o sujeito na sociedade atual: desenlaces (the person...

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FRANCIMAR DUARTE ARRUDA * o SUJEITO NA SOCIEDADE ATUAL: DESENLACES (THE PERSON /N THE PRESENT SOC/ETY" D/SENCOUNTERS) Este sujeito que vamos abordar não é uma abstra- ção. Ele tem cheiro, cor, carne e está lançado num deter- minado lugar, num tempo e num espaço, chamado sociedade. Então vamos situar que sociedade é essa, como ela se relaciona com esse sujeito e como ela estrutura seus comportamentos, seus afetos, seus humores. Para estabelecer uma estratégia eficaz desse relacionamento, é necessário situar com exatidão a fonte e o princípio que deram origem e a partir dos quais se desenvolveram as estruturas essenciais de nossa sociedade atual. O rompimento histórico deste fim de século XX é o maior que ocorreu desde o fim da idade média e os primórdios do Renascimento, época em que se esta- beleceram os fundamentos econômicos da sociedade atual: a globalização e a dominação dó mercado. O Renascimento é também um momento de ruptura em que ocorre essa mudança nas motivações espirituais; a uma religião que ensinava a resignação e a aceita- ção de uma sociedade imóvel, sucedeu-se um estímu- lo do desejo e do empreendimento, que se tornou hoje a religião do crescimento. A sociedade da idade média era fragmentada em pequenas comunidades rurais, que viviam em econo- mias fechadas e compartimentadas, cujo único liame político era o vínculo pessoal de seus senhores a suseranos hierarquicamente submetidos uns as outros, e tendo como únicas cultura e escola as de Igrejas que constituíam, em toda Europa, por meio de hierarquias calcadas sobre as do mundo feudal, uma Cristandade. Como se opera a transformação? Esboçam-se no século XI, com as Cruzadas, que restabelecem as grandes rotas comerciais, desaparecidas desde o fim do Império Romano, os grandes eixos terrestres que tinham sido rompidos pelas invasões germânicas no século IV e os grandes eixos marítimos, no Mediter- râneo, desde a conquista árabe, a partir do século VII. A lenta restauração das rotas comerciais torna possível o desenvolvimento de uma classe nova: a dos mercadores. Com eles renascem as cidades como mercados e como centros de produção. Comerciantes e donos de empresas, para garantir a segurança da suas sedes suas trocas e seus transportes, agrupam-se em burgos fortificados, donde Ihes vem o nome de "bur- gueses" (burgese). Desenvolvendo-se primeiro com dificuldade nas brechas da sociedade feudal e sujeitos à hostilidade dos senhores esses burgueses acabam por constituir um segundo poder, arrancando pouco a pouco dos senhores feudais suas "franquias" (isto é, as liberdades necessárias às suas atividades) . Para estender o raio de suas empresas e de seu comércio, a burguesia nascente e em plena expan- são apoiou-se num dos feudais, o rei de França, con- tra os outros senhores que saqueavam ou resgatavam os comboios de mercadorias, quando estes passavam por seus feudos. Os reis aceitaram de bom grado essa aliança que Ihes permitiu estender o poder. Um mandado de Carlos V define claramente tal política: "só ao Rei pertence e quanto a tudo, em todo seu reino, e não a outro, outorgar e ordenar todas as feiras e todos os mercados, e os que se movem, se detêm ou retomam estão sob sua salvaguarda e proteção" (1973). Em troca dessa proteção do seu trabalho e o do seu comércio, a burguesia ajuda de bom grado o rei, com seu dinheiro e seu poderio. Com esse apoio de uma força social em plena expansão foi possível a Luis VI, a Filipe Augusto e a São Luís tornarem-se os reunificadores da terra de França contra a divisão feudal. Após a crise de crescimento constituída pela longa guerra dos reis de França contra o mais podero- so de seus vassalos, o rei da Inglaterra, e os desastres militares da feudal idade decadente (Crécy, Poitiers, * Mestre em Filosofia (UFRJ). Doutora em Filosofia da Educação (UFRJ). Coordenadora do GEPI (grupo de Estudos e Pesquisas do Imaginário - UFF. Autora de No Rastro da nova Era, Os olhares Contemporâneos, Ética e intersubjetividade: Os desvalidos de Eros, entre outros. 16 EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 22 • V 2 • NQ40 • p. 16·23 • 2000

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FRANCIMAR DUARTE ARRUDA *

o SUJEITO NA SOCIEDADE ATUAL: DESENLACES(THE PERSON /N THE PRESENT SOC/ETY" D/SENCOUNTERS)

Este sujeito que vamos abordar não é uma abstra-ção. Ele tem cheiro, cor, carne e está lançado num deter-minado lugar, num tempo e num espaço, chamadosociedade. Então vamos situar que sociedade é essa, comoela se relaciona com esse sujeito e como ela estruturaseus comportamentos, seus afetos, seus humores.

Para estabelecer uma estratégia eficaz desserelacionamento, é necessário situar com exatidão afonte e o princípio que deram origem e a partir dosquais se desenvolveram as estruturas essenciais denossa sociedade atual.

O rompimento histórico deste fim de século XXé o maior que ocorreu desde o fim da idade média e osprimórdios do Renascimento, época em que se esta-beleceram os fundamentos econômicos da sociedadeatual: a globalização e a dominação dó mercado. ORenascimento é também um momento de ruptura emque ocorre essa mudança nas motivações espirituais;a uma religião que ensinava a resignação e a aceita-ção de uma sociedade imóvel, sucedeu-se um estímu-lo do desejo e do empreendimento, que se tornou hojea religião do crescimento.

A sociedade da idade média era fragmentada empequenas comunidades rurais, que viviam em econo-mias fechadas e compartimentadas, cujo único liamepolítico era o vínculo pessoal de seus senhores asuseranos hierarquicamente submetidos uns as outros,e tendo como únicas cultura e escola as de Igrejas queconstituíam, em toda Europa, por meio de hierarquiascalcadas sobre as do mundo feudal, uma Cristandade.

Como se opera a transformação? Esboçam-seno século XI, com as Cruzadas, que restabelecem asgrandes rotas comerciais, desaparecidas desde o fimdo Império Romano, os grandes eixos terrestres quetinham sido rompidos pelas invasões germânicas noséculo IV e os grandes eixos marítimos, no Mediter-râneo, desde a conquista árabe, a partir do século VII.

A lenta restauração das rotas comerciais tornapossível o desenvolvimento de uma classe nova: a dosmercadores. Com eles renascem as cidades comomercados e como centros de produção. Comerciantese donos de empresas, para garantir a segurança da suassedes suas trocas e seus transportes, agrupam-se emburgos fortificados, donde Ihes vem o nome de "bur-gueses" (burgese). Desenvolvendo-se primeiro comdificuldade nas brechas da sociedade feudal e sujeitosà hostilidade dos senhores esses burgueses acabampor constituir um segundo poder, arrancando pouco apouco dos senhores feudais suas "franquias" (isto é,as liberdades necessárias às suas atividades) .

Para estender o raio de suas empresas e de seucomércio, a burguesia nascente e em plena expan-são apoiou-se num dos feudais, o rei de França, con-tra os outros senhores que saqueavam ou resgatavamos comboios de mercadorias, quando estes passavampor seus feudos.

Os reis aceitaram de bom grado essa aliançaque Ihes permitiu estender o poder. Um mandado deCarlos V define claramente tal política: "só ao Reipertence e quanto a tudo, em todo seu reino, e não aoutro, outorgar e ordenar todas as feiras e todos osmercados, e os que se movem, se detêm ou retomamestão sob sua salvaguarda e proteção" (1973).

Em troca dessa proteção do seu trabalho e o doseu comércio, a burguesia ajuda de bom grado o rei,com seu dinheiro e seu poderio.

Com esse apoio de uma força social em plenaexpansão foi possível a Luis VI, a Filipe Augusto e aSão Luís tornarem-se os reunificadores da terra deFrança contra a divisão feudal.

Após a crise de crescimento constituída pelalonga guerra dos reis de França contra o mais podero-so de seus vassalos, o rei da Inglaterra, e os desastresmilitares da feudal idade decadente (Crécy, Poitiers,

* Mestre em Filosofia (UFRJ). Doutora em Filosofia da Educação (UFRJ). Coordenadora do GEPI (grupo de Estudos e Pesquisas doImaginário - UFF. Autora de No Rastro da nova Era, Os olhares Contemporâneos, Ética e intersubjetividade: Os desvalidos de Eros,entre outros.

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zincourt) diante do exército burguês dos arqueirosingleses, e após as vitórias populares, de Du Guesclina Joana D' Are, que salvaram a unidade nacional in-dependente dos feudais: os conselheiros burgueses deCarlos VII criam órgãos novos do Estado segundo omodelo eficaz de suas empresas. A instituição, em1439, de um orçamento regular para as forças arma-das nacionais significava, com o aparecimento dasCompanhias de Ordenança para a cavalaria, da in-fantaria dos Francos Atiradores e da artilharia, a eli-minação das nocivas sobrevivências da feudal idadeno exército.

Graças a esse exército, Luis XI pode derrubaros último senhores feudais e consolidar a unificaçãoterritorial da França. Completa sua obra com um es-forço vigoroso de unificação jurídica, econômica epolítica: institui os Parlamentos eos Estados provin-ciais, "Ele quis que neste reino, escreve Philipe deCommynes (1973), se usasse de um só costume, umó peso e uma só medida, e que todos os costumes

fossem reunidos num belo livro escrito em francês".É já o embrião do programa que será realizado pelaRevolução Francesa e por Napolão, criador das basesdo Estado burguês que persistem até nossos dias.

Assim, o sistema de mercado e a livre empresaforam o instrumento de nossa libertação quanto

I.À penúria e2. À servidão feudal.

Que dialética histórica terá influído para queambos, em dois séculos, do fim do século XVIII anossos dias, se transformassem no seu contrário: ocrescimento revelando ser mais aniquilador ainda quea penúria e gerador de desigualdades, conflitos e alie-nações maiores ainda que no passado?

Procurando para os problemas colocados pelocrescimento uma origem nos tempos, Bertrand deJouvenel escreve: "Diria, simbolicamente, que nas-ceram do casamento de Watt e de Boulton, há exata-mente dois séculos. Watt traz uma receita prática parapôr em jogo as forças motrizes potentíssimas e a bompreço, anunciadas desde 1690 por Denis Papin; eBoulton, traz os capitais para construir os engenhosque permitirão por sua vez mover as máquinas de trans-porte e de fabricação (1973: 15).

O crescimento, cuja teoria foi elaborada porMarx (1960) sob o nome de reprodução ampliadado capital, teoria que continua sendo, ainda hoje, amais sólida, segundo o próprio testemunho dos eco-nomistas mais oficiais como o prêmio Nobel de eco-nomia, Paul Samuelson (1967), resume-seessencialmente nisto: a partir dos três componentes

iniciais do input: a terra ( ou, em termos mais gerais,os recursos da natureza), o trabalho e o capital, épossível determinar, pela tecnologia que os empre-ga, o output máximo que se pode tirar das quantida-des dadas desses inputs.

A concepção das relações entre o capital cons-tante (equipamentos, máquinas e etc) e o capitalvariável (mão-de-obra, massa dos salários) traz con-seqüências particularmente importantes, pois demons-tra que a pobreza tem um caráter histórico. Isto é,que se, em valor absoluto, o nível quantitativo de vidados assalariados pode aumentar em razão do progres-so técnico, aumenta também em razão da pilhagemcolonial que permite, nos países colonizadores, distri-buir suas migalhas aos trabalhadores para tentarassociá-los. O crescimento tem como consequênciaque a parte do trabalho decresce em relação à doslucros, quer distribuídos, quer indivisos. É o que nãocessou de se verificar, desde logo, nos Estados Uni-dos, e em todos os países capitalistas, sem exceção.

Ora, a justificativa mais frequente dada peloseconomistas oficiais ao crescimento é a de que seudinamismo permitiria reabsorver osfocos de miséria,em virtude do princípio segundo o qual quanto maioro bolo, maior a parte de cada um. Entretanto a experi-ência histórica mostra hoje que isso não acontece: nãosomente o modelo de crescimento nos conduz a umsuicídio lento da terra e de seus ocupantes, como tam-bém não se diminui a distância entre os países indus-trializados e as chamadas nações do terceiro mundo;tal distância, pelo contrário, acentuou-se e não cessade aumentar. Se não se toma nenhuma medida imedi-ata para mudar o modelo atual de crescimento dospaíses chamados desenvolvidos, o Clube de Roma (Relatório de Dezembro de 1973 em Salzburgo) esta-belece que haverá 500 milhões de mortos pela fomedo sudeste asiático, entre 1987 e 2025. Seria vão tirardaí unicamente uma conclusão malthusiana: Aconte-ce que eLes tem filhos demais, e basta pôr em práticauma política de controle do crescimento demográfico.Sem dúvida alguma é indispensável reduzir - tantoquanto se possa - a natalidade. Mas restringir-se aisso seria esquecer que foi o tipo de crescimento im-posto pelos países ocidentais que gerou os problemasatuais: esgotamento dos recursos naturais arrancadosa estes países, devastação inconsiderada de suas flo-restas e a monocultura, tudo a alterar os climas e afazer avançar os desertos, a redução colonialista detais países à situação de fornecedores de matéria-pri-mas e de mão-de-obra barata.

ão se trata pois de colocar abstratamente oproblema do controle dernográfico, após ter desco-berto, pelas estatísticas, que a terra não poderá mais,

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daqui até o final do século, conter e sustentar umapopulação rapidamente acrescida. O homem estatís-tico não existe em lugar nenhum e o problema con-creto é o seguinte: um americano consumindo 500vezes mais energia e recursos naturais e, por via deconsequência, sendo 500 vezes mais portador de po-luição que um hindu, daí se conclui que um cresci-mento demográfico de 10 milhões de americanos émais perigoso para o futuro do planeta que o de 4 bi-lhões de hindus.

As ideologias apologéticas do crescimento secontrastam com os fatos mais evidentes dentro dospróprios países industrializados.

Não se trata apenas do passado, do começo, doséculo XIX, quando Marx pintava o quadro dosbacanais do capital, em que se arrastavam, como mão-de-obra barata, crianças e mulheres sob o carro deJaggernat do crescimento, ou do século XVI, em queforam massacrados continentes inteiros -particulamente a América Latina - para realizar a acu-mulação primitiva do capital. Hoje ainda, nenhum paísdominador reabsorveu os próprios focos de misérias.Nem mesmo os Estados Unidos cuja, economia dis-forme, como diz Michael Harrington (1967), chegoua resultados que se traduzem em cifras implacáveis(ano de referência: 1996): a mortalidade infantil noHarlem (45,3 por mil) é três vezes superior a dos bair-ros brancos mais desfavorecidos (15,4 por mil). Noauge da prosperidade americana, em 1996, 14 % dasfamílias (calculando uma média de 4 pessoas por fa-mília) tinham uma renda anual de menos de 3.000dólares. Mesmo no período mais proveitoso, do pon-to de vista econômico, da guerra do Vietnã, em 1970,a proporção do desemprego não parou de oscilar en-tre 5 e 6 %. Acrescentemos que a hierarquia oficial darendas (segundo as declarações, que minimizam con-sideravelmente as diferenças, em virtude das sonega-ções, muito mais fáceis nas classes altas) é de 1 a 400- segundo o oficialíssimo Statístical abstract of theUnited States, p. 326, US Bureau of the Census, 1997.

Assim o mercado e a forma de empresa que é oseu corolário, tornaram-se a fonte desse crescimentoanárquico, cego, que proliferou de maneira cancero-sa, em função dos interesses, isto é, do lucro e do po-der de indivíduos ou de grupos, e não em função doser-melhor e do ser-mais de todos.

Os primeiros teóricos da economia liberal, eparticularmente Adam Smith, partiam deste postula-do: se cada um busca seu interesse pessoal, o interes-se coletivo estará garantido, como se uma mãoinvisível orientasse para o bem comum. Um de seusepígonos chamava a esse sistema o das harmoniaseconômicas. A experiência histórica recusou tal pos-

tulado. O sistema de mercado revelou-se a fonte pri-meira da alienação do homem.

Primeiramente porque o mercado, assim comoa sociedade global que é denominada por ele, incitaos interesses individuais que, longe de se harmoniza-rem, se afrontam numa concorrência de selva, e a re-sultante ( o fato histórico) é algo que ninguém quis(Misham, 1991).

O mercado revelou ser, assim, não uma fontede harmonia social, mas ao contrário, de oposição dosinteresses de indivíduos ou de grupos, levando à guerrade todos contra todos: concorrência entre os produto-res (os mais fortes devorando os mais fracos), lutasde classes entre os fabricantes e os negociantes, entreos comerciantes e os consumidores.

O mercado revelou-se um mecanismo de exe-cução e de desigualdade, pelo fato de que o acesso aele era recusado a tudo que não fosse necessidadequitável.

O mercado revelou-se gerador de crises pelofato de que não havia nenhuma visão de conjunto queregularizasse, antes de suas oscilações e turbulênci-as, a relação entre a produção e as necessidades reais,entre a oferta e a procura.

Do mercado, além de tudo, segregaram-se par-tidos, que reproduzem o mesmo fenômeno sobre oplano político; e mais, a escola de promoção indivi-dual e a Universidade, com suas concorrências e seusconcursos, seus diplomas, suas hierarquias e seleçõesgerados por essas estruturas econômicas e políticas, eservindo a sua manutenção e reprodução.

Assim, em todos os níveis: do ter, do poder edo saber, a vida social inteira, quer se trate da econo-mia, da política ou da cultura, aparece ao indivíduocomo exterior a ele, opaca ao seu pensamento e forado alcance de sua ação.

É por isso que, sobretudo após a grande crisede 1929-1933, e a partir dos trabalhos do economistaJohn Maynard Keynes (especialmente a partir do seulivro: Teoria Geral do Emprego, do Lucro e da Moe-da, Londres, 1936) não se cansou de procurar regula-dores em contradição com o princípio mesmo domercado (intervenção do Estado para a fixação dossalários e dos preços, fiscalização e transferências,grandes obras de iniciativa do Estado, controle diver-sos, nacionalizações, planificações etc.).

Tais intervenções permitiram superar criseseconômicas, algumas vezes deslocando-as para o ní-vel político ( o hitlerismo é o exemplo mais ilustredeste fenômeno), mas não se conseguiu dominar ocrescimento, isto é, orientá-lo para o bem comum.

Todo esse levantamento histórico teve comointenção maior caracterizar a sociedade atual como

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:m:;;;!3;ociedaderegida pelo mercado e estimulada pela~:5:idalde e que em termos gerais funciona desta

tanto no primeiro mundo, como no terceiro. Aidade, devido ao seu caráter hipnótico, desem-

~_ •..•m papel ainda maior na animalização e condi-~J:."..S:rnentodo homem. Assim, por exemplo, Salões

- omóveis apresentam todo ano modificações.c:s5:ias aparecendo como inovações técnicas de pri-

plano, para desatualizar mais depressa os car-- desgaste é voluntariamente apressado e os

~I::oi::(~o encarecidos. As corridas automobilísticas,'l:lIl:5Íoonando os pilotos em homens-sanduíches das

ornerciais, são um outro aspecto dessa publi-pa loviana, que tende a multiplicar nas estra-

_ ébeis mentais agressivos, que salivam diantegenhocas ou das carcaças de bólidos, como oPavlov diante da lâmpada elétrica que anuncia

~~di:nh;a de carne.Há também os desvios das emissões de rádio e- pela publicidade e a influência que esta exer-iti amente sobre a imprensa: de que maneira

.m:jj:::,rnaldiário, semanal ou mensal, poderia escaparpre sões, se 80% de seus rendimentos provêmlicidade? Esta constitui uma agressão perma-ontra o homem, a quem submete a um bom-

'laI::je]iOdeinformações mentirosas, e em quem suscita.Jpmres ilimitados e ilusórios, seja sob forma direta,..EI!01IlL'tÍIllcioluminoso ao modo de condicionar ( termo:a::~b;:machado!) os produtores e os seus consumido-

eja ob a forma indireta do filme, do romance,novela que fornece protótipos de comportamen-uosos e fáceis a que se é induzido insidiosa-

". a imitar ou a conquistar, por todos os meios,que pelo crime.• esse universo "consurnacionário", como diz

orin, nossa sociedade não é apenas guiada.,.....,•. ""rn" racional idade economica, mas como impul-

onambulicamente por uma dialética de ne-cessxíade errantes e de forças cegas.

O problema é o de substituir, a uma publicida-e tem por objeto provocar o ato da compra no

mt.;~!sse do produtor, uma informação tendendo àoção humana das necessidades do consumidor.

sociedade de crescimento é uma sociedade- ógena (Pinatel, 1971).O amoralista que, em Platão, declara que a vir-onsiste em ter os desejos mais ardentes e a for-atisfazê-lo, apenas fez do que era a lei de sua

e (a do imperialismo saqueador de Atenas) a leiior de sua própria vida. Nos dias de hoje, as no-

formas do crime e da violência dos indivíduos não- mais que a interiorização por estes da própria lei

sociedade de crescimento selvagem.

O clube de Roma sublinha: "podemos sem he-sitar atribuir ao crescimento ... desvios sociais taiscomo a toxicomania, o aumento da criminal idade, ossequestros de aviões, os genocídios e a ameaça de umaterceira guerra mundial"( 1975:31).

Apenas uma expressão me parece inexata nes-sa formulação: a de "desvios sociais", pois essas no-vas formas da criminalidade só são desvios segundoum julgamento mora] fundado em outros critérios quenão os da sociedade de crescimento, de cujo sistemasão, pelo contrário, variantes internas lógicas.A criminalidade tradicional era em geral ligada à po-breza: existiam laços estreitos entre a miséria, o alco-olismo, a tuberculose, a prostituição, o roubo, amendicância e a vadiagem.

As formas novas de criminal idade que apare-cem nos meados do século XX: criminal idade organi-zada, criminalidade do colarinho branco e violênciagratuita estão, ao contrário, ligadas, não à penúria masao crescimento. São um meio de integrar-se ao movi-mento, a fim de ter acesso, por vias ilegais, na incapa-cidade de poder fazê-Io, como outros por vias legais,à, sociedade de consumo, ou representam uma atitudede recusa e um sentimento de frustração em face des-sa sociedade.

O tráfico de drogas, o cassino clandestino ou aorganização da prostituição, exploração da mulher pelohomem, serão diferentes por natureza dos outros trá-ficos nocivos, como o das armas, e das diferentes for-mas de jogo como os da Bolsa, ou da exploração maisgeral do homem pelo homem e da prostituição econô-mica, jornalística, cinematográfica ou televisual?

A osmose do crime, da política e dos negócios aque assistimos todos os dias no Brasil provoca umburaco em termos de confiabilidade e segurança. Pa-rece que o lugar de um bom número de grandes ho-mens de negócios e de personalidades políticas deviaser na prisão. Essa constatação desa\entadora pode atéser um dos motivos pelo qual os jovens fazem uso dadroga como um meio de protestar contra as normasanormais de uma sociedade que no fundo também nãose aceita. A droga é uma doença das sociedades deconsumo em regime neoliberal. Seria mais exato di-zer que o uso de drogas pelo sujeito traduz o seu dese-jo de sentir-se diferente do que é. Trata-se de umamaneira ilusório de sair de si mesmo, de buscar parasi um outro lugar, a fim de escapar aos sentimentosde ausência de objetivos, de impotência perante ummundo esmagador, e de alienação.

O crescimento de uma sociedade é essencial-mente crescimento da agressividade contra a nature-za, contra o homem .. Um implica o outro: não se poderialevar contra a natureza esta batalha selvagem, cega,

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sem organizar os homens segundo uma disciplina euma violência em nível de tal assalto.

O objetivo essencial deste trabalho não é o deentregar-se a uma polêmica qualquer, mas o de apre-sentar proposições tanto concretas como globais, en-quanto ainda é tempo. Para situar nossas decisões naperspectiva histórica dos atuais rumos suicidas, evo-quemos a parábola do nenúfar exposta por RobertLattés (1972:34), que mostra, de modo figurado, osimpasses, ameaças e urgências do crescimentoexponencial: "" Um nenúfar, sobre um lago, dobra suasuperfície todos os dias. Sabendo-se que lhe são ne-cessários trinta dias para cobrir todo o lago, e sufocarassim qualquer forma de vida aquática, quando teráele coberto a metade, último limite para agir? A res-posta, embora evidente, é perturbadora: no vigésimonono dia. O tempo desempenha aqui um papel críticoe muito particular: é preciso prever convenientemen-te e com suficiente antecipação, os riscos e os efeitosde um crescimento exponencial, se se quer freá-Io einfleti-Io ... No caso do nenúfar, quando apenas a me-tade do lago for coberta, talvez já seja tarde demaispara agir, pois só se dispõe de vinte e quatro horas ... "Não teremos alcançado este ponto hoje, pelo cresci-mento selvagem? A catástrofe só se produzirá dentrode 25 anos, termo ao fim do qual a população do glo-bo se terá dobrado. O que nos obriga, por exemplo, aconstruir nesses 25 anos tantas moradias quanto asque já existem hoje, e assim para todos os modos devi ver. A humanidade deve realizar nesses 25 anos tantoquanto já o fez desde o começo de sua história. O quetalvez ainda seja possível, sob a condição de decidir,e desde agora, tomar as medidas necessárias.

Quisemos relembrar, antes de esboçar qualquerprojeto para o futuro, alguns dos problemas geradospelo modelo de crescimento que é o do Ocidente, des-de o Renascimento e que encontrou no capitalismo,sua forma mais típica. Caracteriza-se ele por uma pro-liferação anárquica e cancerosa de atividades e ne-cessidades que conduzem a um desenvolvimentoconvulsivo e, ao término, mortal. Essa é a sociedadeque o sujeito encontra ao dar-se conta de si. Por issotemos que elaborar um novo projeto de civilização. Oque temos agora está com o prazo de validade venci-do. Como fazê-lo? Será que estamos num mundo semevasão possível?

A primeira característica que me parece decisi-va para esboçar um contorno dos dilemas desta épocadiz respeito à situação a que foram confinadas as pers-pectivas utópicas. Sem qualquer exame de mérito,entendo que é forçoso reconhecer que chegamos a umtempo onde nenhuma perspectiva utópica apresenta-se com credibilidade aos olhos da imensa maioria das

pessoas. A sociabilidade contemporânea é cada vezmais avessa ao imaginário utópico tradicional. Isto nãosignifica que devamos reconhecer qualquer sentençaconformista lançada sobre os humanos.

Em certo sentido, podemos nos colocar, de acor-do com Bolch (1976), para quem "ser homem é teruma utopia". Se somos seres dafalta, e, portanto, se-res desejantes, parece que somos mesmo constituídospelas projeções que aportamos no presente em dire-ção ao futuro desejável. Em cada um dos nossos ges-tos, buscamos a superação do posto, a transcendência,e nada está a indicar que a humanidade tenha abdica-do de sonhar ou que esteja em via de fazê-Io. Ocorreapenas que nossas projeções utópicas já não podemse apresentar como o equivalente do sentido da histó-ria; que todas nossas opiniões devem arcar com o imen-so desconforto de serem precisamente opiniõesatravessadas pela incerteza, pela dúvida; que não hánada de científico nas teorias políticas, e que as pró-prias teorias científicas extraem seu estatuto decientificidade não no fato de serem verdadeiras, mas,como sustentou Popper, do fato de permitirem que seuerro seja demonstrado.

Falar de falta de credibilidade do imaginárioutópico tradicional significa constatar que a sociabi-lidade real já não é permeável à projeção de qualquerperspectiva utópica que ofereça a redenção. Comodiria Morin (1993), chegamos, finalmente, à época emque já não há salvação e onde se compreende que aidéia de salvação leva-nos à perdição; que não existeluta final nem promessa de uma sociedade futura quepossa redimir todos os males ou fazer esquecer a dordos que aqui estão. Pode-se, então, repetir com o filó-sofo francês que este é o momento em que abdicamosda idéia do melhor dos mundos, mas não da idéia deum mundo melhor.

Seja como for, estamos diante de uma modifi-cação fundamental, sobre a qual deveríamos refletirtodos e, especialmente, a esquerda contemporânea,ainda hoje tributária da mais generosa tradição utópi-ca, a tradição comunista. Não há como desconhecerque o destino construído em torno dos ideais comunis-tas contribuiu em muito para que as perspectivas utó-picas tradicionais fossem varridas da História.Encontramo-nos, então, diante de um abismo e umaparte da esquerda ainda reluta em encará-lo, talvezcom o justificado receio de que, ao fazê-lo, seja o abis-mo que a encare. Os termos desta época pós-utópicacomportam, evidentemente, imensos riscos.

Entre todos, talvez o mais preocupante seja orisco da apatia, da adaptação, ou, se preferirem, doconformismo. De outra parte, somos, agora, mais li-vres para pensar o futuro como resultado de nossas

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ações, e, portanto, somos mais importantes para a lutacontra as injustiças que desgraçam este final de sécu-lo. Nesta possibilidade reside uma das evasões possí-veis de nossa época; uma evasão capaz de preenchernossas vidas de sentido.

Por outro, opera-se na sociabilidade contempo-rânea uma outra modificação histórica, para a qualgostaria de chamar a. atenção: há em curso um fenô-meno que, ao que tudo indica, deve se radicalizar ain-da mais, responsável pela imersão da grande maioriadas pessoas na esfera privada da existência.

A esfera pública, entendida como esta constru-ção artificial - porque fruto do artifício humano -, naqual cada um de nós pode ser visto e ouvido, e dentroda qual podemos ser influenciados pela opinião deoutrem e influenciar outras pessoas com nossas pró-prias opiniões, parece se reduzir em escala crescenteem todo o mundo.

Rigorosamente, a maioria das pessoas mantémcom a esfera pública uma relação esporádica, excep-cional. Esta mesma esfera passa a ser colonizada porprofissionais da política, funcionários do interessepúblico. Mais grave do que esta tendência, pode-seconstatar, mesmo empiricamente, que o envolvimentoda cidadania com a esfera pública dá-se normalmen-te, a partir da contraposição de interesses particula-res. Isto ocorre de tal forma que penso ser possívelafirmar que, das questões que por definição dizemrespeito a todos e que, portanto, deve ser travado apartir da pretensão de alcançar o interesse público,constitui a preocupação de uma esmagadora minoriade cidadãos.

Trata-se de uma importante característica polí-tica e cultural que contrasta, enormemente, com a tra-dição de outras épocas e, particularmente, com asexperiências fundadoras da antiguidade clássica. Maisprecisamente, se tomarmos a experiência ateniense dosséculos V e VI a.c. - que, para nós, expressa o come-ço - veremos o quanto tal fenômeno da privatizaçãoda sociabilidade corresponde a uma inovação histórica.

Como se sabe, para os gregos antigos, ape-nas uma vida dedicada à Pólis poderia ser condi-zente com os objetivos de uma vida digna. Levaruma vida privada significava, literalmente, privar-se do essencial à dignidade. Não por outra razão,cabia aos escravos e às mulheres a imersão na vidaprivada, concebida como esfera da necessidade e,aos homens livres, o acesso à esfera pública, espaço,por definição, da liberdade.

Na atualidade, vive-se num ambiente no qualhá que se abandonar a idéia tradicional que se tem dapolítica como função libertadora. Aliás temos queabandonar muitas coisas tais como: a antiga oposição

entre o individual e o coletivo, o subjetivo e o objeti-vo, o útil e o inútil, o bem e o mal, o público e o priva-do. Hoje nenhum destes limites aparece tão claro nemtão definitivo fundamentar a nossa vida cotidiana.

Uma boa caracterização de nossa época é aquelaque nos diz que vivemos um momento politicamenteregressivo (a redução da política à economia), assimcomo também um momento mentalmente regressivo(predomínio das idéias fragmentadas). Um exemplodisso nos proporciona Edgar Morin (1993), quando dizque, no momento em que se fala de mundialização, osdiscursos sobre este fenômeno ignoram um fato fun-damental: o mundo mesmo. Com efeito, para eles amundialização não é mais que a emergência de umobjeto novo, o mundo, e que, neste sentido, amundialização corresponde ao surgimento de proble-mas comuns e específicos para toda a humanidade.Este constitui um bom exemplo da fragmentação dasidéias predominantes neste momento e essa é uma dascaracterísticas centrais de nossa civilização.

Com efeito, esta revela problemas de civiliza-ção justamente onde se esperavam realizações ou pro-jetos para os homens. Da mesma forma nosso modode vida converte problemas julgados periféricos emproblemas centrais, problemas considerados pri vadosou existenciais em políticos.

Eis alguns deles:a) O individualismo não se trata de subestimar

de nenhuma maneira suas virtudes, mas há que se di-zer que este tem como a outra face da medalha a de-gradação das antigas solidariedades e a automatizaçãodas pessoas. É o que já escrevíamos, em outro lugar,no sentido de que aquilo que chamamos desenvolvi-mento arrasa e destrói as sociedades que não estãobaseadas na lógica do homo ecconomicus, e que con-siste na imposição de um tipo de racionalidade quenão reconhece outra validade que não a sua própria: ocálculo meio-fim. O capitalismo desconfia do gratui-to e o reprime. Desta maneira, entendemos que estassociedades que baseiam sua existência sobre outraslógicas entram em profundas crises: desestruturaçõesdos sistemas culturais, sociais, familiares, desempre-go, empobrecimento etc. Aqui parece que o Estadoassume, cada vez mais, as funções de solidariedade,mas, o faz ao estilo do monstro filantrópico de OctavioPaz, isto é, de maneira impessoal e fria, anônima etardia. Em face desta situação, existe uma tendência ase refugiar na família, na concha familiar, mas comoo assinalam numerosos estudos, ali também há crises(a fragilidade do matrimônio e a errância dos amores,particularmente). Assim, se acrescentam e se agravamas solidões em todas as classes da sociedade, sendopior onde há pobreza.

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b) o problema da tecnificação: é a invasão cadavez mais ampla de setores da vida cotidiana, que Morindenomina" a lógica da máquina artificial". Esta in-troduz na sociedade a organização mecânica, especi-alizada, cronometrada, substitui a comunicação pessoaa pessoa pela relação anônima. A vida social - e éuma tendência que continua crescendo - tende a setornar uma gigantesca máquina social.

c) A monetarização ou a necessidade de siste-mas crescentes de dinheiro para sobreviver, ao mes-mo tempo que lhe rouba uma parte do presente, doserviço gratuito, diminui a amizade e a fraternidade.É o que se tem passado com a maioria das etnias indí-genas quando as induzimos, de umjeito ou de outro, ase modernizarem. No que concerne a elas nossa mo-dernização só tem servido para destruir as bases so-bre as quais estavam assentadas e que se articulamem tomo de lógicas não-mercantis.

d) O problema do desenvolvimento no planetanão é mais do que a corrida pelo crescimento, como adenomina Morin, pagando-se o preço das degradaçõesna qualidade de vida. Ademais, como já se tem dito,do sacrifício de todo aquele que não obedece à lógicado homo ecconomicus. O que, até o momento, temosconsiderado como desenvolvimento era que nos havi-am dito que era o desenvolvimento. Tratava-se da vi-são unilateral e atrativa pelos países mais avançadose tendentes a perpetuar o status quo imperante. Nofundo, dentro desta visão de desenvolvimento, os in-divíduos e os grupos são excluídos de seus sistemasde representação do mundo e são obrigados a adotarum sistema que os valoriza, que tornam frouxos oslaços que os uniam a outros homens, às coisas, aosanimais, à natureza.

Assim mesmo, o desenvolvimento surgiu a fa-voreceu a formação de enormes maquinarias tecno-burocráticas, como chama Morin, que, por um lado,dominam e esmagam todos os problemas singulares econcretos; e, por outro lado, produzem irres-ponsabilidade. Tomemos um problema mais específi-co como o da delinquênciajuvenil, que paulatinamentetem se convertido em uma dor de cabeça para as gran-des cidades. Com efeito, diariamente, podemos co-nhecer, através da imprensa os conflitos, violações detoda a ordem cometidas por gangues de jovens, fatosque contribuem de maneira significativas para acres-centar a sensação de insegurança que isso provoca nasgrandes cidades latino-americanas.

As tragédias, diz Edgar Morin (1993), em quevive a adolescência dos bairros marginais ou periféri-cos não constituem um mal local ou periférico, mas aexpressão local e periférica de um mal geral, mais

difuso. Segundo o autor, o desenvolvimento urbanonão somente tem acrescentado às possibilidades indi-viduais às liberdades e os entretenimentos (culturais,desportivos etc.); também, e correlativamente, temdesencadeado processos de ruptura e perda das anti-gas solidariedades e permitindo a emergência de no-vas formas de escravidão produzidas pelas obrigaçõesorganizacionais da vida cotidiana.

A cidade, unidade orgânica para os cidadãos,tornou-se a grande urbe, meio de vida para os urba-nos, mas converte-se, por meio de um processo dia-bólico na aglomeração, no conjunto disforme para apopulação que provoca o anonimato, a atomização, asensação de solidão, indiferença e desamparo tão co-nhecida por quem vive nela.

Neste sentido, o que poderíamos chamar de maldos tugúrios e da cidade são traduções topográficassimplificadoras dos problemas de uma cultura que seconverteu, exclusivamente, em urbana e suburbana.

Mas este problema não afeta somente os seto-res economicamente marginais das crianças; pelo con-trário, podemos constatar hoje em dia, como tambémnos setores socialmente altos que começaram a se pro-liferar os grupos de jovens dedicados a uma violên-cia, tanto ou mais gratuita, e que, aparentemente, aúnica razão que a fundamenta é a violência pela vio-lência ou a delinquência pela delinquência.

A conclusão que se impõe é de que ambos oscasos são a expressão de um mal-estar do viver. OPIB, a taxa de crescimento, é incapaz de dar conta dosprocessos de degradação de nossa civilização. Então,o problema político ao qual estamos enfrentando jánão pode ser mais o problema de um de envolvimen-to sustentável, mas, como vem expondo insistentemen-te Edgar Morin, o de uma ci ilização sustentável.

O anonimato, a atomização a mercantilização,a perda de valores e a degradação moral e material(corrupção), a violência, o mal-estar progridem demaneira independente. A perda de re ponsabilidade(no seio da grande máquina tecnoburocrática compar-timentada e especializada) e a perda da solidariedade(pela atomização dos indivíduos e a obsessão pelodinheiro) conduzem à degradação moral e, portanto,não há sentido moral sem sentido de responsabilida-de e de solidariedade.

Esse levantamento, um pouco exaustivo, sobrea sociedade contemporânea tem como mérito mostrarcomo o sujeito se vê ao dar-se conta do tipo deenfrentamento existencial/social que lhe cabe efetu-ar. A sensação de abandono, de desamparo diante dainsignificância da vida é, por vezes, insuportável. Umadas formas de se fugir a essa dor é a apatia, o tédio emque sobretudo a classe dos intelectuais e esclarecidos

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tão imersos no momento. Os movimentos sociaisque se organizam atualmente contra esse estado deoisas, mesmo que objetivando um só setor, estão li-

gados ao MST e, pasmem, aos índios. Entre os ilus-trados e os analfabetos podemos situar uma faixaamorfa e anônima que para conseguir suportar essa

iolência social, se autoviolentam para violentar o so-ia\. Nesse círculo vicioso estão os usuários de drogas

que só conseguem se destruir e a curto prazo não afe-tam nem destroem o social, infelizmente. Dissemosno início que uma característica forte da atual popula-ção era o empobrecimento do imaginário. Por contadessa premissa, temos que analisar algumas propos-tas acerca desse tema, visando a um embasamentoteórico sólido para dar continuidade a uma saída pos-ível diante do impasse que se tornou hoje, viver. O

fortalecimento do imaginário pode ser a luz no fim dotúnel dessa caminhada por dias melhores.

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