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ANDREA SARAIVA DE BARROS O SENTIDO DAS MEDIDAS SOCIO-EDUCATIVAS NA VIDA DOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: UMA REFLEXÃO À LUZ DA FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2008

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ANDREA SARAIVA DE BARROS

O SENTIDO DAS MEDIDAS SOCIO-EDUCATIVAS NA VIDA DOS

ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: UMA REFLEXÃO

À LUZ DA FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2008

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ANDREA SARAIVA DE BARROS

O SENTIDO DAS MEDIDAS SOCIO-EDUCATIVAS NA VIDA DOS

ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: UMA REFLEXÃO

À LUZ DA FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL

Trabalho de Conclusão de Curso, exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Profª. Drª. Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2008

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Área de Conhecimento : Ciências Humanas 7.07.00.00-1 – Psicologia

Título: O Sentido das Medidas Sócio-Educativas na Vida dos Adolescentes em

Conflito com a Lei: uma reflexão à luz da Fenomenologia-Existencial

Orientanda : Andrea Saraiva de Barros

Orientadora : Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro

Palavras-chave : medidas sócio-educativas, liberdade assistida,

fenomenologia-existencial.

Resumo

A opção por estudar o sentido das medidas sócio educativas na existência de

adolescentes em conflito com a lei deu-se, principalmente, pela constante

discussão contemporânea sobre a questão do adolescente autor de ato

infracional. Através da análise do Estatuto da Criança e do Adolescente, das

medidas sócio-educativas – com ênfase na medida de Liberdade Assistida – e

do período da adolescência, no qual o indivíduo descobre-se responsável por

sua própria existência, esta pesquisa propõe-se a desvelar o sentido da medida

sócio-educativa na vida do adolescente que infraciona. Para tanto, foi

realizada uma pesquisa qualitativa à luz da teoria da Fenomenologia

Existencial que, para aproximar-se do sentido da medida para o adolescente,

tratou de aspectos que fazem parte de sua vida como sua relação com a

família, comunidade, círculos sociais, escola e outros espaços que freqüenta;

buscou entender se (e como) suas relações sofreram transformações no

decorrer da passagem pela medida sócio-educativa de Liberdade Assistida; e,

ainda, conhecer sua relação com a medida, como ele a compreende e se sente

em relação à execução da mesma. Dois adolescentes foram entrevistados e o

método utilizado para nortear a coleta de informações foi uma adaptação da

entrevista reflexiva. Observamos que a experiência vivida por um deles abriu a

possibilidade para que pudesse extrair aspectos sócio-educativos da medida;

no outro caso, tais aspectos não se manifestaram de maneira efetiva.

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Agradecimentos

Aos meus pais, Rita e Amaury, pelo amor autêntico, e por acreditarem e

apostarem nas minhas escolhas.

Ao Bruno, pela companhia constante e indispensável, pelo amor, por estar

comigo durante a minha formação discutindo sobre a Psicologia e sobre a Vida

e, principalmente, por tudo aquilo que a gente compartilha.

À minha família, em especial aos meus avós Zelia e Geraldo, e em memória de

Jô e Alexandre; às minhas tias Carmen, Irany e Ivany; meus tios Heitor, Saulo

e Alberto; e meus primos Victor e Lucas, pela sustentação e pelo amor e

amizade que sempre me impulsionaram.

Às minhas “flores” Bia Hahne, Jú Tossunian e Fabi Carmo; e às outras pessoas

queridas que ajudaram a dar leveza aos cinco anos de graduação.

Às professoras do Núcleo 303. Em especial à Lourdinha Trassi Teixeira, por

abrir espaço para que eu me aproximasse do que já era o tema deste trabalho,

por dividir comigo sua experiência na área e por permitir que minha

reflexão/percepção fosse além daquilo que os livros contam.

À minha orientadora, Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro, pela atenção, pelo

cuidado e pelo acolhimento.

Aos adolescentes que participaram desta pesquisa, pela disposição e pelo

comprometimento.

À equipe do Cedeca, pela confiança e pelo auxílio no desenvolvimento deste

trabalho.

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SUMÁRIO

Introdução......................................... ................................................................ 7

PRIMEIRA PARTE – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Capítulo 1 – O Estatuto da Criança e do Adolescente ................................ 14

1.1 Precursores do Estatuto da Criança e do Adolescente ................... 14

1.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e As Medidas Sócio-

Educativas ............................................................................................ 19

1.2.1 Caracterização das Medidas Sócio-Educativas ..................... 23

1.2.1.1 Liberdade Assistida: o trabalho junto aos adolescentes e

suas famílias ............................................................................ 27

Capítulo 2 – Adolescência: contribuições da Psicolo gia ........................... 33

2.1 Algumas visões sobre o fenômeno da adolescência ...................... 33

2.1.1 Erik Erikson: a idéia de “crise da adolescência” ...................... 36

Capítulo 3 – As Contribuições da Fenomenologia-Exis tencial .................. 40

3.1 O Homem na perspectiva Fenomenológica-Existencial .................. 40

3.2 As especificidades do ser-adolescente............................................ 47

SEGUNDA PARTE – A PESQUISA EMPÍRICA

Capítulo 1 – Metodologia ........................... .................................................... 52

Capítulo 2 – Os encontros com os adolescentes...... .................................. 59

2.1 A entrevista com E........................................................................... 59

2.1.1 Breve Caracterização de E. .................................................... 59

2.1.2 Apresentação dos Focos de Análise ....................................... 59

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2.1.2.1 Tema: Questões Pessoais ........................................... 60

2.1.2.2 Tema: Família .............................................................. 64

2.1.2.3 Tema: Medidas Sócio-Educativas ................................ 67

2.1.3 Sobre o Modo de Ser de E. na Entrevista ............................... 70

2.1.4 Análise do Sentido das Medidas Sócio-Educativas para E. .... 74

2.2 A entrevista com L. .......................................................................... 78

2.2.1 Breve Caracterização de L. .................................................... 78

2.2.2 Apresentação dos Focos de Análise ....................................... 78

2.2.2.1 Tema: Bq. – “o Mundão” .............................................. 79

2.2.2.2 Tema: “L. começou do zero” ........................................ 83

2.2.2.3 Tema: Questões Pessoais ........................................... 89

2.2.2.4 Tema: Relações Atuais de Amizade ............................ 94

2.2.3 Sobre o Modo de Ser de L. na Entrevista ............................... 96

2.2.4 Análise do Sentido das Medidas Sócio-Educativas para L. .... 99

Capítulo 3 – Discussão ............................. ................................................... 103

Referências Bibliográficas ......................... ................................................. 109

Anexo .............................................. .............................................................. 115

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Introdução

A opção por estudar a questão do sentido das medidas sócio educativas

na existência dos adolescentes com processo por prática infracional, relaciona-

se diretamente com algumas reflexões que puderam ser feitas ao longo desses

anos de graduação na Faculdade de Psicologia da PUC-SP. A escolha do tema

também se justifica devido à sua complexidade, pela atualidade da discussão

sobre a questão do adolescente infrator nesses tempos de violência e

desigualdade crescentes; bem como, pelas discussões sobre o que seria eficaz

para não permitir que eles afundem nesse contexto de criminalidade em que se

inseriram.

Durante muito tempo conheci mais detalhadamente apenas a medida

sócio-educativa de internação, tão comentada pela mídia devido a todo o

histórico da Fundação para o Bem Estar do Menor – FEBEM. Porém, como

muitas outras pessoas, conhecia essa instituição como análoga à prisão, uma

“cadeia para menores”, ignorando seu caráter sócio-educativo, já que este viés

de atuação educacional acaba sendo menos ressaltado.

Em meu percurso pela faculdade, iniciei um contato mais estreito com o

trabalho com adolescentes e com a questão do indivíduo institucionalizado.

Nesse contexto, passei a me interessar por maneiras de trabalhar com o

público adolescente sob tutela do Estado, que fugissem das restrições às quais

os adolescentes são submetidos nos interiores das FEBEM’s e visassem uma

(re)significação de diversos aspectos, sem “dicotomizar” o jovem infrator e a

sociedade na qual ele vive.

Uma das medidas que vai nessa direção é a Liberdade Assistida1 (LA),

que considera que a privação da liberdade não garante um processo

pedagógico que seja capaz de (re)significar o crime e a violência na vida

desses jovens. Tal medida também inclui na trajetória do adolescente as mais

variadas instâncias que contribuem (ou deveriam contribuir) para o seu

desenvolvimento; como a família, a escola e a comunidade. A finalidade é que

1 As medidas sócio-educativas encontram-se previstas nos Artigos 112 a 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Nº 8.069/90). A Liberdade Assistida é a quarta medida proposta e será discutida, juntamente com o ECA, de forma mais aprofundada no capítulo 1 da primeira parte deste trabalho.

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todos possam partilhar (entre si e com o próprio adolescente) a

responsabilização por ele.

Outro aspecto positivo desta medida é a permissão de liberdade, uma

vez que sua privação acaba por não garantir o processo pedagógico que

objetiva “contornar” a violência que mina a vida destes adolescentes no seu

cotidiano. (Teixeira, 1994; Silva, 1998)

É possível pensar que o adolescente que infraciona denuncia o fracasso

das instituições sociais (família, escola, comunidade, programas de

atendimento) no delineamento de sua conduta. Assim, as medidas, programas

e práticas a serem adotadas nesta situação em que o prejuízo é revelado, são

de caráter potencialmente transformador, envolvendo aspectos educativos e

coercitivos.

A LA apresenta um caráter potencializador de mudanças, com

características preventivas, pois o êxito em sua execução propiciaria ao

adolescente uma ressignificação de sua conduta e a elaboração de um projeto

de vida que o afastaria da reincidência e do crescente envolvimento com o ato

infracional. Teixeira (1994), entretanto, não deixa de considerar:

“a LA e as demais medidas sócio educativas restritivas de liberdade do adolescente (semi-liberdade e internamento) têm um caráter punitivo – uma sanção, no caso cerceamento de liberdade, em função de uma conduta de transgressão a normas, no caso o delito. O Estatuto da Criança e do Adolescente propõe que sua execução tenha um caráter educativo o que pode ou não ocorrer dependendo das práticas do programa e/ou orientadores – o executor da sentença judicial.” Teixeira (1994, p.8)

Por outro lado, tal medida evita a internação, seus efeitos sobre a formação de

identidade do adolescente e divide a responsabilidade sobre esses jovens com

as instituições sociais que os cercam.

Temos então, no primeiro capítulo teórico deste trabalho, a trajetória

percorrida na conquista pelos direitos da infância e da adolescência. Esse

percurso culmina na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – no

início dos anos 90 – criando um novo modelo de atendimento público e de

atenção aos direitos dessa parcela em desenvolvimento da população.

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Também foram descritas no primeiro capítulo as seis medidas sócio-

educativas aplicáveis aos adolescentes em conflito com a lei, que encontram-

se especificadas pelo Estatuto. Demos, no entanto, maior ênfase à

compreensão da medida de Liberdade Assistida devido a todos os aspectos

evidenciados acima, sendo ela o foco desta pesquisa.

Para tratar a aplicação das medidas sócio-educativas é necessário

caracterizar o período de vida (adolescência) pelo qual passam os indivíduos

sujeitos a elas. Esse período que para o Estatuto da Criança e do Adolescente

– ECA – compreende indivíduos de 12 a 18 anos de idade, é visto socialmente

como uma fase de desenvolvimento. Dessa forma, a questão do “tempo” ganha

delimitações muito específicas.

Segundo Fontes (2007), “é nessa fase da vida que a pessoa começa a

experimentar a noção de tempo, como uma dimensão significativa e mesmo

contraditória da identidade” (p. 16). Tal período é um momento de escolhas, de

abrir-se para o mundo e estabelecer relações; tudo em busca de auto-

realização e, geralmente, fugindo da opressão externa.

A adolescência é um conceito culturalmente definido, principalmente, se

pudermos considerar que o ser humano é um ser sócio-cultural. Na sociedade

ocidental, a criança é encarada como um ser assexuado e frágil, devendo ser

protegida das adversidades da vida, além de ser obediente ao adulto, figura a

quem cabe o enfrentamento das dificuldades oriundas da vida.

Assim, a criança desempenha um papel que contrasta com o que se

deseja para o comportamento de um adulto, fato que mostra certa

“descontinuidade” (Benedict, 1965), ou seja, uma necessidade de

reorganização do comportamento na passagem da infância para a maturidade.

Essa reorganização é pautada pelo momento da adolescência que passa a ser

encarado como um período de quebra, de rompimento de um estado de

dependência para uma situação de maior autonomia, na qual o indivíduo passa

a ter que dar conta de sua existência.

Dessa forma, nosso segundo capítulo teórico busca entender quem é,

sob uma ótica mais tradicional da Psicologia, o adolescente que recebe

proteção integral e especial do Estatuto. Para tanto, percorremos algumas

concepções de adolescência que influenciaram as reflexões sobre esse tema.

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Ainda nesse sentido, partimos das idéias de Erik Erikson2 (1902/1994)

para pensar o adolescente como indivíduo em desenvolvimento psicosocial.

Erikson foi um autor que influenciou consideravelmente a concepção da

adolescência como período de crise. As idéias defendidas por ele entram em

dissonância com as idéias de Margaret Mead (1887/1948), antropóloga cultural

que contestou o pensamento sobre a adolescência como período de

turbulência.

O terceiro e último capítulo é responsável pelo desvelamento da teoria

que baliza este estudo, adotada não apenas como uma forma de olhar o

humano e a adolescência, mas também na escolha do procedimento

metodológico. Voltamos-nos, então, ao pensamento do filósofo alemão Martin

Heidegger (1889/1976) para expor a visão da Fenomenologia-Existencial.

A Fenomenologia Existencial não busca definições caracterizadas de um

suposto psiquismo, como o do adolescente, por exemplo. Foi possível notar

entre leituras e diálogos com pensadores dessa abordagem que a busca se dá,

no âmbito do sensível, pelo que sustenta em termos de significação o

fenômeno da adolescência.

Dessa forma, para conceituar brevemente o período da adolescência

para o pensamento filosófico da Fenomenologia foi necessário falar um pouco

sobre a condição humana para, posteriormente, caracterizar a vivência

adolescente. O homem, na visão da obra heideggeriana como um todo,

assume o papel de Ser e, uma das dimensões desse existir humano pode ser

considerada como o ser-no-mundo. Esse mundo não deve ser entendido

apenas como um lugar físico, dotado de mares, montanhas, pássaros e sol,

mas como uma construção subjetiva do indivíduo num plano existencial.

Nesse contexto, a Fenomenologia desconsidera a visão dicotômica de

mundo interno e mundo externo, pensando a existência de apenas um mundo:

aquele no qual existimos em relação e junto com as coisas. O homem,

apresenta-se na condição de Ser aberto para receber os fatos que se fazem

presentes do modo que se apresentam, sofre na pele cada momento de

2 A escolha por apresentar a teoria de Erik Erikson deu-se devido a intensa recorrência com que este autor é citados em trabalhos, na área da Psicologia, que abordam a temática da adolescência.

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transformação em seu habitat/seu mundo; sofrimento este proveniente da

manifestação ôntica do sentimento de angústia (Conti, 2007).

O homem é, em sua condição, um ser angustiado e direcionado para um

fim e, assim, “se torna interessante pensar a relação homem-mundo como um

sistema interdependente, de modo a se construir, se estabelecer e

conseqüentemente destruir-se por si mesmo” (Conti, 2007). Podemos dizer,

então que conhecer a existência implica em admitir a inserção dos seres em

um mundo no qual são co-participantes e serão em sua totalidade completos,

ao se depararem com a morte.

Conti (2007) faz um paralelo interessante entre as palavras do sertanejo

“Chicó”, personagem de Ariano Suassuna em “O Auto da Compadecida” e

conceitos heideggeriano. “Chicó” usa a seguinte frase: “a morte, o único mal

irremediável, onde todos se igualam em uma só fila, destinada para o mesmo

local(...)”. Elucidando a morte como um “igualador” entre os homens, diz, em

outras palavras, que o Dasein, ou seja, nós seres humanos convivemos com

tantos outros seres e somos voltados para o fim (irremediável). Todos nos

encontraremos nesse instante em que se pode dizer “é”, ao invés de estarmos

lançados às inúmeras possibilidades da existência.

A grande diferença entre a narrativa de Ariano Suassuna e os conceitos

heideggerianos acerca da existência do ser-aí (Dasein) se dá na forma como a

morte aparece. O primeiro trata a morte como um destino para o qual estamos

voltados, enquanto Heidegger pensa a mesma morte irremediável como um

ponto de partida para que possamos traçar nossa existência.

“Tendo a consciência da morte, pode-se viver em função de sua chegada, assumindo e descartando diversas possibilidades de modos de ser, durante todo processo existencial a que se está sujeito.” (Conti, 2007)

Nesse contexto de existência, podemos dizer que, para a

Fenomenologia, o período de “tempestade” e “tormenta”, que caracteriza a

época da adolescência para diversas culturas passa a ser visto apenas como

um clichê.

Um dos fatos que determina a condição humana é que para algo

acontecer é necessário que haja tempo para isso. Uma criança, por exemplo,

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vive o presente imediato, sob o impacto do contágio do instantâneo e com

grande capacidade de entrega total. Ela não reconhece o futuro como seu

tempo e tem sua existência mais encoberta.

Na adolescência o indivíduo é expulso desse contato do imediato,

ganhando o futuro e, junto com ele, uma história passada. Enquanto o futuro

abre-se para o adolescente como uma tarefa sua (e não mais dos outros), ele

vai descobrindo que tem que Ser . Ele próprio passa a ter que dar conta de sua

existência.

Nessa descoberta do existir como uma tarefa, o adolescente é

apresentado à sua condição de “acontecência”, descobrindo seu ser como uma

história e ganhando, junto com um futuro, a morte. Nesse contexto, ele ainda

deve lidar com essa condição de adversidade que marca a existência humana:

a vida marcada pela insolubilidade da morte; tornando-se ele próprio o

responsável pelo esforço de pavimentar sua condição de existência (uma vez

que seu ser não está definido), tornando-a viável e possível.

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PRIMEIRA PARTE

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

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Capítulo 1

O Estatuto da Criança e do Adolescente

1.1 Precursores do Estatuto da Criança e do Adolesc ente

Antes de tratarmos a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente,

o ECA, e sua importância no contexto atual é interessante situá-lo, ainda que

brevemente, em relação ao percurso da assistência à infância e juventude

brasileira e às legislações antecedentes, relacionadas ao tema – os Códigos de

Menores de 1927 e de 1979, que marcaram a regulamentação jurídica e

política para a população em questão – bem como os fundamentos que as

sustentam.

Silva (2007) inicia o percurso que trata dessa assistência no Brasil pelo

período colonial, marcado pelo sentimento de fraternidade humana, de

conteúdo paternalista, mas sem pretensão de mudanças sociais. O objetivo era

preservar a ordem pelo conformismo das classes mais pobres, que recebiam

esmolas e eram alvos das boas ações daqueles mais abastados. Estes últimos

objetivavam o reconhecimento da sociedade como beneméritos e a salvação

de suas almas caridosas.

Seguindo esta fase caritativa, surge um movimento filantrópico para dar

continuidade à obra de caridade com uma nova concepção. Este foi o ápice da

contribuição do governo imperial para a assistência pública à infância e

juventude no Brasil, que regulamentou o asilo de proteção para as crianças e

os adolescentes que haviam sido abandonados. Foi nesse período, pela

intervenção jurídica, que se instalou o termo “menor” para designar a infância

“desfavorecida, delinqüente, carente e abandonada” (Oliveira, 2002, p.17 apud

Silva, 2007, p. 34), enquanto os filhos de famílias mais favorecidas social e

economicamente podiam continuar sendo chamados de “crianças”.

Paralelamente às diversas tentativas de higienização da população mais

pobre pela classe dominante, foram dados os primeiros passos para a

aprovação de projetos legislativos de “proteção” à criança e ao adolescente.

Nesse cenário nasce o “Código Mello de Matos”, conhecido como o Código de

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Menores de 1927, estabelecido pelo decreto lei nº. 17.943-A e que consolida

leis de assistência e proteção a “menores”.

Nesse momento as políticas para a infância focalizavam os indivíduos

sem família (abandonados) e aqueles que ameaçavam a ordem pública e eram

vistos como perigosos (os chamados delinqüentes). O Código de 1927

classificava as crianças com denominações bastante peculiares: expostos,

abandonados, vadios (que vagavam pelas ruas), mendigos (que pediam

esmolas), libertinos (convidavam outros para a prática de ato obsceno),

prostitutos (Silva e Motti, 2001). Estes eram os destinatários do Código e não

qualquer indivíduo entre 0 e 18 anos.

Assim, o abandono era definido por categorias que envolviam desde a

falta de habitação até aspectos relacionados à moral. Os próprios

abandonados eram responsabilizados por sua situação e passavam a ser

objeto da ação do Estado pela inibição do Pátrio Poder, pela remoção da

família e pela tutela. O artigo 9º deste decreto reza, ainda, que a autoridade

pública podia ordenar a prisão da criança quando sua casa fosse perigosa ou

anti-higiênica3 (Silva e Motti, 2001).

No que diz respeito à delinqüência, o código previa que apenas

indivíduos maiores de 14 anos fossem submetidos a processo penal4. Caso

fossem abandonados pela família ou pervertidos, o procedimento era interná-

los em estabelecimento específico. Quando condenados, entre os 16 e os 18

anos, por crime grave, era exigência que a internação ocorresse em

estabelecimento especial e, entre os 18 e os 21 anos deveriam, ainda, ficar

separados dos condenados maiores de idade. As decisões quanto ao

encaminhamento dos adolescentes infratores (internação ou liberdade vigiada)

ficava a critério de um Juiz que fundava sua decisão na personalidade moral do

3 “Art. 9º A autoridade publica póde impedir de ser abrigada, e si já o estiver póde ordenar a apprehensão e remoção, a creança nas condições deste capitulo: a) em alguma casa cujo numero de habitantes fôr excessivo, ou que fôr perigosa ou anti-hygienica; b) por alguem que, por negligencia, ignorancia, embriaguez, immoralidade, máo procedimento ou outra causa semelhante, fôr incapaz de ser encarregado da creanca: c) por pessoa ou em alguma casa, que, por qualquer outro motivo, estiver em contravenção com as leis e regulamentos de assistencia e protecção a menores.” (Brasil, Decreto nº. 17.943A/27) 4 Brasil, Decreto nº. 17.943A/27, Artigo 68.

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indivíduo e na gravidade da infração, fato que reafirma a visão da infância

como incapaz e perversa. (Silva e Motti, 2001).

Os internatos se adequavam a um modelo de atendimento pautado no

controle social, isto é, o indivíduo seria corrigido, moldado de acordo com as

diretrizes estabelecidas pelas entidades de internação.

“A idéia era de que a responsabilidade pela educação desses menores era de suas famílias, logo, se essas falhassem, seja pela impossibilidade de provê-los material e emocionalmente, seja pela inviabilidade de afastar-lhes da delinqüência e marginalidade, caberia ao Estado, escorado no Código de Menores, a responsabilidade de corrigir esses estados de patologia social mediante a internação dos menores.” (Segundo, 2002, pg.1).

No final da década de 40 e durante a década de 50 o Serviço de

Assistência ao Menor – SAM (criado em 1940 com a proposta de recuperar e

proteger os menores) e o modelo de internamento começam a sofrer intensas

críticas. Elas pautavam-se em denúncias de casos de abusos e até mortes de

menores no interior das instituições. Outro ponto amplamente divulgado pela

mídia era a incapacidade desses internos abandonarem a delinqüência,

comprovada pela divulgação de nomes de criminosos famosos egressos do

SAM. (Segundo, 2002)

Foi nesse contexto que, em 1964 (não coincidentemente o ano do Golpe

Militar), criou-se a Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor – a

FUNABEM, que objetivava reformar o modelo adotado pelo SAM. A nova

instituição deveria planejar, orientar, coordenar (no âmbito nacional) a política e

o trabalho das entidades de atendimento ao menor. Vemos, dessa maneira,

que a solução não foi de abandonar o sistema calcado nas internações, mas de

mantê-lo e ampliá-lo, tentando corrigir as falhas observadas no SAM, que além

de não “recuperar” os menores, cometia diversos desvios de sua finalidade.

Até o ano de 1974, no Estado de São Paulo, a assistência às crianças e

adolescentes carentes e infratores, era feita em unidades dispersas da

Secretaria da Justiça e, depois, pela Secretaria da Promoção Social, através da

Coordenadoria dos Estabelecimentos Sociais do Estado (CESE), que também

respondia pelas unidades que cuidavam de migrantes, mendigos, alcoólatras,

famílias pobres e outros segmentos socialmente excluídos. A CESE passou a

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acumular a administração de toda a área social do Estado, o que ocasionava

uma sobrecarga de trabalho. Para contornar esse problema, em 1974 foi

proposta a criação de uma instituição para atender especialmente às crianças e

adolescentes. (São Paulo, sem data/a)

Já nos últimos anos de vigência deste Código de Menores, mais

precisamente em setembro de 1974, foi inaugurada, no estado de São Paulo, a

Fundação Pró-Menor, que em 1976 passa a ser denominada Fundação para o

Bem Estar do Menor do Estado de São Paulo – FEBEM-SP seguindo as

diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor – PNBM e com a

finalidade de planejar e executar, neste Estado, programas de atendimento

integral ao “menor” carenciado, abandonado e infrator, através de programas e

providências que visassem a prevenção da marginalização e a correção de

desajustamentos, cumprindo e fazendo cumprir as diretrizes da Fundação

Nacional para o Bem-Estar do Menor – FUNABEM. (Toledo, 2007)

Em 1979, pela Lei nº. 6.697, um novo Código de Menores entra em

vigor, acentuando as disposições relativas ao abandono e à delinqüência.

“Havia, no entanto, uma visão mais terapêutica ou de tratamento relativa ao infrator. Entretanto, dentro dos estabelecimentos e no processo de internamento, predominava a mesma visão moralista, de inibição dos desvios e de vícios na família ou na sociedade.” (Silva e Motti, 2001, pg.25).

Para a criança, assume-se a identidade de pessoa em desenvolvimento.

Há, nesse sentido, apenas a apropriação de um discurso científico que começa

a aparecer no Brasil, no entanto o que segue o Código de 27 é um outro

“Código para Menores” e não uma legislação em prol da criança e do

adolescente. Altera-se também a justificativa para que as instituições de

internação fossem instituições totais: antes era de afastar delinqüentes da

sociedade; em 1979, passa a ser, o fato das instituições terem plenas

condições de dar conta de todas as questões pertinentes a esse período da

existência humana.

O conceito chave para entender esse novo Código é o de situação

irregular (Art. 2º) que compreendia a privação das condições de subsistência,

de saúde e de instrução, por omissão dos pais ou responsáveis, além da

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situação de maus-tratos e castigos, de perigo moral, de falta de assistência

legal, de desvio de conduta por inadaptação familiar ou comunitária, e autoria

de infração penal.

O Código de Menores de 1979 valorizava a manutenção da ordem pela

autoridade judiciária e o Juiz de Menores tinha poder absoluto de decisão

sobre a criança e o adolescente, em uma simetria de poder com a ordem

ditatorial vigente no país. Da mesma forma,

“o chefe do Executivo Federal (...) exercia o poder arbitrário sobre os cidadãos, acima das leis e, em geral, no exercício da repressão aos considerados inimigos do sistema.” (Silva e Motti, 2001, pg.25).

As entidades de assistência compunham uma somatória de diferentes

unidades fragmentadas com visões assistencialistas e que atendiam de

maneira discriminatória as crianças denominadas órfãs, necessitadas ou

abandonadas visando uma formação que dava subsídios apenas para uma

inserção subalterna no mundo do trabalho e na sociedade. (Silva e Motti,

2001).

A FEBEM operacionalizava o atendimento no modelo articulado pela

FUNABEM, mantendo um conjunto de instituições de recepção, triagem e

internação, com uma racionalidade tecnocrática que separava os carenciados

dos considerados de conduta anti-social. As unidades de internação eram

verdadeiras penitenciárias para crianças e adolescentes que, por sua vez,

eram vistos sob a ótica da situação irregular. Além da internação o Juiz

também podia determinar, a seu critério, desde advertência até a liberdade

assistida e a semi-liberdade.

Esse código, revogado em 1990, pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente, não passava de um Código Penal do Menor, disfarçado em

sistema de tutelas. Suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou

seja, penas, disfarçadas em medidas de proteção. Não relacionava nenhum

direito, a não ser sobre a assistência religiosa, e não trazia nenhuma medida

de apoio à família. Tratava da situação irregular da criança e do adolescente

que, na verdade, seriam seres privados de seus direitos. (Liberati, 1991)

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De acordo com o pensamento de Liberati (1991), é possível considerar

que em situação irregular estaria a família, que não apresenta estrutura e que

abandona a criança; os pais, que descumprem os deveres do pátrio poder; o

Estado, que não cumpre as suas políticas sociais básicas; mas não a criança

ou o adolescente.

1.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e As Med idas Sócio

Educativas

Um grande passo na área do direito da criança e do adolescente no

Brasil foi dado com a Constituição de 1988. Nela está consignado que

“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Brasil, CF art.227).

É nesse contexto que, em 13 de junho de 1990, a lei nº. 8.069,

conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente revolucionou o Direito

Infanto-Juvenil, inovando e adotando a doutrina de Proteção Integral. Essa

nova visão é baseada nos direitos próprios e especiais dessa população que,

na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção

diferenciada, especializada e integral.

Ao criar um novo modelo de atendimento público e de atenção aos

direitos da infância e juventude, o ECA vislumbrou um conjunto de ações que

atinge ao mesmo tempo os sistemas de justiça, as esferas governamentais e

várias representações da sociedade civil. É esse diversificado conjunto de

políticas intersetoriais que vem procurando reservar, especialmente para as

crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, outro lugar social nos

contextos locais e nacionais.

A proteção prevista no ECA é considerada integral , primeiro, porque

assim diz a Constituição Federal no artigo supracitado, quando determina e

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assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem

discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à teoria do

“Direito Tutelar do Menor”, adotada pelo Código de Menores revogado, que

considerava as crianças e os adolescentes como objetos de medidas judiciais

quando evidenciada a situação irregular.

A nova teoria, baseada na total proteção dos direitos infanto-juvenis, tem

seu alicerce jurídico e social na Convenção Internacional sobre Direitos da

Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 20 de

novembro de 1989. O Brasil adotou o texto, em sua totalidade, pelo Decreto

N°99.710, de 21/11/90, após ser retificado pelo Con gresso Nacional (Decreto

Legislativo N°28, de 14/09/90).

Dessa forma, o Estatuto volta-se para o desenvolvimento da população

jovem do País, garantindo proteção especial àquele segmento considerado

pessoal e socialmente mais sensível. A criança e o adolescente, que são

concebidos pelo novo instrumento legal como sujeitos de direito em condição

peculiar de desenvolvimento e que devem receber proteção integral, têm, em

oposição a outros períodos históricos, os mesmos direitos fundamentais de

qualquer pessoa humana. Tais direitos encontram-se garantidos pela

Constituição Federal em seu artigo 5º5 e consignados no Estatuto.

A garantia e a proteção desses direitos deverão ser exercidas,

assegurando aos seus beneficiários, quer pela Lei ou por qualquer outro meio,

todas as facilidades para o desenvolvimento físico, moral, mental, espiritual e

social, com dignidade e liberdade (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 3). Cabe, ainda,

ao Poder Público criar condições e programas específicos que permitam seu

nascimento e desenvolvimento de forma sadia e harmoniosa.

O adolescente autor de ato infracional inserido nesta concepção de

indivíduo deve ter garantido seu desenvolvimento integral, sendo a medida

sócio-educativa uma condição especial de acesso a todos os direitos sociais,

políticos e civis. Os agentes envolvidos na operacionalização dessas medidas

têm a responsabilidade de garantir o conjunto de direitos e educar

oportunizando a inserção dessas pessoas em desenvolvimento na vida social.

5 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”(Brasil, Constituição Federal, art.5º).

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Por ser também sujeito de direitos o adolescente deve participar nas

decisões de seu interesse e ter sua autonomia respeitada, no contexto do

cumprimento das normas legais. Isso porque o adolescente tem a possibilidade

de expressão, tem direitos e conhece a realidade na qual sua vida se estrutura,

podendo, portanto, atuar sobre ela. (Volpi, 2005)

No que diz respeito ao histórico das FEBEM’s, com a instauração da

doutrina de proteção integral, surgiu a necessidade de reordenamento

institucional das Fundações pelo país, uma vez que haviam sido criadas de

acordo com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, concebida, por sua

vez, sob a ótica do regime ditatorial vigente na época e permeada por suas

ideologias.

Na última década, o Governo do Estado de São Paulo, vem elaborando

um plano de reestruturação física e pedagógica da FEBEM, para atender aos

adolescentes em conflito com a lei. Em dezembro de 2006, é aprovado o

Projeto de Lei nº 694, pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo,

que altera o famigerado nome FEBEM para Fundação Centro de Atendimento

Socioeducativo ao Adolescente – Fundação CASA.

A “nova” Fundação é uma instituição ligada à Secretaria de Estado da

Justiça e da Defesa da Cidadania e

“tem como missão primordial aplicar em todo o Estado as diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo6 (Sinase), promovendo estudos e planejando soluções direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais, na faixa de 12 a 21 anos.” (São Paulo, sem data b)

Um dos pontos primordiais dessa reestruturação é um programa de

descentralização do atendimento com o objetivo de que o adolescente seja

atendido próximo de sua família e/ou dentro de sua comunidade. O programa

prevê a municipalização – ou seja, “a responsabilização da comunidade local

pelos seus adolescentes” (Teixeira, 2005, pg.21) – das medidas em meio

6 O Sinase é um documento que pretende ser “conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve o processo de apuração de ato infracional e de execução de medida sócio-educativa”. (Documento Referencial para o Sinase, maio de 2005 – Secretaria Especial de Direitos Humanos/Conanda)

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aberto e, no que diz respeito à privação de liberdade, prevê, além da

construção de pequenas unidades no interior do Estado, uma parceria com

entidades indicadas pelos respectivos municípios.

Além da descentralização há o ideal de que as unidades possam realizar

o atendimento de um número reduzido de adolescentes, se comparado à

quantidade de indivíduos atendidos atualmente em diversas unidades da

FEBEM – uma das novas instalações, em funcionamento no interior do Estado,

trabalha com 40 adolescentes em internação e 16 em internação provisória.

Com a utilização de unidades menores de arquitetura adequada busca-se

desativar gradualmente os grandes complexos de internação que vem

marcando a política de atendimento da “antiga” FEBEM. (São Paulo, sem data

a)

O novo modelo psico-pedagógico adotado pela Fundação CASA enfatiza

a “educação formal e a qualificação profissional, com apoio e assistência à

família, tratamento especializado a drogados e portadores de distúrbios

mentais e de comportamento.” (Governo do Estado de São Paulo, sem data a)

A Fundação CASA atende aos adolescentes em cumprimento de medida

sócio-educativa tanto nas de caráter restritivo de liberdade (internação e

semiliberdade), quanto naquelas realizadas em meio aberto (liberdade

assistida e prestação de serviços à comunidade). Para a execução das

medidas em meio aberto, ela apresenta em sua estrutura a Coordenadoria

Técnica das Medidas em Meio Aberto – CTMA, descentralizada e regionalizada

através de 20 Postos Regionais de liberdade assistida no Estado de São Paulo.

“Esses Postos têm por função a coordenação do processo de municipalização das medidas em meio aberto, definindo diretrizes, articulando ações, capacitando organizações governamentais e não governamentais parceiras para o atendimento a estes jovens”. (Toledo, 2007, pg.127)

Apesar de todas as modificações previstas na nova política de

atendimento, diversas pesquisas recentes apontam para as dificuldades de

instauração das mudanças.

Toledo (2007) considera que nem mesmo após quase duas décadas de

implementação do ECA, seus princípios norteadores estejam sendo

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efetivamente implantados. Segundo o autor, alguns Estados se limitaram a

alterar o nome da instituição, mantendo a mesma estrutura de funcionamento,

desrespeitando, inclusive, princípios protetivos previstos no Estatuto; outros

Estados mantiveram o nome – caso da FEBEM-SP, que vem se

“transformando” lentamente em Fundação CASA – e as instituições de

atendimento sem alterações significativas.

Frente a diversas constatações, como documentos sobre condições

intoleráveis em que adolescentes cumprem medidas sócio-educativas de

privação de liberdade em diversas regiões de nosso país, sem deixar de

mencionar os “cárceres da FEBEM-SP”, Teixeira (2005) formula perguntas

para a reflexão a respeito da aplicação de princípios do Estatuto e da

operacionalização das medidas:

“Cabe um esclarecimento: “até quando? ” Significa até quando o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – será desrespeitado na área do adolescente autor de ato infracional? Até quando , nós cidadãos vamos tolerar as condições intoleráveis de existir em que os adolescentes autores de ato infracional aprendem a cumprir a medida socioeducativa de privação de liberade? Até quando os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário irão se omitir frente a este sintoma revelador do modo como tratamos nossa adolescência/juventude? Até quando a obviedade do atendimento em meio aberto destes adolescentes, como estratégia de evitar o internamento e garantir um presente futuro melhor, não será vislumbrada? Até quando as comunidades locais vão se eximir da responsabilidade sobre seus adolescentes?” (Teixeira, 2005, pg. 11)

1.2.1 Caracterização das Medidas Sócio-Educativas

A aplicação de uma medida sócio-educativa considera diversos aspectos

importantes. O ECA propõe que sejam levadas em conta a capacidade do

adolescente7 em cumprir a medida imposta, as circunstâncias sócio-familiares

7 Falamos apenas em adolescentes, pois as crianças – segundo o Estatuto aqueles menores de 12 anos de idade – autoras de atos infracionais estão sujeitas a medidas mais brandas, conhecidas por Medidas de Proteção (que também podem somar-se à aplicação das Medidas Sócio-educativas). As Medidas de Proteção estão previstas no Art. 101 do ECA. São elas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

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e a gravidade do ato infracional cometido8; dependendo, a decisão do Juiz, da

disponibilidade de programas e serviços em nível municipal, regional e

estadual. Dessa forma, o que prevalece no processo decisório são as

condições pessoais do adolescente, deixando, para um segundo plano a

proporcionalidade da resposta em relação à gravidade do ato infracional. O

Estatuto também pontua que a medida preferível é sempre aquela que busque

fortalecer os vínculos familiares e comunitários9.

“As circunstâncias da infração extravasam os limites objetivos do ato infracional e alcançam as motivações do adolescente, especialmente às mediatas, de sorte que a aferição de relações familiares, condições socioeconômicas, situações de cultura, desenvolvimento psicológico e emocional, presença de projetos de vida e outros traços devem ser verificados, de modo que o ato infracional seja considerado como o resultado de um todo e não uma ação comportamental divorciada da existência adolescente.” (Paula, 2006, pg.42 apud Toledo, 2007, pg 47)

A Justiça da Infância e da Juventude é vista como sendo mais informal,

negociativa, mais rápida e suscetível a interferências subjetivas. Nesse sentido,

notamos certa contraposição ao ritual da Justiça Penal que, dentre seus

diversos aspectos que a afastam daquela destinada à população em

desenvolvimento, privilegia o ato criminal em detrimento das condições que o

geraram (Pietrocolla, 2000).

As medidas sócio-educativas podem ser aplicadas aos adolescentes

cuja conduta é descrita legalmente como crime ou contravenção. Elas

“comportam aspectos de natureza coercitiva, uma vez que são punitivas aos infratores, e aspectos educativos no sentido da

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII - colocação em família substituta. (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 101) 8Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 112, § 1º 9 Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 100

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proteção integral e oportunização, e do acesso à formação e informação” (Volpi, 2005, pg.20),

sendo tais elementos ponderados de acordo com a gravidade e/ou recorrência

do delito cometido.

As medidas aplicáveis aos adolescentes, que são explicitadas pelo ECA

progressivamente, da mais branda à mais severa, são as seguintes:

1. Advertência

A advertência (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 115) constitui uma medida

admoestatória, informativa, formativa e imediata. O Juiz da Infância e

Juventude é o responsável por sua execução, cabendo a ele alertar também

aos pais ou responsáveis sobre as atitudes do adolescente. A advertência deve

ser reduzida a termo e assinada pelas partes.

2. Obrigação de Reparar o Dano

A obrigação de reparar o dano (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 116) será

cabível nas lesões patrimoniais com a finalidade de despertar o senso de

responsabilidade do adolescente acerca do bem alheio, levando-o a

reconhecer seu erro e repará-lo. A reparação se faz a partir da restituição do

bem, do ressarcimento e/ou compensação da vítima.

3. Prestação de Serviços à Comunidade – PSC

A prestação de serviços à comunidade (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo

117) consiste em uma medida com forte apelo comunitário e educativo. O

adolescente não é subtraído do convívio com a sociedade e desenvolve tarefas

proveitosas ao seu aprendizado e às necessidades sociais.

4. Liberdade Assistida – LA

A liberdade assistida (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 118 e 119) é a

medida mais indicada quando se entender que a internação não é necessária,

mas é importante que o adolescente seja acompanhado, auxiliado e orientado.

Ele não é privado do convívio familiar e comunitário, mas sofre restrições no

sentido de ser obrigado legalmente a se submeter a um programa individual,

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criado de acordo com suas necessidades. Tem o prazo mínimo de 6 meses,

podendo ser prorrogada a critério do Poder Judiciário, baseado em pareceres

técnicos de acompanhamento do adolescente.

5. Semi-liberdade

O regime de semi-liberdade (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 120) pode ser

determinado desde o início ou consistir em transição para o meio aberto. Em

qualquer das duas hipóteses a medida deverá ser acompanhada de

escolarização e profissionalização. É uma medida que afasta o adolescente do

convívio familiar e da comunidade de origem; contudo, ao restringir sua

liberdade, não o priva do direito de ir e vir.

6. Internação

A medida de internação (Brasil, Lei nº8069/90, Artigos 121, 122, 123,

124 e 125) somente deve ser designada aos adolescentes que cometerem atos

infracionais considerados graves. A privação de liberdade é recomendada

quando for entendido que “a contenção e a submissão a um sistema de

segurança são condições sine qua non para o cumprimento da medida” (Volpi,

2005, pg.28). Sendo assim, a contenção não é a medida em si, mas a forma

para que ela seja aplicada. Os direitos constitucionais do adolescente ficam

mantidos, exceto pela limitação do direito de ir e vir. O adolescente não pode

permanecer em unidade de internação por período superior a três anos.

Após esta breve caracterização das medidas é importante ressaltar que

no regime sócio-educativo, como em qualquer outra condição, o adolescente

deve ter garantido o acesso às oportunidades de superação de sua situação de

exclusão e à formação de valores positivos de participação na vida social.

Os programas de atendimento sócio-educativos devem ser pensados

dentro do princípio da incompletude institucional, responsabilizando as políticas

setoriais no atendimento aos adolescentes.

Nesse sentido é importante que eles possam circular pelo maior número

possível de serviços relacionados à saúde, educação, defesa jurídica, trabalho,

profissionalização, lazer, cultura, dentre tantos outros que integram a rede de

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atendimento às comunidades. Este trabalho pensado em rede constitui-se pela

articulação em torno de um interesse comum e supõe uma interdependência e

complementaridade interconectando agentes, serviços, produtos e os diversos

tipos de organizações. (Daniel, 2008)

Cabe também aos programas cuidar da permanente formação de seus

trabalhadores e respeitar o princípio da não-discriminação e não-

estigmatização, favorecendo a eliminação de rótulos que expõe os

adolescentes e que tanto dificultam a superação de suas dificuldades na

inclusão social. (Volpi, 2005)

1.2.1.1 Liberdade Assistida: o trabalho junto aos a dolescentes e suas

famílias

A Liberdade Assistida vem sendo uma medida que rompe com o antigo

conceito de apenas proteger a sociedade do adolescente infrator, visando

garantir sua integração comunitária com dignidade (Ferreira, 2006). Ela pode

ser aplicada como medida inicial ou como etapa conclusiva do processo sócio

educativo para adolescentes egressos das medidas de internação – uma vez

que não há políticas específicas para essa reintegração na sociedade.

O conceito de Liberdade Assistida não é totalmente novo, mas se difere

amplamente da liberdade vigiada prevista no Código de Menores de 1979 que

lhe deu origem. Enquanto para o antigo Código os adolescentes sujeitos às

medidas eram tidos como objetos de vigilância e controle, pela nova concepção

são sujeitos livres e em desenvolvimento, que requerem apoio ou assistência

no exercício de sua liberdade, para se desenvolverem à plenitude. (Netto,

2008)

A LA, mesmo não sendo uma medida de privação de liberdade,

apresenta aspectos restritivos desta, uma vez que ao adolescente são

impostas condições ao seu estilo de vida e atividades a serem cumpridas,

como a obrigação de comparecer aos atendimentos, a freqüência escolar, a

profissionalização, a estipulação de horários permitidos para a permanência

fora de sua residência e para outras atividades.

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Em contrapondo a este caráter punitivo da medida, Toledo (2007)

discorre sobre o caráter educativo que:

“se expressará através do acompanhamento do adolescente, direcionando o mesmo para o exercício da cidadania, superando, desse modo, a dimensão punitiva da medida e apontando para uma crítica construtiva do ato cometido” (Toledo, 2007, pg. 66).

É importante que os atores envolvidos no atendimento aos adolescentes

tenham clareza de que o ato educativo pressupõe um conceito, uma idéia, uma

expectativa a respeito de que indivíduo queremos formar (Netto, 2008). Tal

expectativa não se restringe a um ideal de adolescente pré-concebido, mas

suscita a questão “educar para o quê?”, que permite a constante reflexão sobre

o que dá o caráter educativo da medida, sobre quem é o adolescente atendido,

quais são suas demandas e para qual sociedade o estaremos formando.

Figuras de referência essenciais para a execução dessa medida são os

orientadores (como os chama o ECA) ou educadores sociais, que se

configuram como os principais responsáveis pelo acompanhamento dos

adolescentes e cujas incumbências mínimas constam no Art. 119 do Estatuto

da Criança e do Adolescente.

“Art. 119. Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão da autoridade competente, a realização dos seguintes encargos, entre outros: I - promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; II - supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula; III - diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho; IV - apresentar relatório do caso.” (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 119)

Os educadores são, portanto, no processo de cumprimento da LA, os

responsáveis por conhecer o mundo dos adolescentes que atendem, devendo

estabelecer planos individuais de atendimento, voltados para as características

pessoais do adolescente, para as necessidades que ele apresenta e para os

projetos oferecidos pela instituição que os acompanha. Nos planos de

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atendimento se estabelecem metas a serem cumpridas e prioridades a serem

consideradas para cada um desses indivíduos.

É fundamental não perder de vista algumas dessas metas como a

proteção do adolescente, a manutenção de vínculos familiares, matrícula e

freqüência escolar, inserção no mercado de trabalho ou em cursos

profissionalizantes e formativos (Volpi, 2005). É importante, ainda, que se

propiciem condições para que:

“ele (o adolescente) se perceba como ser potencialmente criador e transformador, com possibilidade de se relacionar com a sociedade de modo diferente daqueles que ensejaram o cometimento do ato infracional.” (Toledo, 2007, pg.71).

Junto ao adolescente, é importante que o educador estabeleça:

“um contrato preciso sobre as possibilidades e limites da ajuda que irá encontrar e sobre as normas que regulam seu período de permanência em LA, o uso do programa e a relação profissional com o educador” (Teixeira, 1994, pg.50).

Tal relação profissional – que busca, entre outras coisas, evitar a relação

de cumplicidade que possa vir a instigar o educador a omitir situações de

transgressão por parte do adolescente que atende – não deve excluir a

formação de um vínculo de confiança, condição fundamental para o sucesso do

trabalho com o adolescente.

Losacco (2008) pondera que o trabalho realizado com os adolescentes

exige que algumas características específicas estejam mais presentes do que

no trabalho com outras populações. Dentre elas a autora ressalta a flexibilidade

e a firmeza num contraponto interessante que permite pensar características

que poderiam se supor opostas, integradas para dar continência e apoio aos

jovens atendidos.

“(...)flexibilidade para contemplar o todo, agilidade para perceber suas particularidades, maleabilidade para enxergar as diversidades, aptidão para encaminhar novas propostas na superação das complexidades de um mesmo fato vivenciado por diferentes populações e sujeitos. Firmeza no estabelecimento das regras instituídas pelo grupo/coordenação; persistência e

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constância na operacionalização das ações; vigor nos trabalhos desenvolvidos.” (Losacco, 2008, pg.80)

Outro aspecto que merece destaque é a possibilidade que o educador

deve ter de evitar uma abordagem moralista da conduta do adolescente,

podendo ajudá-lo a desenvolver a capacidade de reflexão e elaboração de

suas experiências pessoais, descobrir suas dificuldades, compreendê-las e

organizar-se no sentido de superá-las. O educador fica responsável pela

instrumentalização do adolescente para buscar, na coletividade, as instituições

serviços e oportunidades que atendam suas necessidade, bem como de

fornecer informações e outras visões de mundo que subsidiem a elaboração de

seu novo projeto de vida.

O profissional deve estar instrumentalizado para refletir a respeito da

concepção e da finalidade da atividade que realiza junto aos adolescentes,

uma vez que grandes expectativas por resultados imediatos podem causar

grande frustração quando se observa o outro em sua humanidade e em sua

complexidade.

Pensando a medida por seu viés sócio-educativo, o trabalho realizado

não busca direta e imediatamente o rompimento com a prática infracional, mas

um sentido na vida desses adolescentes que infracionam, afim de que

refletindo possam descobrir outras possibilidades gratificantes e/ou outras

estratégias de sobrevivência.

Nesse sentido é possível pontuar a importância de que não haja a

postura institucional de querer converter o adolescente, mas sim de uma troca

intensa na relação com o Programa – muitas vezes pela pessoa do educador –

que possa se ampliar para a sociedade. De acordo com Freire (1985) quando

se pensa em converter o outro “é porque temos um ponto de partida que é o

seguinte: onde se está é melhor, o que a gente faz é melhor. Senão não

haveria porque converter o outro”. Sendo assim, a troca possibilita a

transformação da realidade concreta vivida pelo adolescente, diminuindo o

abismo criado entre ele e a sociedade geradora de desigualdades e injustiças

(Silva, 2007). Podemos pensar ainda que a obediência não apropriada de uma

regra não gera reflexão.

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Na posição de facilitador o educador deve manter permanente contato

com o adolescente durante todo o período de cumprimento da medida –

utilizando tanto a abordagem grupal quanto a individual.

A família, sempre que possível, deve ser considerada como parceira

privilegiada para os atendimentos aos adolescentes, pois além da experiência

da infração refletir no núcleo familiar, considera-se a família como o centro da

socialização primária da criança e o espaço social onde ocorrem as primeiras

transmissões de valores, hábitos, cultura e onde, pressupõe-se, a criança

receba proteção e cuidados.

Dessa forma a família deve ser integrada no programa de atendimento

ao adolescente no sentido de poder também ser acolhida em suas dificuldades,

orientada e, ainda, encaminhada para serviços de auxílio e assistência social,

para que tenha condições de cumprir seu papel nesse momento peculiar da

existência de seus filhos.

Veltri (2006) pontua que:

“a prática vem demonstrando em muitos momentos que (...), antes mesmo das fases processuais, essa família é culpabilizada em suas fragilidades, por não oferecer continência aos seus filhos, por ser incapaz de oferecer sozinha alternativas de sustentabilidade e sociabilidade a eles”. (Veltri, 2006, pg.57)

Além do acolhimento, sensibilização das famílias sobre a importância do

estabelecimento de parcerias e encaminhamentos para a mesma, o grupo

familiar ainda pode ser alvo de outra ação por parte do programa que atende o

adolescente – seja na pessoa do educador ou de responsáveis técnicos como

psicólogos, assistentes sociais ou pedagogos – que são as visitas domiciliares.

Nessas ações é possível conhecer o adolescente e sua família inseridos

em sua realidade, conhecer as situações de moradia e cuidados da maneira

com que elas realmente se configuram e pensar estratégias de atuação e

outros encaminhamentos necessários. Tais visitas também podem ser

utilizadas como estratégia de aproximação com as famílias que nem sempre se

implicam voluntariamente no processo de atendimento de seus filhos e com os

próprios adolescentes.

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32

No decorrer do período em que o adolescente está sendo acompanhado

pelo educador, este deve encaminhar relatórios periódicos ao Juiz responsável

pela aplicação da medida sócio-educativa. Tais documentos são instrumentos

de diálogo entre o educador e o Poder Judiciário, inicialmente para formalizar o

compromisso do adolescente, da família, e do programa de atendimento.

Outros relatórios têm a finalidade de informar estratégias utilizadas para

conhecimento do adolescente e sua família; informações relevantes a respeito

deles obtidas; do plano individual de atendimento que foi formulado, da

assiduidade do adolescente e de sua família às atividades programadas, e do

andamento da medida. O educador deve informar qualquer intercorrência que

obstaculize o cumprimento da medida, seja ela uma possível impossibilidade

de regularizar a situação escolar do adolescente por falta de vagas, a família

que apresenta dificuldades em se responsabilizar por ele, alguma questão de

saúde, ou até mesmo o não comparecimento do adolescente a suas atividades

programadas.

São essas informações que irão determinar se a medida está cumprindo

com seu objetivo e se o prazo inicialmente estipulado foi o suficiente ou se o

término da medida deve ser prorrogado. Caso o Juiz seja informado de que o

adolescente não está cumprindo a medida, um mandado de busca e apreensão

pode ser expedido e o adolescente submetido a uma medida mais severa. Por

último, caso a medida tenha cumprido ao que se propunha, o Poder Judiciário

recebe do educador um relatório de encerramento.

Nesse sentido é imprescindível que o orientador esteja sempre atento às

novas interferências na vida do adolescente, procurando sempre interpretar os

fatos de modo que não sejam desvinculados de sua realidade cotidiana. É

importante que sejam levadas em consideração as prerrogativas previstas no

ECA (principalmente em seu Art. 4º) e as dificuldades para cumpri-las em

função da falência das políticas públicas na área social. Não basta dizer, por

exemplo, apenas que o adolescente não assumiu a escola, é necessário dizer

os motivos que o levaram a ficar fora dela.

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33

Capítulo 2

Adolescência: contribuições da Psicologia

Para que possamos refletir a respeito da medida sócio-educativa de

Liberdade Assistida sob a ótica do próprio adolescente submetido a ela, é

necessário que façamos uma contextualização deste público em alguns

aspectos.

Inicialmente, devemos refletir sobre a adolescência como uma fase do

desenvolvimento, como tanto pontua o ECA ao pensar em seus direitos e

propor a doutrina de proteção integral que o baliza. Desenvolvimento este que

não se restringe às mudanças físicas, mas abarca questões relacionadas à

busca de seu espaço no mundo. Para pensar a adolescência nesse recorte

recorremos às idéias do Desenvolvimento Psicossocial presente no

pensamento de Erikson.

Este capítulo busca, então, refletir brevemente sobre o que cerca, na

Psicologia, a idéia de adolescência. Tais construções teóricas contribuíram,

direta ou indiretamente, para a elaboração do Estatuto que trata a respeito

dessa população, entendida de maneira especial e diferenciada.

2.1 Algumas concepções sobre o fenômeno da adolescê ncia

A adolescência é um fenômeno que apenas recentemente foi

representado pela literatura romântica, aparecendo no início do século XX em

pesquisas psicológicas através dos estudos de G. Stanley Hall. Esse período

histórico condiz com a transformação das sociedades modernas

industrializadas que, conforme se complexificavam, criavam um período de

intervalo de aprendizagem. Esse período separava o momento de maturidade

biológica e o de maturidade social, ou seja, começou a haver um retardamento

na tomada das responsabilidades adultas (Pereira, 2005; Calligaris, 2000).

Assim como não existe um consenso sobre a visão de homem entre as

mais diversas abordagens da área da Psicologia, não existe uma visão de

adolescente que contemple todas as linhas de pensamento. Encontramos, no

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entanto, na literatura, dois grandes eixos amplamente divulgados e estudados.

O primeiro abrange as teorias de orientação psicanalítica, dando primazia aos

elementos intrapsíquicos como fatores desencadeantes da “crise” da

adolescência; o segundo, engloba teorias de orientação sociológica que

explicam a “crise” a partir das mudanças sociais e históricas.

Pereira (2005) explica a criação do conceito de adolescência levando em

conta que:

“os acontecimentos psicológicos da adolescência não são necessariamente, em nossa sociedade, apenas um correlato natural das mudanças físicas da puberdade, mas também uma construção cultural, produto da complexidade das mudanças sociais.”(Pereira, 2005, pg. 2)

Ainda nesse sentido de compreensão do momento da adolescência,

Ozella (2003) relata um estudo realizado no final da década de 90, cujo objetivo

era entender a concepção de adolescência na Psicologia, partindo do

depoimento de profissionais da área que trabalham com esse público ou

estudam o fenômeno da adolescência.

Para tanto, foram definidas quatro categorias de análise, partindo dos

discursos dos entrevistados, que marcariam o significado de adolescência para

esses profissionais: a adolescência como etapa (recorte no tempo, uma fase

marcada e delimitada por características “típicas” da idade), como processo

(visão longitudinal e histórica como parte de um processo de desenvolvimento,

de transição para a vida adulta), como categoria inerente (faz parte da natureza

do homem, sendo inevitável) e como resultado de uma construção social

(dependente das relações sociais estabelecidas durante o processo de

socialização, incluindo fatores econômicos, sociais, educacionais, políticos,

culturais etc.).

Essas categorias, por sua vez, foram inseridas em duas visões distintas

de homem: a visão liberal e a sócio-histórica. A primeira visão, abarcaria as

categorias etapa e inerente; a segunda, as categorias processo e construção

social.

Na visão liberal o homem é concebido a partir da idéia de natureza

humana, sendo um ser livre e dotado de potencialidades naturais. A sociedade

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é algo externo e independente do homem, contrária às suas tendências

naturais. O fenômeno psicológico – a essência do homem – é visto como

privado e a relação que se estabelece como o mundo externo estimula ou

impede seu desenvolvimento.

Por outro lado, a visão sócio-histórica considera que o indivíduo tem

suas características forjadas pelo tempo, pela sociedade e pelas relações.

Diferentemente da idéia de natureza humana, há a idéia de condição humana à

medida que o sujeito é capaz de construir formas de satisfação de suas

necessidades junto aos outros homens. Nesse contexto, o fenômeno

psicológico surgiria e se constituiria a partir das relações do homem com o

mundo físico e social, sendo todos os elementos do mundo psicológico forjados

nessas relações.

De acordo com Campos (2006):

“Essas duas hipóteses (...) utilizam uma conceituação de indivíduo que carrega uma essência de um ‘mundo interno’ e a sociedade como uma ‘força externa’, que estariam em constante luta e não em uma relação de constituição dialética.” (Campos, 2006, pg.72)

No entanto, o autor busca rebater essas concepções afirmando que

seria impossível considerar indivíduo e sociedade como entidades distintas.

Defende sua colocação argumentando que o próprio conceito de indivíduo não

aparece desde sempre na cultura, tendo se configurado em construções

sociais ocorridas ao longo da história. (Campos, 2006)

Em 1928 foi publicado um estudo realizado pela antropóloga social

Margaret Mead (1901/1978): Adolescência, sexo y cultura. Nesse trabalho, a

autora descarta a universalidade da adolescência, ao comparar e encontrar

diferentes formas de vivência adolescente entre uma cultura considerada

primitiva (a de Samoa, na Polinésia) e uma considerada moderna (a dos

Estados Unidos).

Mead descreve a entrada da adolescência nessa cultura dita primitiva,

como um processo tranqüilo, sem grandes conflitos ou maiores tensões.

Descartou, ainda, as determinações biológicas desse período e as psicológicas

erigidas sobre elas. Com isso, apontava que as ações hormonais, não

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necessariamente implicariam em conflitos psicológicos, impulsividade

exacerbada ou alterações comportamentais. (Mead, 1972 apud Freire, 2007)

A autora atribuiu isso ao fato da transição entre infância e vida adulta ser

feita de forma gradual. À criança samoana jamais era ensinado algo que não

fosse compatível à realidade da pessoa adulta, dessa maneira, o crescimento e

desenvolvimento acontecia de forma harmoniosa. Sua tese, então, é que a

descontinuidade no desenvolvimento, no processo de obtenção de

independência do ser humano, ocasiona uma adolescência tempestuosa e

tensa.

As sociedades ocidentais não compactuam com esse modelo de

maturação. Para que as crianças tornem-se adultas, o mundo no qual são

criadas deve ser parcialmente destruído por ser incompatível às regras e

exigências da maturidade.

2.1.1 Erik Erikson: a idéia de “crise da adolescênc ia”

Influenciado pelas pesquisas de Mead, temos Erik Erikson (1902/1994),

psiquiatra de orientação psicanalítica, responsável pelo desenvolvimento da

Teoria do Desenvolvimento Psicossocial e um dos teóricos da Psicologia do

Desenvolvimento.

Erikson teve uma grande influência na concepção da adolescência

enquanto uma fase de crise. No entanto, Osório (1989) ressalta que a idéia de

crise presente no pensamento de Erikson contém um caráter polêmico,

gerando muitas vezes interpretações equivocadas.

Osório (1989) afirma que o termo crise tem origem no grego krisis, que

significa o ato ou faculdade de distinguir, escolher, decidir e/ou resolver.

Explica, ainda, que Erikson chamou a adolescência de crise normativa,

referindo-se a um momento de organização e estruturação do indivíduo (e não

a um processo patológico); daí a associação do termo crise à adolescência.

Erikson enfoca seus trabalhos na crise do ego e no problema da

identidade. Das grandes contribuições que trouxe à psicologia temos a

sugestão de que, paralelamente aos estágios de desenvolvimento psicossexual

descritos por Freud (oral, anal, fálico, de latência e genital), havia estágios

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psicossocias de desenvolvimento do ego, nos quais o indivíduo tinha que fixar

novas orientações básicas para si e para o seu mundo social. (Pereira, 2005).

Afirmou também, que o desenvolvimento da personalidade prolonga-se

por todo o ciclo vital do indivíduo e que cada estágio do desenvolvimento

apresenta um momento crítico, uma crise.

“Período de decisão entre um pólo positivo e outro negativo, entre progressão e regressão, integração e retardamento. Cada estágio representa uma crise de aprendizagem, com possibilidade de aquisição de novas habilidades e atitudes.” (Pereira, 2005, pg. 61)

Nesse sentido, Erikson identificou oito estágios no ciclo vital. O desfecho

satisfatório de cada um deles, ou seja, de cada crise, torna possível o

surgimento de um ego mais forte e estável, e uma nova dimensão de interação

social: com as pessoas, consigo mesmo e com seu ambiente social. Para

Osório (1989) as crises ensejam o acúmulo de experiência e uma melhor

definição de objetivos.

As três dimensões – biológica, social e individual – são consideradas em

seus estudos. Para ele a personalidade resulta da interação contínua entre

essas dimensões que são inseparáveis e interdependentes.

Cada uma das oito crises, pelas quais o indivíduo passa ao longo da

vida, é importante durante um estágio específico, tendo raízes em estágios

prévios e conseqüências em estágios subseqüentes. São elas:

1. Confiança Básica versus desconfiança básica (dos 0 aos 12/18 meses)10

2. Autonomia versus vergonha e dúvida (dos 12/18 meses aos 3 anos)

3. Iniciativa versus culpa (dos 3 aos 6 anos)

4. Produtividade (diligência) versus inferioridade (dos 6 aos 12 anos)

5. Identidade versus confusões de papéis (adolescência – dos 12 aos

18/20 anos)

6. Intimidade versus isolamento (dos 20 aos 30 anos)

7. Generatividade versus estagnação ou auto-absorção (dos 30 aos 65 anos)

8. Integridade versus desesperança (após os 65 anos)

10 As idades de cada fase são aproximadas. Nas diversas fontes pesquisadas variam em alguns anos ou são especificadas pela época que a fase compreende como, por exemplo, meia-idade (7ª crise) ou velhice (8ªa crise).

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Temos, então, que a fase relativa ao período da adolescência

equivaleria à “quinta crise” do desenvolvimento. É o período no qual surge a

confusão de identidade e questões relacionadas à sua personalidade; suas

escolhas e sua diferenciação em relação aos pais são levantadas (para

alcançar uma identidade própria é necessário o processo de rejeitar o legado

dos pais). Erikson ressalta que em cada geração a juventude cria uma

identidade própria que reflete tal momento cultural, fazendo com que

compartilhe de um destino comum. Ele afirma:

“(...) em termos psicológicos, a formação de identidade emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como os outros o julgam, em comparação com eles próprios e com uma tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se tornaram importantes para ele. Este processo é, felizmente (e necessariamente), em sua maior parte, inconsciente – exceto quando as condições internas e as circunstâncias externas se combinam para agravar uma dolorosa ou eufórica “consciência de identidade”. (Erikson, 1987, pg. 21)

Na busca pela continuidade e pela uniformidade do ego, a adolescência

compreende uma reelaboração dos conflitos das etapas anteriores, até que o

indivíduo possa tomar posse de novos ídolos e idéias que serviriam para

sustentar uma identidade tida como final11 e que corresponde à idade adulta.

Daí a idéia de moratória, que se instalaria durante a adolescência. (Campos,

2006)

Essa moratória é um compasso de espera nos compromissos adultos. É

um período de pausa necessária a muitos jovens, de procura de alternativas e

de experimentação de papéis, que vão permitir um trabalho de elaboração

11 O processo que estão vivenciando é de formação de identidade, pois não estão assumindo uma identidade final. No entanto, sem ter uma definição sobre o futuro em seus últimos anos de escola, com dúvidas sobre quais papéis no mundo adulto poderão desempenhar e sentindo as mudanças fisiológicas referentes ao amadurecimento genital, a procura do reconhecimento em grupos de pares com a formação de identidades adolescentes e marcada pela excentricidade em relação ao mundo adulto; acabam, nesse momento, experimentando em suas imaginações a construção de uma identidade final. (Campos 2006)

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interna. A sociedade permite ao adolescente espaços de experimentação, nos

quais ele explora e ensaia vários estatutos e papéis sociais.

O adolescente revisita as fases anteriores, para poder substituir o meio

no qual estava assentado pelo meio no qual está sendo inserido. A sociedade,

no entanto, apresenta contornos bem menos definidos que os da infância,

exigindo que os elementos que foram experimentados anteriormente sejam

integrados (uma reorganização do individuo) para preparar sua passagem para

o mundo dos adultos.

Nesse sentido Campos (2006) afirma:

As identificações e a formação da identidade, aparecem como a principal tarefa adolescente. (...)A finalidade da adolescência está em trocar o caráter lúdico das identificações que existiam na infância por identificações que terão uma base sólida para o jovem fazer escolhas e decisões para a seqüência da vida” (Campos, 2006, pg. 46)

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Capítulo 3

As Contribuições da Fenomenologia-Existencial

Para que possamos discutir a compreensão da fenomenologia-

existencial sobre o período da adolescência, é de suma importância que

possamos conhecer alguns aspectos fundamentais da “Condição Humana” na

concepção desta abordagem teórica.

As idéias de Martin Heidegger (1889/1976), filósofo alemão, contidas em

seu livro “Ser e Tempo” (publicado em 1927) serão utilizadas para a exposição

da compreensão do existir humano. Nos embasaremos também em alguns

autores que compartilham e discutem a respeito de suas concepções.

Para expor as especificidades da experiência adolescente utilizaremos

como referência as reflexões de Carlos Eduardo Carvalho Freire e Emmanuel

Carneiro Leão.

3.1 O Homem na perspectiva Fenomenológica-Existenci al

Iniciaremos nossa exposição sobre o pensamento heideggeriano

apresentando o termo alemão, proposto pelo autor, para denominar o ser

humano: o Dasein12. Esse termo indica uma maneira peculiar de ser do

homem, que o diferencia de outros seres vivos e dos objetos, denominados

apenas entes. Sodelli (2006) expõe duas condições fundamentais que

distinguem o caráter peculiar da existência humana, do caráter da existência

das coisas.

A primeira delas é a condição de finitude, que significa que o Dasein é o

único ser capaz de se dar conta de que é um ser mortal, um ser-para-a-morte.

O fato de saber, desde o início, que segue em direção ao seu fim e de que,

uma vez sabendo, tem que conviver com essa condição, marca um modo

distinto do homem estar no mundo.

A outra condição é o fato do homem ser livre:

12 O termo Dasein é em muitas traduções substituído por ser-aí ou pre-sença. Todos são bastante utilizados na literatura fenomenológica.

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“O Dasein é essencialmente livre, no sentido de ser capaz de realizar opções e de tomar decisões das quais resultam significados de sua existência. Os outros animais já nascem destinados a serem eles mesmos, pois não têm a possibilidade de ser outra coisa” (Sodelli, 2006, pg. 69)

Dois sentimentos próprios do Dasein têm origem em tais condições

ontológicas (sendo que, principalmente, o segundo a ser exposto será de

grande valia para melhor compreensão da citação acima). O primeiro deles, a

angústia, aparece fortemente vinculado à questão da finitude.

O Dasein tem na morte o seu fim e não tem a possibilidade de antecipá-

lo no sentido de saber como será. Nesse sentido, Heidegger (1996, pg. 33)

pontua que “A angústia com a morte é angústia “com” o poder-ser mais próprio,

transmissível e insuperável.”.

Considerando as discussões de Boss (1975), Sodelli (2006) esclarece

que a angústia teme a um de que e um pelo que. O medo de que ao qual se

refere, compreende a possibilidade real do Dasein de um dia não estar mais

aqui; e o pelo que, à responsabilidade de zelar e cuidar de sua continuidade no

mundo.

A culpa é o outro sentimento próprio do Dasein. Isso porque o homem,

lançado no mundo está aberto à infinitas possibilidades. No entanto, é

necessário que ele faça escolhas durante todo tempo, e ter que escolher

impede a realização integral de suas potencialidades.

O Dasein recebe, então, seu existir como uma tarefa da qual deve dar

conta, pois seu ser está em jogo, inacabado. Podemos falar de uma

insuficiência ontológica: o “é” do Dasein é tão incompleto que ele continua

precisando ser, ou seja, uma vez que seu ser não é dado à priori, precisa atuar

no mundo, fazer escolhas e encarar as conseqüências das mesmas. O Dasein

compreende-se, portanto, em sua condição ontológica de abertura, como um

“ter que ser”.

Martins (2006), nesse sentido do “ter que ser” ponderam que o homem

não tem a possibilidade de escolher de que forma e em quais situações – de

cultura e família, por exemplo – vai ser lançado ao mundo. O homem é, então,

limitado pela circunstancialidade, mas dotado da possibilidade, da capacidade

e da aptidão de realizar escolhas. Essas contínuas escolhas implicam em

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correr riscos, em assumir compromissos e sofrer as conseqüências das

decisões tomadas. No entanto, “sem correr riscos não há opções significativas

para o ser e sem elas não há liberdade”. (Martins, 2006, pg. 54)

Cabe, neste momento, recorrermos novamente à Sodelli (2006) que

afirma:

“Na compreensão Fenomenológica Existência, o homem se torna Dasein unicamente na sua relação de ser-com-os-outros (humanos). Dasein é sempre uma possibilidade, na qual s encontra uma abertura para a experiência. O homem é ser-existindo-aí.” (Sodelli, 2006, pg. 69)

Nesse contexto, é importante compreender a expressão fenomenológica

ser-no-mundo, uma das condições básicas daquele que existe. Tal condição

apresenta-se como necessária, mas não única para determinar por completo o

ser do Dasein.

Em seu “ter que ser” o homem é no mundo, junto às coisas; assim, o ser

humano não reconhece as coisas como objetos isolados, externos, dos quais

ele poderia simplesmente criar representações internas pra se relacionar. Essa

dicotomização sujeito-objeto dissolveria o fenômeno de unidade para o qual

aponta o termo ser-no-mundo, e pelo qual ele deve ser compreendido.

A separação suporia a relação do ser com o mundo da seguinte forma:

primeiro eu sou, depois eu sou no mundo – seja esse mundo anterior ao

homem ou criado por ele. No entanto, a fenomenologia considera que o

indivíduo está acontecendo num mundo no qual ele já está.

O mundo se apresenta ao Dasein como uma totalidade de significados

e, dessa forma, podemos considerar que tudo esteja interligado: uma “coisa” se

dá à luz da outra e a elas próprias não se explicam por si só. O Dasein

enquanto ser-no-mundo se ocupa das coisas e é a partir dessa forma de se

relacionar que mundo e homem vão constituir-se mutuamente. De acordo com

Heidegger (2005) o homem “é” (existe) na exata medida de seu “ser-em” (na

sua relação com o mundo).

Na perspectiva existencial há três sentidos possíveis para a palavra

mundo, que são três aspectos simultâneos que caracterizam a existência. São

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eles o mundo circundante (Umwelt), o mundo compartilhado (Mitwelt) e o

mundo próprio (Eigenwelt). (Heidegger, 2005)

O mundo circundante consiste naquele mais próximo do dasein

cotidiano, o mundo das coisas que nos cercam no dia-a-dia. O segundo, o

mundo compartilhado é aquele no qual somos-com-os-outros, no qual

acontecem nossas relações. O último, o mundo próprio, é o mundo de relações

de sentidos e significados do Dasein com ele mesmo. Vale ressaltar que os

três mundos são vividos simultaneamente pelo Dasein, constituindo três

facetas simultâneas do ser-no-mundo; não são estanques, isolados uns dos

outros.

May (1988) nos diz que enquanto o primeiro mundo nos é comum com

os demais entes, os dois outros fazem parte do universo humano. Isso se

justifica, pois apenas o homem é capaz de dotar de sentidos e significados o

seu mundo de relações, seja ele o mundo natural, o de relações interpessoais

ou seu mundo próprio.

Sobre o mundo próprio, Martins (2006) comentam a possibilidade de

desvelamento do mundo e de si mesmo, a partir da relação do homem consigo

próprio.

“É sobre essa natureza reflexiva do ser humano, quando ele se relaciona consigo próprio, que a consciência de si mesmo surge. O ser do homem pode, porém, ao transcender-se a si mesmo, transformar-se num objeto, num julgamento, numa avaliação, numa culpa, criando uma armadilha para si, mas pode, também, perguntar-se: “Quem sou eu?” e, dessa forma, desvelar-se a si mesmo e desvelar o mundo.” (Martins, 2006, pg. 47)

Considerando outra faceta inerente ao existir humano, isto é, outra

faceta ontológica, podemos pensar no Dasein enquanto Cura ou Cuidado

(Sorge). Esse termo supõe que:

“(...) ao dar-se conta de ser, de poder-ser, o homem percebe que tem que dar conta de seu ser, ou seja, tem que dar conta de sua existência e, sobretudo, isto está sob sua responsabilidade. Assim, o homem tem que “cuidar de ser”. Os homens tomam para seu cuidado tudo o que pertence à existência: o mundo, as coisas do mundo, os outros homens, si mesmos. Heidegger define como “cuidado” o habitar o mundo e construí-lo, preservar a vida

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biológica e atender suas necessidades, tratar de si mesmo e dos outros.” (Sodelli, 2006, pg. 71)

É partindo de seu caráter de Cuidado que o Dasein se relaciona no

mundo no qual se desvela. Os dois planos em que, predominantemente, se

desenvolve o exercício do Dasein promovem relações com dois modos de ser

da existência: os objetos, ferramentas, ou utensílios que o Dasein utiliza em

sua relação de contato, conhecimento e domínio do mundo; e os seres que são

os demais Dasein’s com os quais compartilha seu existir.

Com o primeiro grupo, dos entes, o Dasein se relaciona na maneira da

ocupação (Fuersorge) – o homem se ocupa das coisas do mundo, mesmo

quando não está realizando nenhuma tarefa de ordem prática. Com os outros,

os Dasein’s, sua relação é permeada pela preocupação (Besorgen). Essas

maneiras do Dasein se relacionar com os entes intramundanos (categoria que

constitui os dois grupos) podem ser entendidas como possíveis manifestação

do Cuidado.

Heidegger (2005) afirma que a escolha desse cuidar não é aleatória e

que baseia-se num aspecto triplo: do que cuidar, do modo de cuidar e de como

se vai cuidar desse cuidar mesmo. Os dois primeiros aspectos são herdados

da cultura, do mundo em que nascemos; já o modo de cuidar do próprio cuidar

nos encaminha ao âmbito do sentido.

Diante de tais colocações, Sodelli (2006) afirma que:

“Esse sentido deve ser entendido como um rumo que apela, em outras palavras, uma destinação, em que se abre a possibilidade de se cuidar de ser, dando-se conta de ser numa certa direção e não em outra.” (Sodelli, 2006, pg. 72)

O autor continua falando a respeito do cuidar do existir em dois

aspectos. Pontua que é através da disposição (os estados de humor) que o

Dasein cuida do existir, se abre ao mundo, e que é por esse cuidado que o

sentido originalmente se manifesta.

Falemos, então, sobre a disposição. Esta é a forma pela qual o Dasein

se abre para o mundo, é o estado em que nos encontramos, a forma de ser-em

com que nos dispomos ao mundo. Tudo que vem ao encontro do ser humano

vem por meio dos estados de humor, portanto, podemos dizer que a

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compreensão do homem em relação às coisas é sempre emocionada:

descobrimos as coisas como prazerosas, amedrontadoras, interessantes,

indiferentes, etc.

É importante ressaltar que segundo Heidegger (2005), a abertura da

disposição possibilita e desenvolve o que o Dasein representa, por meio da

emoção e afeto, sem que necessariamente tenha um movimento de

consciência. A maioria das pessoas apresenta a compreensão dos estados de

humor por meio daquilo que ainda não foi intelectualmente compreendido, do

velamento.

Compreender é entendido pelo autor como a permissão de uma

atribuição de significados tanto na relação com as coisas como na relação das

coisas. Na medida que possibilita a abertura para a atribuição de inúmeros

significados ao existir, entendemos que a compreensão, enquanto modo de

ser, amplia a manifestação do ser de possibilidades do Dasein. A “atribuição de

significados (...) já traz implícita a interpretação. (...) Não há compreensão sem

interpretação.” (Sodelli, 2006, pg. 71)

É a rede de significações que os indivíduos vão construindo entre si

mesmos e por meio da qual vão se referindo e lidando com as coisas, com os

homens e falando, que constitui o ser das coisas. O Dasein é capaz de atribuir

significados novos ao mundo que o rodeia, pois os significados não estão nas

coisas elas mesmas, mas na compreensão do Dasein. (Critelli, 1996)

Outro caráter importante para a compreensão do Dasein e,

posteriormente, para a compreensão do período da adolescência é a

temporalidade. Fenomenologicamente, o Dasein existe temporizando-se entre

o tempo que nasceu até a sua morte. Passado, presente e futuro convivem de

maneira que o que conta é o tempo do sujeito, não o tempo como controle de

horas, minutos e segundos.

O futuro é uma antecipação, o passado, a retomada do que uma vez foi

possível, e o presente, o instante da decisão. O passado existe no presente, da

mesma maneira que nele já antecipa-se o futuro, permitindo um diálogo e uma

relação constante entre estas três dimensões do tempo.

Heidegger (2001) questiona-se sobre que relação poderia haver entre o

ser e o tempo. Sua resposta:

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“Dissemos que “agora” tem o caráter do que está presente. Mas o acaba de é passado e o logo a seguir é o que chega. Ambos são, pois, um não-ser diferente, isto é, um ainda não ser – e um não ser mais. O conceito de ser no sentido de presença em relação ao tempo é determinada como agora. Surge daí a questão se o ser quando determinado como presença (presente) não recebe, justamente ao contrário, a sua determinação a partir do tempo e é concedido por ele?” (Heidegger, 2001, pg. 62)

Por último, iremos abordar os modos de ser do Dasein, suas

possibilidades existenciais: a impropriedade (inautenticidade) e a propriedade

(autenticidade).

O homem, lançado ao mundo, procura conhecê-lo e com ele relacionar-

se. Essa maneira de ser (inautêntica) manifesta-se pelo modo fundamental da

cotidianidade denominado queda ou de-cadência (Verfallen).

“Este termo nos remete ao fato de que o Dasein vive no mundo das ocupações e que geralmente se perde na publicidade (Oeffentlichkeit) do impessoal, a qual rege toda e qualquer interpretação do Dasein e do mundo, por meio da medianidade e do nivelamento.” (Trindade, 2002, pg. 155)

O Dasein descobre-se ou sente-se inserido no mundo, mas, pelo

discurso do impessoal, acaba regido pelo obscurecimento e não-entendimento

do que lhe ocorre. O Dasein, que se compreende a partir de seu mundo, é

absorvido por ele e, embora acredite estar sendo ele mesmo e possa falar a

respeito da crença de que seja assim, é de fato o que a convivência com “os

outros” lhe aponta, ainda que não se dê conta disso. No entanto, “os outros”

não constitui esta ou aquela pessoa, mas sim o neutro, o impessoal.

Vale ressaltar que, de acordo com Heidegger (2005), nesses conceitos

não há juízo de valor. Impropriedade e propriedade são modos de ser do

Dasein, sendo que a maneira inautêntica e mergulhada na cotidianidade é a

que é mantida na maior parte das vezes. Da mesma forma, falar em queda não

supõe a saída de um estado superior, mas sim uma maneira de ser em que o

Dasein já se move e é no mundo.

Para pensarmos a transposição da impropriedade para a propriedade

recorreremos novamente à angústia. Heidegger afirma que a condição de ser-

no-mundo do Dasein abre possibilidade para o surgimento da angústia, um

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estado de ânimo cujas causas não podem ser encontradas em nosso cotidiano,

como causas concretas13. Angustiamo-nos com nosso próprio ser-no-mundo.

A angústia abre o mundo enquanto mundo, mas em nosso cotidiano nos

desviamos desse sentimento que pertence essencialmente ao Dasein, com o

intuito de nos sentirmos em casa. Ser-no-mundo enquanto possibilidade é

sempre ser tomado por um sentimento de estranheza diante do mundo, dado

que cabe a nós a responsabilidade por nosso ser, por “ter que ser”.

Transitamos prioritariamente pela impropriedade na tentativa de fugir do que

nos angustia: ser.

Dessa forma mergulhamos na impropriedade; no entanto, não podemos

deixar escapar que este modo de ser funda-se na propriedade e não ao

contrário. Heidegger (2005, pg. 254) coloca que “o não sertir-se em casa,

existencial e ontologicamete, deve ser compreendido como o fenômeno mais

originário”.

Dessa forma, angustiado, o Dasein não sente mais em casa, deixa de

saber de si pelas identificações mundanas. A perda de sentido leva-o a não

mais se compreender, pois seus pontos de referência, o mundo e os outros são

reduzidos em sua significância; juntamente com seu sentido de eu, antes

construído e partilhado com o mundo.

Rompendo essa ligação com o mundo, o Dasein tem na angústia a

oportunidade de retornar a si mesmo em suas possibilidades. Assim, seu ser,

por intermédio da angústia, que abre o mundo como mundo, pode ser

percebido como faceta da liberdade humana.

3.2 As especificidades do ser-adolescente

Para compreendermos a adolescência, faremos, inicialmente, uma

passagem pela infância, pensando que o período que queremos apresentar é

aquele que dá continuidade à experiência infantil. Freire (2007) afirma ser

13 Heidegger (2005, pg. 250) diz que “o que caracteriza o referente da angústia é o fato do ameaçador não se encontrar em lugar algum”. O temor, por exemplo, seria, diferente da angústia, uma ameaça causada por algum ente intramundano. Um sentimento de medo em relação a algo nominável.

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imprescindível o entendimento da articulação do tempo14 para a compreensão

desta fase da vida. Nesse sentido faz uma análise do acontecer temporal

desde a infância.

A relação da criança com o tempo é de uma ordem bastante peculiar.

Ela vive constantemente o contagio do aqui e agora. Pode até ter o

conhecimento de que existe um “daqui a pouco”, um “depois”, um “dia de

amanhã”; mas isso não significa que seu futuro já tenha se aberto como algo

que lhe pertence, como possibilidade.

Diante disso, vive suas experiências com uma entrega pouco comum

aos adultos, que é amenizada com o passar dos anos. Algo que ilustra muito

bem essa situação é a cena de uma criança que cai, sente dor e não consegue

parar de chorar. Para ela, é como se aquela dor durasse a vida toda, pois

desconhece o “mais adiante”, o momento em que a dor vai passar. Seu futuro

ainda é restrito o suficiente para estar colado na experimentação do agora.

Uma vez que só lhe resta aguardar a repetição do momento atual, acaba

absorvida pela experiência e vivendo um presente absoluto.

Na adolescência o indivíduo é, de forma mais transparente, apresentado

à condição que sempre lhe pertenceu: a existência. Passa a ter seu ser como

uma questão da qual deve dar conta.

Freire (2007) fala da grande marca da adolescência da seguinte forma:

“Ser capaz de compreender a si próprio como uma história por acontecer e começar a sentir-se responsável por isso é o acontecimento que irá marcar o final da infância e dar início à adolescência. Neste momento o ser humano é apresentado à sua condição de sempre: a existência.” (Freire, 2007, pg. 51)

É importante considerar o que formula Leão (2002) a respeito do tema.

O autor afirma que o comportamento jovem é uma condição humana e não

etária, que transcende realizações presentes, potenciando estruturas de um

futuro libertador a partir de um passado vigente. Segundo ele, a estrutura do

comportamento jovem é constituída essencialmente por um projeto de

possibilidades futuras. Afirma que “somos jovens quando somos mais

14 O tempo do qual falamos não se relaciona ao tempo objetivo, histórico ou medido pelo relógio. Essa temporalização trata do tempo que nos é concedido para realizarmos nossa tarefa de viver.

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livremente o que fomos, por estarmos abertos ao que seremos.” (Leão, 2002,

pg. 42)

Dessa forma, podemos dizer que o adolescente ganhando uma história,

também torna-se portador de um futuro e um passado, perde a possibilidade de

viver apenas o agora, como acontece com as crianças. O adolescente

alcançado pelo futuro, ganha liberdade em relação ao presente. É convocado,

então, a prosseguir na construção de sua história, a realizar escolhas.

“A abertura para o futuro e poder responsabilizar-se por si próprio ampliam bastante as possibilidades do jovem, mas irão colocá-lo ante uma questão para a qual não tem resposta: a morte.” (Freire, 2007, pg. 52)

Isso significa que ao abandonar o contágio do presente imediato,

descobrir-se como dono de uma história e de um futuro, descobre que nesse

futuro (incerto e imprevisível) existe um fim. Ainda assim, tem como tarefa fazer

frente à sua vida que é, irrevogavelmente, tarefa sua e atravessada pela

questão da finitude.

De maneira diferente do que acontece em muitas tribos e outras

sociedades, onde mitos cosmogônicos dão conta de propiciar respostas sobre

a origem da vida, sobre seu fim ou sobre porque as coisas são e devem ser; os

adolescentes de hoje, principalmente no mundo ocidental têm, muitas vezes, a

tarefa de lidar sozinhos com essas questões.

Freire (2007) fala, ainda, de uma estranheza provocada pela solidão e

pela sensação de isolamento, considerando que diante de tantas mudanças

muitas vezes não se reconhece naquilo que lhe acontece: seu corpo cresce

mais rápido que sua capacidade de conhecê-lo, idéias que não reconhece

como suas chegam a ele, etc. Diante disso e da tarefa de trilhar um futuro mais

confortável e suportável o adolescente utiliza-se do recurso indispensável da

fantasia.

“Então, esse futuro que inicialmente surgira com uma fisionomia ameaçadora por sua indeterminação poderá aparecer ao jovem como a possibilidade de ser o que quiser, libertando-se de todos os seus limites: a fantasia preencherá as lacunas “garantindo” a ele que o futuro será como deseja, sempre mais rico e melhor.” (Freire, 2007, pg. 53)

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Em decorrência disso, muitos adolescentes acabam adotando

comportamentos de risco, uma vez que essa fantasia utilizada como recurso na

pavimentação de um caminho menos árduo, é a mesma fantasia que

proporciona a sensação de segurança e de imortalidade.

Por último, pensando naquilo que o senso comum e outras abordagens

consideram como a “síndrome normal da adolescência”, podemos fazer uma

aproximação a dois aspectos que caracterizam tal crise: a impulsividade e a

instabilidade emocional.

Na vivência adolescente, ganhar um futuro implica em fazer planos e

reconhecer que tudo o que se é depende, de certa forma, daquilo que virá a

ser. Perde-se, assim, uma consistência que havia quando a existência não se

apresentava como uma tarefa.

Freire (2007) ressalta a necessidade de paciência nesse momento da

vida. O fato de a vida ser uma tarefa implica em um projeto futuro; e o

adolescente de quem falamos era, há pouco, uma criança que conhecia

apenas o presente. “Seu problema atual é não saber comportar-se diante

desse futuro que custa a chegar. (...) Este é o sentido da ansiedade, da

impulsividade na adolescência.” (Freire, 2007, pg. 53).

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SEGUNDA PARTE

A PESQUISA EMPÍRICA

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Capítulo 1

Metodologia

Conceituando brevemente o período de vida dos adolescentes e a

medida sócio-educativa de Liberdade Assistida – que visa garantir ao

adolescente o direito de ir e vir, de se movimentar com liberdade, condição

vista, também, como fundamental para sua superação da carreira infracional –

é possível estabelecer mais claramente os objetivos deste trabalho.

Entretanto, precisamos considerar que, como consta nas resoluções do

ECA e em relatos trazidos por Fontes (2007), essa liberdade é, de certa forma,

controlada e dirigida por monitores, técnicos, agentes, juízes entre outros

envolvidos que realizam o acompanhamento dos jovens. Sabemos também,

segundo as mesmas referências, que alguns deles, antes de iniciarem o

cumprimento da medida de LA são submetidos a internações, variáveis em

seus períodos de duração, em Unidades de Atendimento Inicial, Unidades de

Internação Provisória ou mesmo Unidades de Internação, todas pertencentes à

Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente – Fundação

CASA, antiga FEBEM.

Dessa forma, o objetivo desta pesquisa configura-se em desvelar como

a aplicação da medida sócio-educativa de Liberdade Assistida e a experiência

de passar por ela (havendo ou não acúmulo de outras medidas) marcam a vida

do adolescente que infraciona.

Em linhas gerais, um trabalho científico inicia-se com a delimitação do

tema e dos objetivos aos quais se propõe o estudo, visto que estes

condicionam a natureza do trabalho a ser elaborado.

É importante considerar que o processo de conhecimento científico sofre

influencia do conjunto de fatores cultural, social e ideológico, desde seu início e

em todas as etapas de sua produção. Assim, para investigar um fenômeno

social não basta apenas questioná-lo, mas considerá-lo inserido nesse

contexto social.

Gil (1999, p. 26) define método como "[...] o caminho para se chegar a

determinado fim e método científico como o conjunto de procedimentos

intelectuais e técnicos adotados para se atingir o conhecimento”.

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Dessa forma, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa, à luz da

teoria da Fenomenologia-Existencial e por meio da entrevista reflexiva

realizada com dois adolescentes sob aplicação da medida sócio-educativa de

Liberdade Assistida. Os dois indivíduos acumulam em seu histórico outra

medida sócio-educativa: um passou pela medida de Internação e o outro pela

medida de Prestação de Serviços à Comunidade.

Os sujeitos foram contatados por intermédio de um Centro de Defesa

dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) da cidade de São Paulo,

localizado em um bairro da periferia paulistana e que atua junto à adolescentes

autores de atos infracionais cumprindo medidas sócio-educativas em meio

aberto (Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade). O local

das entrevistas foi escolhido privilegiando a facilidade de acesso e o conforto

do entrevistado; por essa razão foram realizados no próprio Cedeca.

Este Cedeca é constituído por dois Núcleos de Proteção Especial15 que

atuam com os mesmos propósitos em diferentes regiões do bairro. Durante

todo o ano de 2008 a pesquisadora realizou um estágio, supervisionado pela

Profª. Drª. Maria de Lourdes Trassi Teixeira, em um desses núcleos. Isso, além

de facilitar a entrada e permanência na instituição, também contribui para a

possibilidade de uma posterior discussão sobre os dados obtidos na pesquisa.

O fato de haver um contato prévio da pesquisadora com o

funcionamento institucional, sua equipe de profissionais, as necessidades e

carências da região e com os adolescentes assistidos também colabora para

um conhecimento mais profundo da realidade vivida por todos os envolvidos

com a questão do adolescente em conflito com a lei.

A escolha da entrevista reflexiva como instrumento para investigação é

considerada pertinente devido à sua compatibilidade com a orientação teórica

da Fenomenologia-Existencial e, também, devido à sua adequação aos

objetivos desta pesquisa.

Tal método de entrevista vem sendo desenvolvido há anos por

Szymanski e cols. (2002) que pontua que “a entrevista torna-se um momento

de organização de idéias e de construção de um discurso para um interlocutor,

15 É nos Núcleos de Proteção Especial que trabalham os responsáveis pelo acompanhamento dos adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas. São eles que elaboram os Programas Individuais de Atendimento para os adolescentes. Os adolescentes são, necessariamente, encaminhados ao Núcleo mais próximo de suas moradias.

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o que já caracteriza o caráter de recorte da experiência e reafirma a situação

de interação como geradora de um discurso particularizado” (p.14).

A autora considera, ainda, a entrevista como um encontro interpessoal

que inclui a subjetividade de todos os envolvidos, onde pode emergir um

momento de construção de conhecimento. A nomeação de entrevista reflexiva

se dá por levar em conta a recorrência de significados durante qualquer ato

comunicativo e pela busca da horizontalidade nas relações de poder entre os

protagonistas desse processo.

Esse instrumento tem sido empregado em pesquisas qualitativas como

uma solução para o estudo de significados subjetivos. De acordo com Lakatos

(1995), são conteúdos a serem investigados: fatos, opiniões sobre fatos,

sentimentos, planos de ação, condutas atuais ou do passado, motivos

conscientes para opiniões e sentimentos. Na relação entrevistador/entrevistado

é necessário que ambos existam autenticamente um frente ao outro e um com

o outro – ambos envolvidos, como seres humanos que se afetam

reciprocamente.

Tal modalidade de entrevista desencadeia um processo de intervenção

realizado pelo entrevistador, por meio de sua explicitação do discurso do

entrevistado. Dessa forma, no rigor da aplicação de tal método é relevante a

postura do entrevistador, que não cumpre apenas o papel de facilitador, mas

deve ter uma postura bastante ativa. Deve fazer síntese do compreendido e

propor questões pertinentes que mantenham o foco e o aprofundamento

necessário.

Não há um roteiro fechado a ser seguido e o foco norteador da

entrevista está na clareza que o entrevistador tem sobre os objetivos da

pesquisa. Nesse contexto, torna-se fundamental o cuidado com a condução da

entrevista que deve cumprir algumas etapas em sua realização.

Após um aquecimento destinado à apresentação pessoal, é dirigida ao

entrevistado uma questão desencadeadora. Está é apontada por Szymanski e

cols. (2002, p.27) como “o ponto de partida para o início da fala do participante,

focalizando o ponto que se deve estudar e, ao mesmo tempo, amplia o

suficiente para que ele escolha por onde quer começar”. Nesta pesquisa, a

questão desencadeadora foi: “Como você percebe a sua vida antes de depois

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de receber e estar cumprindo a Medida Sócio-Educativa de Liberdade

Assistida?”.

A resposta à questão é um tempo de expressão livre do entrevistado a

respeito do tema, trazendo à tona a primeira elaboração ou arranjo narrativo

que o participante pode oferecer sobre o assunto introduzido.

Além de sínteses apontando pontos importantes do discurso e o quadro

que está se delineando, durante a entrevista o pesquisador também é

responsável por elaborar questões de esclarecimento, focalizadoras e de

aprofundamento. Em todos os casos é indispensável que este tenha clareza

quanto aos objetivos da investigação e saiba respeitar possíveis defesas do

entrevistado que surjam no decorrer do processo. Dentre tais questões vale

destacar aquelas chamadas de focalizadoras que objetivam trazer o discurso

para o foco desejado, principalmente quando alguma digressão se prolonga.

Considerando o estudo do sentido da medida sócio-educativa de

Liberdade Assistida na vida do adolescente autor de ato infracional podemos

destacar alguns pontos que nortearam a elaboração dessas questões. É

impossível entender esse adolescente sem conhecer a maneira como ele se

relaciona com sua família, com os círculos sociais, com a comunidade, com a

escola, e com outros espaços por ele freqüentados. Além desses pontos, é

essencial entender se (e como) tais relações sofreram transformações, objetiva

e subjetivamente, no decorrer de sua passagem pela Liberdade Assistida e,

ainda, como se configuram seus planos e expectativas para o futuro. Por fim,

procuramos conhecer a sua relação com a medida sócio-educativa, como ele a

compreende e se sente em relação à execução da mesma.

Estes foram, portanto, os principais temas abordados, tendo se

constituído como referencias na elaboração das questões focalizadoras que

foram introduzidas de acordo com o desenrolar do discurso dos entrevistados.

Finalmente, no que diz respeito aos aspectos da entrevista, podemos

destacar o momento de devolução. Visto que a entrevista reflexiva deveria ser

realizada no mínimo em dois encontros, o segundo momento teria início com a

exposição do que o entrevistador compreendeu sobre a experiência de vida

relatada no encontro anterior. Explica Szymanski e cols. (2002):

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”é quando o entrevistado pode apresentar modificações eventualmente geradas pelo processo de reflexão – primeiro durante a primeira entrevista, depois no período entre uma e outra e, em seguida, na comparação de sua interpretação com a do entrevistador”. Szymanski e cols. (2002, p.53)

No entanto, devido às necessidades de cuidado com esses

adolescentes que já apresentam suas vidas tão invadidas, a entrevista foi

realizada em apenas um encontro, adaptando, dessa forma, a idéia original de

Szymanski e cols. (2002). Julgamos a opção por essa adaptação pertinente,

pois o processo de aprofundamento de vínculo entrevistado-pesquisadora não

fazia parte dos propósitos desta pesquisa e o rompimento do mesmo poderia

acabar por prejudicar de alguma forma o adolescente em questão.

Houve, então, durante o único encontro que aconteceu com cada

adolescente, a troca de impressões e abertura para que o entrevistado se

aproximasse de seu discurso. No entanto, é importante reconhecer que esse

procedimento foi realizado dentro das possibilidades do que se pode elaborar

em um encontro. Os adolescentes, por exemplo, tiveram um tempo curto e, de

certa forma, muito colado ao seu discurso para reflexão.

A análise dos dados das entrevistas também foi feita de acordo com as

orientações de Szymanski e cols. (2002), considerando-se que “análise é o

processo que conduz à explicitação da compreensão do fenômeno pelo

pesquisador” (pg. 71). A atenção não esteve restrita à fala do entrevistado, mas

também ao seu meio e à interação que ele estabeleceu durante a situação de

entrevista. Ainda é possível ressaltar que a análise dos dados implica a

compreensão da maneira como o fenômeno se insere no contexto do qual faz

parte.

A análise do discurso do adolescente foi feita em algumas etapas. A

primeira delas consistiu na transcrição do registro feito no momento da

entrevista. Esse é um momento no qual “cada reencontro com a fala do

entrevistado é um novo momento de reviver e refletir” (Szymanski e cols., 2002,

p.74). Após essa reaproximação com o que foi dito – sem esquecer o não dito

– foi possível categorizar alguns de seus pontos, ou seja, nomeá-los pelo

aspecto do fenômeno a que se referem. Esse momento de “explicitação dos

significados” torna possível uma análise do que foi dito na entrevista, de forma

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a permitir que o pesquisador organize o discurso apresentado e consiga extrair

aquilo que contém de mais significativo.

O processo analítico desta pesquisa teve como base o caminho

realizado por Sodelli (2006):

- Inicialmente as entrevistas foram escutadas e transcritas na íntegra,

mantendo fidelidade à linguagem dos entrevistados;

- Num segundo momento, as entrevistas foram lidas e relidas diversas vezes,

afim de que houvesse uma constante e intensa aproximação e ampliação de

conhecimento das entrevistas;

- Em seguida, iniciamos o agrupamento das falas em grupos que tratavam de

um mesmo tema, criando assim, diversos focos de análise;

- Sem perder de vista a totalidade da trama de significados das entrevistas (o

modo como se falou sobre cada assunto), sob cada foco de análise

selecionado, descrevemos uma primeira compreensão;

- Com base nesta primeira compreensão e nas impressões, percepções e

sentimentos que pudemos absorver sobre cada adolescente entrevistado

durante os encontros (ao final de cada entrevista esses aspectos foram

registrados de forma escrita16), elaboramos um primeiro texto

descritivo/interpretativo que busca compreender o modo de ser de cada

adolescente;

- Numa perspectiva de desvelamento de sentidos, todo o material foi

interpretado novamente, levando em consideração que cada parte da

entrevista deve ser entendida à luz da totalidade

- Por último, elaboramos um texto analítico que procura compreender qual é o

sentido das medidas sócio-educativas na vida desses adolescentes em conflito

com a lei.

Neste trabalho constam, então, três momentos principais desse

processo: apresentação dos focos de análise divididos em grandes temas;

texto descritivo/interpretativo que busca compreender o modo de ser de cada

adolescente entrevistado; texto analítico que procura entender qual é o sentido,

16 Neste momento do trabalho analítico foram também apresentados aspectos importantes para a compreensão das entrevistas, mas, que não necessariamente tenham sido verbalizados durante elas pelos adolescentes.

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para cada um deles, das medidas sócio-educativas e o alcance delas em suas

vidas.

A última parte desta análise, nomeada como Discussão, visa refletir a

respeito das experiências e compreensões desses adolescentes. Nesse

momento, foi realizado um diálogo entre as experiências vividas e a relação

que estabelecem com os princípios do ECA e das medidas sócio-educativas.

É importante, ainda, ressaltar que nesta pesquisa as questões éticas

apresentaram-se como fundamentais, devido ao elevado grau de intimidade

envolvido na obtenção das informações em questão. As normas previstas pelo

Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96) foram consideradas,

garantindo sigilo profissional pelo comprometimento de não divulgar a

identidade dos participantes, bem como a utilização dos registros obtidos

apenas no âmbito acadêmico. Os dados foram coletados após a aprovação do

projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP e o termo

de consentimento livre e esclarecido, que foi entregue aos pais e aos

adolescentes, consta em Anexo.

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Capítulo 2

Os encontros com os adolescentes

2.1 A Entrevista com E. – 17 anos, sexo masculino.

2.1.1 Breve caracterização de E.

E. é um adolescente de 17 anos cumprindo o último mês da medida

sócio-educativa de Liberdade Assistida. Antes de cumprir tal medida pelos 6

meses que lhe foram determinados, passou 7 meses em uma Unidade de

Internação – UI da Fundação Casa17. Ele recebeu a medida de Internação por

ter sido apreendido participando de um assalto e a de Liberdade Assistida

como uma progressão da primeira.

O adolescente define-se como uma pessoa tímida e diz gostar de jogar

bola, de música, de carros e motos.

Realizamos apenas um encontro que aconteceu no Núcleo de Proteção

Especial onde é acompanhado na medida de Liberdade Assistida e teve a

duração aproximada de 35 minutos. A entrevista foi gravada com o

consentimento de E..

2.1.2 Apresentação dos focos de análise da entrevis ta de E.

As leituras da entrevista de E. deixaram em evidência alguns grandes

temas que abrangem focos específicos e aparecem de forma significativa

relacionados à sua experiência de passar pela medida sócio-educativa de

Internação e, posteriormente, de Liberdade Assistida. Dessa forma, dividiremos

os temas em “Questões Pessoais”, “Família” e “Medidas Sócio-Educativas”.

No primeiro tema são abordados os seguintes focos:

- Educação, Estudos e Escola

17 Nesta análise iremos nos referir à Fundação Casa por seu antigo nome oficial: Febem. Essa alteração será realizada, pois foi a maneira como o adolescente se referiu à instituição durante a entrevista.

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- Trabalho

- Amizades

No segundo tema os focos principais são:

- Figura Significativa – o Pai

- Figura Significativa – a Namorada

- Figura Significativa – a Irmã

No terceiro tema:

- A Medida Sócio-Educativa de Internação e o Ato Infracional

- A Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida e o Ato Infracional

Temos clareza que todos os temas e focos de análise dialogam e se

entrelaçam tanto para a formação do sentido da experiência para E., quanto

para sua constituição como sujeito no mundo, ativo em sua existência. No

entanto, optamos por utilizar esses recortes para melhor compreender os

diversos aspectos presentes em seu relato.

Na apresentação dos focos utilizaremos alguns trechos de sua fala para

ilustrar a análise. Os trechos mencionados aparecem em itálico e tentam ser o

mais fiel possível à maneira com que o entrevistado se expressou, não

havendo passado por correção gramatical ou ortográfica. Em seguida, para

cada foco há a descrição /interpretação da pesquisadora.

2.1.2.1 Tema: Questões Pessoais

Foco: Educação, Estudos e Escola

Estudar eu não gostava. Agora já to sentindo falta de novo! Eu tava na 8ª (quando recebeu a medida de Internação)... aí, eu conclui lá, terminei lá. Fiz uma prova e aí eles falaram assim: que não ia dar pra passar eu de ano porque eu não tinha ficado três meses (estudando) na UI. Mas só que quando você chega lá eles falam que você começa a estudar pra não perder o ano. Praticamente é uma mentira que eles falam só pra você ficar comportado lá dentro. Desde quando eu saí passou uns dois meses e eu não tava com muita vontade não. Aí foi passando e eu comecei a sentir falta!(...) Eu aprontava bastante na escola.

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Brincava muito no intervalo. Eu gostava muito assim de brincar! Na sala de aula eu era um pouquinho mais quieto, mas rolava a brincadeira também! E ficava à tarde, porque lá na escola eu quase não fazia lição, ficava mais conversando. Conversando lá com as meninas, que elas sentava junto! Agora eu quero continuar só pra... no futuro, né?! Ter alguma coisa, terminar tudinho, fazer um curso. Pra ver se arruma um serviço melhor!(...) Ver se tem alguma outra coisa pra mim! Outro dia ele (o educador) tava falando comigo dos cursos, que ele ia ver se arrumava um curso pra mim lá no SENAI. Falou que não dava porque tinha acabado já a inscrição. Aí ia ver se arrumava pago lá, pra mim pagar, mas também não deu!

Podemos observar, no que diz respeito à escola, dois sentidos diferentes

na fala de E.: a escola como ambiente de socialização, de encontros; e como

espaço para a educação formal. Nos trechos em que afirma sentir falta da

escola, fala, na maioria das vezes, do lugar social que a instituição ocupava em

sua vida. Refere-se à escola como o espaço para brincar, encontrar colegas,

conversar e aprontar, do qual, atualmente, sente falta.

Por outro lado, E. reconhece na educação formal parte do caminho para

“arrumar um serviço melhor” e, mesmo dizendo que não gosta de estudar, vem

tentando buscar alternativas para dar continuidade aos estudos e se

profissionalizar na área em que já está atuando.

Ainda no que diz respeito à sua educação, conta que seu afastamento

da escola ocorreu devido à internação na Febem, pois enquanto cursava a 8ª

série recebeu a primeira medida. Sob responsabilidade do Estado, não

conseguiu dar continuidade ao último ano do Ensino Fundamental II: E. foi

preso em agosto de 2007 e passou os três meses que se seguiram – e que

faltavam para concluir a 8ª série – sem estudar. Atualmente, um ano após o

ocorrido, continua afastado da escola.

Foco: Trabalho

Do trabalho com o pai: Ele falava e eu ficava sentado lá. Ficava sentado lá, cochilava, ia pro quarto lá, ficava dormindo! Aí ele precisava de mim e eu num tava lá pra ajudar ele! “Você quer vir pra trabalhar ou pra dormir?”

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Do trabalho Atual: No meu trabalho, eu gosto de brincar um pouco. Às vezes eu levo até uma bronca do patrão. Eu gostava muito de jogar bola, antes!(...) O serviço atrapalhou! É chato lá. O cheiro da tinta também é muito forte. Quando vai lá pra estufa, pra lavar tela, é muito forte o cheiro! Ontem eu fui até no hospital. De dia de domingo, às vezes, quando eu to lá no serviço, nóis começa a toca um samba, de vez em quando. Quando não tem nada pra fazer! Agora que eu já aprendi lá pretendo dar continuidade, né!? Ver se eu consigo alguma coisa pra mim, agora! Ah, eu quero ter as minhas coisas, né?! Agora eu consigo meu dinheiro só. Dinheiro pra sair, roupa, carro, moto! Eu ganho às vezes meio período pra assinar (para ir ao Núcleo assinar a LA). Eu venho de manhã. Aí à tarde dá uma preguiça de ir trabalhar! No começo, quando eu era ajudante eu brincava muito. Ficava lá, brincando, escutando uma música. Eu parava lá na mesa e ficava olhando pra cara dos funcionários. Agora que eu não sou mais ajudante eu fiquei mais responsável, né?!

Um dos primeiros pontos que E. aborda espontaneamente durante a

entrevista é sua relação com o trabalho. Diz que gosta de brincar um pouco

nele e que, às vezes, leva bronca do patrão. Antes de receber a medida de

Internação, trabalhava com seu pai.

O adolescente conta que sua postura naquele antigo trabalho era motivo

constante para que seu pai chamasse sua atenção. Ele relata uma postura de

displicência: cochilava durante o serviço e diversas vezes não estava presente

quando precisavam de sua ajuda.

Atualmente E. trabalha em período integral em uma gráfica. Confessa

que não gosta do que faz: o cheiro de tinta o incomoda e o longo expediente o

impede de jogar futebol. Conta que ainda brinca e se diverte com os outros

funcionários, mas que isso acontece, principalmente, quando não há nenhum

trabalho à ser feito.

Ele relaciona essa mudança de postura ao seu crescimento profissional

quando afirma que agora que não é mais ajudante, ficou mais responsável. Por

outro lado, a preguiça que sente em alguns dias – e que provoca faltas “não

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justificáveis”, principalmente, aos olhos de seu pai – ainda aparece na

contramão dessas mudanças.

O adolescente também pontua que pretende dar continuidade ao que já

aprendeu na prática. Conta que arrumar um emprego também lhe abriu a

possibilidade de receber algum dinheiro que lhe possibilite adquirir os bens

materiais que deseja, preencher seu tempo e afastar-se de amizades não

aprovadas por seu pai.

Foco: Amigos

Não tenho muito mais não!

Tinha (antes da Internação)! Todo dia ligava gente lá em casa atrás de mim! Porque eu saí, né, da FEBEM?! Boas amizades não tinha muitas, tava conversando com muita gente que meu pai não gostava. (...) Sentamos e eu falei: “Ta bom! O senhor não quer as minhas amizades, eu vou arrumar um emprego. As minhas amizades vai ser só os meus primos, o M., que trabalha lá comigo, o meu cunhado e a T. (namorada)”. E... é assim que vai! Ta melhor, né?! Menos preocupação! Melhor! No começo, lá (na Febem), a amizade.... Tudo normal! (...) Você chega lá, parece que... Todo mundo trata você como se você tivesse na sua casa! Aí depois começa a ter uma briga com um aqui, com outro ali. Aí começa a gerar a confusão! Não é bem amigo, né?! Eu conversava com uns ali dentro (da Febem), mas era meio naquelas... “será que o que ele ta me falando é verdade?” Porque cê nunca me viu na vida e já vai me tratar desse jeito? Como? Não dá! Aí, lá, tipo, alguma coisa que você falava assim, as pessoas (os adolescentes) interpretavam errado. Aí eu ficava mais quieto na minha, lá.

Nos relatos de E. podemos verificar como suas relações de amizade se

modificaram no decorrer da experiência de ser apreendido cometendo um ato

infracional, passar pela medida de internação e, finalmente, voltar à liberdade.

Conta que tinha muitos amigos antes de sua ida para a Febem e que era

muito requisitado por eles. No entanto, afirma que não eram “boas

amizades”(sic.) e que não agradavam seu pai. De acordo com seus relatos se

relacionava com muitos adolescentes envolvidos com atos infracionais que,

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frequentemente, convidavam-no para fazer parte de outros roubos, mesmo

quando já estava cumprindo a medida de LA.

Diante dessa situação, algum tempo após sua saída da Febem, reduziu

significativamente seu círculo de amizades, mantendo relação de proximidade

apenas com algumas pessoas. Ao ser indagado sobre como se sentia frente a

tais mudanças, afirma que desta forma é melhor, pois há menos preocupações.

Quanto ao relacionamento com outros adolescentes no interior da Fundação,

ressalta o sentimento de desconfiança que o permeava. Diz também que, com

o passar do tempo, a tensão devido ao rompimento de algumas relações

começa a se instalar.

2.1.2.2 Tema: Família

Foco: Figura Significativa – o Pai

Aí chego em casa e tomo outra bronca! “Você não quer trabalhar!”. Que nem, ontem eu vim pra cá, eu tava com dor de cabeça, a garganta ruim. Aí eu fui no hospital. Aí chegou meu pai: “E. você pensa que você é patrão, né?! Você quer faltar todo dia! Vai pro hospital, vem com uma desculpa”. (...) Carro também! Antes eu saía direto! Agora eu parei. Depois que eu saí da FEBEM meu pai não deixa mais eu andar não! Tem medo da polícia parar e eu voltar de novo! Uma coisinha de nada que você faz, pra ele, você já quer aprontar de novo! Qualquer coisa, pra ele, você já ta voltando pra aprontar! Não queria que eu chegasse tarde. Se eu chegasse 22h10 ele já tava lá me esperando! Teve uma festa aqui na X(nome da rua), aí eu falei: “Eu vou lá!”, aí ele falou “1h eu quero você em casa!”. Aí eu cheguei 4h30. Ele tava lá, sentado lá no sofá me esperando! “Eu já falei pra você que é perigoso, que não sei o que...” Aí eu falei: “Não pai, é aqui a festa. É pertinho! Nem tô indo mais pra lugar nenhum!”, “Não, mas não quero! Espera acabar sua LA. Vamo vê como é que cê tá! Pra pegar confiança em você de novo vai ser difícil!”, ele falou! Tava conversando com muita gente que meu pai não gostava. Aí ele começou a brigar comigo: “E. tu vai voltar pra essa vida de novo! Cê vai voltar!”. Aí ele começou a falar, falar e chorou. Foi aí que a gente teve uma conversa. Antes, quando eu chegava às 22hs em casa (quando eu saí da FEBEM) ele já falava “Olha a hora, E., olha a hora!”. Depois que eu saí ele queria dar hora pra tudo! Aí eu falava “Olha, pai, também não é bem assim. Eu sei o que eu tô fazendo! Eu não quero voltar mais pra lá!”. Mas ele era desconfiado. Até que

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eu tive essa conversa com ele. Aí ele botou mais uma confiança! (...) Meu pai me controlava mais que a LA! Tá tranqüilo agora! Depois que a gente teve essa conversa ele ficou mais liberal! Sobre as visitas no período de Internação: Ele falava muito lá dentro: “Você vai sair! Você toma um rumo na sua vida!”, “Não fica brigando!”, “Fica mais dentro de casa, caseiro!”. Ele não faltou nenhuma vez! Minha mãe não ia muito porque era de moto e ela tem problema na coluna, aí é ruim pra ela! Mas meu pai... Debaixo de chuva, de qualquer jeito ele ia! Se tivesse chovendo ele arrumava um carro pra ir! Meu pai não faltou nenhuma vez! Era o que mais falava ele: “Se um dia você for preso, eu não vou te ver lá dentro!”. Foi o único que não faltou nenhum dia. De acordo com o discurso de E., seu pai é seu maior laço familiar. Fala

da figura paterna como alguém muito presente, preocupado, capaz de dar

continência ao filho e apoio em um momento de deslize.

Mesmo afirmando que nunca iria visitá-lo caso algum dia fosse preso,

acabou sendo a pessoa mais participativa nesse momento da vida de E.. Não

deixava de ir a nenhuma visita, mesmo que as condições fossem adversas.

O adolescente enfatiza diversas vezes a postura rigorosa de seu pai,

após sua liberação da Febem. Movido pela pouca confiança que depositava no

filho e pelo medo de que ele descumprisse a medida em meio aberto – o que

teria como conseqüência uma sanção –, passou a cobrar de E. um

comportamento que estivesse de acordo com sua situação com o poder

judiciário. Controlava seus horários – pois por determinação do juiz E. só

poderia permanecer fora de casa até às 22 horas –, suas atividades e se

preocupava com a influência de suas companhias.

Segundo E., a confiança de sue pai foi recuperada. Eles tiveram uma

conversa na qual ambos se posicionaram e se entenderam. O adolescente

demonstrou com muita certeza que não pretendia “voltar para aquela vida de

novo” e se afastou das amizades que seu pai não aprovava. Também se

propôs a trabalhar e pensar sobre seu futuro.

Ainda há alguma discordância no que diz respeito à contenção dos

desejos de E.: o menino quer adquirir uma moto, mas seu pai insiste que isso

só deve acontecer depois que ele completar 18 anos de idade e conseguir sua

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habilitação. O pai também continua cobrando que ele seja responsável em

relação à seu trabalho.

Foco: Figura Significativa – a Namorada (T., 15 ano s)

Com a minha namorada eu fico todo dia: do serviço pra casa dela. E quando chegava carta (na Febem), pra mim, da T.! Vish... Chorava muito! Muitas vezes lá dentro eu tive vontade de terminar com ela! Eu pensava: “Caramba! Ela ta lá, agora, sozinha, porque foi um erro meu!”. Não sei também, né?! Tinha a desconfiança! “Eu tô aqui dentro esse tempo todo....”. Será que ela vai agüentar esse tempo todo? Um monte de gente aí na rua, solto, balada. E balada, então?! Quando eu ficava sabendo que tinha balada eu ficava doido lá dentro! Na minha rua teve festa do dia das crianças e ela foi. Foi com a minha irmã e eu fiquei bravo! No começo, quando eu saí, teve. Ela ficava “meio assim”, ficava muito desconfiada! Aonde eu ia, ela queria saber. Ainda é assim, mas não é igual antes! Ela brigava muito! Principalmente, baladinha nenhuma! “Não! Não vai!”. Não quer que eu vô pra lugar nenhum! Ela cuidava e controlava. Muitas vezes quando os outros me chamava ela dizia “Não. Fique aqui comigo!”. Hoje, quando eu tô com ela, se alguém vem me chamar, eu já falo: “Fala que eu tô com você e que eu não vou sair!”. Aí a gente fica lá juntinho! Quieto! Todo dia a mãe dela fala “Vocês não se enjoa não? De se vê?” A gente fala: “Mas se nóis casar um dia? Aí vai se vê todo dia também!” Eu e ela é muito apegado mesmo! E. relata diversas fases de seu relacionamento com T.. Passaram seis

meses juntos antes que ele recebesse a medida de Internação.

Ele conta que uma das coisas que lhe deu forças durante o período de

reclusão foi o amor que sentiam um pelo outro. Por outro lado, fala da

insegurança por estarem separados “por um erro dele”; por ela estar “solta”,

freqüentando festas e outros espaços de socialização.

Relata uma postura de cuidado e controle por parte da namorada, que

queria saber de todos os seus passos e impedi-lo de retornar à carreira

infracional. Fala que, atualmente, aceita espontaneamente o apoio de T. para

permanecer em casa, quando o chamam para a rua.

T. é outra figura que, além de significativa, é muito presente na vida

cotidiana de E.. O casal está junto com freqüência e, no auge de suas

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adolescências, pensam à respeito de um futuro compartilhado. As famílias se

relacionam bem e aprovam o namoro.

A figura de T. é apresentada por ele como um ponto de apoio e afeto

importantíssimo nesta sua nova etapa de vida.

Foco: Figura Significativa – a Irmã

Ela tem 24 anos. Eu não tenho uma relação mais boa com ela, não! Porque nóis era muito apegado. Onde eu ia ela queria ir! Qualquer festinha ela queria ir. Aí eu fui preso. Toda vez eu falava “Vem me ver, vem me ver, vem me ver!” e ela não ia! Mas ela tinha que trabalhar também! Aí ela saiu do emprego e eu falei “Vem me ver”! Aí ela não ia também! Foi me ver só uma vez só: no Natal! Aí outro dia eu tava lá em casa (...), ela veio falar num sei o que pra mim e eu: “Você não tem o direito de falar nada! Eu fui preso e você só foi me ver uma vez só!”. Aí, a partir desse dia eu fechei a cara pra ela! (...) Ela foi uma vez só! Eu pedia direto pra ela ir me ver.... ela nunca ia!

E. fala sobre a irmã que o visitou apenas uma vez durante os sete

meses que permaneceu em Internação.

Relata que antes desse período eram muito apegados, mas que seus

constantes pedidos por uma visita na Febem eram sempre ignorados. No

início, o trabalho da irmã era utilizado como justificativa para tais faltas, mas,

posteriormente, o trabalho deixou de ser um empecilho e ela continuava não

comparecendo.

Atualmente, E. não tem uma boa relação com a irmã, para quem “virou a

cara” após um desentendimento no qual pôde expor sua insatisfação e mágoa

ocasionada por suas ausências nas visitas.

2.1.2.3 Tema: “Medidas Sócio-Educativas”

Foco: A Medida Sócio-Educativa de Internação e o At o Infracional

Antes eu brincava muito. Tudo era brincadeira pra mim, eu não levava as coisas a sério! Depois que eu fui pra lá... Aí tive que fica mais quieto. Lá ninguém falava comigo! Ficava quieto. Porque quando eu cheguei, né, lá falaram do comportamento: “Quem tiver comportamento bom, você sai nos 45 dias”. Não saí! Aí falou: “Não, mas continua assim que você sai com 3 meses”. Continuei! Não saí! Aí falou assim: “Então você vai sair com 6.” Saí com 7!

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Meu aniversário, Natal, Ano Novo... Tudo lá dentro! (...)A maior parte minha lá foi chorando! Depois que eu saí de lá, não gosto de ficar pensando muito, não! Só eu que sei o que eu passei lá dentro. Não gosto do ficar repensando, não! Só o que eu pretendo é não aprontar de novo. Às vezes alguém chamava assim “Vamos que tem muito dinheiro!”. Aí cê pensava: “Será que vale a pena? O cara passar tudo que passou de novo?”. Aí você pensa, pensa e não vai! Deixar todo mundo aqui de novo, no sofrimento! Acho que não vale a pena não! (...) Não é assim com quem passou por tudo que eu passei, porque quando eu me soltei, depois de uns 7 dias, os moleque foi preso. Aí saiu. 45 dias saiu da UI e continua, né?! Cada um... Têm uns que gostam, porque saiu em 45 dias. Aí pensa: “Se eu for preso de novo, vou sair em 45 dias de novo!”. Quando pegar uma internação vai saber como lá dentro é “bom”! Outros quer mandar lá dentro também! Tem uns que quer mandar, mas não é nada lá dentro. E por aí vai! O que deu medo lá, foi quando o choque entrou! Nunca tinha visto, né?! Aí fiquei meio assustado, mas não deu nada, não!!!

O adolescente se refere à medida de Internação como algo que alterou

sua maneira de ser e de se relacionar com o mundo. Conta que passou a levar

as coisas mais à sério.

Ele fala, também, sobre como essa experiência foi difícil, intensa, triste

e, em alguns momentos, assustadora. Diz que não gosta de ficar repensando a

experiência e que apenas ele sabe o que passou na Febem, mas o único fato

concreto que pontua é a entrada da Tropa de Choque na instituição.

Relaciona, ainda, diversas recusas de participar em novos assaltos às

lembranças que tem de lá e diz que não pretende “aprontar” novamente. Acha

que não é assim que acontece com todos que passam pela Febem e que

aqueles que saem em 45 dias, não acham a experiência significativa.

Diz que mantinha bom comportamento na expectativa (alimentada

dentro da fundação) de deixar a instituição em 45 dias, mas que estadia foi

estendendo-se conforme os meses passavam.

Foco: A Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assisti da e o Ato

Infracional

Fico com um pouco de medo ainda. De ser preso de novo. Às vezes, alguma coisinha que você vai fazer assim, você pensa, vê se vale a pena. Porque assim que eu saí, oportunidade não me faltou pra mim voltar a roubar! Todo mundo me chamava! Que nem quando eu cheguei lá em casa. No outro dia já tinha muleque lá em casa: “Vamo rouba!”. Não, não quero mais não! Saí de lá, eu ficava assim na janela do meu quarto, lá com a minha namorada, via todo

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mundo passando de carro, moto... Eu ficava agoniado, com vontade, eu queria andar. Mas e o medo? Aí cê sobe em cima de uma moto, toma um enquadro, vai preso de novo! Aí cê fica meio com medo, né?! À noite, assim, na hora de sair eu ficava meio naquelas... 22hs tem que tá em casa! Aí fui começando chegar 23hs, meia noite... Eu não faço atividade nenhuma! Eu converso só com o educador18! Ele pergunta mais do meu serviço, como é que tá, se tá sossegado... Lá em casa. Falo disso com ele. Outro dia ele tava falando comigo dos cursos. Sobre as expectativas e sua compreensão à respeito da LA: Falaram que era tranqüilo, falaram que só iam conversar comigo, saber um pouco da minha vida, visitar minha casa. Não falaram que ia controlar nada de mim, só falaram que era uma ajuda pra mim... Mais uma conversa. Pra mim é tranqüilo! Eu só venho aqui, assino, converso com o educador, é tranqüilo! Quando eu tava lá dentro, eu achava que era um pouco difícil! O pessoal falava “Não, não gosto de ir lá”. Ninguém queria assinar, lá dentro. Aí eu pensava “Caramba, será que é tão ruim assim?”. Ficava pensando, né?! Aí eu cheguei aqui, o educador explicou pra mim, achei tranqüilo! Melhor do que ficar lá dentro, né?! O sofrimento lá, acho que é bem maior!

E. fala de uma relação muito menos estreita com a LA (em comparação

à internação), no sentido de não estar participando de nenhuma das atividades

que o Núcleo propõe por trabalhar durante o dia inteiro. Vai ao núcleo uma vez

por semana para uma conversa individual com o educador e assinar a lista de

presença que atesta sua participação na atividade que lhe cabe. Os principais

temas das conversas, segundo ele, são seu trabalho e suas questões

familiares e pessoais. Também pensam juntos em alternativas para o

adolescente, como planos de futuro e cursos profissionalizantes.

Conta que durante algum tempo cumpriu a determinação do juiz de estar

em casa até às 22 horas, mas que foi relaxando um pouco em relação à isso,

com o passar do tempo.

Na compreensão de seu discurso podemos observar que estar em

liberdade implica na recusa espontânea de alguns se seus desejos, de suas

vontades. Diz que observa pela janela seus colegas andando de moto, de carro

18 Todas as vezes em que E. se referiu ao educador, utilizou seu nome num tom intimista. No entanto, usaremos a palavra “educador” – que em momento algum foi pronunciada pelo adolescente – quando houver alguma refência ao mesmo, a fim de que a identidade desse profissional seja preservada.

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e que isso deixa-o “agoniado”. Revela que também gostaria de estar vivendo

aquilo, mas fala de (e demonstra) um grande medo de ser pego pela polícia

fazendo algo que não deveria e retornar para a Febem. É esse mesmo medo

que o fez recusar as oportunidades de voltar a roubas depois que readquiriu

sua liberdade.

Fala, ainda, de sua expectativa em relação à medida em meio aberto,

baseado naquilo que ouvia de outros adolescentes que conheceu na Febem.

Pelo que falavam E. se perguntava se seria muito ruim estar em LA, no

entanto, quando chegou ao núcleo, a explicação dada sobre o que seria a

medida deixou-o mais tranqüilo. Compreendeu que seria uma ajuda para si e

que não seria controlado.

Por último, pontua que estar na medida de LA é melhor do que estar na

Internação, onde o sofrimento seria bem maior.

2.1.3 Sobre o modo de ser de E. na entrevista: impr essões, percepções e

sentimentos (a partir da compreensão da pesquisadora)

Após a apresentação da pesquisa e da pesquisadora, e da abertura para

o esclarecimento de possíveis dúvidas que o adolescente pudesse ter a

respeito de sua participação na mesma, propusemos como

aquecimento/apresentação que E. se descrevesse e contasse um pouco de

sua história. Em seguida, lançamos a pergunta desencadeadora: “Como você

percebe a sua vida antes de depois de receber e estar cumprindo a Medida

Sócio-Educativa de Liberdade Assistida?”. Porém, antes de mergulharmos no

que mostrou-se durante a entrevista, julgamos importante que outros pontos

sejam explicitados para contextualizar a situação de entrevista.

O adolescente chegou ao Núcleo de Proteção Especial, onde realizou-se

a entrevista, exatamente no horário marcado. Desde o início mostrou-se

bastante tímido – essa foi a primeira palavra que utilizou para se descrever – e

retraído. Trazia o termo de consentimento livre e esclarecido assinado por seu

pai, mas não por ele. Também não o havia lido (ao final da entrevista, antes de

assiná-lo, leu o termo junto com a pesquisadora).

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Afim de melhor compreender a experiência de E., julgamos importante

que sejam considerados alguns aspectos informados pelo educador.

Após a entrevista, em uma conversa com o profissional que acompanha

E. em seu trajeto pela medida de Liberdade Assistida, tomamos conhecimento

de que o adolescente teve sérios problemas relacionados à violação de seus

direitos que devem também ser assegurados pelo Estado – no que diz respeito

à saúde, à educação e a colocá-lo a salvo da violência e da crueldade, como

assegura a Constituição Federal (Brasil, CF art.227) – principalmente no

interior do Distrito Policial pelo qual passou antes de ser encaminhado para a

Unidade de Internação. Essa vivência somente foi relatada ao educador após

algum tempo de atendimentos individuais semanais, aparentemente no

momento em que se estabelecia um vínculo de confiança entre as partes.

Mesmo não tendo sido relatadas pelo adolescente no momento da

entrevista, julgamos que as informações reveladas pelo educador são de

profunda importância para a compreensão do sentido que a experiência de

passar pelas medidas sócio-educativas tem para esse adolescente e também

para compreender com mais clareza seu modo de ser durante a entrevista. Por

isso optamos por utilizá-las na análise.

De acordo com o relato do educador, E. passou três dias preso em uma

delegacia dividindo cela com outros cinco adolescentes. Entre eles estava A., o

colega que o convidou à participar do ato infracional e que portava a arma

durante o mesmo.

E. relatou que durante dois dias sofreu agressões físicas e tentativas de

abuso por parte dos outros adolescentes; inclusive por parte de A.. Apenas no

último dia de sua permanência naquele local o responsável percebeu o que

acontecia e, diante da situação, transferiu E. para uma cela onde ficou sozinho.

O motivo dessa transferência não foi informado aos outros adolescentes

e E. foi instruído pelo responsável a não formalizar a ocorrência (via boletim de

ocorrência), pois poderia sofrer represália na medida de Internação. O

adolescente seguiu as instruções e quando foi transferido para a Unidade de

Internação, seu colega, A., seguiu para a mesma instituição que ele.

E. evitava qualquer tipo de contato com A. que durante algum tempo

dificultou sua vida dentro da instituição e, algumas vezes, tentou colocar outros

adolescentes internos contra E.

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Outra pontuação feita quanto à violação de direitos que sofreu, diz

respeito à sua educação. O profissional explica que quando E. chegou para

cumprir a LA uma das primeiras providências foi tentar matriculá-lo e

reaproximá-lo da escola. No entanto, como havia passado os últimos meses

relativos à 8ª série do Ensino Fundamental II sem estudar, não conseguiria a

matrícula para o Ensino Médio. Para o adolescente a situação se configurou

como uma grande frustração e uma grande decepção, pois havia perdido o ano

letivo por displicência do Estado.

O adolescente foi apreendido em meados de agosto, mas sua medida

de Internação teve início, oficialmente, apenas em outubro por período

indeterminado. Todos os pareceres produzidos pela equipe técnica da Unidade

de Internação Provisória onde ficou durante esse período, atestavam que E.

era um adolescente sem envolvimento infracional e que seu delito havia sido

circunstancial; no entanto, mesmo que lhe recomendassem uma medida em

meio aberto, passou sete meses afastado da sociedade.

E. lamentou-se muitas vezes diante do educador, dizendo que talvez, se

conhecesse seus direitos, a história poderia ter se configurado de uma outra

maneira frente aos aspectos mencionados. Isso significa que o adolescente só

tomou conhecimento do que deveria ter sido feito a respeito de cada uma das

situações com o passar do tempo na instituição de Internação.

Feitas tais pontuações temos mais elementos para pensar sua relação

com as medidas sócio-educativas.

E. não se mostrava muito à vontade para falar. Suas frases eram curtas

(principalmente no início da entrevista), cheias de pausas e o discurso que

fazia não se desenvolvia sem as perguntas feitas a ele pela pesquisadora.

Apesar de contido, algumas emoções apareciam em sua fala por uma leve

alteração em seu tom de voz, enquanto sua feição mantinha-se quase

inalterada – com exceção de algumas “caretas” e outros raros sorrisos. Havia

um desconforto que logo foi notado e respeitado.

Quando o assunto era a Medidas de Internação, o desconforto ficava

bastante aparente. Foi no discurso a respeito dessa medida que ele disse

categoricamente que não gostava de ficar pensando muito, que somente ele

sabia o que havia passado no interior da Febem e que pretendia apenas não

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“aprontar” novamente. Seguiu sua fala com a temática do ato infracional,

desviando, assim, do primeiro assunto.

Ainda na temática da Internação, além de verbalizar, demonstrava que o

medo é o sentimento mais presente quando pensa na possibilidade de passar

novamente por um período de reclusão. Dos relatos sobre quando cumpria a

medida outro sentimento mobilizado fortemente é o de solidão.

A medida de LA é abordada por ele com um peso muito menor. Quando

fala de seu início, fala do desconhecido, da dúvida e da insegurança. Com o

passar do tempo relata uma maior apropriação da mesma, ficando mais

tranqüilo e livre. No entanto, um dos aspectos que rege seu comportamento

nesta medida e que aparece, inúmeras vezes, ligada ao seu cumprimento é o

medo de retornar à Febem ou a qualquer outro lugar onde tenha interrompida

sua possibilidade de ir e vir.

A medida de internação e/ou o medo que ela mobiliza em E. aparecem

também quando fala sobre o que denominamos, enquanto focos de análise, de

figuras significativas.

Ao falar da figura da irmã, demonstra uma profunda mágoa e sentimento

de abandono. Mostra-se realmente ressentido por sua ausência nas visitas

durante o período de sua interação.

Por outro lado, as outras duas figuras significativas – o pai e a namorada

– são focos de cargas emocionais diferenciadas. Os sentimentos mobilizados

por ambos podem ser considerados positivos.

O pai, mesmo cobrando e brigando com o adolescente, aparece sempre

como uma figura de apoio, capaz de suportar as dificuldades ao seu lado e de

escutá-lo em suas pontuações. Pela maneira que E. utiliza para referir-se à

figura paterna, além de um amor originário da relação pai-filho, há muito

carinho entre eles.

A namorada também aparece como uma figura de apoio para E., mas

um apoio mais livre no sentido de ser uma escolha dele se render aos seus

cuidados. Era quando falava de T. que aparentava estar mais solto e relaxado

durante a entrevista, ainda que se utilizasse da figura dela para falar da

internação e de sua postura já em LA. Foi falando dela que sorriu as poucas

vezes durante a entrevista.

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Sua relação com os antigos amigos configura-se em uma questão

controversa, pois da mesma maneira que fica aliviado pela tranqüilidade de

estar afastado deles, fica na janela assistindo ao que já foi sua relação.

Transparece intenso desejo de estar ali interagindo e não somente afastado

olhando. Ainda nesse viés social, aparece a saudade da escola, do lugar de

encontros.

A escola também vem associada à expectativa de oportunidades para o

futuro, juntamente com o aprendizado técnico. Nessa expectativa abre-se a

possibilidade de dar continuidade aos projetos de futuro que vem traçando,

para os quais vem buscando melhorar sua qualificação profissional.

2.1.4 Análise do Sentido das Medidas Sócio-Educativ as para E.

A análise deste trabalho foi desenvolvida por meio do método da

fenomenologia-existencial. Assim, a seguir, apresentaremos uma última

compreensão analítica que busca conhecer qual o sentido das medidas sócio-

educativas para E..

Podemos considerar que o que esteve mais presente, ainda que por

muitas vezes tenha sido abordado por caminhos indiretos, foi a medida de

Internação pela qual ele passou. Diversas questões relacionadas a ela

atravessam outros aspectos de sua vida e a maioria das relações que

menciona durante a entrevista. Podemos dizer que a medida de internação e

seu impacto sobre a vida de E. são pontos cruciais no desvelamento do sentido

das medidas sócio-educativas para este adolescente.

O que salta aos nossos sentidos a partir desta entrevista é a vivência de

um caráter puramente coercitivos da medida, que deixou marcas profundas na

existência deste adolescente. Atualmente, já em liberdade, ainda convive

intensamente com a experiência que mostrou-se traumática por sua fala e

maneira de falar (e de evitar falar); bem antes que as situações tomassem

forma pelo relato do educador.

Essa experiência solitária influenciou diretamente outros aspectos de

sua vida. A boa relação que compartilhava com sua irmã foi uma das

características que se alterou. A relação foi rompida, pois ela era uma pessoa

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bastante próxima que foi visitá-lo apenas no Natal, sendo que passou tantos

outros dias comemorativos e comuns requisitando sua presença.

Vemos outra drástica mudança no que diz respeito à sua relação com os

outros. Definia-se como uma pessoa bem relacionada – quantitativamente

falando – em diferentes espaços, como sua comunidade e a escola.

Atualmente, opta por permanecer mais tempo em sua casa, tendo diminuído

drasticamente o número de pessoas com quem convive.

Tal opção lhe parece uma boa alternativa para manter-se afastado da

vida infracional. No entanto, parece necessitar de apoio para manter a

convicção de que não se relacionar com as suas antigas companhias – mesmo

que sinta vontade de participar de algumas atividades que realizam, como

andar de moto ou carro pelo bairro – é, realmente, a melhor das alternativas.

Uma das pessoas que tem, dentre outros papéis, o de apoiá-lo nessa

decisão é sua namorada T., que durante seu período de internação fez um elo

entre o interno – a Febem, onde ele estava – e o externo – a vida em liberdade

– através de cartas que trocavam. Em liberdade, E. aproximou-se ainda mais

de T. que, além de ser uma presença diária em sua vida, assumiu uma posição

de controle e cuidado em relação ao namorado.

T., no início, colocou-se num lugar de tentar exercer controle ou vetar as

saídas de E. – considerando, inclusive, que logo que voltou da Febem “todo

mundo” chamava-o para ir roubar novamente. E. reclama dessa posição, mas

afirma que hoje a namorada está mais tranqüila e que ele próprio lhe delega o

papel de informar, a quem o chama, que estão juntos e que ele não irá sair.

Fala com carinho e calma dessa possibilidade de ficar “quieto” junto à

namorada.

Antes de abordarmos outra das figuras que apóiam E. – desta vez sue

pai – cabe falarmos de sua relação com a medida sócio-educativa de da

liberdade assistida.

Por trabalhar em período integral, o que também pode ser considerado

um aspecto positivo de quem cumpre uma medida sócio-educativa, o

desenvolvimento de seu Programa Individual de Atendimento previa apenas

sua acompanhamento semanal pelo educador e seu retorno à escola. Além

disso, deveria atender às determinações do juiz, como a de entrar em sua

residência até às 22 horas.

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E. freqüenta regularmente o Núcleo para seu acompanhamento, mas,

como discutido anteriormente, não havia retornado à escola. Quanto ao

horário, está mais relaxado do que no início de sua LA, mas quando sai ainda

tem medo de ser preso e retornar para a Febem. Observamos, novamente, a

medida de internação fazendo-se presente em outros campos, o que fica ainda

mais claro se lembrarmos da resposta dada pelo adolescente quando

questionado quanto ao que achava da medida de LA: “Melhor do que ficar lá

dentro né?! O sofrimento lá acho que é bem maior!”.

Essa resposta ilustra o lugar que a LA tem para ele e a marca da

internação que se dissemina para diversos lugares e aparece como ponto de

comparação e de repulsa.

Um último ponto, também muito importante no desvelamento do sentido

para E., que deve ser analisado é o lugar de seu pai nessa sua experiência.

Julgamos interessante apontar neste momento outra frase emblemática,

extraída da entrevista: “Meu pai me controlava mais que a LA!”. É importante

pontuar que esta sentença não foi pronunciada como uma reclamação, mas

como uma constatação.

O pai além de dar-lhe apoio e incentivo enquanto cumpria a primeira

medida sócio-educativa, assumiu uma postura bastante ativa junto ao filho em

LA. Passou a cobrar posturas que julgava adequadas, horários e

posicionamentos de E. frente à sua nova situação, seu futuro e suas relações.

E. fala de seu pai como alguém aberto ao diálogo e disposto a dar

continência ao filho adolescente em conflito com a lei, como forma de cuidado

e proteção. É interessante dizer que, nesses aspectos, o pai tomava para si a

responsabilidade sobre o filho, que, por sua vez, reconhece nele uma ação

mais presente do que a ação sócio-educativa da liberdade assistida. Um

aspecto que ressalta certa autonomia e empenho dessa família (ou de parte

dela) para dar conta de suas questões.

O adolescente mostra-se convicto do que quer para sua vida futura,

excluindo a carreira infracional de seus planos. É dessa forma que reconquista

a confiança de seu pai: buscando um trabalho, mudando de posturas e

atitudes; e podendo expor tudo isso para ele. No entanto, durante todo o tempo

que dialogamos com E., defrontamo-nos com as questões que viveu na

internação.

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A medida, de acordo com seu discurso, mobilizou-o pelo medo;

sentimento que se sobrepõe a outros possíveis aspectos. Afirma com

convicção que não quer reincidir no ato infracional, mas não apresenta uma

reflexão ou elaboração a respeito dessa prática. Mostra que sua convicção está

em saber que não deseja retornar a um lugar solitário e amedrontador e, para

que isso não ocorra, vai buscando recursos em si e apoio naqueles capazes de

estarem ao seu lado.

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2.2 A entrevista com L.

2.2.1 Breve caracterização de L.

L. é um adolescente de 15 anos cumprindo seu sexto mês de liberdade

assistida. Junto com a LA – medida recebida pelo “tempo necessário para sua

ressocialização”, como consta na via assinada pelo juiz que determinou a

medida –, recebeu a medida de prestação de serviços à comunidade pelo

período de 2 meses, devendo cumprir 4 horas semanais.

Foi apreendido na comunidade onde mora por tráfico de drogas e foi

encaminhado para uma Unidade de Atendimento Inicial – UAI, da Fundação

Casa19. Passou dois dias nessa Unidade antes de receber as medidas a serem

cumpridas em meio aberto.

Realizamos apenas um encontro que aconteceu no Núcleo de Proteção

Especial onde é acompanhado em sua medida de liberdade assistida, e este

teve a duração aproximada de 70 minutos. A entrevista foi gravada com o

consentimento de L..

2.2.2. Apresentação dos focos de análise da entrevi sta de L.

Apresentaremos a seguir os focos de análise da entrevista realizada

com L., organizados em quatro grandes temas20: “Bq. – ‘o Mundão’”, “L.

começou do zero”, “Questões Pessoais” e “Relações Atuais de Amizade”.

No tema “Bq. – ‘o Mundão’” os focos de análise são:

- A vida no tráfico

- As drogas

- A relação com a polícia

No tema seguinte, “L. começou do zero”, os focos de análise são: 19 Também nesta análise iremos nos referir à Fundação Casa por seu antigo nome oficial: Febem. Essa alteração será realizada, pois foi a maneira como o adolescente se referiu à instituição durante a entrevista. 20 Os títulos dos dois primeiros temas (“Bq. – ‘o mundão’” e “L. começou do zero”) estão relacionados a relatos feitos pelo adolescente durante a entrevista, no que diz respeito à identidade que assumia no tráfico – denominado pelo adolescente de “mundão” – e as transformações que viveu após abandoná-lo. Podem ser compreendidos mais claramente pela leitura dos focos de análise.

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- A medida sócio educativa e o educador

- A igreja e o pastor

- A nova relação com a polícia

No terceiro tema, “Questões Pessoais”:

- Família e comunidade

- Escola

- Lazer

- Fé, oração e futuro

No último, relativo às suas “Relações Atuais de Amizade”:

- (Ex-)Colegas do tráfico

- Colegas da comunidade e da igreja

Temos clareza que todos os temas e focos de análise dialogam e se

entrelaçam tanto para a formação do sentido da experiência para L., quanto

para sua constituição como sujeito no mundo, ativo em sua existência. No

entanto, optamos por utilizar esses recortes para melhor compreender os

diversos aspectos presentes em seu relato.

Na apresentação dos focos utilizaremos alguns trechos de sua fala para

ilustrar a análise. Os trechos mencionados aparecem em itálico e tentam ser o

mais fiel possível à maneira com que o entrevistado se expressou, não

havendo passado por correção gramatical ou ortográfica. Em seguida, para

cada foco há a descrição/interpretação da pesquisadora.

2.2.2.1 Tema: Bq. – ‘o Mundão’

Foco: A vida no tráfico

É o mais respeitado! Cê até se ilude, tem vezes! Eu já vinha patrão! Cê é o cara mais bom que tinha. Eu trabalhava em tráfico, né?! Eu era o mais respeitado. Era Bq. pra lá... meu apelido era Bq., né?! Mas hoje eu não aceito mais como Bq.. Que no mundão era “ô, Bq”, era Bq pra lá, Bq pra cá. Bq. porque eu era pequenininho, porque eu respondia à polícia. Os de maior tinha medo de apanhar! E era isso: Bq. porque eu era pequenininho!

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Antigamente eu não escutava minha mãe, não escutava quase ninguém... só escutava o mundão! Eu brigava com cara de maior. Se os cara relasse o dedo em mim eu já vinha patrão pra arrancar a cabeça dos cara. Por isso que eu era o mais respeitado, porque tráfico é isso, né?! A pessoa só vai pensar depois que passa por isso (por uma apreensão pela polícia). Depois vai pensar... se ela pensa! Mas tem gente que aprende pela primeira vez, que nem eu já me toquei! Ensinava lá os novo, os que entrava. Tá vendo uma coisa? Que já levei outras pessoas pro mau?! Eu ensinava essas pessoas que não sabia: a viatura vinha e eu ensinava a gritar “moiô”! Que era “moiô”. Quando vem a viatura é “moiô” e sai correndo! Então, ficava do lado do traficante, eu gritava “moiô” e ele saia correndo! Nóis tudo saia correndo! Aí eu era o mais, né?!.... da biqueira!!! Qualquer treta lá, era eu que ia resolver e se alguém relasse ni’mim vinha dono e tudo! Você começa dando risada! Quando cê vê um monte de dinheiro, cê já quer ir. Eu comecei assim! Ah... era dinheiro, né?! Muitas pessoas lá falava que eu ia ser gerente, muitas pessoas falava que eu ia ser dono (do ponto de tráfico). Pensava mais em dinheiro! Eu ia pra balada! Eu não dava o dinheiro pra minha mãe! Só balada! Balada, fumava maconha até umas hora! Esse dinheiro, eu to vendo, né?! Dava pra mim fazer muitas coisas com esse dinheiro: comprar roupa... uma coisa que eu não comprava era roupa! Só era maconha! Antigamente eu não dormia, por isso que eu falo que eu não ia pra casa. Que eu só ficava na rua! A pessoa que é do mundo, ela não consegue dormir! Fica pensando em polícia invadir a casa, fica com medo quando ta devendo alguma coisa pra alguém. Nossa! Na hora de dormir, você escuta barulho quando você tá dormindo. Você escuta um barulhinho e já pensa que é polícia. Por que? Porque cê é do mundo, né?! Dono de biquera é a mesma coisa: dono de biquera não dorme, dono de biqueira não vive sossegado, dono de biquera ele tem medo de ir em algum lugar! Por que? Porque ele deve, né?! Só que aí eu entrava dentro de casa e não conseguia ficar em paz, eu já pensava que tinha polícia passando lá na viela. Eu escutava um barulhinho no portão, assim, eu já pensava que era o meu portão. Eu já pegava e saia de casa bem calminho, fechava a porta, fechava o portão de chave e já saia pra rua. Só que aí eu sumia, não ficava no mesmo lugar! Na compreensão desta entrevista podemos perceber como L. se define

enquanto alguém que utiliza-se do tráfico como fonte de renda. Inicialmente,

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ele se descreve naquele espaço como um menino pequeno e novo, mas que

não demonstrava qualquer medo diante de seus companheiros.

O apelido Bq. lhe atribuía uma identidade que hoje não aceita mais. Bq.

era confiante diante dos policiais, diante dos companheiros, diante de outras

pessoas e tinha o apoio de figuras com cargos hierárquicos mais elevados

dentro do tráfico. Essa postura confiante lhe fazia ser respeitado no “mundão”.

Ele afirma que escutava apenas aos apelos do tráfico, nunca aos de sua

mãe ou de outras pessoas que, eventualmente, pudessem vir a lhe dar

conselhos ou oferecer alternativas. Segundo ele, o apelo que o tráfico lhe fazia

era puramente financeiro, mas em seu relato aparece também o apelo do

poder: o poder de ser respeitado – principalmente, por fazer coisas que outros

companheiros maiores e talvez mais poderosos não tinham coragem –, de ser

protegido e de ter perspectivas de crescimento profissional endossadas por

seus colegas.

L. conta do uso que fazia do dinheiro que recebia trabalhando para o

traficante. Diz que gastava indo para a balada e comprando maconha, a única

droga ilícita que consumia. Hoje reconhece que poderia utilizá-lo para outras

necessidades, como comprar roupas, por exemplo.

O adolescente iniciou no tráfico com a função de avisar o traficante

quando a polícia se aproximasse e conta que, por muitas vezes, ensinou essa

tarefa para outros que estavam iniciando sua carreira. L. também vendia

drogas, tarefa que exercia quando foi apreendido.

No que diz respeito à apreensão, falando genericamente, L. revela que

foi um momento que o fez pensar à respeito de sua carreira no tráfico e de sua

situação naquele mundo. Afirma que não são todos que passam pela

experiência de ser aprendido que param para refletir.

Nas últimas frases destacadas, L. fala de um outro lado da vida no

tráfico: o medo constante. A rua consistia num lugar de maior segurança do

que sua casa. Qualquer barulho de noite, na hora em que ia dormir lhe causava

espanto, pois imaginava a possibilidade da polícia o estar perseguindo,

tentando invadir sua casa; ou então, alguém do próprio tráfico querendo acertar

alguma dívida.

Na hora de dormir, Bq., um menino corajoso de 15 anos que trabalhava

no tráfico, não conseguia ficar em casa, pois o medo – aquele que nunca

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aparecia diante dos companheiros – o rondava. Saia pra rua, “sumia” e só

retornava mais tarde para tentar dormir novamente.

Foco: As drogas

Eu não parei de fumar cigarro ainda. Mas só a coisa que eu uso é cigarro. Eu usava maconha, né?! E, graças a Deus, faz o que? Faz 1 mês, 2 semanas e 4 dias! Era sempre! Era todo dia!!! Eu chegava em casa “assim ó” (L. aperta os olhos, como se estivessem quase fechados), com o olho pequenininho. Tinha vezes que eu tentava ir pro quarto escondido da minha mãe. Minha mãe sabia, né?! Isso que eu pensava. Dinheiro fácil, né?! Porque entrava fácil e ia fácil! Pra comer: pra você ver como era dinheiro fácil. Você tava numa fome, você gastava 10 real em 3 x-salada, uma guaraná e não passava fome. Pegava o marmitex, comia e não passava fome. Isso aí por causa da maconha, né?! Tinha que comer, né?! Mas graças a Deus parei com esse vício de maconha. Só tô no cigarro e vamo trabalhando, né?! Pra parar de fumar cigarro também! A relação de L. com as drogas, na posição de consumidor, se resumia

ao uso constante de cigarro e ao uso diário de maconha.

O cigarro é um hábito que ainda não conseguiu interromper, mas que

tem muita vontade de fazê-lo.

O uso da maconha era um acontecimento diário que tentava esconder

de sua mãe, mesmo imaginando que ela soubesse. Desse período de uso

diário, ele fala de seus gastos com a droga: um dos destinos do dinheiro que

recebia do tráfico era a droga e um outro era a compra de comida para

amenizar a fome, um dos efeitos que a própria droga produzia.

Esse hábito foi interrempido e L. conta exatamente há quanto tempo isso

aconteceu: 1 mês, 2 semanas e 4 dias.

Foco: A relação com a polícia

Eu levava enquadro de polícia e os de maior tinha até medo de fica comigo! Porque eu respondia pros polícia. Minha mãe ficava preocupada na “madruga”. As polícia me catava, não tinha ninguém pra ir avisar minha mãe.Tinha vezes que eles até batia, né?! “Ah, é vc mesmo!”. Eu falava que não era, mas tinha vezes que eu respondia “Ah, sô eu mesmo!”. Aí entregava as coisas pra ele, eles saiam.

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Era me ver e eles já iam atrás de mim! Eu tinha medo também, né?! Você vê a polícia, saí correndo. Se ela te cata... Eu respondia quando ela me catava, tinha vezes que eu corria pra dentro dos bar e ela vinha a milhão! Subia a rua a milhão! Os polícia me dava “bote”. Que “bote” é quando os polícia pega droga, dinheiro. E tudo isso é você que paga! Eu não saía dessa biquera. As polícia me via, vinha atrás de mim, eu corria. Às vezes me enquadrava, mas eu corria... me escondia das polícia! Dizia que iam me levar preso e eu falava: “Quer me levar me leva!”. Aí levava meu dinheiro. Levava o dinheiro e a droga e saia. Ia embora! Aí eu ia pegando mais, trabalhava. Pedia mais (droga), trabalhava e... Sei lá... Gastava o dinheiro, ia pra balada. Gastava o dinheiro fácil! Ainda na postura de “menino do tráfico”, L. conta que afrontava

constantemente os policiais. Não ficava passivo diante dos questionamentos, o

que lhe ajudava a ganhar respeito dos colegas, que muitas vezes tinham medo

das conseqüências às quais aquele comportamento pudesse levar.

Conta que fugia, corria e se escondia, mas que muitas vezes foi pego e

nessas vezes era apenas ameaçado de que poderia ser levado pelos policiais.

Algumas vezes levavam as drogas que carregava para vender, outras o

dinheiro que portava. Como, tecnicamente, tudo aquilo pertencia ao traficante,

era necessário que trabalhasse para pagar o que havia perdido. Daí algumas

dívidas que criava.

2.2.2.2 Tema: “L. começou do zero”

Foco: A medida sócio educativa e o educador

O povo me chama de Bq. tem vezes que eu nem atendo. (...) L. eu já atendo na hora: que é meu nome! Eu aprendi assim: Bq. era no mundão! Era vida passada, L. é agora! L. começou do zero ! Que agora eu to vendo como é a vida! O educador começou a conversar comigo e eu não ouvia. Aí, depois, eu pensei sozinho: “Como que eu faço?”. Aí eu peguei e comecei a seguir, aí chegou o pastor “ni’mim” e me chamou pra eu ir pra igreja.

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Isso eu já acho bom: eu não tenho mais preguiça de vir pro Cedeca. (...) Antigamente eu faltava bastante no Cedeca (...), tinha preguiça de vim. Teve uma vez que eu até menti pro educador. Eu até mentia. Falava que tava com dor de cabeça, preguiça... ah, preguiça tinha vezes que eu falava a verdade: que eu tava com preguiça e não vinha mesmo! Só que tinha vez que eu mentia bastante também! Falava que eu tava com dor de cabeça, que eu saí com a minha mãe. No dia que eu vinha apresentar minha mãe, minha mãe falava que era mentira. Tinha vezes que eu não vinha pra assinar o LA. Tinha vezes que eu vinha, tinha vezes que eu não vinha. Igual na escola, só que lá eu faltava muito... no Cedeca também! Eu tinha terminado minha prestação de serviço. (...) Aí comecei faltando, faltando, faltando no LA. Aí teve uma vez que eu vim e o educador falou assim: “L. mas só tem dois dias pra você vim! E eu quero o seu bem, eu não quero o seu mau! Já pensou nós dois lá no fórum hoje? Já pensou o juiz falando que você vai voltar? Você já imaginou como é lá dentro (da Febem)? Cê já foi? Cê sabe como que é lá dentro!”... E aí, foi aí que eu prestei um pouco de ouvido e comecei a vim! Só que aí eu já comecei a fazer as prestação de serviço... fiz três vezes prestação de serviço, 4hs (...) pra cobrir uns LA. Não, não era medo (de ir para a Febem). Era por causa da preocupação, por causa de que você não arruma emprego e... Eu tava vendo que não dava mais pra mim. Aí eu comecei a parar de andar no mundo. Eu comecei a PSC e a LA foi em abril. Eu tava no mundo até maio! Só que aí eu já comecei a pensar, aí comecei de maio pra junho. Fui pensando... Foi nessa época aí que o educador falou pra mim também! Que eu tava faltando muito na LA, tava me dando uns exemplo lá que eu tava prestando ouvido praquilo que ele tava falando! Como que ia ser a minha vida lá dentro da Febem? Aí eu pensei sobre isso: foi de maio pra junho! Agora eu tô vindo certinho, tô assumindo meus compromissos. Foi bom tá aqui (no Cedeca)! Foi bom tá aqui porque muitos que num veio, hoje voltaram (para o tráfico). Então pra num volta eu construí minha vida, né?! Aqui eu já aprendi o que? Ali atrás eu tava tirando os mato, já (no jardim que fica aos fundos do Cedeca). Tô no (nome do programa)21, que é de atividades e tá me ensinando muito! Aí o (nome do programa) é curso sobre atividades. A gente fala sobre solidariedade, individualmente. Um monte de coisa que é interessante também! É só o (nome do programa) e a escola, só! (quanto às atividades que realiza estando em LA) 21 O nome do programa do qual L. participa não será divulgado para preservar a localização do Cedeca em questão.

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Assumir os compromissos, né?! (quanto ao papel do Cedeca nas mudanças pelas quais passou) Se eu não me engano, já era pra ter terminado em setembro: dia 1º de setembro. Só que aí o educador perguntou (...) “L. você quer participar... ó, seu LA, ele vai terminar dia 1º de setembro. Você quer terminar ou você quer continuar?”. Aí eu perguntei: “Mas como assim? Como que é?”, “Ah, porque é assim, você vai terminar, vai encerrar seu LA e você não vai ter mais passeios. Pro cinema, pra esses lugar assim!”. Aí eu peguei e perguntei: “E o (nome do programa)?”, “Ah, continua sim, dependendo continua.”. Aí eu peguei e falei “Não, quero continuar!” e ele falou “Até novembro? Até que mês você quer continuar?”, “Ah, até novembro tá bom!”. Que é por causa dos passeios, né?! Os passeios daqui é bom! Eu acho bom vim pro Cedeca... porque não tem nada pra fazer em casa; assiste televisão e zoa, né?! O dia todo... e zoa! O que que é LA? Ah... A sua liberdade na rua e que você venha pra assinar, né?!. Conversar direitinho sobre o que você faz e... O juiz vê quando que é o tempo certo. Determinar se o lugar que você tá, tá bom! Se você não tá fazendo mais aquilo que você faz... Que “espero que você continue assim”, né?! É o que eu falo, né?! Eu espero continuar assim! Neste foco de análise temos o percurso de L. pela medida sócio-

educativa de LA. Ele relata que no início faltava muito ao Núcleo, geralmente

por sentir preguiça. No entanto, em seu discurso atual, mostra-se incomodado

por mentir para justificar suas faltas. Algumas dessas mentiras, como aquelas

que incluíam sua mãe, acabaram descobertas com o passar do tempo. O

adolescente compara suas faltas ao Cedeca, à suas faltas na escola: todas

freqüentes.

Diz que começou a cometer exageros na quantidade de faltas, mas que,

eventualmente, quando requisitado pelo educador, aparecia para um conversa.

Nessas conversas o educador começa a expor para L. sua situação em relação

ao cumprimento da medida, uma vez que sua medida já estava para ser

encerrada. O educador conversa com o adolescente sobre as conseqüências

de descumprir a medida, contando que poderia pegar até mesmo uma medida

de internação. Ele diz que durante um bom tempo não deu ouvidos ao

educador.

L. garante não ter medo de ir para a Febem, mas diz que, ter essa

passagem em seu histórico, poderia prejudicar as chances de arrumar um

emprego no futuro. Em paralelo a isso diz que estava percebendo que a vida

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no tráfico não “dava mais para ele” e que pensou “sozinho” em como fazer para

mudar.

Muitos aspectos e acontecimentos confluíram para que L. decidisse

abandonar a “vida de Bq.” e pudesse se reassumir como L.. Dentre eles a

possibilidade de ir para a igreja, que já o requisitava de longa data. Essa

mudança não ocorreu logo que entrou em LA; passou aproximadamente um

mês no tráfico enquanto já cumpria sua medida em meio aberto.

No Núcleo L participa de um programa desenvolvido pela instituição,

além de freqüentar a escola e ter encontros semanais com o educador que o

acompanha. Desenvolveu também trabalhos no Núcleo relativos à sua medida

anterior, a PSC, e para repor faltas da medida de LA.

Sua medida de LA, que se encerraria no início de setembro foi

prolongada por mais dois meses. Segundo ele, aceitou continuar, pois não

queria deixar de participar dos passeios oferecidos pela instituição para os

adolescentes atendidos em medidas.

Ele define a medida de Liberdade Assistida como uma condição de

liberdade, por outro lado, pondera o fato de ser necessária a presença no

Núcleo para o acompanhamento regular (“sua liberdade na rua e que você

venha pra assinar”).

Sua definição abrange, ainda, dois aspectos distintos de sua percepção

da medida: controle e estímulo. O controle aparece no momento em que fala

sobre o juiz, que determina se o rumo que o adolescente está dando para sua

vida é bom ou ruim. O estímulo aparece em sua frase final que prevê alguém

que possa lhe dizer: “espero que você continue assim!”. L., em sua experiência,

encontrou esse incentivo na figura do educador.

Quanto ao papel do Cedeca nas transformações pelas quais passou

garante, convictamente, que a instituição o ajudou a aprender a assumir

compromissos e que é um lugar que permite que sua rotina se altere, podendo,

ao invés de passar o dia em casa ou na rua, fazer uma atividade diferente e

prazerosa.

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Foco: A igreja e o pastor

O pastor que chegou ni’mim e falou “vamo pra igreja?”. Aí eu pegava e falava “não!”. Negava voz, né?! Falava não, não quero! Deixava ele falando! Mas teve uma vez que eu mesmo fui sozinho! Que já tinha tocado meu coração! Aí ele ficava “L. vamo pra igreja! Vamo pra igreja! Jesus ta te olhando!”... e todo dia que ele me via: “Jesus ta te olhando!”. Tinha dias que eu até passava assim, escondidinho dele! “Jesus ta te olhando!”. Aí eu fui pra igreja (pela primeira vez). Aí chegou um profetizador e profetizou pra mim que tudo que falassem pra mim, que era pra mim fazer certinho que não ia ter nada de errado não ia ter... como se fala?... Não ia ter.... Coisas erradas sobre o Cedeca. Aí eu pedi pra ele fazer uma oração, ele fez uma oração. Chegou em casa... A partir desse dia eu já mudei! Eu comecei a pensar “Que que eu faço?”. Aí eu já vi que a minha vida tava mudando. Que eu tava conseguindo entrar cedo pra casa, tô lendo a bíblia até hoje. Já profetizaram que eu vou ser o... o... Como se fala?... O pregador da palavra do Senhor, que eu vou ser pastor. Minha mãe também fala, mas eu aprendi foi na igreja, a igreja me ensinou mais! Toda vez que você for falar sim ou não: que se você for falar que você tem que assumir um compromisso, você vai falar “sim”. Se você for assumir é “sim”, se for “sim” é “sim”. Se você não dá pra você ir, você fala “eu não vou vim”, “eu não vou participar” porque eu tô... um exemplo: um tipo de doença, dor de cabeça! Mas tem que ser verdadeira. E pelo menos a pessoa já concordou que você. (...) Se você não vem a pessoa vai falar assim: “Ele não assume os compromissos!”. Então é falta de compromisso! E é essas coisa aí que eu tinha no Cedeca! Quando você não quer ir pelo bem você vai pelo mal. Igual, quando meus irmãos me chamava pra eu ir pra igreja, eu não escutava. Eu leio a bíblia e num versículo lá que Deus fala assim: “Aqueles que não querem ir pelo lado bom, vai pelo lado mau”. Até hoje eu leio esse versículo, que o pastor também já leu, e eu lembro de mim! Eu não queria ir pelo bem. Eu queria ir pelo mal! Aí eu comecei a orar. Orei pra Deus! Aí eu peguei e falei “Senhor, me responde...”. Aí Ele pegou e falou assim “Ou você faz uma coisa que é certa ou que é errada”. Eu falei: “Pastor, acho que eu vou me afastar da igreja um pouco enquanto eu paro de fumar.”. Ele pegou e falou assim: “Se você se afastar da igreja, se você se afastar de Deus, você vai voltar a usar o que você usava.”. Ele (o pastor) mora na rua de trás da minha casa. E nóis ta planejando – nóis da mocidade e o pastor – toda igreja reunida, mas foi nóis que demos a idéia de abrir uma igreja na rua de cima. Tem duas igrejas só (...) e é cheia de boteco! Cheia de bar! Então seria bom ter três igrejas na rua!

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É bom que lá tem os meninos, né?! Nossos colegas que tem vergonha de descer lá embaixo (pra ir pra igreja que L. freqüenta). Não sei porque que tem vergonha, só sei que eles não vai! Mas se tiver uma igreja lá em cima eles vai se sentir mais a vontade “Ah, é na rua da minha casa! Do lado!” Mas eu falei pra eles “Quando Deus quer, filho, nada impede!”. Do mesmo jeito que Deus me puxou pra lá. Eu devia e não saia de dívida. Só que aí eu paguei,consegui pagar! Depois que eu saí da Febem eu ficava na rua a madrugada toda. Foi aí que eu decidi ir pra igreja! Aí eu vi que cê dorme sossegado, você não tem medo de polícia. Por isso que eu acho bem de ir na igreja... Que você não se preocupa com nada! (...) Você se sente bem, você dorme sossegado, não pensa em coisas ruins, não pensa em... Quando você ta dormindo... Porque eu devia também, direto! Graças a Deus eu fui pra igreja. Chego em casa, eu me ajoelho, oro, vou dormir. Nem ligo a televisão! Eu quase não assisto mais televisão. Antes eu assistia televisão até tarde também! Neste foco de análise L. fala de sua aproximação com a igreja e das

mudanças decorrentes desse acontecimento.

Após algum tempo de recusa, já em LA e reavaliando sua postura diante

da vida infracional, o adolescente decide “sozinho” ir à igreja. Fala de um

acolhimento desde a primeira aproximação e de uma mudança instantânea de

postura: passou a entrar cedo em casa, ler a bíblia.

A igreja, assim como o Cedeca, recebe o mérito por ajudá-lo a assumir

seus compromissos; embora nos conte que conselhos nesse sentido já

tivessem sido dados por sua mãe sem muitos resultados.

A figura do pastor aparece relacionada ao acolhimento, à manutenção

de sua proximidade com Deus e com a igreja. Ele também aparece como

alguém capaz de dar andamento à idéia do grupo de adolescentes, do qual L.

participa, de construir uma nova igreja para rivalizar com os bares e atrair

novos fiéis – inclusive seus ex-colegas de trabalho.

Um aspecto que merece atenção é a grande cisão entre bem e mal,

certo e errado que aparece em suas falas após o início dessa aproximação

com a igreja. É a necessidade de seguir este caminho “certo”, “do bem”, que

coloca L. novamente diante de seus compromissos, confiante nas orientações

que recebe.

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Por último, podemos ressaltar a grande diferença em suas noites. L.

afirma que, quando participava do tráfico, não conseguia dormir, principalmente

devido ao medo que sentia. Relata que após seu envolvimento com a igreja

pôde passar a dormir tranqüilo, fato que aparece associado às suas orações e

ao abandono do tráfico.

Foco: A nova relação com a polícia

E até hoje tem uns polícia aí que toda vez que eles vê, eles querem enquadra, mas eles sabe que eles não me enquandra, porque hoje eu tô num momento bom, né?! Eles vê eu com a bíblia na mão e eu comprimento eles, sim! Eles passam na viatura “Ô!” e eu faço assim “Ô!”. Com a bíblia na mão eles já passam, dão risada e vai. Hoje eu acho que eles não tem mais maldade, mas pra eles... Acho que eles fazem isso só pra mim testa eles, né?! Mas é assim mesmo! Cê olha pra eles, eles não te olham. Tem um polícia que hoje ele gosta de mim! (...) Eu não desejo o mau, né?! Mas não pode ter amizade, né?! Que em favela não pode ter amizade com polícia! Que lá na favela os trafico é pesado. Aí eu passo com a bíblia na mão... Ele me pegava também na biquera! Só que hoje eu passo com a bíblia e eu faço “Ô!”... ele já olha é fala “Ô, tudo bem?”. Aí é assim! Pelo menos eu vejo que eu não tô igual antes. Se eu tivesse igual antes na vida do crime, eu via ele, saia correndo. Ele vinha atrás e metia bala! Ele ficou contente também! Neste foco de análise L. fala da modificação de sua relação com a

polícia. Afirma que atualmente pode cumprimentar e sorrir para os mesmos

oficiais que antes viviam procurando-o pela favela.

Ressalta o fato de andar com a bíblia nas mãos, como algo que lhe

atribui o status de “bom menino” frente aos policiais. A presença da bíblia

equivaleria à aquisição de um escudo contra as antigas perseguições.

No entanto, mesmo com uma aproximação mais pacífica, afirma que não

pode estreitar os laços com nenhum policial, pois isso poderia implicar em

retaliação por parte dos traficantes.

2.2.2.3 Tema: Questões Pessoais

Foco: Família e comunidade

Eu tenho 3 irmãs e 1 irmão... comigo é dois. São 5 irmão no total!

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Eu brigava muito com meu irmão quando eu era do mundão. Meu irmão ficava brigando e eu brigava com ele também! Só que ai, a partir que eu entrei pra igreja, eu já levei ele pra igreja. Aí hoje tá tudo bem! Com ele e com as minhas irmãs! Respondia à minha mãe, (...) minha mãe chorava. Minha família vai tudo bem! Porque antigamente minha mãe sofria demais comigo. (...) Ela vivia só preocupada, porque eu passava a madrugada na rua. Ela não dormia, faltava no serviço. Minha mãe ela brigava sim! Ela ficava acordada a noite toda! Ficava preocupada. Saia na rua na madrugada pra ver se me achava. O ruim é que às vezes ela me achava... nas biquera. As preocupações da minha mãe: se eu ficava na madruga, não ia pra escola. E assim nóis perdemos o bolsa família. Aí voltou de novo e perdemos de novo e voltou de novo. Hoje, graças a Deus, minha vida mudou muito. Minha mãe hoje, ela se preocupa comigo e eu me preocupo com ela. É minha mãe que me dá! (o dinheiro, atualmente) E o dinheiro do (nome do programa). Eu só pego 10 real, 50 real vai lá pra casa mesmo! Porque eu acho... Eu acho, não!... Eu tenho certeza, né?! Que muitos visinhos tão alegres! Chegam ni’mim “Olha, gostei de você! Que saiu desse mundo!”. Os bichinho tão até alegre, dando risada!

Podemos perceber aqui duas maneiras distintas do adolescente se

relacionar com sua mãe.

A primeira maneira nos conta de uma preocupação unilateral: da mãe

com L.. Essa fase corresponde ao momento de L. no tráfico, passando noites

fora de casa, vivendo uma relação de tensão com os irmãos e a indisposição

com figuras de autoridade, que aparece também na explicitação de outros

focos.

Nessa maneira de se relacionar aparecem dois posicionamentos de sua

mãe: a preocupada com a figura do filho, que era procurado pelas ruas durante

a madrugada; e a preocupação com o sustento familiar que chegou a ser

prejudicado pela perda do benefício dado pela Prefeitura do Município sob a

condição de que os filhos freqüentassem a escola – e L. já revelou sua grande

dificuldade de ir para a escola quando passava a noite na rua.

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A segunda maneira de se relacionar com a mãe, que corresponde ao

período da entrevista, revela uma preocupação e um cuidado mútuos.

Em relação ao aspecto financeiro, L. ajuda em casa com o dinheiro que

recebe mensalmente através do programa que participa pela LA e sua mãe o

auxilia em seus gastos pessoais.

L. também se orgulha diante da aprovação que recebe da comunidade

no que diz respeito à sua nova opção de vida.

Foco: Escola

Eu durmo cedo também pra ir pra escola. Tem vezes que eu não consigo dormir, mas vou pra escola. Chego atrasado lá, mas entro. E, antigamente, eu não ia, não pensava, entrava era umas meia noite, uma hora dentro de casa. Que eu ia um dia sim, um dia não. Que eu não conseguia ir pra escola, passava a noite toda na rua e de manhã... À tarde eu acordava. Saia pra rua de novo, passava a noite toda e à tarde eu acordava. Era sempre assim, não tinha escola. Escola era um dia quando eu ia... Naquela época eu não gostava não! Agora meu caderno ele ta... A professora mesmo chamou minha mãe pro colégio uma pá de vezes porque eu... eu xingava diretor... eu era rebelde! Era rebelde! Até com a minha mãe eu discutia com ela, eu xingava muito os professores, xingava o diretor. Hoje eu tô de parabéns na escola, porque eu respeito! Eu sei respeitar agora eles. Antigamente eu não sabia respeitar. Tudo que eu pensava era ser o melhorzão da escola. E até hoje os moleques tem medo lá de mim por causa de antigamente, porque eu batia nos moleques. Era briga: eu tava em tudo no meio! É o que eu mais gosto! Gosto! Gosto de ler! Bastante! Nem sempre gostei, não! Hoje eu me interesso, né?! Na leitura, né?! É uma coisa boa a leitura, né?! Tô estudando mais, tô me interessando. Em Matemática eu não sou bom. Em Português eu não sou bom, também! Mas uma aula que eu sou bom é em História,que é bom escrever, né?! Só faço isso só! Se for texto... Tem vezes que a aula é só de texto! Mas eu não gosto de responder os textos, mas eu gosto é de História mesmo! O que eu gosto é de História mesmo, porque Português e Matemática... ah, e Ed. Física eu gosto! Aula de Ed. Física você não faz nada! Só Ed. Física e História eu gosto. Só dessas duas aulas! Já é adolescente e tem muitos compromissos pra fazer: a escola não deixa eu joga bola.

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Também neste foco de análise, L. fala de diferentes comportamentos em

diferentes fases de sua vida. Fala de sua mudança de postura na escola e de

seu recente interesse pela educação formal.

A postura “rebelde” e de afronta às figuras de autoridade apareciam

dentro da escola na relação com seus professores e com o diretor. L. afirma

que desejava se sobressair e, mesmo tendo mudado sua maneira de se

relacionar com todos os aspectos que envolvem este espaço – figuras de

autoridade, outros alunos e o ensino – reclama que tanto comprometimento o

impede de realizar outras atividades mais prazerosas, como jogar futebol.

Nos primeiros trechos destacados ele conta sobre a influencia que fazer

parte do tráfico exercia sobre esse quase abandono das salas de aula.

Relaciona sua dificuldade de entrar cedo em casa e, portanto, de não

conseguir organizar seu sono, com a impossibilidade de ir para a escola no

período da manhã.

L. também fala de novas descobertas: do respeito pelas figuras de

autoridade, da satisfação gerada pela aprovação dos professores e de

interesses pessoais que auxiliam seu desempenho escolar.

Foco: Lazer

Gosto de fazer? Jogar futebol! Palmeirense!!! E eu tenho uma camisa do Diego Souza e toda vez que eu vou jogar de sábado e domingo... Lá na escola tem uma quadra que ela é vazia e todo sábado e domingo ela abre pra joga bola. E eu vou lá com a camisa do Palmeiras, coloco meu meião... e vou lá joga bola! Aí vou na raça! Eu jogo bola na raça! Aí faz gol, já beijo a camisa, faço que eu sou o Diego Souza, que é camisa 7, né?! Eu fico me iludindo, né?! No futebol, que eu acho bonito! Eu acho bom, mas uma coisa que eu acho é que eu não vou conseguir ser profissional de futebol... Aí eu já pensava que era um profissional: um zagueiro! Ah... nóis fica conversando, cantando, nóis fica planejando que nóis vai pro shopping, né?!... Sábado. Eu e meus colegas. Nóis tava juntando dinheiro! Aí eu vou pedir pra minha mãe dinheiro, enquanto eles tava juntando, eu vou pedir pra mim mãe dinheiro. E aí, nóis vai pro shopping! Chegando lá no shopping nóis vai toma sorvete. Nóis num vai leva 200 conto! Nóis vai leva dinheiro, mas nóis vai com o pastor, né?! Nóis tá juntando dinheiro e o pastor vai levar a gente eu, o A. e o B.. Que o pastor é de maior! Aí

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nóis vai pro cinema. Também vai dar dinheiro o pastor! (...) Vai no cinema, tomar sorvete, comer. Vai fazer várias coisas lá... Brincar! E no outro domingo nois vai pro Pq. Ibirapuera e nesse sábado nois vai pro shopping! De ir pro Playcenter! Tenho vontade de ir, só que não dá né!? 33 real! Fico na rua, jogando bola. E brinca das brincadeira dos molequinho! Que na minha rua só tem pivetinho! Só uns pivetinho desse tamanhinho! A gente fica brincando lá na rua. Tem os prédios onde minha mãe trabalha lá. Lá tem um parquinho do lado, tem uma quadra de futebol e nóis fica jogando bola lá. Só vai eu o A. e o B, quando nóis vai pra lá! Eu tenho uma bike pequenininha, que é da minha irmã, mas é minha tbém. Aí nois vai andando de bicicleta pela rua! (...) Saio com meus colega. Nóis sai rodeando o mundo de bike!

Nos trechos destacados deste foco de análise nos deparamos com

aspectos mais infantis e sonhadores de L.. O adolescente fala da liberdade

possibilitada pela brincadeira, pelo jogo, pelo lúdico. É através destes recursos

que ele pode sonhar ser um grande jogador de futebol, pode brincar das

“brincadeiras de molequinho” e pode “rodear o mundo” andando de bicicleta

pelo bairro.

Neste foco aparece também a conquista de novos espaços através do

planejamento minucioso de um passeio ao shopping junto aos colegas. Um dos

pontos deste passeio que merece destaque é a maneira de conseguir o

dinheiro para que ele possa acontecer: além do auxílio do pastor, L. vai contar

com a colaboração de sua mãe, uma vez que afirma não dispor mais de

nenhuma fonte de renda.

L. também enfatiza o ânimo por participar de passeios gratuitos

oferecidos pelo Núcleo de Proteção ou organizados pelo grupo da igreja com o

qual convive. Exemplos dessas jornadas são o Parque do Ibirapuera e a Praça

da Sé.

Além da imagem do shopping e do cinema que identificam espaços aos

quais ele não tem acesso freqüente, mas apresenta a oportunidade de

freqüentar e se apropriar; manifesta também o desejo de conhecer um famoso

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parque de diversões da cidade. Este, no entanto, parece um desejo mais

distante devido aos escassos recursos financeiros de que dispõe.

Foco: Fé, oração e futuro

Tô indo pra frente. Se Deus quiser vou arrumar muitas coisas! Como é que eu penso? Eu penso em arrumar um emprego par mim, né?! Mas só num determinado tempo, né?! Eu tenho fé, eu creio, mas só na hora... Eu penso assim: eu corro atrás também! Já fui atrás de lava rápido, só que nenhum desses deu certo pra mim! E Deus: ele abre o impossível também! Aí eu só boto fé e corro atrás! Mas aquele que falar “vai lá”, eu vou lá! Se não der certo eu já converso com Deus... Mas já vindo minha proposta de emprego... se Deus quiser!

Um dos comentários mais intensos à respeito do assunto deste foco de

análise foi feito por L. com o gravador já desligado. L. fala à respeito da palavra

“oração”, dividindo-a em outras duas: “orar” e “ação”. Ele explica que orar é

muito importante e abre caminhos, mas quem ora deve também correr atrás do

que pede – “ação” –, não deve-se apenas esperar que as coisas aconteçam.

Como explicitado nos trechos destacados, é dessa maneira que L.

pensa em construir seu futuro: acreditando que Deus lhe abrirá caminhos na

hora certa, orando para que isso aconteça e sempre indo atrás de novas

possibilidades.

2.2.2.4 Tema: Relações Atuais de Amizade

Foco: (Ex-)Colegas do tráfico

Hoje eu passo, ó, do outro lado da rua da biquera. Ó, minha casa é aqui (L. faz o esquema das ruas em relação à sua casa, ilustrando com as linhas da mesa). Tem uma biquera na 3ª rua de cima... é aquela biquera lá, do escadão! Hoje eu não passo nem pela ruazinha pra ir pro mercado pra minha mãe... eu mando minhas irmã. Não é medo! É porque tem que se afastar o mais cedo possível, né?! Que quando você tem um amigo no mundo, quando você é acostumado com ele, só vive com ele, aí ele vai te lembrando, cada vez mais. Eu penso assim: quando você tem um amigo e você fica muito tempo sem ver ele, ele já te esqueceu da mente. Ele vai perceber que você não é aquele amigo de antigamente. Então ele vai falar: “Tem alguma coisa diferente!”... Então é isso que eu penso. Hoje eu passo assim longe, não paro. Cumprimento e saio.

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Pra evitar conversa, né?! Eles te chamam, eles te chama “E aí? Porque que você saiu?”. Eu não quero ficar... Ah, vai saber se dá uma falha minha “Ah ta vou trabalhar pra você um dia....!” Que eles chama mesmo, né?! O inimigo quer só levar você, mas aí eu já afasto das duas (biqueiras)! Eu passo, eles passam por mim nas ruas e nem... Graças a Deus, né?! Nem me chama, nem nada! Mas eu não gosto nem de passar nas ruas das biquera... Porque com certeza eles vai me chamar... Pra me perguntar alguma coisa! Porque eu tava decidido, né?! Falar pra eles que não dava mais, que aquilo não me pertence mais. (seria sua resposta se um ex-companheiro de tráfico lhe perguntasse porque saiu.) Tipo, você não é obrigado! Eles não vai poder te matar! Porque pra sai é muito difícil, né?! Entrar é fácil, mas sair é difícil! Pra mim, graças a Deus, teve uma hora difícil, mas pra sair foi fácil também! Pra sair, pra mim, foi fácil... Depois que eu comecei a ir pra igreja foi fácil. Meus amigos do tráfico, até hoje tem muitos que passam por mim e não me conhecem mais. Aí eu falei: “Tá vendo, Deus, como você é grande!” E eu agradeço a Deus! Porque se ele parar e ficar me puxando, com certeza eu vou, né?! Que não tem como! O povo do mundo é assim mesmo! Mas tem um colega meu que eu vou levar pra igreja esse domingo e... E teve um outro que eu levei também... Que era do mundão. E os dois saiu do mundão! Os dois agora ta aí, em paz! Não tá indo pra Igreja, mas de vez em quando eu puxo no pé deles e eles vai! Os dois colega. Depois ele me encontrou e falou (...): “Bq, olha, lê uma parte aí da bíblia pra mim!?”. Aí eu peguei pra ele e falei “Vamo pra igreja!”. E nóis fomo conversando, né?! Aí chegou lá na igreja e ele não quis entrar, parece que alguém tava puxando ele! E eu falando “vamo, entra!” Aí eu interrompi o culto e pedi pro pastor que fez uma oração por ele e ele foi embora sossegado! Eu falei “Não, pastor, agora deixa ele ir embora!”. Na hora que voltei da igreja, eu passei na casa dele e ele já tava dormindo! Isso que é bom na igreja! Porque hoje ele tá ainda no mundo, mas ele vai sair dele!

Percebemos no discurso de L. a descrição de estratégias para se afastar

do tráfico e para que esse novo posicionamento possa ser permanente.

Notamos que o medo presente por seu distanciamento não é de

represália, mas de uma possível recaída num momento de descuido ou

fraqueza. Para não se submeter à tal possibilidade evita um contato próximo

com os ex-colegas de “biqueira” e agradece à Deus por muitos não o

reconhecerem mais.

L. fala, ainda, de como a igreja fortaleceu seu distanciamento do tráfico e

da tentativa de encaminhar alguns ex-companheiros de trabalho para lá.

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Acredita que a igreja seja um caminho certo para que abandonem seus postos

de traficantes, assim como ele próprio pôde experimentar.

Foco: Colegas da comunidade e da igreja

Os colega de igreja, os irmão mesmo da igreja, tudo me para. Igual hoje, cheguei atrasado por causa disso! Amigos de igreja só tem 3! Só de igreja, que é o A., o B. e o C.. Da igreja. (...) De fora? De fora, amigos, assim, não tem não! Mas colega de falar um oi, parar um pouco pra conversar tem sim! Tudo que não é do crime! A gente sai pra jogar bola, uma pá de menino lá na rua... No outro domingo nóis vai pro Pq. Ibirapuera com a mocidade da igreja. Eu sou da mocidade da igreja. E no outro domingo nois vai pro Pq. Ibirapuera e nesse sábado nóis vai pro shopping! Aqui é a rua da biquera, aqui é a rua que nóis fica. Nóis fica na rua de baixo, né?! Aqui é a Via que eu moro, aqui atravessa pra ir pra minha casa e aqui já tem outra rua de biquera. Eu fico nessa e nessa, porque aqui tem uma e aqui tem outra: as duas cerca! Eu não passo nem pra cá, pra rua da biquera, e nem pra outra rua. Eu só fico nessas duas mesmo!

Notamos aqui a descrição de sua atual popularidade junto aos “irmãos”

da igreja; conta que faz parte do grupo de jovens da mesma e que suas

companhias mais freqüentes são outros adolescentes de lá.

Com exceção àqueles que freqüentam a igreja, relaciona-se com outras

pessoas da comunidade que não fazem parte “do crime”. Encontra nessas

pessoas companhias para manter-se afastado das “biqueiras” que cercam sua

casa e as outras ruas pelas quais circula.

2.2.3. Sobre o modo de ser de L. na entrevista: imp ressões, percepções e

sentimentos (a partir da compreensão da pesquisadora)

O processo para a realização foi semelhante ao utilizado na entrevista

do primeiro adolescente. Iniciamos pela explicação do projeto e seguimos para

o esclarecimento das dúvidas de L. quanto à sua participação na pesquisa.

Feito isso, propusemos uma apresentação/aquecimento que visava uma

aproximação do sujeito através de sua auto-descrição e de um breve relato de

sua história. Em seguida foi lançada a pergunta desencadeadora: “Como você

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percebe a sua vida antes de depois de receber e estar cumprindo a Medida

Sócio-Educativa de Liberdade Assistida?”.

Julgamos importante pontuar, neste momento, que a pesquisadora havia

acompanhado o educador à uma visita domiciliar realizada à casa de L. cerca

de dois meses antes da entrevista. Aparentemente, o fato de ter ocorrido um

encontro prévio, deixou L. mais confortável no momento de participar da

pesquisa.

L. apresentava-se bastante disposto a falar de suas experiências.

Quando fazia referência à sua casa ou aos espaços que a cercam recorria à

memória da pesquisadora e à esquemas explicativos – ilustrava, através das

linhas presentes no tampo da mesa, a planta da comunidade onde vive. Sua

vontade de falar aparece no tamanho de suas respostas e na percepção da

pesquisadora de que, caso não fossem feitas perguntas focalizadoras ou de

aprofundamento, ele seria capaz de discorrer sobre os temas que lhe ocorriam

por um longo tempo.

Outros momentos em que essa disponibilidade de L. fica clara estão

localizados no final da entrevista. Quando a pesquisadora, dando a entrevista

por encerrada, pergunta se o adolescente gostaria de completar seu discurso

com mais algum comentário, ele volta a falar e aborda mais profundamente

diversos assuntos sobre os quais havia falado anteriormente.

L. continuou a entrevista por aproximadamente dez minutos, até que ele

próprio a encerrou – “É isso!” – permitindo, então, que a pesquisadora

desligasse o gravador. Com o aparelho desligado, o adolescente reinicia seu

discurso, falando durante outros dez minutos.

A última observação que faz espontaneamente é que gostou muito de

participar da entrevista, que achou muito bom estar ali, principalmente, porque

quando fica em casa “não tem nada para fazer” (sic).

Logo no início da entrevista, o adolescente demonstra uma sensação de

grandeza ao falar do período que passou trabalhando no tráfico. No entanto, a

postura arrogante, permitida pelo status alcançado em decorrência ao posto

que ocupava e às atitudes que tinha, dava lugar ao medo nos momentos de

maior solidão.

A possibilidade de ser apreendido, de enfrentar a polícia ou sua mãe

não lhe causavam tanto terror quanto a fantasia de ter sua casa invadida pela

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polícia ou por cobradores do tráfico durante a noite, enquanto dormia. Esse era

o medo que tentava enfrentar todas as noites e que ganhava cores escuras

através de sua descrição, como se fosse algo demasiadamente incomodo para

lidar.

É principalmente desse aspecto que vem seu alívio por ter abandonado

o tráfico, tendo trocado o medo pela tranqüilidade de quem agradece à Deus

antes de dormir e está seguindo pelo “caminho certo”. Essa tranqüilidade

também se manifesta na nova maneira que descobriu para se relacionar com o

mundo. Experimenta, sem guardar rancor, uma relação pacífica com a polícia

que antes o perseguia.

O entusiasmo é outro sentimento que aparece quando expõe suas

mudanças. Isso fica evidente quando fala de sua nova relação com a escola e

a professora; segundo quem ele “está de parabéns”. Fala dessa aprovação

pelas figuras de autoridade que tanto desafiava no passado, como um grande

incentivo para sua nova forma de se relacionar.

Esse mesmo sentimento aparece diante das descobertas da educação

formal, da leitura, das matérias; de seus gostos e desgostos em relação à esse

tipo de aprendizagem. Os passeios culturais proporcionados pelo Centro de

Defesa também promovem esse sentimento, permitindo que a perspectiva de

conhecer e se apropriar de novos espaços apareça como mais um incentivo: a

possibilidade de poder se movimentar sem medo e com liberdade.

Duas figuras que ganham destaque no percurso de L. durante a

entrevista são o pastor e o educador. Ambos aparecem como a personificação

das instituições que o acompanham mais de perto: a igreja e o Cedeca. São

figuras que lhe inspiram confiança e, por meio de conversas, ajudam-no a

balizar seu caminho.

L. fala com animação da nova fase de sua vida e demonstra o desejo de

buscar outras alternativas para se manter distante do tráfico. Suas idéias sobre

o futuro, por enquanto, se configuram em conseguir um trabalho. Para tanto,

crê em uma ajuda divina, mas não espera conseguir nada sem que tenha que

buscar por meio da ação.

Em paralelo ao ânimo por sua nova postura e ao orgulho por ter

abandonado a droga ilícita que consumia frequentemente, apresenta em sua

fala uma constante insegurança alimentada pela possibilidade de recaída em

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relação ao tráfico. Evita as redondezas dos pontos de venda de drogas e o

contato próximo com seus antigos colegas. No entanto, demonstra um intenso

desejo de que todos possam livrar-se da vida inconstante e insegura do crime.

Em oposição à disponibilidade que apresenta para falar à respeito de

sua experiência em relação ao ato infracional e à medida sócio-educativa, o

adolescente pouco fala sobre sua família. A única figura que recebe algum

destaque e alguma carga afetiva é sua mãe, principalmente quando fala à

respeito da preocupação dele em relação a ela nesse novo modelo de relação.

Julgamos importante chamar atenção para um último aspecto de sua

entrevista: o mesmo L. que mantinha uma relação tão estreita com o tráfico e

que descreve-se inicialmente como uma figura altiva (atualmente apagada ou

adormecida), também nos mostra um lado pueril. Assume, diversas vezes, num

tom bastante infantil, seu gosto pelas brincadeiras – com os colegas mais

novos, com os colegas de sua idade, no shopping, na rua – e revela seu gosto

pela fantasia, quando pode imaginar-se, até mesmo, sendo um astro do

futebol.

2.2.4. Análise do Sentido das Medidas Sócio-Educati vas para L.

Alguns aspectos se destacam quando pensamos em expor uma análise

da compreensão do sentido da medida sócio-educativa para L., partindo da

entrevista realizada. O incentivo para seu afastamento da carreira infracional e

a manutenção desse posicionamento se apóia, prioritariamente, em um tripé:

sua reflexão pessoal, o Cedeca e a Igreja.

O primeiro aspecto nos coloca diante da dificuldade em conviver com o

medo diário de ter sua casa invadida. L. não conseguia mais suportar a dúvida

e a tensão que isso lhe causava. Por outro lado, o apelo do tráfico e de tudo

que esta atividade lhe proporcionava se sobrepôs durante algum tempo às

questões que o atormentavam.

Abdicar por conta própria do poder, do dinheiro fácil e de tantas outras

facilidades que trabalhar no tráfico lhe proporcionava era uma tarefa árdua.

Implicava também em se afastar da droga que consumia e restringir seu

contato com os colegas de trabalho – uma vez que afirma ter consciência de

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que os colegas tentariam fazê-lo retornar e da dificuldade em oferecer

resistência.

Em meio à esse conflito interno de desejos e interesses, o Cedeca, na

figura do educador, pôde expor as conseqüências de não cumprir a medida e

alimentar sua reflexão sobre uma possível medida de internação. Essa

possibilidade lhe causava medo pela dificuldade de se conseguir um emprego

formal após passar pela instituição.

A igreja, nesse momento, se configura como a possibilidade concreta e

objetiva de mudança de postura. Aceita as investidas do pastor e resolve

começar a freqüentá-la. A mudança que ele descreve como imediata,

passando a entrar cedo em casa e ler a bíblia todos os dias após a primeira

vez que entrou na igreja, já acontecia há algum tempo em seus pensamentos,

conforme digeria toda a realidade em que vivia sendo do tráfico.

Mesmo confirmando a autoria da iniciativa de ir para a igreja “sozinho”,

deposita a responsabilidade por ter mudado de vida nas duas instituições,

tirando de si este mérito – talvez, porque, se o mérito não lhe pertencer, não

caiba a ele a manutenção da nova maneira de ser.

Sua proximidade com a igreja nitidamente lhe dá forças para seguir

adiante com as mudanças que projetou e vem experimentando. Também

exerce um papel de proteção: andar com a bíblia afasta policiais mal

intencionados; ter contato com a igreja endossa seu distanciamento das drogas

e do tráfico.

Podemos ressaltar a esperança proporcionada por esse contato. Ela

aparece, principalmente, em sua fé e no incentivo à oração, no sentido de

orar+ação. Vale destacar também a abertura da possibilidade de se tornar

pastor (como foi anunciado por outro pregador), de poder disseminar suas

crenças e sua “salvação”.

O pastor é a figura capaz de lhe dar continência e cuidar da manutenção

do vínculo que o adolescente estabeleceu com a igreja. Isso fica explicitado

quando L. conta que gostaria de se afastar por um tempo, enquanto cessava

seu hábito de fumar cigarros. O pastor lhe aconselha a não tomar tal atitude

pela ameaça de que poderia voltar a agir da maneira que agia antes.

O educador, por sua vez, além do papel de coagi-lo (quando o coloca

diante da possibilidade de receber a medida de Internação caso não cumpra

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adequadamente a LA), aparece no papel de quem abre espaço para novas

experiências e para a reflexão de L.. Sua medida, talvez fosse encerrada ao

completar 6 meses – lembramos que foi atribuída pelo “tempo necessário para

sua ressocialização”. No entanto, a medida é estendida, a partir do momento

em que L. assume a aproximação com o Núcleo, aceita e busca cumprir seus

compromissos – postura que insiste ter sido ensinada pelo Cedeca, mas conta

que já era incentivada por sua mãe.

A medida-sócio educativa aparece fortemente ligada à possibilidade de

conquista de novos territórios sociais e culturais, o que é exposto pelo

adolescente quando conta que alegra-se em continuar a medida para não

deixar de participar dos passeios. Mesmo tendo conhecimento de que estar na

medida supõe outras responsabilidades.

A medida é definida por L. como uma liberdade na rua, mas que implica

em algumas obrigações como “ir assinar”, conversar com o educador e acatar

as determinações do juiz. Também ressalta a importância da aprovação por

parte das figuras de autoridade, no caso, aquelas que acompanham seu trajeto

na medida: “’espero que você continue assim’, né?! É o que eu falo, né?! Eu

espero continuar assim!”.

Como pontuado anteriormente, afastar-se do trabalho no tráfico pedia a

alteração de diversas relações. Foi na igreja que encontrou novos

companheiros com quem brincar e se distrair. A maioria de seus ex-colegas foi

deixada de lado, como que se livrando das tentações de ceder novamente ao

“mundão”.

É interessante relacionar como esses ex-colegas tiveram seus papéis

invertidos com o da polícia: atualmente mantém com os oficiais uma relação

pacífica, mas esquiva-se das pessoas do tráfico, chega a mudar seu caminho

para não encontrá-las.

Apesar de toda a fé que demonstra L. foge da postura de acomodação.

Deixa bem clara a importância da oração em sua vida, mas enfatiza que não

depende apenas dela, esforçando-se para conquistar seus objetivos e

recorrendo a conselhos e indicações das pessoas que o cercam. Sua relação

com o dinheiro também sofreu uma profunda alteração: agora, que não precisa

mais de recursos materiais para adquirir drogas e que trocou suas noites “na

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balada” por passeios diurnos pode dividir o que ganha com sua mãe. Ajuda em

casa e voltou a depender dela para suprir suas carências materiais.

Podemos dizer, então, que o sentido da medida sócio-educativa para L.

aparece inserido em uma rede de sentidos e de instituições. A medida sócio-

educativa isolada, talvez não apresentasse o impacto que demonstra ter se não

estivesse cercada por uma rede que está dando conta de atender este

adolescente.

O medo também aparece como disparador para os efeitos da medida.

Foi pelo incômodo, causado pelo medo de ter sua casa invadida, que pôde

abrir espaço para a auto-reflexão e, dessa forma, perceber o educador – e o

pastor – como aliado.

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Capítulo 3

Discussão

Neste capítulo realizaremos uma discussão a respeito da compreensão

das entrevistas realizadas com os dois adolescentes. Tal discussão será

fundamentada por considerações feitas no capítulo 1 da primeira parte deste

trabalho, que expõe os princípios das medidas sócio-educativas.

Refletindo a respeito da experiência relatada por E., nos deparamos com

algumas questões que tiveram um impacto significativo na existência deste

adolescente. O fato de ter seus direitos violados em diversos aspectos marcou

sua passagem pelas medidas e nos permite levantar questionamentos a

respeito de seu caráter sócio-educativo.

O ECA, como sabemos, prioriza a capacidade do adolescente em

cumprir a medida e as condições de acolhimento, apoio e participação de sua

família, afim de que tenha sustentação para o cumprimento da mesma. A

gravidade do ato infracional também é considerada no processo decisório, no

entanto, deve ficar num segundo plano a idéia de que a intensidade da sanção

deve ser proporcional à gravidade da infração cometida. Devemos lembrar que

“na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades

pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos

familiares e comunitários.” (Brasil, Lei nº8069/90, Artigo 100)

Diante de tal argumentação, temos elementos para pensar sobre a

necessidade da aplicação da medida de internação para este adolescente.

Refletindo sobre os aspectos pontuados, podemos avaliar tal determinação

como algo que poderia ter sido evitado na vida de E..

Considerando os cuidados depositados sobre o filho, a atuação presente

de sua família e a possibilidade da mesma estabelecer assistência e contornos

à liberdade “pós-infracional” do adolescente (sem que nos esqueçamos do

posicionamento de E. frente à vida infracional), podemos falar de uma outra

violação dos direitos que deveriam ser assegurados pelo Estado: o direito à

liberdade (Brasil, Constituição Federal, art.227; Brasil, Lei nº8069/90, Artigos

15 e 16). Não nos referimos a esta violação apenas pelo fato de E. ter sido

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encaminhado para uma medida de Internação, mas pelo fato de tal medida ter

sido inadequadamente aplicada, uma vez que este adolescente apresentava

todas as condições favoráveis para que sua medida fosse cumprida em meio-

aberto.

Diante da violação de tantos direitos temos dificuldades para desvendar

o caráter sócio-educativo das medidas aplicadas à E.. A passagem pela

internação e as condições que a precederam abriram espaço para sua reflexão

e autocrítica, mas o que impulsiona seus pensamentos em uma nova direção é

o medo de voltar a passar por situações que revela apenas de forma indireta,

expondo as marcas que permaneceram em sua vida.

A Liberdade Assistida é aplicada a um adolescente que já teve sua vida

assinalada por experiências traumáticas e que não recebe a medida aberto ao

que ela pode lhe oferecer. Sua preocupação maior – em detrimento à

educação formal e à conquista social, teoricamente, asseguradas por esta

medida – é seguir sua vida de forma a não reincidir no ato infracional.

Numa visão restrita e simplista, se considerássemos que a finalidade

última da aplicação de uma medida sócio-educativa é permitir que o

adolescente se afaste da vida infracional, poderíamos dizer que, para E., as

medidas sócio-educativas cumpriram sua função. Mas se ampliarmos a

compreensão de sua finalidade, pensando na medida como algo que abre

espaço para a reflexão, de modo que o adolescente possa fazer escolhas mais

conscientes e descobrir novas possibilidades de atuação no mundo, podemos

dizer que os meios (para que se promovesse o distanciamento de E. da vida

infracional) foram bastante distorcidos. A decisão tomada por ele tem origem

no medo e na necessidade de esquivar-se desse sentimento; não em uma

reflexão com os propósitos expostos acima.

Se adicionarmos a essas considerações o fato de tais medidas estarem

previstas num Estatuto (o ECA) baseado nos direitos próprios e especiais das

crianças e dos adolescentes que, na condição peculiar de pessoas em

desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e

integral ; fica ainda mais claro que a maneira com a qual seu caso foi

conduzido viola tanto o ECA, quanto seus direitos garantidos pela Constituição

Federal.

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Não pretendemos de forma alguma, por meio desta exposição, eximir o

adolescente de sua responsabilização pelo desvio cometido; ao contrário,

acreditamos ser de inegável importância a criação de um espaço para que

além de descobrir outras possibilidades gratificantes e/ou outras estratégias de

sobrevivência, possa discutir suas escolhas anteriores, compreendê-las e

assumir-se responsável por elas.

Refletindo sobre o histórico de L. e sua relação com as medidas sócio-

educativas, podemos observar o processo de ruptura em seu histórico

infracional, que se inicia objetivamente a partir do momento em que é

apreendido. É pensando em sua experiência que podemos observar como uma

parcela corrupta da polícia que está nas ruas acaba por incentivar a

manutenção do crime organizado, contribuindo para que adolescentes como L.

mantenham-se trabalhando no tráfico para sanar dívidas criadas pela ação

policial.

O momento em que L. deixou de ser ameaçado e foi realmente

apreendido e encaminhado aos órgãos públicos, na condição de adolescente

em conflito com a lei, foi essencial para que a reflexão que já fazia sobre sua

postura (e sobre os rumos de sua vida) pudesse transformar-se gradativamente

em ação. Desvela-se, então, a importância na vida de L. de uma ação policial

correta e honesta que pôde impulsioná-lo a buscar outras (novas) alternativas.

Nessa busca, encontrou dois pontos principais de apoio: a igreja e o

Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. É interessante

pensar que essas instituições (juntamente com a escola) e os atores que as

compõem puderam exercer papéis de sustentação para o adolescente.

Nenhuma delas assumiu o papel de instituição total, agindo de forma parceira

dentro de suas incompletudes.

É nesse contexto que nos deparamos com a importância da idéia de

rede, no sentido da articulação de instituições que puderam investir no vínculo

com a adolescente, sustentá-lo e incentivar as novas escolhas de L.

L., diferentemente do primeiro adolescente entrevistado, fala-nos de uma

relação mais próxima com a medida de Liberdade Assistida e aponta em seu

discurso o caráter sócio-educativo da mesma. Podemos supor que essa

diferença ocorra, pois durante seu percurso pela medida, L. foi ficando cada

vez mais receptivo ao que ela poderia lhe proporcionar.

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E., ao contrário, agarra-se à oportunidade de trabalho e foca em seu

crescimento profissional; para tanto, deixa de se envolver mais intensamente

com a medida. Seu trabalho, por ser algo positivo em seu plano de vida, o

“desobriga” a retornar imediatamente para a escola e de participar de grupos,

cursos e programas que o Cedeca oferece.

Na vivência de L. dois pontos merecem destaques especiais (por

receberem esse destaque em sua fala) no que remete ao caráter sócio-

educativo. O primeiro deles é a escola, nunca abandonada por completo, mas

encarada sem muita seriedade durante um longo período. Aprender a assumir

seus compromissos e assumir um novo estilo de relação com o Núcleo, refletiu

na dinâmica que experimentava em sua relação com a educação formal.

O outro ponto merecedor de destaque atravessa a questão do acesso à

cultura. O que se apresenta como grande incentivo para que L. permaneça

cumprindo a medida sócio-educativa, mesmo após ela ter cumprido sua

“função” nesse momento da vida do adolescente, é o fato dela lhe proporcionar

acesso à cultura e a espaços sociais antes desconhecidos.

A medida sócio-educativa de Liberdade Assistida é prolongada com

anuência do próprio adolescente. Isso nos permite observar a importância que

a mesma apresenta para L. que se reconhece fortalecido nessa relação (com o

Núcleo, com o educador, com a medida), tendo acesso à cultura e a espaços

da cidade antes pouco ou nada explorados. Esse é um dos pontos nos quais

podemos ver o efeito sócio-educativo sobre a vida do adolescente.

Se analisarmos o fato, soa incoerente que se mantenha um adolescente

sob medida judicial22 para que tenha acesso à cultura. No entanto, essa

situação que se estrutura, nos remete à carência de oportunidades desse tipo

para a população de baixa renda que reside na periferia de uma cidade repleta

de desigualdades como São Paulo.

L. nos conta que, na companhia de seus colegas de igreja, já

desenvolve estratégias para driblar tal situação. Juntos são capazes de criar

articulações para que possam freqüentar espaços cujo acesso é dificultado,

22 Mantê-lo na medida parece-nos, nesse caso, uma oportunidade de continuar fortalecendo os laços estabelecidos entre o adolescente e o programa de LA. A maior facilidade de acesso à elementos da cultura parece ter peso enquanto argumentação para que o adolescente mantenha-se vinculado ao programa de atendimento.

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seja pela distância física de muitos deles ou pela necessidade de recursos

financeiros, dos quais diversas vezes não dispõem.

Um aspecto que aparece de forma acentuada nos dois relatos e que

exerce influência significativa nas duas experiências reveladas é o medo; vivido

por razões e de formas bem distintas por cada um dos adolescentes.

Na vivência de E. aparece associado à apreensão. É um medo que

sobrepõe diversos aspectos abordados na entrevista e que se entrelaça a toda

experiência que viveu, e vive, após essa passagem em sua história. Esse

sentimento que o paralisa diante de reflexões, as quais não julga mais

necessárias uma vez que está convicto de que não voltará a infracionar;

também o impulsiona a seguir seu caminho pelo novo rumo que escolheu.

L. expõe seu medo como algo que não faz mais parte de sua vida. Foi

esse sentimento que influenciou seu processo auto-analítico e impulsionou as

decisões que fizeram-no abandonar o tráfico e buscar maneiras mais seguras

de conquistar seus objetivos.

Podemos finalizar considerando que os dois meninos expuseram seus

traumas, no entanto, cada um o experienciou de maneira bastante distinta.

Assim acontece com a maioria dos aspectos abordados. Alguns aproximam-se,

outros afastam-se, mas, considerando que são sujeitos únicos, com histórias e

compreensões próprias, não cabe aqui pensar em uma comparação entre as

vivências relatadas.

Por essa razão nos propusemos a dialogar apenas com aspectos

práticos do Estatuto e das medidas relacionados ao relato de cada um. Dessa

forma, pudemos proteger cada história na liberdade e singularidade que lhes

são próprias.

Restam ainda algumas considerações de cunho metodológico, pois

durante a realização deste trabalho, pudemos perceber a importância de que a

entrevista reflexiva seja realizada em mais de um encontro, de acordo com a

proposta original de Szymanski e cols (2002).

Acreditamos que o fato de não haver a oportunidade de expor ao

adolescente nossa compreensão e confrontá-la com suas idéias a respeito

daquilo que ele próprio experimentou, minimiza o alcance compreensivo deste

trabalho.

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Algo que ilustra esta consideração metodológica é, por exemplo, o peso

da revelação feita pelo educador logo após o término da entrevista de E.. As

novas informações constituíram-se em dados bastante importantes para a

reflexão sobre o impacto e o sentido das medidas sócio-educativas para o

adolescente.

Sabemos que mesmo sem serem abordados objetivamente por E., os

sentimentos relacionados aos fatos (re)velados estavam presentes, ainda que

sem um contorno muito definido. Por outro lado, reconhecemos que tais fatos

possam ter impactos ainda mais amplos e que, após a exposição (para o

adolescente) da compreensão daquilo que teria sido a primeira entrevista,

outros conteúdos e relações importantes poderiam ter aparecido.

A realização de um número maior de encontros poderia ter aberto

espaço – também por não haver mais o estranhamento de um primeiro contato

entre pesquisadora e adolescente – para que essas (e outras) passagens tão

significativas pudessem emergir do próprio adolescente, com a carga

emocional e a relevância que lhes seriam próprias.

No entanto, como já mencionado na descrição metodológica deste

trabalho, um maior número de encontros poderia criar uma vinculação e uma

exposição excessiva do adolescente. Considerando, as intenções e o alcance

de um trabalho de conclusão de curso, caso desta pesquisa, julgamos mais

importante a preservação do adolescente, mesmo que os resultados pudessem

estar, de alguma maneira, prejudicados.

Temos clareza de que o fim deste processo analítico é marcado pelo

reconhecimento de que as suas mais importantes possibilidades de

compreensão se esgotaram. Entretanto, este fato não elimina o potencial

revelador deste material, pois outros pesquisadores, num diverso horizonte de

tempo (com distintas experiências profissionais e pessoais) podem contribuir

com novas possibilidades de compreensões, o que revela o caráter provisório e

mutável desta análise. (Sodelli, 2006)

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Anexo: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, , RG ,declaro, por

meio deste termo, que concordei em ser entrevistado(a) na pesquisa de campo referente ao projeto intitulado “O Sentido das Medidas Sócio-Educativas na vida dos adolescentes em conflito com a lei: uma reflexão à luz da Fenomenologia Existencial”, desenvolvido pela pesquisadora Andrea Saraiva de Barros da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fui informado(a), ainda, que a pesquisa é orientada pela Profª. Drª. Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro, a quem poderei contatar a qualquer momento que julgar necessário através do telefone (11)3670-8000 ou pelo e-mail [email protected]. Afirmo que aceitei participar por minha vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui informado(a) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais é desvelar como a experiência de passar pela medida sócio-educativa exerce influência sobre a vida dos jovens.

Fui também esclarecido(a) de que os usos das informações por mim oferecidas estão submetidas às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista a ser gravada. Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta prejudicado(a), poderei contatar o pesquisador responsável ou seu orientador, ou ainda o Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP. A pesquisadora principal do estudo me ofereceu uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre Esclarecido, conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Fui ainda informado(a) de que posso me retirar deste estudo a qualquer momento, sem qualquer prejuízo.

São Paulo, .

Assinatura do participante: ____________________________________ Assinatura do responsável: ___________________________________ Nome: ____________________________________________________

RG: __________________ Assinatura da pesquisadora: __________________________________ Andrea Saraiva de Barros Assinatura do orientador: _____________________________________ Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro