menos um aspecto: o gra!ti já é, mun-dialmente, um fenômeno indissociável da paisa-gem urbana. Mesmo que o consideremos como meros garranchos, rabisco mal feitos, desquali-"cados como ofensa delinquente, se num exer-cício de "cção momentâneo esvaziássemos as cidades contemporâneas e puséssemos alguém como Champollion – francês que em 1822 deci-frou por primeira vez os hieróglifos dos antigos egípcios dando a chave de acesso à monumen-tal cultura deste povo – incumbido de sondar os mistérios da civilização que ali habitara, cer-tamente consideraria os escritos de gra!ti os hieróglifos de nossa história.

Artigo originalmente publicado no caderno Pen-sar de A Gazeta, em 10 de junho de 2013.

Foto de capa: Alex Gouvea

“Na noite de São Paulo, há muitos bandidos a solta, com armas das mais diversas. Mas há um tipo de bandido muito especial que é o gra"tei-ro. O gra"teiro não produz feridas, ele produz letras. O gra!ti é uma das modalidades mais importantes da literatura dos anos 70 e 80 nos meios urbanos no Brasil.”1 Há 25 anos o poeta, escritor, crítico e tradutor Paulo Leminski abria assim sua coluna no “Jornal Vanguarda” da TV Bandeirantes. Empunhando uma lata de spray, escreveu no muro sua homenagem aos gra"tei-ros: “Quem tem Q.I. Vai”. Talvez à época ainda não tivéssemos “Q.I.”, mas o fato é que muda-mos de década, século e milênio, e não fomos muito longe. A a"rmação de Leminski perma-nece ininteligível: para a maioria incompreendi-da e enigmática, esta “arma” – a escrita urba-na, ou gra!ti – parece perturbar mais do que aquelas de fogo. Divisões de polícia são criadas para combatê-la, manchetes em jornais incitam a população a denunciá-la, campanhas (privadas e institucionais) promovem a caçada aos produ-tores de letras: se não causam feridas, por que incomodam assim?

Antes que desmereçamos esta intervenção en-clausurando-a apressadamente em nossas anti-

1 http://www.youtube.com/watch?feature=player_em-bedded&v=ZkS3LzXGIk0

O artista húngaro Brassaï iniciou seu trabalho .YHMÄ[P na década de 1930.

Foto: divulgação.

Joana Quiroga

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No entanto, se para as antigas civilizações desvendar as inscrições nas paredes de pirâmi-des e papiros, signi"cou podermos conhecer a riqueza do passado, nas civilizações contempo-râneas estes inscritos enigmáticos espalhados na superfície da cidade parecem exercer a função inversa: como mensagens criptografadas do fu-turo explicitam as limitações da ideia de cidade atual e convidam à necessária reformulação do modo que habitamos o mundo. Alheia ao nosso anacronismo, este tipo de manifestação seguiu zelosamente a contemporaneidade, pois com sua tinta escrevia a vida urbana na simultanei-dade de sua expansão. Por isso, seus rastros nos fornecem indícios dos limites e possíveis novos caminhos deste espaço inadvertidamente natu-ralizado de concreto e aço, pois organicamente acompanhou o crescimento da cidade com sua tinta. Isso não é pouca coisa.

Ao contrário de Champollion, todavia, apesar de termos expandido vertiginosamente o aces-

so à informação e que a virtualidade de nossos dias tenha ampliado enormemente os recursos disponíveis para se pesquisar e re#etir, esta for-ma de comunicação, com seus códigos, gra"a e intencionalidades tão particulares, continua ignorada, sendo expelida como um intruso do nosso aparato interpretativo tradicional. Nis-so, as oportunidades, simbólicas e concretas, de pensarmos os desa"os das cidades contem-porâneas oferecidas por esta manifestação, têm sido sistematicamente perdidas sob a pecha de vandalismo e com isso deixamos de ver que sob sua insígnia de rebeldia, inconformismo e deso-bediência à lei pode estar escrita outra noção de cidade, entendida como uma obra aberta em que todos estejam convidados a intervir. Então sem uma pedra de Roseta como podemos decifrar o que essas escrituras nos diz?

História do gra!ti

Se recorrermos à história da arte, o gra!ti re-presenta o ato de usar as superfícies da cidade como suporte da palavra, do nome, do protes-to, prestando obediência somente à necessidade de expressar-se. Neste sentido, portanto, o ter-mo abrange dos antigos egípcios ou romanos à Basquiat, dos protestos parisienses em 1968 à pichação, dos maias a Brassaï, fazendo do gra-!ti um dos mais vastos testemunhos de nosso processo civilizatório. Porém, o que consolidou o gra!ti como sinônimo de intervenção urbana contemporânea, foi o movimento de contracul-tura nascido há mais de 40 anos nos subúrbios de Nova Iorque, em que jovens segregados e in-visíveis pelo crescimento da metrópole – que im-punha sua lógica de exprimi-los e esquecê-los –, escreveram por toda parte o único que elemento capaz de lhes conceder a individualidade de ma-neira irrevogável: seu nome. Como se sua tinta pudesse desenhar uma outra cidade, apossavam-

Exemplo de lugar ocupado pelo .YHMÄ[P��na cidade de Vitória - ES. Foto: Joana

Quiroga

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se ilicitamente de cada centímetro, conquistan-do uma “propriedade” que jamais alcançariam desde as restrições que estavam desacatando. Estavam escrevendo a partilha do espaço nega-do, e para poder habitá-la e exigi-la como tal, já haviam internalizado um outro conceito de cidade: “crime” seria "car calado diante disto.

A escrita da cidade

Cabe, então, voltar à pergunta: se não causam feridas, por que estes bandidos-escritores tanto incomodam? O que é que não queremos ver ao exigir que suas letras sejam apagadas? O receio parece estar em que estas intervenções unifor-mizem cidade que se supõe democrática, fazen-do de toda a sua superfície um abaixo-assinado daqueles cuja existência é mantida interditada à força por exclusões muito antigas. Vivemos numa cidade sitiada, com cercas elétricas, câ-meras e alarmes, porque criamos e incentivamos estruturas excludentes e desumanas: “Uma cida-de cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar públi-co: é uma prisão,” disse Giorgio Agamben2, um dos mais importantes pensadores da atualidade. Ainda não nos dispusemos a ver por cima do ensimesmento fantasioso de nossos muros para pensar na complexa multiplicidade que há do lado de fora, e detrás das paredes evitamos de nos comprometer na construção de uma cidade de fato coletiva. Ideologicamente sustentamos uma cidade que está nos mostrando suas de"-ciências e limitações, mas que a um alto preço evitamos confrontá-las. É nesta trincheira dis-farçada de progresso que a tinta no muro nos fere mais que bala.

Ao “ferir” com letras os muros da cidade, o

2 http://blogdaboitempo.Com.Br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/

gra!ti explicita o esquecimento-vivo a que con-denamos regiões e pessoas da cidade que recu-sam-se a seguir este destino. Por isso, simbólica e concretamente, o gra!ti nos atenta para o ab-surdo de nossas cidades, enquanto o lugar que não abriga a polissemia de seus habitantes.

Por outro lado, ao fazer isso ele nos mostra uma vida urbana de fato democrática, mas que ainda não somos capazes de exercer, pois, na cidade dos bandidos das letras, a partilha do espaço é lei. Ao espalhar-se pela cidade, o gra-!ti age ignorando as estrati"cações que julga-mos naturais, e com isso as está cartografando um só plano, como uma cidade imaginária que desconhece a segregação. Estes hieróglifos con-temporâneos estão escrevendo a história de uma cidade possível em um futuro urgente não muito remoto, mas que cabe a nós decidirmos se vamos ou não.

.YHMÄ[P na divergência da cidade, Vitória - ES. Foto: Joana Quiroga