a questão dos adolescentes no cenário punitivo da

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110 Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126 A questão dos adolescentes no cenário punitivo da sociedade brasileira contemporânea 1 Introdução: dilemas em relação à juventude no Brasil Os jovens ocupam uma situação ambígua no âmbito das ações estatais no Brasil 2 . Por um lado, aparecem quase sempre como possível ameaça à ordem pública, como categoria particularmente inquietante, como potenciais agressores e criminosos, caso não sejam contidos por medidas moralizadoras ou punitivas. Por outro lado, de fato, os jovens são as maiores vítimas da violência no país, a categoria mais vulnerável diante do ambiente de insegurança que envolve ainda a maior parte da sociedade brasileira. Agressores e vítimas na realidade se confundem, o jovem considerado agressor quase sempre emerge de um contexto social marcado pela pobreza e pela privação de direitos e seu destino será marcado também pela violência: a morte precoce no conflito com outros jovens, no enfrentamento com a polícia ou ainda nas mãos de grupos de extermínio, ou mesmo a “experiência precoce da punição” (ADORNO, 1993), quer em instituições de internamento, quer posteriormente nas prisões. Tal ambiguidade perpassa a história da discussão pública em relação à infância e juventude pobre no país e apenas em anos recentes a legislação e as políticas públicas no Brasil buscaram romper esse círculo vicioso de discursos e práticas que enquadram os jovens no registro do perigo e da desordem social. 1 Aula Magna proferida no Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei da Universidade Anhanguera de São Paulo, em 15 de março de 2013. 2 Será utilizado, aqui, o termo “criança” para indicar toda pessoa com menos de 12 anos de idade e “adolescente” para indicar toda pessoa entre 12 e 18 anos, conforme o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O termo “jovem” será utilizado de modo mais amplo, para incluir tanto os adolescentes quanto adultos até 24 anos. Marcos César Alvarez 1 1 Professor Livre-docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência. Correspondência: [email protected] Alvarez, M. C.

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Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126

A questão dos adolescentes no cenário punitivo da

sociedade brasileira contemporânea1

Introdução: dilemas em relação à juventude no Brasil

Os jovens ocupam uma situação ambígua no âmbito das ações estatais

no Brasil2. Por um lado, aparecem quase sempre como possível ameaça

à ordem pública, como categoria particularmente inquietante, como

potenciais agressores e criminosos, caso não sejam contidos por

medidas moralizadoras ou punitivas. Por outro lado, de fato, os jovens

são as maiores vítimas da violência no país, a categoria mais vulnerável

diante do ambiente de insegurança que envolve ainda a maior parte da

sociedade brasileira. Agressores e vítimas na realidade se confundem,

o jovem considerado agressor quase sempre emerge de um contexto

social marcado pela pobreza e pela privação de direitos e seu destino

será marcado também pela violência: a morte precoce no conflito com

outros jovens, no enfrentamento com a polícia ou ainda nas mãos de

grupos de extermínio, ou mesmo a “experiência precoce da punição”

(ADORNO, 1993), quer em instituições de internamento, quer

posteriormente nas prisões.

Tal ambiguidade perpassa a história da discussão pública em relação à

infância e juventude pobre no país e apenas em anos recentes a

legislação e as políticas públicas no Brasil buscaram romper esse

círculo vicioso de discursos e práticas que enquadram os jovens no

registro do perigo e da desordem social.

1 Aula Magna proferida no Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei

da Universidade Anhanguera de São Paulo, em 15 de março de 2013.

2 Será utilizado, aqui, o termo “criança” para indicar toda pessoa com menos de 12

anos de idade e “adolescente” para indicar toda pessoa entre 12 e 18 anos, conforme

o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O termo “jovem” será

utilizado de modo mais amplo, para incluir tanto os adolescentes quanto adultos até

24 anos.

Marcos César Alvarez1

1 Professor Livre-docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência.

Correspondência: [email protected]

Alvarez, M

. C.

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Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2014 (10):110-126

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) buscou justamente

demarcar outro horizonte, voltado para a garantia de direitos desse setor

da população. Mas, além das inúmeras dificuldades práticas, próprias

de toda tentativa de mudança de ações e de mentalidades, o ECA

continua a ser, na atualidade, o alvo principal de movimentos populistas

no âmbito das políticas de segurança pública, quase sempre associado

à impunidade. É como se, diante dos reais desafios da violência no país,

fosse mais fácil simplesmente eleger uma categoria que sintetizaria

todos os nossos medos e um diploma legal que fosse a causa de todos

os nossos males.

Para além dos problemas concretos que se apresentam hoje na

construção de políticas públicas voltadas para a juventude, é certo que

esse discurso populista nada tem a oferecer em termos de soluções

efetivas, mesmo que viabilize a eleição de políticos e garanta a

audiência de programa televisivos de discutível qualidade. As soluções

em termos de punição mais acentuada e precoce são limitadas, para

dizer o mínimo, como forma de enfrentamento das questões sociais.

A única forma de avançar, em termos da construção de políticas

públicas para a juventude, implica no aperfeiçoamento dos

instrumentos de avaliação das iniciativas institucionais existentes e no

aprofundamento da compreensão da situação social dos jovens em

condição de vulnerabilidade em nossa sociedade. Creio que essas são

duas direções de investigação e ação pertinentes na agenda do Brasil

contemporâneo.

Minha entrada no tema, sobretudo em meu mestrado foi na realidade

outra. A partir dos anos 80 do século XX, no momento em que o antigo

modelo assistencial-repressivo, entrava em crise, busquei reconstituir o

modo como a assim chamada “questão do menor” havia sido construída

no Brasil, de forma a articular percepções, discursos e experiências

institucionais que ainda ecoam na sociedade brasileira contemporânea.

Quero, aqui, retomar essa discussão que realizei já há bastante tempo

para colocar em perspectiva as questões contemporâneas.

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História do Presente

Trata-se aqui de um certo uso da análise histórica e sociológica para

enfrentar as questões da atualidade. Alguns comentários de ordem mais

teórico-metodológica precisam ser colocados então aqui. O que está em

jogo é a perspectiva da “história do presente”, desenvolvida por Michel

Foucault (1977) entre outros autores.

Podemos caracterizar a história do presente como um modo de

empregar a pesquisa histórica, juntamente com a análise sociológica de

forma a descortinar as condições históricas de existência das quais

dependem as práticas contemporâneas.

Ou seja, a narrativa histórica proposta é motivada mais por uma

preocupação crítica em relação ao presente do que por uma

preocupação estritamente histórica de reproduzir o passado, ao buscar

analisar as forças que deram à luz nossas práticas atuais e identificar as

condições históricas e sociais das quais elas dependem. O objetivo

principal não é pensar historicamente o passado, mas sim, através da

história, repensar o presente.

Essa perspectiva da história do presente tem sido por vezes criticada

devido aos erros factuais presentes em tais análises, bem como pela

seletividade em termos de método, já que não são explicitadas as

escolhas, por exemplo, em termos de documentação ou de fontes

primárias exploradas.

Meu trabalho sobre a emergência do primeiro Código de Menores do

Brasil, de 1927 (ALVAREZ, 1989), ao mesmo tempo que inspirado na

perspectiva da história do presente, buscou evitar tais críticas, tanto a

partir de um diálogo sistemático com a historiografia do período

analisado [na época], quanto pelo uso criterioso das fontes

documentais.

O que quero enfatizar é que foram questões da atualidade que

motivaram tais análises, o esforço de demarcar continuidades e

descontinuidades em relação ao tempo presente sempre foi pautado pela

busca do maior rigor teórico e metodológico possível.

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É essa abordagem que quero retomar aqui: a questão atual do

equacionamento jurídico e institucional da situação dos adolescentes

em conflito com a lei no Brasil, a partir, sobretudo, da edição do

Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, pode ser colocada em

perspectiva a partir da retomada da análise da emergência do primeiro

Código de Menores do país de 1927, originalmente realizada em meu

mestrado.

A análise histórica da formulação e implementação das legislações

voltadas à infância e à adolescência pobre ou em conflito com a lei não

buscou simplesmente descrever continuidades históricas, mas colocar

em perspectiva os dilemas atuais das intervenções estatais em relação a

esse segmento da população brasileira.

No Brasil, mesmo que desde o final do século XIX já surgisse a

discussão em torno da necessidade de leis e instituições especiais

voltadas para as crianças e os adolescentes, tais discussões acabaram

levando à constituição de leis e práticas institucionais especialmente

estigmatizadoras que, durante décadas, objetivaram crianças e

adolescentes pobres como “menores”, ou seja, como indivíduos

potencialmente perigosos e predispostos à delinquência precoce.

Desde as primeiras discussões realizadas por médicos e juristas que

percebiam a situação das crianças e adolescentes pobres nos grandes

centros urbanos ao mesmo tempo como parte da “questão social” mas

sobretudo como um problema de “defesa social”, até as discussões que

culminaram na edição do primeiro Código de Menores do país,

promulgado em 19273, constituiu-se todo um processo de

“menorização” desse setor da população, processo este que acabou mais

agravando do que resolvendo os problemas sociais que pretendia

equacionar.

Em décadas posteriores, instituições como o Serviço de Assistência ao

Menor, fundado em 1940 e depois transformado na FUNABEM,

seguirão a mesma trilha desenhada por esse modelo institucional, ao

3 Decreto n.17.943A de 12 de outubro de 1927.

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colocarem igualmente em primeiro plano as preocupações com a

delinquência precoce. As instituições para os “menores” funcionarão,

assim, ao longo de décadas, muito mais como instrumento de

marginalização da população pobre do que como instrumento de

ampliação efetiva da cidadania. Mesmo o Código de Menores de 19794,

baseado na doutrina da “situação irregular”, apenas prolongou esse

processo de criminalização da infância e juventude pobre, ao considerar

como em “situação irregular” tanto os infratores quantos os menores

abandonados.

Apenas a partir do processo de redemocratização do país foi possível

realizar uma crítica mais profunda deste modelo assistencial e

repressivo de equacionamento dos problemas da infância e da

adolescência no país.

A mobilização da opinião pública que levou à nova Constituição, em

1988, ampliou também o debate em torno dos problemas da infância e

da adolescência no Brasil. A iniciativa de militantes políticos, de

técnicos de instituições governamentais e não-governamentais e de

juristas reformadores, entre outros atores sociais (Alvim, 1995),

permitiu finalmente romper com o antigo modelo e, em 1990, foi

promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei

8.069/90).

Atualmente, o Estatuto é considerado, por um lado, uma das leis mais

avançadas em matéria de proteção dos direitos de crianças e

adolescentes, ao buscar se constituir não como um instrumento

repressivo – na antiga tradição dos códigos de menores – mas como um

instrumento que considera crianças e adolescentes como seres humanos

em formação que também são sujeitos de direitos (Relatoria, 2004).

Por outro lado, surgem constantes críticas ao ECA, mesmo que muitas

de suas disposições tenham encontrando obstáculos significativos para

4 Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979. Já no momento de sua promulgação, tal

código foi visto como tendo uma estrutura menos perfeita que o anterior

(NOGUEIRA, 1985, p. 13).

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sua plena efetivação prática (FALCÃO, 1996; CARVALHO, 1995;

RELATORIA, 2004).

Por exemplo, o Estatuto criou o Conselho Tutelar, órgão permanente,

autônomo e não jurisdicional que deve existir em todo município para

zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e voltado para a

aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas, além de atender

e aconselhar os pais e responsáveis. A implantação de tais conselhos

nos municípios, no entanto, tem sido repleta de obstáculos, tanto

organizacionais quanto culturais.

Pesquisas mostram que, por vezes, os conselheiros tutelares ainda

atuam segundo a antiga concepção assistencial e repressiva, sendo que,

quando buscam agir de acordo com as diretrizes do ECA, não dispõem,

por vezes, de programas nos municípios que garantam um atendimento

realmente diferenciado da clientela (LEMOS, 2003)5.

As citadas críticas dirigidas ao ECA desconsideram tais obstáculos e

simplesmente denunciam o suposto caráter por demais liberal do

Estatuto, o que levaria principalmente à impunidade generalizada dos

adolescentes infratores. Tais críticas são sempre acompanhadas por

propostas que defendem a necessidade de que o tema volte a ser tratado

como um problema de segurança pública, com a necessária repressão

policial e a reclusão dos infratores.

Também os meios de comunicação têm dado grande destaque a atos de

violência cometidos por (ou mesmo muitas vezes apenas supostamente

atribuídos a) adolescentes, geralmente pobres, destaque esse seguido

pela defesa da redução da idade penal como principal alternativa frente

ao suposto crescimento da criminalidade juvenil.

Como em outras discussões realizadas no Brasil nos anos recentes, que

envolvem temas relativos à justiça criminal e às políticas de segurança

pública, corre-se o risco de – a partir de um debate pouco qualificado e

repleto de argumentos falaciosos – serem tomadas medidas populistas,

que podem implicar em retrocesso em relação aos avanços que o país

5 Sobre as ambiguidades das medidas socioeducativas propostas pelo ECA, consultar

Paula (2004) e Almeida (2010).

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obteve nos últimos anos no âmbito da expansão da cidadania e da

consolidação da democracia no país.

No caso dos debates em torno do ECA, uma perspectiva histórica, que

recupere como foram formuladas e implementadas legislações e

políticas voltadas para a infância e adolescência pobre ou em conflito

com a lei, pode ajudar a melhor compreender o que está em jogo no

debate atual sobre o tema.

Da Roda dos Expostos ao Código de Menores6

É já no final do século XIX que começa a surgir no Brasil uma

preocupação mais sistemática com o destino da infância e da

adolescência pobre nas grandes metrópoles e com o papel que o Estado

deveria desempenhar com respeito a este setor da população.

Anteriormente, na Colônia e no Império, já existiam iniciativas

institucionais voltadas para amparar as crianças rejeitadas pelas

famílias, chamadas na época de “expostos” ou “enjeitados”, pois eram

geralmente deixadas na “Roda dos Expostos” aparelho de madeira

que garantia a manutenção do segredo da identidade daquele que

abandonava a criança (GONÇALVES, 1987).

As primeiras Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro

por volta de 1700, embora as primeiras referências aos expostos sejam

do século XVII (MESGRAVIS, 1972; GONÇALVES, 1987).

O mecanismo da Roda e os asilos que dela se utilizavam configuravam

um tipo de assistência privada à infância, inspirada na caridade religiosa

e voltada sobretudo para a regulação dos desvios da organização

familiar colonial.

Essa forma de equacionamento institucional do problema da infância

entrará em crise ao longo do século XIX, quando passa a sofrer o ataque

principalmente da medicina higiênica, que então se consolidava no

Brasil. Os higienistas denunciam principalmente as altas taxas de

6 Aqui são reproduzidas ideias originalmente desenvolvidas em Alvarez (1989).

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mortalidade dos enjeitados nas instituições que se serviam das Rodas

(GONÇALVES, 1987).

Paralelamente às críticas levadas a cabo pelo saber médico, as

mudanças nas condições de vida das crianças e adolescentes pobres nos

grandes centros urbanos no final do século XIX colocavam novas

urgências que escapavam totalmente aos objetivos perseguidos pela

assistência caritativa e religiosa.

A abolição, a imigração e o acelerado processo de industrialização

aumentaram significativamente o contingente de crianças e jovens

pobres que se lançavam nas ruas das grandes metrópoles à procura de

atividades que lhes garantissem o sustento próprio ou o de suas famílias.

No trabalho industrial, por exemplo, a utilização da mão de obra infantil

e juvenil é bastante intensa desde o advento da República. Com o

avanço da industrialização, nas décadas seguintes, o emprego dessa

mão-de-obra torna-se generalizado (PINHEIRO, 1981).

Principalmente na indústria têxtil, a mão de obra menor e a mão de obra

feminina cada vez mais ocupam lugar de destaque na composição da

força trabalho industrial (MOURA, 1982), o que não só aumentava o

exército industrial de reserva, mas também representava uma

dificuldade a mais para a organização dos trabalhadores (HARDMAN,

1982).

A imprensa operária passa então a denunciar principalmente a

incompatibilidade entre as terríveis condições de trabalho na indústria

nacional e a natureza ainda frágil e desprotegida da infância (BRAGA,

1993) e a reivindicar a necessidade de o Estado regulamentar as

condições do trabalho infantil.

As prioridades das elites republicanas no mesmo período são, no

entanto, outras. A maior presença de crianças e adolescentes pobres na

cena urbana, além de renovar a preocupação com a necessidade de

assistência aos “abandonados”, traz uma nova preocupação, compatível

com o temor cada vez maior das elites em relação ao crescimento

urbano acelerado – a preocupação referente ao aumento da

criminalidade precoce (ADORNO, 1990).

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Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, as autoridades

republicanas passam a temer não apenas que haja um crescimento da

criminalidade infantil e juvenil, mas também que esse aumento da

delinquência precoce leve a uma progressiva degeneração social.

Em São Paulo, o jurista e senador Paulo Egídio (1842-1906), por

exemplo, que na última década do século XIX irá propor uma ampla

reforma penitenciária, que serviria de base para um projeto mais

ambicioso de reorganização da própria sociedade, coloca como uma das

preocupações centrais referentes à manutenção da ordem social a

questão caracterizada como da “vagabundagem infantil” que poderia

levar à delinquência (EGÍDIO, 1893, p.588).

Por sua vez, Cândido Mota (1870-1942), que desempenhou entre outros

cargos o de delegado na capital paulista no governo Campos Sales,

comparando os dados acerca da criminalidade na capital entre os anos

de 1894 e 1895, manifesta espanto com o grande aumento de “menores”

criminosos.

Preocupado com esta situação, Cândido Mota se empenhará numa

cruzada pela criação de instituições especiais para menores moralmente

abandonados e criminosos, campanha que levou à criação do Instituto

Disciplinar em 1902.

O Instituto foi ampliado em 1906, dentro da campanha de combate à

vadiagem levada a cabo pelo secretário de Justiça, Washington Luiz

(FAUSTO, 1984, p.41) e, em 1915, os resultados alcançados pela

instituição em termos de implantação do ensino profissional para os

menores eram avaliados positivamente pelas autoridades (CRUZ, 1987,

p.126)

Deste modo, na virada do século XIX e início do século XX, vão se

constituindo discursos e práticas que equacionam a situação de vida das

crianças e adolescentes pobres das grandes cidades do país sobretudo

como um problema referente à “defesa social”. A criação de leis e

mecanismos institucionais voltados para esse segmento da população

se colocava como uma urgência devido ao perigo potencial do

crescimento da criminalidade precoce.

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No interior desse discurso, as ações ilícitas de crianças e adolescentes,

ou mesmo a simples presença das crianças pobres nas ruas, apontam

todo o tempo para a ameaça de um crescimento incontrolável da

criminalidade futura, de uma desagregação social progressiva, fruto da

ausência de uma política preventiva voltada para as crianças e jovens

moralmente abandonados. As questões da educação e da

regulamentação do trabalho de crianças e adolescentes, em

contrapartida, são deslocadas para segundo plano.

O discurso dos juristas da época acerca do problema da menoridade

privilegia, portanto, não a extensão do direito à educação para o

conjunto da população pobre, nem a abolição ou regulamentação do

trabalho precoce, mas sim a criação de leis e de instituições

“assistenciais e protetoras” que teriam por objetivo maior impedir o

desenvolvimento da criminalidade.

Consolida-se paulatinamente um novo modelo jurídico de “assistência

e proteção aos menores” e, igualmente, um novo tipo de

institucionalização da infância e da adolescência por parte do Estado

brasileiro.

Uma institucionalização muito mais ampla do que as antigas formas

(como a dos expostos), e que passa a visar todos os menores em estado

ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela

visada para todo o contingente das crianças e adolescentes das classes

pobres e, virtualmente, para todas as crianças e adolescentes da

sociedade.

Uma institucionalização que tem em seu horizonte não apenas assistir

gratuitamente os desafortunados, mas, sobretudo, combater a

delinquência, fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis,

tanto moral como fisicamente.

O Código de Menores de 1927 será a cristalização de todo esse

processo, ao definir principalmente um tratamento jurídico-penal

especial para certos segmentos da população considerados

potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas

disciplinares e moralizadoras.

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Assim, o Código estabelece medidas de proteção e assistência, dirigidas

para uma clientela ampla, formada por crianças e adolescentes que,

devido à ausência ou deficiência dos cuidados dos pais ou responsáveis,

se encontram em estado de abandono moral ou material. Essa clientela

inclui: as “crianças de primeira idade”, que estão fora da casa do pai ou

responsável; os “infantes expostos”, encontrados em estado de

abandono; os “menores abandonados”, quer aqueles que não tenham

habitação certa, sem meios de subsistência ou em estado de vadiagem,

mendicidade ou libertinagem, quer os maltratados pelos pais ou

responsáveis, ou que tenham os mesmos condenados pela justiça ou

incapacitados; os “vadios, mendigos e libertinos”, refratários ao

trabalho ou a educação, ou que exerçam ocupações imorais ou

proibidas, sem domicílio fixo e vagando pelas ruas. Todas as crianças e

adolescentes que se enquadrem em alguma dessas categorias, passam a

ser alvo da tutela do Estado, que assume, através da assistência pública

e do juízo de menores, a proteção da vida, da saúde e da moralidade

desses indivíduos.

Mas é a questão da delinquência que dá unidade às categorias

anteriormente citadas, pois todas trazem em comum a possibilidade do

desenvolvimento do vício e do crime. E frente aos menores

delinquentes, a própria ação penal deve ser, segundo o Código,

profundamente modificada.

O aspecto a ser ressaltado em relação às mudanças definidas pela nova

legislação, no entanto, é que apesar de garantir algumas medidas de

caráter mais assistencialista para a população pobre e regulamentar o

trabalho de crianças e adolescentes, o Código de 1927 não rompia com

a tendência de restrição dos direitos de cidadania para o conjunto da

população. Pelo contrário, o que o Código definia era um tratamento

jurídico-penal especial para certos segmentos da população

considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas

medidas normalizadoras e moralizadoras.

Os desdobramentos posteriores da legislação da menoridade não

deixam dúvida a este respeito pois, quando a questão do trabalho dos

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menores deixou de ser regulada pelo Código, passando à Consolidação

das Leis de Trabalho em 1943 (BRAGA, 1993, p.160), permaneceram

apenas os aspectos relativos ao abandono e à delinquência que, como

foi percebido já nas décadas seguintes, não retiravam os menores do

campo penal7 mas implicavam sobretudo na estigmatização da infância

e juventude pobre, institucionalmente condenada, desde então, à

possibilidade da delinquência.

Muito mais, portanto, que uma lei que garantisse direitos à população

pobre, o Código reuniu principalmente um conjunto de dispositivos

legais a partir dos quais o Estado poderia tutelar as crianças e

adolescentes que potencialmente poderiam se tornar criminosos, ao

garantir, em contrapartida, procedimentos penais especiais, mais

adequados a evitar a impunidade e obter a necessária recuperação moral

desses indivíduos.

O Código de Menores de 1927 se constituiu, portanto, muito mais como

um novo instrumento de defesa social do que como um instrumento de

ampliação efetiva da cidadania.

Considerações Finais

A legislação sobre a menoridade, que esteve em vigência durante

grande parte do século XX no país, configurou-se como um verdadeiro

instrumento de controle social, ao estigmatizar crianças e adolescentes

pobres e ao condená-los ao círculo vicioso que levava do abandono

familiar à delinquência precoce.

E, como já foi afirmado, o Estatuto da Criança e do Adolescente buscou

justamente romper com esse modelo assistencial e repressivo, ao

colocar em primeiro plano os direitos das crianças e dos adolescentes.

7 Ruy Pinho, por exemplo, ao comentar a questão várias décadas depois, afirma que

o Código de 1927, embora tivesse pretendido livrar os menores de qualquer ação

penal, na verdade continuava a tratar a questão em termos de direito penal (PINHO,

1958, p. 11).

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As críticas atuais ao Estatuto desconsideram esse percurso histórico e

também não desenvolvem uma avaliação mais sistemática das políticas

adotadas para a infância e juventude no país nos últimos anos8.

Com relação ao tratamento dado aos jovens em conflito com a lei, corre-

se o risco inclusive de um retrocesso ainda maior pois muitas das atuais

propostas de revisão da legislação defendem um tratamento puramente

punitivo da questão, tratamento este que foi criticado mesmo pelos

juristas reformadores que criaram o antigo modelo assistencial e

repressivo.

Por exemplo, entre 1993 e 2004, foram apresentadas mais de vinte

propostas de emenda constitucional (PECs) propondo a redução da

idade da inimputabilidade penal, sendo que tal idade varia, nestas

propostas, entre os dezesseis e os quatorze anos de idade (CAMPOS,

2005).

Algumas propostas recuperam a própria noção de “discernimento”, já

que, de acordo com os argumentos apresentados, os adolescentes no

mundo contemporâneo teriam plena capacidade de compreender os atos

que cometem. Ora, a noção de discernimento foi questionada pelo

jurista Tobias Barreto já no final do século XIX pois ele considerava

que, em relação aos menores, não se deveria apenas indagar a

responsabilidade ou não do criminoso mas igualmente o meio no qual

estava inserido, além do que tal noção seria juridicamente por demais

arbitrária (BARRETO, 1926).

Foi a partir de tal questionamento que os juristas brasileiros começaram

a discutir a necessidade de uma legislação especial para os “menores”,

discussão esta que culminou com a edição do Código de Menores de

1927. Ao retomar a noção de discernimento, os legisladores

contemporâneos correm, deste modo, o risco de retroceder mais de um

século no que diz respeito à legislação em torno da infância e da

adolescência no país.

8 Como exemplo de pesquisas recentes acerca das políticas voltadas para a infância e

adolescência no Brasil, consultar Oliveira (2004) e Sales (2004).

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Na verdade, valores mais amplos estão em jogo neste debate. Caldeira

(2000) mostra como, a partir do início dos anos 80 do século XX, em

resposta ao processo de democratização do sistema político e da

expansão dos direitos da cidadania no país, alguns grupos começaram

a organizar uma crítica sistemática aos direitos humanos, que passaram

a ser definidos como “privilégios de bandidos”.

Assim, em reposta às diversas iniciativas que buscavam restabelecer o

estado de direito, ao propor, entre outras discussões, o controle dos

abusos policiais e a melhoria das condições de encarceramento dos

presos comuns, os adversários dos direitos humanos passaram a

reivindicar punições mais severas para os criminosos em geral, aí

incluindo também a defesa da pena de morte, das execuções sumárias e

mesmo da tortura como formas de combater o crescimento da violência

na sociedade.

No contexto da transição para a democracia, todo um ideário de

oposição aos direitos humanos emergiu como “resistência à expansão

da democracia para novas dimensões da cultura brasileira, das relações

sociais e da vida cotidiana” (CALDEIRA, 2000, p.375)

Pode-se argumentar que, a partir da promulgação do ECA, esses

mesmos adversários dos direitos humanos elegeram igualmente a nova

legislação como um dos alvos privilegiados de suas críticas. A denúncia

da suposta impunidade, decorrente do Estatuto, passou a ser parte do

repertório de determinados políticos e de setores da imprensa, obtendo

inclusive certo respaldo em setores da sociedade. No entanto, tal

discurso pode simplesmente realimentar o ciclo de violência

institucional a que estão submetidos as crianças e os adolescentes

pobres em nossa sociedade.

Em contrapartida, estudos mais aprofundados sobre as políticas

adotadas para os jovens em conflito com a lei no país, bem como sobre

as trajetórias tanto sociais quanto institucionais desses jovens podem

contribuir para que o debate público sobre tais problemas seja mais

qualificado, evitando-se propostas demagógicas que dificilmente darão

resposta adequada a tais questões.

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A criminalidade contemporânea ganhou novos contornos, com

economias ilegais mais diversificadas e lucrativas que recrutam

crianças e adolescentes em processos ainda pouco estudados no Brasil,

exceto, em parte, em relação ao tráfico de drogas.

Se, numa ponta do espectro social, crianças e adolescentes “de rua”

ocupam um pequeno papel na criminalidade comum, e, na outra, as

infrações e os “desvios” de comportamento dos jovens pertencentes às

classes médias e altas só muito raramente são selecionados pelas

agências de controle social, há então um espaço a ser problematizado.

Trata-se de compreender diferentes aspectos das dinâmicas sociais que

interpelam os adolescentes na atualidade, conformadas pelas atividades

e oportunidades econômicas (legais e ilegais), pelas complexas redes de

sociabilidades que atravessam os vínculos familiares, a vizinhança e a

convivência com agentes do crime (individuais ou coletivos) e pelas

instituições do sistema socioeducativo e da justiça criminal.

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