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258 O RECRUTAMENTO E A FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS EM PORTUGAL* Francisco Teodósio Jacinto 1 Diretor-Adjunto - Diretor de Estudos - do Centro de Estudos Judiciários (C.E.J.). 1 INTRODUÇÃO No modelo português, a magistratura do Ministério Público é paralela à magistratura judicial e dela independente, sendo a expressão magistratura usada, jurídico e constitucionalmente, em um sentido amplo, abrangendo, quer todos os juizes, quer os magistrados do Ministério Público. 2 Apesar dessa separação das magistraturas, no modelo actual, a formação inicial dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público é feita em conjunto e com base nos mesmos programas, no decurso dos primeiros 22 meses, só então havendo lugar, em caso de aproveitamento, a correspondente opção pela magistratura pretendida. Relativamente a esse período, não poderá, pois, falar-se de formação inicial de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público, mas antes de formação inicial de candidatos a magistrados. * Texto incluído nos ESTUDOS em homenagem a Cunha Rodrigues – Homenagens Pessoais – Penal – Processo Penal – Organização Judiciária, Organização Jorge de Figueiredo Dias, Ireneu Cabral Barreto, Teresa Pizarro Beleza e Eduardo Paz Ferreira, Volume I, Coimbra Editora, 2001, p. 477 a 520. 1 Coordenador do Grupo Editor da Página do Auditor e dos Jovens Magistrados e de vários seminários internacionais, tendo o último sido realizado de 23 a 25 de junho de 2002, com a participação da Alemanha, Espanha, França, Holanda, Itália e Portugal, versando sobre “Os Princípios da legalidade e da oportunidade dos sistemas processuais europeus – perspectiva de direito comparado”; foi Procurador-Geral Adjunto no Tribunal de Contas de Portugal, Inspetor do Ministério Público, Procurador da República em Macau, Procurador da República na Comarca de Lisboa e no Círculo Judicial de Sintra. 2 Cf. art. 75 n o 1 do Estatuto do Ministério Público (Lei n o 60/98, de 27.8) e “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, J.J. Gomes Canotilho, Almedina, 1998, p. 577. Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 258-304, jul./dez. 2002.

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O RECRUTAMENTO E A FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS EMPORTUGAL*

Francisco Teodósio Jacinto1

Diretor-Adjunto - Diretor de Estudos - do Centrode Estudos Judiciários (C.E.J.).

1 INTRODUÇÃO

No modelo português, a magistratura do Ministério Público é paralela àmagistratura judicial e dela independente, sendo a expressão magistratura usada,jurídico e constitucionalmente, em um sentido amplo, abrangendo, quer todosos juizes, quer os magistrados do Ministério Público.2

Apesar dessa separação das magistraturas, no modelo actual, a formaçãoinicial dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público é feitaem conjunto e com base nos mesmos programas, no decurso dos primeiros 22meses, só então havendo lugar, em caso de aproveitamento, a correspondenteopção pela magistratura pretendida.

Relativamente a esse período, não poderá, pois, falar-se de formaçãoinicial de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público, mas antesde formação inicial de candidatos a magistrados.

* Texto incluído nos ESTUDOS em homenagem a Cunha Rodrigues – Homenagens Pessoais –Penal – Processo Penal – Organização Judiciária, Organização Jorge de Figueiredo Dias, IreneuCabral Barreto, Teresa Pizarro Beleza e Eduardo Paz Ferreira, Volume I, Coimbra Editora, 2001, p.477 a 520.

1 Coordenador do Grupo Editor da Página do Auditor e dos Jovens Magistrados e de vários semináriosinternacionais, tendo o último sido realizado de 23 a 25 de junho de 2002, com a participação daAlemanha, Espanha, França, Holanda, Itália e Portugal, versando sobre “Os Princípios da legalidadee da oportunidade dos sistemas processuais europeus – perspectiva de direito comparado”; foiProcurador-Geral Adjunto no Tribunal de Contas de Portugal, Inspetor do Ministério Público,Procurador da República em Macau, Procurador da República na Comarca de Lisboa e no CírculoJudicial de Sintra.

2 Cf. art. 75 no 1 do Estatuto do Ministério Público (Lei no 60/98, de 27.8) e “Direito Constitucionale Teoria da Constituição”, J.J. Gomes Canotilho, Almedina, 1998, p. 577.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 258-304, jul./dez. 2002.

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O mesmo acontece com o concurso de ingresso no Centro de EstudosJudiciários, único para todos os candidatos.

O recrutamento e a formação dos magistrados, intrinsecamente ligados àsopções feitas quanto ao modelo de organização judiciária, revestem-se de“importância crucial”, como é hoje reconhecido por toda a parte.3

O modo de nomeação dos magistrados é, efectivamente, um elementofundamental da sua independência e autonomia, do mesmo passo que, sem umaadequada formação, nos diversos domínios, e sem uma actualização constantedessa formação, estes não estarão em condições de desempenhar as suas funções,cada vez mais complexas, neste novo mundo que começou a tomar forma nofinal do milénio que acaba de terminar.4

De acordo com os princípios básicos das Nações Unidas relativos àindependência da magistratura, “as pessoas seleccionadas para exercer funçõesde magistrados devem ser íntegras e competentes e terão a formação ou asqualificações jurídicas adequadas” – ponto 10 (‘Qualificações, selecção eformação’) do Anexo que contém os princípios aprovados pelo 7o Congressodas Nações Unidas, em setembro de 19855.

Dado o relevo de tal matéria, o Conselho Económico e Social, pormeio da Resolução no 1989/60, adoptou as normas para a aplicaçãoefectiva dos princípios básicos acabados de referir, devendo todos osEstados, nos termos da Norma I, “adoptar e aplicar no seu sistemajudiciário os Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura

3 Cf. “Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade”, Boaventura de Sousa Santos,1994, p. 152; “Improving the quality of american justice”, em: www.statejustice.org/pdf/sjitenyr.pdf.tenyr; “O juiz - Selecção e formação de magistrados no mundo contemporâneo”,Sálvio Figueiredo Teixeira, Del Rey, Belo Horizonte, 1999 (sistemas de formação de Portugal,França, Estados Unidos, Canadá, Itália, Espanha, Alemanha, Holanda, Japão e no modelo Brasileiroe do Mercosur).

4 Cf. “La era de la información”, Manuel Castells, vol. 3, 1997, p. 369.5 Cf. Separata do Boletim de Documentação e Direito Comparado, Suplemento do Boletim do

Ministério da Justiça, no 61-62, p. 235, e “Principes fondamentaux relatifs à l’indépendence de lamagistrature”, em: www.unhchr.ch/french/htm/menu3/b/50h_comp50_fr.htm e em: www.umn.edu/humansrts/

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em conformidade com os seus procedimentos constitucionais e com a suaprática jurídica interna.”6

No que especialmente respeita ao Ministério Público, o 8o Congresso dasNações Unidas adoptou, por sua vez, em 1990, os “Princípios OrientadoresRelativos à Função dos Magistrados do Ministério Público”, aí se sublinhandoque é essencial que tais magistrados “possuam as qualificações profissionaisnecessárias ao exercício das suas funções, melhorando os métodos derecrutamento e de formação jurídica e profissional”, devendo os Estadosassegurar que estes “tenham uma instrução e uma formação adequadas e estejamconscientes dos ideais e deveres éticos da sua função.”7

Também o Comité de Ministros do Conselho da Europa pronunciou-se sobre a matéria em apreço, tendo recomendado aos governos dos Estadosmembros a adopção ou o reforço de todas as medidas necessárias parapromover o papel dos juizes individualmente e da magistratura no seu conjunto,por forma a melhorar a sua independência e eficácia, aplicando, em especial,os princípios vertidos na Resolução aprovada em 13.10.94, entre os quaisse destacam os atinentes à selecção, à carreira profissional (toda as decisõesrelativas à carreira profissional haverão de obedecer a critérios objectivos,devendo a selecção e a carreira basear-se no mérito, quanto às qualificações,à integridade, à competência e à eficácia) e às condições de trabalho,designadamente no que concerne à formação (devendo os Estados –actualmente 41 – providenciar para que os magistrados possam adquirirtoda a formação necessária, por exemplo uma formação prática junto dostribunais e, se possível, junto de outras entidades e instituições, antes da suanomeação e no decurso da carreira) – cf. princípios I, c., e III.1.a.,respectivamente, da Recomendação no R(94) 12 do Comité de Ministros doConselho da Europa.

No mesmo sentido dispõe a Recomendação Rec(2000)19, relativa aopapel do Ministério Público no sistema de justiça penal, sublinhando que a

6 Cf. Separata do B.D.D.C., citada na nota antecedente, p. 238, e, sobre o mesmo tema, “Project dedéclaration sur l’independance et l’impartialité du pouvoir judiciaire, des jurés et des assesseurset sur l’independance des avocats”, em: http://legis.acjnet.org/loisInt/htm/lois16.htm

7 Tais princípios foram aprovados pela Assembléia Geral, na sua Resolução no 45/166, de 18.12.90- Cf. Separata referida, p. 205 e 253.

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formação inicial e contínua dos magistrados do Ministério Público constitui umdever e um direito, devendo os Estados tomarem todas as medidas apropriadaspara lhes assegurar essa formação adequada – cf. o seu ponto 7.

À Recomendação no R(94) 12, bem como aos princípios fundamentaisdas Nações Unidas, que ficaram citados, fazem apelo as conclusões da ReuniãoMultilateral, organizada pelo Conselho da Europa em cooperação com o Centrode Estudos Judiciários, em Lisboa, em 27 e 28 de abril de 1995.

Nas conclusões dessa reunião, no decurso da qual os representantes dosEstados membros e os candidatos da Europa Central e Oriental debateram “Aformação dos juízes e dos magistrados do Ministério Público na Europa”, enfatiza-se a necessidade de conferir uma especial prioridade à formação dos juizes edos magistrados do Ministério Público, a qual deverá ser alargada e melhorada,nas suas diversas modalidades, levando-se em conta as tradições próprias dosdiferentes sistemas jurídicos.8

Essa mesma prioridade não parou de se acentuar, daí para cá, em todosos países, e especialmente na Europa, destacando-se aqui a criação e entradaem vigor, em 13 de outubro de 2000, da “REDE EUROPÉIA DE FORMAÇÃO

JUDICIÁRIA”, à qual estão ligadas instituições responsáveis pela formação de juizese de procuradores dos seguintes países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca,Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo,Portugal, Reino Unido, Suécia e ainda a Academia de Direito Europeu de Triere o Instituto Europeu de Administração Pública.9

8 Cf. “La formation des juges et des magistrats du parquet en Europe”, ed. do Conselho da Europa,1996, p. 87-88 (versão inglesa: “The training of judges and public prosecutors in Europe”).

9 No preâmbulo do documento constitutivo desta Rede (“Carta”) refere-se expressamente que setrata de “uma organização provisória...necessária até aprovação de um instrumento europeu legalreconhecendo a Rede Europeia de Formação Judiciária, tendo a República Francesa avançado, noâmbito da respectiva Presidência da União Europeia, com o projecto de decisão visando à criaçãodessa Rede, em ligação estreita com as instituições europeias, em particular com a ComissãoEuropeia. Esse projecto foi apreciado na 2314a sessão do Conselho Justiça Assuntos Internos eProtecção Civil, o qual teve lugar em 30 de novembro e 1 de dezembro de 2000, tendo sido aíconstatado um acordo geral de princípio relativamente à iniciativa francesa e sublinhado a importantemissão da rede no sentido de “favorecer a coerência e eficácia das acções de formação dos membrosdos corpos judiciários dos Estados Membros”.Dados sobre estas matérias podem ser consultados em www.jsboard.co.uk/EJTN, o website da RedeEuropeia de Formação Judiciária, sediado provisorioriamente no do Judicial Studies Board e que seráautonomizado, a partir de finais de fevereiro de 2001.

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Antes de nos debruçarmos sobre o modelo de recrutamento e formaçãode magistrados, actualmente vigente em Portugal, far-se-á, para melhorcompreensão do tema, uma referência muito breve à situação existente a quandoda Revolução de abril de 1974 e aos aspectos essenciais da evolução posterior.

2 O RECRUTAMENTO E A FORMAÇÃO DOS MAGISTRADOSANTES DA CRIAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOSJUDICIÁRIOS

2.1 ANTES DA REVOLUÇÃO DE ABRIL DE 1974, INEXISTIAEM PORTUGAL QUALQUER TIPO DE FORMAÇÃOINSTITUCIONALIZADA, TENDO EM VISTA O EXERCÍCIODAS FUNÇÕES DE MAGISTRADO.

O recrutamento dos delegados do procurador da República era feito porconcurso, ao qual podiam candidatar-se os cidadãos portugueses do sexomasculino, com idade não inferior a 21 nem superior a 35 anos, que, para alémdos restantes requisitos gerais da função pública, fossem licenciados em CiênciasJurídicas e houvessem exercido, durante seis meses, com bom e efectivo serviço,algum dos cargos de delegado interino, juiz municipal, subdelegado do procuradorda República, subcurador de menores ou adjunto do subdelegado – art. 388 doEstatuto Judiciário aprovado pelo Dec-Lei no 44.278, de 14 de abril de 1962.

Tratava-se de um concurso semelhante ao escolástico, para o qualbastavam os conhecimentos adquiridos na Universidade, funcionando aexperiência nos tribunais como mera condição de admissibilidade.10

A magistratura do Ministério Público era, então, vestibular da magistraturajudicial, sendo os delegados do Procurador da República, que constituíam ametade superior da lista de antiguidade da 1a classe e com classificação de serviçonão inferior a “Bom”, candidatos obrigatórios à magistratura judicial – art. 380do Estatuto Judiciário.

10 Cf. “O recrutamento e a formação dos magistrados do Ministério Público - O ensaio português”,Ireneu Cabral Barreto, in “O estatuto do magistrado e as perspectivas futuras do direito”, Almedina,Coimbra, 1978, p. 230.

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O concurso para juiz de direito – prestado perante um júri presidido pelopresidente do Conselho Superior Judiciário e composto pelos vogais efectivosdo mesmo Conselho e por quatro arguentes, sendo dois professores catedráticos,um da Faculdade de Direito de Coimbra e outro da de Lisboa, e dois juizes,todos nomeados pelo Ministro da Justiça – abrangia duas provas, uma prática,que se desdobrava em dois pontos escritos (um sobre o direito e processo penale outro sobre direito e processo civil ou direito comercial), e outra teórica (provaoral), que englobava quatro interrogatórios sobre direito civil, direito processualcivil, direito comercial e direito e processo criminal.

Refira-se que, nesses concursos para juiz de direito, relevava a formaçãouniversitária e a prática adquirida no decurso da actividade quotidiana, nãohavendo, posteriormente, qualquer tipo de formação complementar.

Essa falta de formação específica fez-se sentir ao longo dos anos; sendo,então, os magistrados portugueses, cujo empenho no desempenho consciente esério da sua função – cumpre realçar, – essencialmente autodidatas, com aslimitações que tal sempre envolve.11

Como já se acentuava em 1944, “seria desejável que se exigisse também,como se faz em numerosos países, um tirocínio a quem quisesse ser juiz, no qualo candidato pudesse mostrar aptidão necessária para a judicatura. Não é umsimples exame, por mais que seja o carácter prático que se lhe dê, que asqualidades necessárias a um bom julgador se podem plenamente manifestar” –cf. o preâmbulo do Dec-Lei no 33.547, de 22.5.1944, citado em “Umaabordagem sociológica da magistratura judicial”, conferência realizada em14.6.1972, por FLÁVIO PINTO FERREIRA.12

Para além desse tirocínio, como acentuava o Dr. FLÁVIO PINTOFERREIRA, nessa conferência de 1972, que bem merece ser relida e ponderada,“devia ainda integrar o processo de recrutamento dos juizes a freqüência, por umperíodo de tempo a determinar em estudo a organizar adrede, em um centro de

11 Cf. Umberto Eco, in “El fin de los tiempos”, Anagrama, 1999, p. 241.12 Cf. “Ordem dos Advogados - Conselho Distrital do Porto - Instituto da Conferência”, 1972, p. 12.

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estudos judiciários, à semelhança do existente em França a funcionar em Bordéus,onde seriam ministrados – por um corpo docente constituído por professores deDireito, juizes e advogados e, outrossim, por sociólogos, psicólogos e médicoslegistas – os conhecimentos de natureza teórico-prática tidos por necessários econvenientes para uma boa preparação técnico profissional dos futuros juízes.”13

Toda essa situação se alterou radicalmente, na seqüência das profundasmodificações introduzidas após a Revolução de abril de 197414, na organizaçãojudiciária e no estatuto dos magistrados e, em especial, no âmbito da magistraturado Ministério Público, que passou, finalmente, a constituir uma carreira própria,gozando de estatuto próprio e de autonomia, conforme a Constituição dispõe –art. 219 da Constituição da República.

Na seqüência do longo debate que então se estabeleceu, e no qual teveum papel determinante o Sindicato dos Delegados do Procurador da República(o actual Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), o antigo concursode provas públicas veio a ser abolido, criando-se em sua substituição um métodode ingresso e selecção de magistrados com base em estágios formativos.15

Tais alterações foram introduzidas pelo Dec-Lei no 714/75, de 20.12,diploma “necessariamente precário e experimental”, que “perfilha todo umconjunto de novos critérios de valoração dos candidatos16 ao ingresso nasmagistraturas judicial e do Ministério Público, que se têm mais consentâneoscom as realidades da vida e as exigências profissionais” e “rompeu com umsistema que, em manifesta obsolescência era inadequado à importância edelicadeza das funções dos magistrados” – cf. o preâmbulo desse diploma e odo Dec-Lei no 102/77, de 21.3.

13 Citada publicação do Instituto da Conferência do Conselho Distrital do Porto da Ordem dosAdvogados, p. 12.

14 Como refere D. José Policarpo, Patriarca de Lisboa, “só há dois momentos na História do País quesão equivalentes ao 25 de abril em termos de grandiosidade de mudança de horizontes: o processoda independência, no século XII, e o ciclo das Descobertas - que significou o alargamento doespírito de Cruzada transformado em aventura científica e comercial e em conhecimento de outrospovos” – cf. “Igreja e Democracia”, Multinova, 1999, p. 120.

15 Cf. “Ministério Público”, J.N. Cunha Rodrigues, in “Dicionário Jurídico de Administração Pública”,vol. V, 1993, p. 527

16 O acesso das mulheres à magistratura havia sido reconhecido pelo Dec-Lei no 251/74, de 6.6.(idêntica discriminação verificava-se na carreira diplomática, esta abolida pelo Dec-Lei no 308/74,de 12.6)

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O estágio para ingresso na magistratura judicial e no Ministério Público,que se desdobrava em uma fase de formação inicial e outra de formaçãocomplementar, tinha a duração de um ano, sendo a formação inicial orientadapelos juízes e delegados do procurador da República, titulares dos juízos ondeos estagiários exerciam funções, e a formação complementar por um GrupoOrientador de Estágio.

O Dec-Lei no 714/75 veio a ser substituído pelo Dec-Lei no 102/77, jácitado, nos termos do qual tinham acesso ao estágio para delegados do procuradorda República (que manteve a duração de um ano ) os delegados auxiliares einterinos, com mais de seis meses de serviço à data da respectiva abertura, osadvogados conservadores e notários com, pelo menos, sete anos de actividadeprofissional e os candidatos graduados em testes de aptidão.

Para além da resolução de uma questão prática de direito civil ou comerciale de direito processual civil e de uma questão prática de direito penal e de direitoprocessual penal, a fase escrita compreendia, o que é de sublinhar, pela suaimportância e novidade, uma composição sobre temas sociais, culturais e depolítica geral – cf. o seu art. 25 no 1.

Na fase oral, eram discutidas as matérias dos trabalhos realizados na faseescrita, havendo ainda lugar a um interrogatório tendo por objecto noções geraisde direito constitucional, administrativo e do trabalho.

A par dessa abertura a matérias não estritamente jurídicas, cumprirá realçara realização de seminários, conferências, colóquios, mesas redondas e visitas adiversos estabelecimentos, no decurso do estágio, bem como o trabalho decampo, elaborado pelos estagiários.

Esse trabalho de campo, realizado desde o primeiro estágio, era objectode exposição oral, seguida de debate, e podia versar sobre os mais diversostemas (ecológicos, sociais, religiosos, jurídicos etc.), escolhidos livremente pelosdestinatários, procurando-se assim “estimular a criatividade dos estagiários,através da captação e apreciação crítica da realidade social onde estãointegrados.”17

17 Cf. Ireneu Barreto, intervenção citada, p. 237.

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No decurso da fase profissional e de aplicação, para além da práticajudiciária intensiva, eram ministrados conhecimentos de matérias não abordadasna Universidade, tais como Economia Política, Psiquiatria, Criminologia, etc.

Ao estágio para juiz de direito eram chamados, por ordem de antigüidade,delegados do procurador da República de primeira classe com classificação deserviço não inferior a “Bom”, sendo ainda admitidos, até um quinto do númerototal de estagiários, advogados, conservadores e notários com, pelo menos, dezanos de actividade profissional, à data da abertura do estágio.

Ao grupo orientador do estágio (GOE)18 cabia, designadamente, no âmbitoda formação complementar, programar sessões de estudo e investigação econvidar elementos de estabelecimentos relacionados directa ou indirectamentecom a função judicial e outra entidade para a realização de palestras seguidas dedebate - art. 5o do Dec-Lei no 102/77.

Globalmente considerada, a experiência dos estágios como forma derecrutamento e formação de magistrados, mau grado as suas limitações e asdificuldades inerentes à enorme carência de quadros, que então se vivia, revelou-se extremamente positiva, quer nos seus resultados imediatos, quer quanto àexperiência colhida, de grande relevo para o modelo que veio a ser adoptadocom a criação do Centro de Estudos Judiciários.

A par disso, quem de uma maneira ou de outra acompanhou esses estágiosviu plenamente realizado o sonho de que então todos comungaram - contribuirpara o surgimento de um novo Ministério Público, que deixou de estar dependentedo executivo e passou a constituir uma magistratura com plena autonomia orgânicae funcional, cujo estatuto, tal como acontece com o sistema judicial português,na sua generalidade, é hoje um ponto de referência, na medida em quecorresponde já aos projectos europeus mais avançados.19

18 O grupo orientador do primeiro estágio para delegados do procurador da República foi presididopelo Dr. José Narciso da Cunha Rodrigues, que teve, já então, o importantíssimo papel de “elementoacelerador de uma nova cultura judiciária”, que hoje lhe é unanimemente reconhecido – cf. o“Público”, 30.9.2000, p. 10.

19 Cf. Cunha Rodrigues, intervenção na sessão de abertura do ano judicial, em 15.1.92, in “Revista doMinistério Público”, ano 13o, no 49, p. 9, e António Cluny, “O Ministério Público, o Estado deDireito Social e a nova criminalidade organizada - Novo modelo e estatuto”, publicado na mesmaRevista, ano 18, no 72, p. 90

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O mesmo aconteceu na área da magistratura judicial, em que se abandonouo modelo anterior, no qual “como Minerva que nasceu já armada da cabeça deJúpiter, o magistrado sai do concurso habilitado para todo o sempre para enfrentaras diversas situações que como julgador se lhe hão-de deparar ao longo dacarreira”, e se deram os primeiros passos no sentido do adequado“aperfeiçoamento da formação técnico-profissional e cultural-humanística dosjuízes.”20

3 A CRIAÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS – ORECRUTAMENTO E A FORMAÇÃO NO PERÍODO DEVIGÊNCIA DO DEC-LEI No 374-A/79, DE 10.9

A escola da magistratura portuguesa veio a ser criada pelo Dec-Lei no

374-A/79, de 10.9, com a denominação de Centro de Estudos Judiciários,estabelecimento dotado de personalidade jurídica e autonomia administrativa efinanceira, com sede em Lisboa e na dependência do Ministério da Justiça.

Referida escola veio a ser instalada em uma das mais antigas prisões daEuropa – a cadeia do Limoeiro, cuja história se estende ao longo de séculos.

A par desse importante e curioso dado, sublinha-se também, pela grandeimportância histórica e significado de que se reveste, que aqui existiu antes oPaço da Moeda Nova (mandado construir por D. Fernando I e onde o Mestrede Aviz matou o conde de Andeiro), ou dos Infantes (Paço reedificado por D.João I, para habitação dos seus filhos, os infantes D. Duarte, D. Pedro e D.Henrique), e aqui funcionou, no reinado de D. João II, a cadeia da corte e ainda,no pavimento superior, a Casa da Suplicação ou do Cível.21

20 Cf. Flávio Pinto Ferreira, conferência citada, p. 37 e 39, respectivamente.21 Cf. “Elementos para a história do município de Lisboa”, Eduardo Freire de Oliveira, 1a parte, T. II,

p. 179-180; “A sombra e a luz - as prisões do liberalismo”, Maria José Moutinho Santos, ed.Afrontamento, p. 76(5); “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, vol. XV, p. 116;“Ordenações Filipinas”, Livro, I, p. 17 (3); “A cerca moura de Lisboa”, A. Vieira da Silva, p. 169.

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Na seqüência do que já se encontrava previsto no Estatuto dosMagistrados Judiciais (Lei no 85/77, de 13.12 – art. 41, e na Lei Orgânica doMinistério Público (Lei no 39/78, de 5.7 – art. 106) – a freqüência dos cursos ouestágios de formação, que ‘decorrerão no Centro de Estudos Judiciários, emmoldes a definir pela lei’ respectiva, passou a ser um dos requisitos de ingressonas magistraturas – optou-se, assim, pela via da institucionalização e daprofissionalização, concentrando os vários esquemas formativos a partir de umestabelecimento que pudesse coordenar as actividades lectivas e de contacto,observação e estágio, certo que o processo de formação centrado apenas nosestágios havia-se revelado dispersivo e insusceptível, por isso, de assegurar umasuficiente rentabilidade.22

Nos termos do art. 1o do Dec-Lei no 374-A/79, de 10.923, a formaçãoprofissional de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Públicopassou a incumbir ao Centro de Estudos Judiciários, competindo-lhe ainda,complementarmente, levar a cabo acções formativas destinadas à generalidadedos profissionais do foro.

Desde o início, foi preocupação do C.E.J. ultrapassar as dificuldades quecoexistem na formação de magistrados:

“a necessidade de evitar que as actividades se transformem emacções de pós-graduação apenas dirigidas ao desenvolvimentoteórico de anterior aprendizagem; a necessidade de fugir aesquemas utilitaristas em que se privilegie excessivamente oadestramento prático em prejuízo da investigação, da reflexão eda elaboração doutrinal; a necessidade, sobretudo, de repudiarfórmulas que imponham ou insinuem modelos de comportamentoimpeditivos do enriquecimento da personalidade.”24

Formar magistrados, como logo a seguir enfatiza-se, de forma certeira,“não será obviamente impregnar nos candidatos à magistratura ideologias ou

22 Cf. o preâmbulo do Dec-Lei no 374-A/79, de 10.9, e “O magistrado hoje - actuação e formação”,Laborinho Lúcio, in “Revista de Ciências Sociais”, no 18/19/20, fev.86, p. 299.

23 O Dec-Lei no 374-A/79 foi objecto das alterações introduzidas pelos Dec-Lei no 264-A/81, de 3.9,146-A/84, de 9.5., 144/85, de 8.5, 404/88, de 9.XI, 83/89, de 23.3., 23/92, de 21.2, e 395/93, de24.XI – cf. também o Dec-Lei no 146-B/84, de 9.5. (criação do conselho técnico, do Gabinete deEstudos Jurídico-Sociais, da Biblioteca e do Museu) e o Dec-Lei no 73/94, de 4.2 (quadro do pessoal).

24 Cf. o ponto 3 do preâmbulo do Dec-Lei no 374-A/79, já citado.

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modelos profissionais. Será, antes de mais, criar um amplo espaço de diálogo ereflexão que proporcione aos futuros magistrados oportunidade dedesenvolvimento intelectual, de aperfeiçoamento da personalidade, desensibilização à função judiciária”.

A formação profissional ministrada pelo C.E.J. compreende actividadesde formação inicial, de formação complementar e de formação permanente.

A formação inicial, com a duração total de 26 meses (28 meses, após aalteração introduzida pelo Dec-Lei no 146-A/84, de 2.5), relativamente aos cursosnormais de formação (o primeiro curso normal teve início em 1980), abrangiaum período de actividades teórico-práticas (10 meses), um estágio de iniciação(10 meses) e um estágio de pré-afectação (6 meses).

Durante esses 10 meses de actividades teórico-práticas, a formação eracomum para todos os candidatos à magistratura judicial e do Ministério Público,nenhuma dúvida tendo havido, como se sublinha no preâmbulo do Dec-Lei no

374-A/79, quanto à conveniência desse modelo.

O mesmo já não aconteceu quanto “à definição do momento em que seriade exigir aos candidatos a necessária opção”, tendo-se consagrado, inicialmente,a possibilidade de o candidato o fazer logo no requerimento de ingresso ourelegar tal opção para o termo das actividades teórico-práticas – cf. art. 48 (oDec-Lei no 395/93, de 24.11, eliminou a faculdade de opção no requerimentode ingresso, dando-se prioridade, em caso de desproporção entre as vagasdisponíveis, aos candidatos com melhor graduação).

As matérias ministradas no período de actividades teórico-práticas(formativas; profissionais e de aplicação; informativas e de especialidade -art. 46) abrangiam cinco grandes núcleos de formação: jurisdição cível,jurisdição penal, jurisdição de menores e família, jurisdição do trabalho edireito judiciário.

A par dessas cinco matérias nucleares, eram organizados seminários sobretemas específicos e conferências, por forma a conseguir a “abordagem de temasisolados e o contacto com especialistas em vários ramos que interessam àaplicação do direito”, e desenvolvido um programa cultural, “proporcionando

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uma formação global que permite permanecer criticamente desperto para o mundoe para a vida onde se afirmam valores que ao direito cabe proteger e onde segeram os conflitos que este tem por fim solucionar.”25

O estágio de iniciação decorria, durante dez meses, junto dos tribunaisjudiciais, sob a direcção de magistrados judiciais e do Ministério Público,consoante a opção feita.

Durante esse período, os auditores de justiça coadjuvavam o magistradoincumbido da formação em actos de investigação e de instrução, colaboravamna preparação de promoções ou decisões e intervinham nos actos preparatóriosdo processo.

Tendo em vista o tratamento de matérias relevantes para a actividadejudiciária e dentro da indispensável visão integrada com a fase anterior, o estágioenvolvia ainda acções de formação complementar (realizadas no âmbito localou central) e de síntese.

Concluído o estágio de iniciação, os auditores de justiça eram notados egraduados, sendo, seguidamente, nomeados, juizes, em regime de estágio, edelegados do Procurador da República (actualmente Procuradores-Adjuntos),em regime de estágio.

No decurso do estágio de pré-afectação (seis meses / oito meses: a partirdas alterações introduzidas pelo Dec-Lei no 146-A/84, de 2.5.), os estagiáriospassavam a exercer, sob responsabilidade própria, mas com a assistência dosmagistrados formadores, funções inerentes à respectiva magistratura.

Nos primeiros cinco anos posteriores à nomeação efectiva dos magistrados,eles deviam freqüentar, obrigatoriamente, as actividades formativas, a que aludeo art. 62 do Dec-Lei no 374-A/79, de 10.9. – formação complementar.

No ano 2000, a formação complementar abrangeu os magistrados oriundosdo XI curso normal de formação – 1991/92, salientando-se, por outro lado,que as correspondentes actividades têm-se debruçado, essencialmente, sobreas alterações legislativas mais recentes.

25 Cf. Laborinho Lúcio, comunicação citada, p. 306-307.

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No âmbito da formação permanente dos magistrados, assegurada peloC.E.J., desde o início, são levadas a cabo sessões de estudo, seminários,colóquios e outras actividades destinadas a assegurar a informação, a actualizaçãoe o aperfeiçoamento dos magistrados.

A participação nessas acções tem natureza facultativa, sendo que elas sãodescentralizadas, sempre que possível, e abertas a outros profissionais einstituições.

Ao longo destes vinte anos, o C.E.J. formou 25 um total de 2.427 novosmagistrados, sendo 1.409 magistrados judiciais (801 homens e 608 mulheres) e1.018 magistrados do Ministério Público (552 homens e 466 mulheres), tendo-se afirmado como instituição absolutamente essencial, no âmbito da administraçãoda justiça26.

Como acentua BOAVENTURA SOUSA SANTOS, o C.E.J. criou umnovo tipo de formação que permitiu uma valorização da cultura geral e de novosmétodos de aprendizagem, a valorização de áreas como as de família, menores,trabalho e ambiente, o reforço da cultura de independência, a juvenilização efeminização da função judicial e a criação de condições para que se articulassemno terreno a equiparação efectiva das duas magistraturas.27

Isso mesmo mostra-se muito oportunamente realçado, na exposição demotivos da proposta que deu origem à sua nova lei orgânica, em que afirma:“vencido o cepticismo de quantos, temerosos ou avessos à mudança exigidapelos novos tempos, lhe auguravam uma existência transitória”, o C.E.J.

26 Cf. “Composição social dos auditores de justiça - Quem são os magistrados portugueses? Contributopara um estudo”, Fernanda Infante, in “Que formação para os magistrados hoje?”, ed. do Sindicatodos Magistrados do Ministério Público, Lisboa 2000, p. 64. Os dados aí analisados, e que se baseiamna contagem manual das fichas dos auditores, respeitam aos cursos de formação que abrangem osperíodos de 1980/1981 a 1997/1998, tendo-lhe nós adicionado os respeitantes ao XVII CursoNormal de Formação: 114 auditores de justiça, 50 dos quais optaram pela magistratura judicial (32mulheres e 18 homens) e os restantes 64 pela do Ministério Público (40 mulheres e 24 homens).Esses últimos dados reflectem a tendência que passou a verificar-se na década de noventa, passandoa componente feminina a estar em clara maioria – mais de 60% de mulheres em todos os cursos.

27 Cf. “Que formação para os magistrados nos dias de hoje?”, citada publicação do S.M.M.P., 2000, p.37.

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“conquistou há muito um lugar insubstituível,”28 com pacífica “aceitação, nãosomente pela comunidade jurídica mas pela própria sociedade civil,”29 cumprindo,com o indispensável empenhamento de todas as entidades envolvidas, continuara desenvolver uma formação exigente, de elevado nível e consentânea com asnecessidades actuais.

4 O RECRUTAMENTO E A FORMAÇÃO NO ÂMBITO DANOVA LEI ORGÂNICA DO C.E.J. – LEI NO 16/98, DE 8.4.

4.1 A NOVA LEI ORGÂNICA DO C.E.J. – LEI NO 16/98, DE 8.4. –ASPECTOS MAIS SIGNIFICATIVOS

Decorridos 19 anos sobre a sua criação, entendeu-se, em uma perspectivacriativa e dinâmica, “substituir o diploma regulador do C.E.J., com particularincidência no domínio da formação, substituição que, aliás, se imporia, como jáfoi reconhecido, para suprir a inconstitucionalidade orgânica de algumas dassuas disposições, ante o que se estabelece na alínea l) do artigo 167 daConstituição da República”30 – (actual alínea ‘p’) do art. 165 – estando emcausa o estatuto dos magistrados, a estrutura e o funcionamento do C.E.J.constituem matéria objecto da exclusiva competência da Assembléia da República,salvo autorização ao Governo e nos estritos limites dessa intervenção).

De sublinhar que a nova lei orgânica do C.E.J. foi aprovada, porunanimidade, na Assembléia da República, apenas se tendo abstido, na votaçãona especialidade, o Partido Comunista Português relativamente ao no 3 do artigo37 e ao no 1 do artigo 38 – questão da entrevista.31

Foi assim conseguido o “largo consenso legitimador da futura lei”, a quese aludia no respectivo debate na generalidade, sendo de sublinhar, por outrolado que tal como foi “expressamente referido pelas diversas autoridades e

28 Cf. “Diário da Assembléia da República”, II-A, no 69, 1.8.97, p. 1340-(342).29 Cf. “Diário da Assembléia da República”, I, no 30, 22.1.1998, p. 1041.30 Cf. cit. D.A.R., II-A, no 69, de 1.8.97, p. 1340-(342).31 Cf. D.A.R., II-A, no 33, 21.2.1998, p. 667.

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entidades ouvidas a propósito desta proposta de lei, é inquestionável que comela se dão importantes contributos para a melhor organização do Centro deEstudos Judiciários e da formação dos magistrados.”32

Os aspectos mais marcantes da nova lei são os que, em síntese, a seguirse deixam indicados.

4.1.1 EM MATÉRIA DE ORGANIZAÇÃO

a. A manutenção do C.E.J. sob tutela do Ministério da Justiça e a reafirmaçãoda sua autonomia

Nos países onde existem escolas ou institutos de formação de magistrados,elas estão, em regra, ligadas ao Conselho Superior da Magistratura ou aoMinistério da Justiça.33

A Associação Europeia dos Magistrados para a Democracia e aLiberdade (MEDEL) e outras entidades defendem que a organização da formaçãodos magistrados deve competir a órgãos independentes e pluri-institucionais,como sejam os conselhos superiores da magistratura, na medida em que está emcausa a independência do poder judicial e a liberdade de ensino, dois dos pilaresda formação dos magistrados.34

Sendo a independência e o pluralismo aspectos essenciais do recrutamentoe da formação, as escolas de formação não poderão deixar de gozar de umprofundo grau de autonomia, na sua actividade, do mesmo passo que os resultadosdessa formação haverão de ser objecto do adequado e efectivo controlo eresponsabilização.

32 Cf. D.A.R., I, 30, 22.1.98, p. 1042 e 1046 (sublinhados nossos).33 Cf. o levantamento constante da publicação mencionada na nota 7.34 Cf. “Elementos para um Estatuto Europeu da Magistratura”, texto aprovado na reunião de MEDEL,

em Palermo, em 16.1.93, in “Revista do Ministério Público”, ano 14, no 53, p. 183, e “Méthodesde recrutement et de formation des magistrats:leur possible influence sur l’indépendence dupouvoir judiciaire”, Giacomo Oberto, in www.enm.justice.fr/International/ecoles-etrangeres/italie,“Les enjeux de la formation des magistrats - organisation institutionelle de la formation”, GiacomoOberto, em: www.jugenet.org/nim/formation.html.

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Essa autonomia haverá, em meu entender, de verificar-se quer em relaçãoaos restantes poderes do Estado, quer em relação aos próprios orgãosresponsáveis pela administração do poder judicial.

Assim se salvaguardarão os valores essenciais em jogo e dar-se-á respostaà oportuníssima questão que o Prof. FIGUEIREDO DIAS suscitou, a outropropósito:

“Entre o Cyla do corporativismo e o Carybdis da parlamentarizaçãoou da governamentalização, como pode ainda estabilizar-se aexpectativa do cidadão de que a sua pretensão a um magistradoindependente e autónomo se veja dotada de uma razoávelefectividade e consistência?”35

Só com essa autonomia da escola conseguir-se-ão, efectivamente, evitaros riscos da ‘politização’ ou partidarização, por um lado, e, por outro lado, deum recrutamento e uma formação corporativa, fechada e acrítica.

A propósito dessa formação corporativa é importante reter os alertas quese fazem no Brasil quanto aos riscos de que “os notáveis da carreira, alinhadosou não aos notáveis da política local, venham a exercer um severo controlosobre o acesso à carreira, revertendo as actuais vantagens do sistema do méritoe do concurso público” e as críticas produzidas em França, exageradas, masque deverão ser objecto de reflexão, no sentido de que “os nossos magistradosactuais são formados como os militares, recrutados à saída da faculdade, metidosnuma caserna, a Escola da magistratura, onde são formados por outrosmagistrados, como os militares por outros militares...”36

No caso português, a tutela do Ministério da Justiça, inicialmenteconsagrada “por razões de ordem prática e funcionalidade”, foi agora mantida,mas havendo o cuidado de se limitar, “em termos razoáveis, a tutela doMinistério..., reforçando a autoridade do director do C.E.J. pela sua nomeaçãopor despacho conjunto em que intervém o Primeiro Ministro e cometendo ao

35 Cf. “Nótulas sobre temas de direito judiciário (penal) - o problema fundamental do ‘governo dajustiç’, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127, no 3850-3851, p. 9

36 Cf. “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira”, Luiz Wernneck Vianna e outros, Ed. Revan, p. 184,e “Au nom de la loi”, Alain Minc, Gallimard, p. 121, respectivamente.

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Conselho de Gestão pronúncia sobre a nomeação e sobre a renovação doprovimento”.

A par disso, acentuou-se “o papel interventivo dos Conselhos Superiorda Magistratura e do Ministério Público no funcionamento da instituiçãoe na formação dos magistrados, no que se reputa como uma relevanteco-responsabilização que rompe com uma prática de espessa comunicabilidade”,gerando-se, por essa forma, as adequadas condições para um funcionamentoautonómico, participado, plural e aberto.

Diferentemente do que acontecia com os conselhos e com a generalidadedo sistema judicial português37 (ressalvados os casos do Tribunal de Contas edo Tribunal Constitucional), o Centro de Estudos Judiciários dispõe, desde oinício, de autonomia administrativa e financeira, regime esse que mais bem secoaduna com a gestão inerente às funções que lhe estão cometidas.

b. O reforço da autoridade do director e a acentuação do papel interventivo dosConselhos Superiores da Magistratura e do Ministério

Como acaba de se focar, a nomeação do director do Centro passou aocorrer por despacho conjunto do Primeiro Ministro e do Ministro da Justiça,limitando-se assim “em termos razoáveis a tutela do Ministro da Justiça” ereforçando-se a sua autoridade.

Já no que concerne aos directores-adjuntos, a lei actual deixou de lhesatribuir quaisquer competências próprias, ao contrário do que acontecia com alei anterior – cf. o art. 8o da Lei no 16/98, de 8.4, em confronto com o art. 9o doDec-Lei no 374-A/79, de 10.9.

Na ausência de previsão expressa relativamente à delegação decompetências, firmou-se o entendimento de que referida delegação não erapermitida.

37 Tal situação veio a ser alterada pelo Dec-Lei no 177/2000, de 9.8, passando o Supremo Tribunal deJustiça, o Supremo Tribunal Administrativo, os tribunais da Relação e o Tribunal CentralAdministrativo a disporem de autonomia administrativa.

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Em face de tal entendimento, de que nos permitimos discordar, e porqueo Regulamento Interno também nada dispõe de relevante, nesse domínio, poder-se-á ser conduzido a uma situação de dúvida sobre o verdadeiro estatuto dosdirectores-adjuntos: adjuntos do director ou meros assessores dele.

Tal matéria haverá, pois, de ser devidamente clarificada em futura alteraçãolegislativa, retomando-se solução idêntica à do Dec-Lei no 374-A/79, com asdevidas adaptações, quer no que se reporta à respectiva designação, quer quantoàs suas competências, à semelhança do que, aliás, acontece na lei actualrelativamente aos directores das delegações do C.E.J. nos distritos judiciais –cf. o art. 25 da Lei no 16/98.

Esse ponto de vista não tem, de forma alguma, subjacente a defesa deuma direcção colegial, nem a partilha de poder, pugnando-se, sim, por umagestão racional e eficiente, que envolve a atribuição de responsabilidades, trabalhode equipa e co-responsabilização pelos resultados finais.38

c. O reforço da composição plural dos órgãos do C.E.J., em especial o Conselhode Gestão e o Conselho Pedagógico

O Conselho de Gestão é actualmente composto pelo presidente doSupremo Tribunal de Justiça, que preside, pelo Procurador-Geral da República,pelo bastonário da Ordem dos Advogados, pelo director do C.E.J., por duaspersonalidades designadas pela Assembléia da República, por dois professoresdas Faculdades de Direito designados por despacho conjunto do Ministro daJustiça e da Educação, por um magistrado designado pelo Conselho Superiorda Magistratura e outro pelo Conselho Superior do Ministério Público e pordois auditores de justiça, eleitos anualmente pelos seus pares.

É o Conselho de Gestão quem define as grandes linhas de actuação doC.E.J., competindo-lhe, designadamente a aprovação do plano anual deactividades e a aprovação do relatório da sua execução.

38 Cf., “Teoria Organizacional - estruturas e pessoas”, João Abreu de Faria Bilhim, I.S.C.S.P., 1996,p. 130 e ss. e, a propósito da importância da repartição de responsabilidades, “A doença da saúde”,Manuel J. Antunes, Quetzal Editores, 2000, p. 115.

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Em face da pluralidade de origens dos seus membros e do importanteequilíbrio entre magistrados e não-magistrados, esse órgão reúne as devidascondições para definir, com autonomia, e nos termos mais ajustados, os conteúdose objectivos da formação, por forma a que os futuros magistrados adquiram, apar da indispensável preparação técnico-jurídica, uma vasta gama deconhecimentos de outras áreas que os habilitem a compreender-interpretar, comsegurança e à vontade, a realidade social onde serão chamados a exercer, apósa conclusão da formação.

O Conselho Pedagógico reflecte também essa composição plural, delefazendo parte o director, os quatro directores-adjuntos, um magistrado designadopor intermédio de cada um dos Conselhos que ficaram referidos, um advogadodesignado pela Ordem dos Advogados, duas personalidades designadas peloConselho de Gestão e uma personalidade designada pelo Ministro da Justiça.

Para além de emitir parecer sobre todas as questões respeitantes ao regimede formação, cabe-lhe pronunciar-se sobre a nomeação de docentes e aimportantíssima tarefa de apreciar a adequação e aproveitamento dos auditoresde justiça e dos candidatos a assessores e de proceder à sua graduação final.

Esse órgão teve, no período após a entrada em vigor da Lei no 16/98,uma posição muito actuante e positiva, designadamente por parte dos membrosexteriores ao C.E.J. – cf., p.ex., as importantes recomendações aprovadas eque produziram bons efeitos práticos, em matéria avaliação e estruturação dostestes das provas escritas de selecção dos candidatos a auditores de justiça:simplificação da organização, com diversificação do grau de complexidade dasquestões e colocação delas em uma lógica de fundamentação e de decisão (actada reunião de 21.12.1998).

Essa posição actuante haverá de ser reforçada, impondo-se, do meu pontode vista, uma melhor articulação com o Conselho de Gestão e, por outro lado,que o Conselho Pedagógico, pela natureza das funções a cargo, sejaobrigatoriamente ouvido quando estão em causa questões como, por exemplo,a antecipação de estágios ou alterações ao regime de formação.

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Por outro lado, afigura-se-me que se imporá retomar a solução da leiorgânica anterior (cf. art. 13o f), voltando os docentes do C.E.J. a estarrepresentados no Conselho de Gestão por um elemento eleito pelos seuspares.

d. A integração do Gabinete de Estudos Jurídico-Sociais, da Biblioteca e doMuseu na estrutura orgânica do C.E.J. e a criação do Departamento dePlaneamento, Organização e Informática

O Gabinete de Estudos Jurídicos Sociais, criado pelo Dec-Lei no 146-B/84, de 9.5, tal como a biblioteca e o museu, tem um papel fundamental adesempenhar na vida da Escola, quer no âmbito do apoio científico e técnico àsacções formativas do C.E.J., quer das restantes competências que lhe foramatribuídas pela Lei no 16/98, designadamente a realização ou a participação emestudos sobre realidades sócio-jurídicas em que se inscreve a administração dajustiça, a publicação e a difusão de estudos efectuados pelo C.E.J. e a instalaçãoe a organização de bancos de dados e equipamentos de acesso a redeselectrónicas para apoio documental à actividade do C.E.J. – cf. art. 19o da Leino 16/98.

O mesmo acontece com o Departamento de Planeamento, Organizaçãoe Informática, que passou, de imediato, a dar prioridade à formação dos auditoresde justiça e à dos assessores, bem como à dos funcionários e docentes, na áreadas tecnologias de informação e comunicação, dando especial ênfase ao acessoà Internet, ao acesso às bases de dados jurídicas, à modernização tecnológicae à utilização de meios electrónicos, na produção dos documentos e nascomunicações.

Tal tem tido resultados muito positivos. Efectivamente, em resultado daformação ministrada nos primeiros seis meses da formação inicial, todos osauditores de justiça se mostram apetrechados, ao iniciarem o ciclo actividadesteórico-práticas nos tribunais, com os conhecimentos e a prática adequada parautilizar as aplicações de computador mais correntes – processamento de texto,criação de arquivos, acesso à Internet e às bases de dados.

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Por outro lado, os resultados já obtidos no âmbito do desenvolvimentodas tecnologias da informação e da comunicação na área dos tribunais,nomeadamente quanto ao registo e à gestão electrónica do processo, ao suporteinformático à actividade dos diferentes utilizadores, à disponibilização e à partilhade dados e à utilização dos meios telemáticos nas intervenções processuais, sãode imediato divulgados aos auditores de justiça, por forma a que eles os passema utilizar e a dinamizar seus trabalhos.

Os futuros magistrados ficam assim sensibilizados e preparados para daro seu contributo para a indispensável modernização dos tribunais edesburocratização da sua actividade, em vários níveis.

4.1.2 EM MATÉRIA DE CONDIÇÕES DE INGRESSO E DEMÉTODOS DE SELECÇÃO

a. A exigência do requisito de que, na data da abertura do concurso, o candidatomostra-se habilitado, há pelo menos dois anos, com licenciatura em Direitolegalmente reconhecida em Portugal

Essa exigência dos dois anos tem sido muito combatida, com o argumentode que ela conduziria a que, impedidos de concorrer de imediato ao C.E.J.,alguns dos jovens licenciados com melhores aptidões encaminhar-se-iam,entretanto, para outras profissões.

Nesse mesmo sentido, pronunciou-se já o Conselho de Gestão, em16.3.2000, recomendando a eliminação dos dois anos de espera (art. 33 no 1,b) da Lei no 16/98), porquanto “perdem-se os melhores valores e nada seganha”.

Como consta da discussão na generalidade da proposta que deu origem àLei no 16/98, essa espera de dois anos foi introduzida por se considerar que “talcomo é referido no parecer do Conselho Superior da Magistratura...retirar aentrada do C.E.J. do mercado imediato procurado pelos recém licenciados emdireito permitirá, sem dúvida, uma opção mais consciente e reflectida, numaaltura em que se pretendem reunir as cautelas que evitem o ingresso na magistraturados que não satisfaçam requisitos cívicos e de personalidade adequados. Não

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está em causa a retirada de uma simples saída profissional imediata mas, sim, anecessidade de adquirir mais maturidade.”39

Em sentido diferente pronunciam-se alguns dos auditores com quem temostrocado impressões, referindo que a experiência adquirida nas actividades queexerceram durante os dois anos de espera se lhes revelou muito útil apósingressarem no C.E.J.

Como quer que seja, mostra-se formado um largo consenso no sentidode que essa medida se revelou prejudicial, motivo por que se justificará abolir orequisito de dois anos a que alude o citado no 1, b) do art. 33 da Lei no 16/98.

b. A consagração de duas vias de ingresso no C.E.J.: a dos simples licenciadosem Direito e a dos assessores dos tribunais judiciais que reúnam os requisitos aque alude o art. 15 da Lei no 2/98, de 8.1.

A nova lei abriu aos assessores dos tribunais de Relação e dos tribunaisde primeira instância, criados pela Lei no 2/98, a possibilidade de requererem,após três anos de exercício efectivo de funções com boa informação, o ingressono C.E.J., estando isentos da fase escrita e cabendo-lhes um terço dos lugares apreencher – cf. artos 15 da Lei no 2/98, 33 2, 39 2 e 51 1 da Lei no 16/98.

O primeiro curso (e único, até ao momento) de assessores só veio arealizar-se entre 13 de setembro e 13 de dezembro de 1999, tendo sidoaprovados 55 dos 117 candidatos admitidos.40

Um número significativo desses 55 assessores concorreu logo, no âmbitodo regime geral, a auditor de justiça, tendo 22 deles sido admitidos à oral e 18considerados aptos e graduados para a freqüência do XIX curso normal deformação, que iniciou as suas actividades em 15.9.2000.

39 Cf. D.A.R., I, no 30, 22.1.98, p. 1047. O Conselho Superior da Magistratura veio a alterar talposição, considerando que “essa abstinência escolar, por si só, apenas conduz a que os futuros juizessejam dois anos menos novos e dela não se colhe qualquer benefício” – cf. “Estágio de juizesencurtado”, in o “Público”, 19.12.99. Interessante é notar, a propósito da ampla discussão que temhavido entre nós quanto à questão da idade e da maturidade, que, na Holanda, não é fixada idademínima relativamente aos ‘candidatos internos’ (recrutados à saída da Faculdade), havendo antesum limite de idade para eles – 30 anos, como se pode ver em: www.enm.justice.fr/International/ecoles_etrangeres/pays-bas/recrutement.htm.

40 Cf. DR, II, no 20, 25.1.2000, p. 1534.

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E tal não constituiu qualquer estranheza. Com efeito, não tendo sido criada,como se impunha, uma carreira de assessores, havendo apenas um provimentoem regime de comissão de serviço, com o limite máximo de três anos e que sópode ser prorrogada por duas vezes, por períodos de um ano – art. 8o da Lei no

2/98 – os candidatos admitidos, após freqüência com aproveitamento do cursode formação, não gozam de qualquer estabilidade, motivo porque só se manterãonessa actividade se e enquanto não lhes surgir outra saída que lhes assegure talestabilidade.

A abertura do C.E.J. aos assessores criados pela Lei no 2/98 – a qual,teve em vista “retirar a entrada no C.E.J. do mercado do emprego imediato detrabalho”, nos termos e com os objectivos já referidos41, e ainda para obviar àsdificuldades que se anteviam quanto à gestão prática do concurso de admissãoao C.E.J., em virtude de o número de candidatos estar, então, a aumentar deano para ano, “com o ‘record’ de 1.872 candidatos nas provas de ingresso de1996”42 – merece-nos, pois, sérias reservas.

Como se sublinhou, a assessoria técnica de que carecem os magistradosjudiciais e do Ministério Público haverá de ser resolvida por meio da criação deum quadro próprio, que contemple não apenas licenciados em direito, masespecialistas de outras áreas. Tal quadro haverá de ser definido levando-se emconta o número de magistrados a assessorar e as concretas tarefas atribuídasaos assessores, e actuando-se, por outro lado, com a devida prudência, certoque “um crescimento incontrolado do número de assessores do juiz na primeirainstância conduzirá à burocratização da justiça, criando uma certa dependênciado juiz em relação aos juristas profissionais – sem as garantias de independênciapróprias dos magistrados – que lhe preparam o processo para julgamento.”43

41 Cf. citado D.A.R., I, no 30, 22.1.98, p. 1047, e D.A.R., II-A, no 69, 1.8.97, p. 1340(342).42 Cf. D.A.R., I, no 30, 22.1.98, p. 1041, e os interessantes dados da experiência italiana, em que,

entre os anos 80 e os anos 90 se passou de 5.000 a 10.000-15.000 candidatos, relatados em“Recrutement, formation et carrière des magistrats dans le système juridique et constitutionnelitalien”, Giacomo Oberto, in “Que formação para os magistrados hoje?”, citada ed. do S.M.M.P., p.193 e ss., texto esse também disponível em: www.geocities.com/CollegePark/Classroom/6218/portugal/rapport.htm

43 Cf. “Que crise? Que justiça? Mercados judiciários: um estudo de economia normativa”, João Ramosde Sousa, in “Justiça em crise? Crises da Justiça”, organização e prefácio de António Barreto, 2000,p. 239.

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Por outro lado, sendo adeptos do recrutamento de magistrados não apenasentre jovens licenciados, mas também dentre juristas com outras experiênciasprofissionais, como acontece, por exemplo, na Holanda e na França44,consideramos que tal abertura não deverá ficar limitada somente aos assessoresdos tribunais, e muito menos àqueles que tenham apenas três anos de exercício,devendo antes valorizar-se as diversas experiências na advocacia, naadministração pública e em outros sectores, durante um lapso de tempo nãoinferior a um período compreendido entre 6 e 10 anos, exigindo sempre, talcomo acontece em relação aos candidatos restantes, elevados padrões dequalidade, aos diversos níveis, a começar pelas questões da personalidade e docarácter, e capacidade para o exercício da função de magistrado.

c. A composição plural dos júris de exame

Nos termos do art. 37 da Lei no 16/98, os candidatos efectuam testes deaptidão perante júris constituídos por personalidades de reconhecido mérito nodomínio do direito e da cultura, nomeados pelo Ministro da Justiça e magistradosnomeados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superiordo Ministério Público, sendo um terço dos membros de cada uma dessascategorias.

Essa composição dos júris afigura-se-me de saudar, propiciando umimportante intercâmbio de experiências, uma maior abertura ao exterior, visãoplural e qualidade na selecção.

Ajustada se nos afigura, também, a prática que passou a ser seguida de osmembros da direcção e o corpo docente do C.E.J. não integrarem os júris deexame. Tal só não tem acontecido, por razões logísticas, relativamente às provasescritas, em que são chamados a intervir os docentes do C.E.J.

44 No caso da Holanda, procura chegar-se a um equilíbrio entre o recrutamento de candidatos “internos”(jovens licenciados) e “externos” (juristas com uma larga experiência no domínio jurídico - 6 anosde actividade e comportamento irrepreensível), na proporção de 50% para cada uma dessas categorias– cf. www.enm.justice.fr/International/ecoles_etrangeres/pays-bas/recrutement.htm. Solução idênticaestá a ser defendida em França, com o argumento de que a magistratura deve reflectir a diversidadee o pluralismo, que são os valores dominantes de uma sociedade democrática – cf. “Reflexions surla formation des magistrats en France”, Maurice Zavaro, em “Que formação para os magistradoshoje?”, cit. edição do S.M.M.P., 2000, p. 183.

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O princípio de que não devem ser as mesmas pessoas a seleccionar e aformar os magistrados45 está assim a ser cumprido, pelo menos em parte,impondo-se ponderar a hipótese de se avançar um pouco mais, confiando aselecção a uma entidade externa, integrada por elementos das Faculdades deDireito, das Faculdades de Psicologia e Sociologia, por representantes dosConselhos Superiores da Magistratura e do Conselho Superior do MinistérioPúblico e da Ordem dos Advogados.

A par dessa ponderação, cumpre reforçar o indispensável rigor na selecçãofeita, sendo suposto que só entrem no C.E.J. os candidatos que se mostremhabilitados com a devida preparação técnico-jurídica e cultural e as indispensáveiscapacidades para o desempenho da função.

d. A sujeição dos candidatos a uma entrevista, a qual integra os testes de aptidão– assessoria dos júris de selecção, por um psicólogo

A proposta de lei apresentada à Assembléia da República (no 139/VII)previa que, entre a fase escrita e a fase oral, haveria um exame psicotécnico deselecção, com utilização de técnicas psicológicas, destinado a verificar aadequação dos candidatos à função, ao qual ficavam sujeitos todos os candidatosnão eliminados na fase escrita, bem como os doutores em Direito deladispensados.

Tal exame seria efectuado por psicólogo de estabelecimento público daespecialidade, sendo os candidatos notificados, em caso de menção de “NãoFavorável”, nos termos e para os efeitos das alíneas a) a c) do no 1 do art. 70 doDec-Lei no 442/91, de 15.11. – cf. os arts. 38 no 3 e 42 do referido projecto.

A realização desse exame eliminatório era justificada pelo facto de mal secompreender que tal exame “seja obrigatório para o ingresso na função públicaem geral e não esteja previsto para os que se preparam para exercer profissãode enorme exigência, em que se requer um juízo que permita despistar desviosde inadequação à função.”46

45 Cf. “Diagnosing judicial performance: toward a tool to help guide judicial reform programs”,Linn Hammergren, World Bank, p. 15/26, in: www.transparency.de/iacc/9th_iacc/papers/day4/ws1_lhammergren.html

46 Cf. D.A.R., II-A, no 69, 1.8.97, p. 1340(342).

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A submissão ao ‘exame psicotécnico de selecção’ ou ao ‘examepsicológico de selecção’ (projecto inicial) foi questionada, no decurso dadiscussão na generalidade da proposta de Lei no 139/VII, invocando-se ‘osriscos de usar o psicólogo’ para ‘definir um modelo de requisitos’ que omagistrado ‘deve ter (como deve pensar, como deve reagir, se deve emocionar-se ou não, se deve ter idéias feitas de uma determinada orientação)’ e de, poressa via, estarmos a criar ‘modelos’ ou ‘clones’ de magistrados.47

Tal contestação dava seguimento a outras críticas, já anteriormenteassumidas, como, por exemplo, a do Sindicato dos Magistrados do MinistérioPúblico, nos termos da qual “...está em causa a selecção de pessoas que irãointegrar órgãos componentes de um dos poderes do Estado e que por isso nãopodem ser simplesmente equiparados, para esse efeito, a meros funcionáriospúblicos, como por certo não o são os Deputados ou os Membros do Governo”.

Na parte final da discussão da proposta de lei, na generalidade, aventou-se a hipótese de, em alternativa ao exame psicotécnico ser efectuada umaentrevista, ‘como há, ou havia, pelo menos, no acesso à carreira diplomática’,solução essa que veio a ser consagrada na Lei no 16/98, de 8.4. - arts. 38 no 1e 37 no 3 – sendo os júris dos exames assessorados, para esse efeito, de umpsicólogo nomeado pelo Ministro da Justiça.

A entrevista, que tem em vista “excluir situações de Psicopatologia,”48

conforme foi acordado entre os júris e os psicólogos assessores, é classificadacom a menção de “Favorável” ou “Não Favorável,” sendo excluídos oscandidatos que não obtenham aquela menção.

A informação de “Não Favorável” é devidamente fundamentada, podendoo candidato impugná-la, pelos meios próprios. Antes da respectiva elaboração,os assessores de psicologia discutem “em conjunto a exclusão e oferecem aocandidato um espaço onde essa informação possa ser integrada e elaboradanum plano emocional.”49

47 Cf. D.A.R., I, no 30, de 22.1.98, p. 1042 e 1045.48 Cf. “Recrutamento, selecção e formação de magistrados”, Conceição Faria Kol de Almeida,

Psicóloga, cit. ed. do S.M.M.P., “Que formação para os magistrados hoje?”, 2000, p. 98.49 Cf. Conceição Faria Kol de Almeida, trab. citado, p. 98.

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Esse novo modelo foi aplicado, pela primeira vez, no concurso de ingressono C.E.J. realizado no ano de 1999, sendo os resultados obtidos, de acordocom a opinião da maioria dos membros que integraram os júris, francamentepositivos.

Para o exercício das complexas e delicadas tarefas a cargo do magistrado,mostra-se indispensável possuir uma boa preparação técnica, nas diversas áreasjurídicas e não-jurídicas.

Mas mais importante que essa preparação são as adequadas característicasda personalidade e do carácter dos candidatos, designadamente a suahonestidade, integridade, imparcialidade e isenção.

Como é sabido, os testes psicológicos, não sendo infalíveis, nemoferecendo soluções mágicas, constituem, porém, um instrumento muitoimportante para avaliar as capacidades e os interesses do candidato, bem comoa sua personalidade e a sua integridade. Assim sendo, não faz, do meu ponto devista, sentido pôr de lado esse importante instrumento auxiliar, sob pretexto deque está em causa o recrutamento de elementos que irão integrar um órgão desoberania e de que a aplicação dos testes, para esse efeito, envolveria riscosdos desvios apontados.

A idéia da submissão dos candidatos à magistratura a testes dessa naturezanão é, aliás, nova, sendo defendida já em 1971 por ARTUR SANTOS SILVA,que preconizava “além de um exame revelador da sua cultura jurídica, examespsico-técnicos, segundo os métodos modernos e com testes apropriados.”50

Os riscos que ficaram referidos não se combatem com a eliminação dosexames, mas com a indispensável exigência quanto ao nível científico e absolutaisenção das entidades que intervêm nesse domínio, bem como com a indispensáveltransparência, fundamentação dos resultados e garantia de impugnação, por partedos candidatos.

50 Cf. “A constituição e a independência do poder judicial”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 31,jan-jun1971, p. 89 e 93.

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Na Europa, são vários os países que utilizam os testes psicológicos, naselecção dos magistrados, salientando-se o caso da Holanda, onde os candidatossão submetidos a vários testes psicológicos. Existe um inicial que visa a apuraros cem melhores candidatos, que passam à fase seguinte, abrangendo apersonalidade, as qualidades de carácter, as capacidades intelectuais, a atitudediante do trabalho, a imunidade contra o stress e as capacidades derelacionamento. Seguidamente, há lugar a um teste psicológico mais específico ea uma entrevista com a comissão de selecção.51

Essas experiências haverão de ser levadas em consideração, impondo-se, por outro lado, precisar melhor, no legislativo, o âmbito da entrevista econsagrar a realização de testes psicológicos, ao menos como instrumento auxiliardaquela, e o respectivo regime.

A par disso, justificar-se-á que se preveja um acompanhamento psicológicodos auditores ao longo da formação, nos termos preconizados pela psicólogaConceição Faria Kol de Almeida, no trabalho que vimos citando.52

4.1.3 QUANTO À FORMAÇÃO INICIAL

a. O alargamento do período de formação conjunta

O período da formação conjunta que, no domínio do Dec-Lei no 374-A/79, apenas decorria no C.E.J. durante 10 meses (15 de setembro a 15 de julhoseguinte - art. 46) foi agora alargado para 22 meses, repartidos da seguinteforma: 6 meses e meio de actividades teórico-práticas no C.E.J. (15 de setembroa 31 de março), 12 meses de actividades nos tribunais (1 de abril a 31 demarço), sob orientação, por iguais períodos de tempo, de magistrados judiciaise de magistrados do Ministério Público, e novamente no C.E.J., no períodorestante (1 de abril a 15 de julho).

Após esses 22 meses de formação conjunta, os auditores de justiça sãoclassificados e graduados, após o que fazem a sua opção pela magistratura judicialou a do Ministério Público, seguindo-se a fase de estágio, em cada dessasmagistraturas, durante 10 meses.

51 Cf. www.enm.justice.fr/International/ecoles_etrangeres/pays-bas/recrutement.htm.52 Cf. p. 104.

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A opção por esse modelo de formação conjunta não constitui matériapacífica, havendo quem sustente que, estando em causa magistraturas separadase com funções bem distintas, separada deveria ser também a formação, desde oinício.

Da reflexão que temos feito sobre o tema, concluímos que a formação emcomum, durante o período inicial, dos futuros magistrados judiciais e os doMinistério Público e a extensão dessa formação comum, ao menos em algunsaspectos – a outras profissões que intervêm no âmbito da administração dajustiça, designadamente os advogados – tem a grande vantagem de propiciarmelhor compreensão e entendimento e melhor preparação e abertura para oexercício da função específica de cada um.53

Não se ignoram as dificuldades práticas de tal solução quanto à extensãoà advocacia; certo, porém, que as vantagens sublinhadas sempre serão alcançáveispor meio acções comuns no decurso de cada uma das respectivas formações.

Haverá, por outro lado, de se ter presente que o modelo da separaçãodas carreiras, vigente entre nós, volta a ser questionado, havendo de se estaratento a “esse debate inevitável a médio prazo,”54 certo que, se vier a serconsagrada uma diferente solução, por exemplo a intercomunicabilidade, que“favoreceria o sistema, no plano organizativo, pois atenuaria os antagonismosfuncionais, optimizaria as expectativas de carreira e facilitaria uma maioradequação entre o perfil profissional e a função,”55 a conseqüência natural seránão apenas a da manutenção, mas o reforço da formação conjunta.

Sobre essa matéria haverá também de levar em consideração as conclusõesdo inquérito elaborado pelo Gabinete de Estudos Jurídico Sociais do C.E.J.,por determinação do Conselho de Gestão, nos termos das quais:

53 Cf. “Le juge et le politique”, Hubert Haenel, Marie-Anne Frison-Roche, puf, p. 252 e “Mission deréflexion et des propositions en vue de l’elaboration d’un code des profissions judiciaires etjuridiques”, Jean-Marc Varaud, p. 83.

54 Cf. “A crise da justiça: crise, discurso da crise e discurso crítico”, Eduardo Maia Costa, in Revista doMinistério Público, ano 20, no 77, p. 164-165.

55 Cf. “Em nome do povo”, Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 1999, p. 270-271, onde se faztambém o alerta de que essa solução enfraquece o princípio do acusatório e alimenta suspeitas de asfunções de iniciativa, decisão e controlo se organizarem em circuito fechado.

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– A idéia da formação em separado, desde o início, dos candidatos àmagistratura judicial e à do MP tem uma expressão praticamente insignificante –conclusão 6a;

– A opinião mais generalizada é no sentido de que a formação em comumse prolongue para além do primeiro ciclo de actividades teórico-práticas noC.E.J. – conclusão 8a;

– Os auditores de justiça que seguiram já o novo regime de formaçãointroduzido pela Lei no 16/98 avaliam de um modo muito positivo o facto de asactividades teórico-práticas nos tribunais terem decorrido sob orientação demagistrados judiciais e os do MP, especialmente por lhes ter permitido umamelhor compreensão do sistema judiciário (87,9%) e uma melhor apreensãodas situações práticas com relevo judiciário (91,5%) – conclusão 10a.56

Relativamente ao ciclo inicial de actividades no C.E.J., a opinião majoritáriade quantos têm intervindo nesse domínio vai no sentido de que o mencionadociclo de atividades deverá ser alargado para 10 meses.

b. A opção da magistratura no termo dos 22 meses de formação inicial

Os diferentes modelos de opção foram já experimentados ao longo davigência do Dec-Lei no 374-A/79.

Na redacção original do seu art. 32o, determinava-se que os candidatospoderiam optar, no requerimento inicial, por uma das magistraturas57 ou deferira opção.

56 Tal inquérito, mandado efectuar com carácter de urgência, em 16.3.2000, “com o desejo de que osresultados não ultrapassem para ser útil os três meses”, que foi distribuído a 1.158 juizes de direito,1.048 magistrados do MP e 239 auditores de justiça (XVII e XVIII curso), e cujas conclusõesmereceram a inteira adesão do Conselho Pedagógico, em 14.11.2000, continua a aguardar publicação.

57 Como se refere no respectivo preâmbulo, “parece, com efeito, que como corolário do princípio dalivre escolha de profissão, não poderá recusar-se a ninguém o direito de apenas requerer o ingressoem uma das magistraturas e o de não querer sujeitar-se a frequentar o Centro sem a certeza de vagaem caso de aproveitamento”. Mas logo se acrescentava que “na maioria dos casos, os candidatosnão se encontram, de início, em condições de opção consciente por lhes faltar exactamente aquelamotivação que só o conhecimento do quadro profissional de cada uma das funções irá possibilitar”;daí a possibilidade de deferimento da opção.

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O Dec-Lei no 395/93, de 24.11, reafirmando que “não é fácil a definiçãodo momento da opção”, conforme já aludia o preâmbulo do Dec-Lei no 374-A/79, remeteu a escolha para o termo do primeiro período da formação inicial(actividades teórico-práticas no C.E.J.), a fim de “evitar constrangimentos edesigualdades de tratamento e criar condições para uma opção mais conscientee reflectida”.

Por sua vez, a Lei no 16/98 diferiu a opção de magistratura para o termodos 22 meses da formação inicial, por se entender que os auditores de justiça,“com a passagem pelos tribunais, se encontrarem melhor habilitados à escolhapela magistratura judicial ou pela magistratura do Ministério Público”58 .

Nos termos do arto 56 no 2 da Lei no 16/98, “a fase teórico-prática éorganizada por forma a assegurar uma conscienciosa opção de magistratura”,solução que se nos afigura a mais ajustada e que colhe a opinião favorável dalarga maioria dos auditores a quem se aplicou já o regime dessa lei. Efectivamente,70,7% dos auditores do XVII Curso, ouvidos no âmbito do inquérito realizadopelo Gabinete de Estudos Jurídico Sociais, consideram que “a passagem pelasduas magistraturas lhes permitiu uma opção mais consciente”.

Há quem defenda que a opção deve ter lugar no termo do período dasactividades teórico-práticas nos tribunais, ou seja decorridos os primeiros 18meses da formação inicial. Nada temos a opor a essa solução, certo que, nessaaltura, os candidatos encontram-se em perfeitas condições para poderem optarde forma esclarecida e segundo as suas aptidões e não por “pressões de ordemfamiliar”59 ou por outros motivos fúteis que nada têm a ver com o desempenhoda função.

Essa opção, no fim dos 18 meses, não poderá, porém, pôr em causa o3o ciclo da formação inicial, que decorre novamente no C.E.J., que haverá deser, então, mais dirigido para a magistratura respectiva, mas sem que sejasubvertido nos seus aspectos essenciais, em que sobressaem a reflexão crítica

58 Cf. D.A.R., II-A, no 69, 1.8.97, p. 1340(343).59 Cf. “Reflexões sociológicas sobre a magistratura”, Flávio Ferreira, in “Fronteira”, Ano III, nos 10/

11, abr.-set.1980, p. 137.

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sobre as questões e problemáticas suscitadas no ciclo de actividades nos tribunais,o intercâmbio das experiências colhidas, o entrosamento entre a formação noC.E.J. e nos tribunais e a reflexão sobre a função dos tribunais e o papel domagistrado na sociedade contemporânea60.

Estranhamente, voltaram agora a ouvirem-se vozes que preconizam oretomar de experiências já vividas, designadamente a escolha no termo do 1o

ciclo de formação no C.E.J.

Tal solução mostra-se inteiramente descabida, como o demonstrou a práticaanterior, sendo as únicas alternativas válidas a da opção a quando do concursode ingresso ou, a que defendemos, após o período de formação nos tribunais.

c. A organização, os objectivos e os conteúdos da formação na fase teórico-prática

Os objectivos desta fase encontram-se consagrados no art. 56 da Lei no

16/98, salientando-se, a par de outros aspectos essenciais, o estudo e reflexãosobre as regras deontológicas, o sentido ético da função e as relaçõesinterprofissionais, bem como o domínio elementar das modernas tecnologias dainformação e comunicação e da aplicação dos meios informáticos à actividadejudiciária – cf. as suas alíneas e) e f), respectivamente.

A formação ministrada reparte-se, tal como já anteriormenteacontecia, por matérias “formativas”, “profissionais e de aplicação” e“informativas e de especialidade” – cf. os artos. 46 do Dec-Lei no 374-A/79 e 57 da Lei actual.

Para além das já anteriormente mencionadas, foram expressamenteincluídas nessas matérias, o que é de saudar, a deontologia, quanto ao primeirogrupo; a organização e métodos de gestão do processo, quanto ao segundo;a cooperação judiciária internacional e direito comunitário, para além dodireito constitucional, administrativo, económico e do ambiente e consumo,quanto ao terceiro.

60 Cf. Plano de Actividades do C.E.J. 200/2001, p. 19-20, o qual se mostra disponível em: www.C.E.J.pt.

Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 20, p. 258-304, jul./dez. 2002.

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Vêm sendo ministradas, desde 1998/1999, “Noções de contabilidadegeral e de análise financeira”61 a todos os auditores de justiça, tendo-se incluído,em 2000, a formação no domínio da “Organização e métodos.”62

Qualquer dessas áreas, a par da formação no domínio das tecnologias dainformação e da comunicação, a que se aludiu já em 4.1.1.d., reveste de umaimportância fundamental, atenta a natureza e a complexidade dos problemascom que hoje se debatem os tribunais, e, por outro lado, a deficiências de queeles enfermam, em termos de organização e gestão.63

E se o combate a um sem número de “irracionalidades que minam osistema”64 passa, sem dúvida, pelo reforço dos sistemas auxiliares, certo é que aracionalidade da gestão dos tribunais só se alcançará se, para além desses meios,os magistrados estiverem devidamente preparados para, com sentido de equipae de co-responsabilização pelo resultado final, implementarem os “princípios, asestratégias e as técnicas de gestão... para um funcionamento eficaz da justiçapenal.”65

As actividades formativas que decorrem no C.E.J. estão a cargo dedocentes, magistrados, judiciais e do Ministério Público, nomeados pelo Ministroda Justiça, sob proposta do Director, ouvido o Conselho Pedagógico e obtidaautorização do respectivo Conselho Superior.

61 Em articulação com o Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria Geral da República, que tempropiciado uma formação de excelente qualidade nesse domínio. Tal curso vem sendo realizadotambém no âmbito da formação permanente, em grupos de 30/40 magistrados.

62 A actividade formativa incide fundamentalmente sobre: métodos e técnicas de investigação epesquisa na área jurídica e em outras áreas como interesse para o tratamento dos caso e a elaboraçãodas peças processuais; o ensino dos aspectos essenciais em matéria de organização e gestão dosserviços; o ensino dos conhecimentos teórico-práticos elementares sobre a gestão do processo;noções essenciais sobre organização e controlo da agenda e gestão racional do tempo; noçõesbásicas sobre qualidade dos serviços e eficiência na gestão dos tribunais – cf. o citado plano deactividades, p. 19.

63 Cf. “Justiça em crise? Crises da justiça”, citado, p. 238, 321, 388.64 Cf. “Um apontamento e algumas sugestões”, Cunha Rodrigues, in “Justiça em crise? Crises da

Justiça”, cit., p. 321.65 Cf. Anexo à Recomendação no R(95) 12 do Conselho da Europa, ponto I.1, salientando-se também

o seu ponto IV.12, nos termos do qual “os programas de formação inicial e contínua dirigida aosjuízes e aos procuradores deveriam ter em conta os princípios e práticas da gestão moderna em umcontexto judicial”; “Handbook of Court Administration and Management”, edited by Steven W.Hays, Marcel Dekker, Inc., 1993, p. 139; “Organização e Gestão dos Tribunais”, J. A. OliveiraRocha, conferência no C.E.J., em 13.7.2000.

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A Lei no 16/98 prevê já que a nomeação de docentes possa recair, paraalém de magistrados, em docentes universitários, advogados e personalidadesde mérito – cf. art. 80 no 2.66

A participação de profissionais de outras áreas de saber (sociologia,psicologia, antropologia, economia, tecnologias da informação e comunicaçãoetc.) na formação dos novos magistrados mostra-se essencial, como de hámuito é reconhecido. Até o momento, essa participação tem ocorrido no âmbitode um dos grandes núcleos de formação, a que se aludiu no ponto 3 – o dodireito judiciário, que foi reformulado, após a entrada em vigor da Lei no 16/98, passando a designar-se cultura judiciária, e por meio da realização deseminários, colóquios e conferências, para os quais são convidados especialistasdos diferentes ramos.

A integração de especialistas dessas áreas no próprio corpo docente doC.E.J. tem claras vantagens, passando a haver condições para que os diversosconteúdos das matérias previstas na lei passem a ser abordados de uma formamultidisciplinar e multifacetada, por equipas integradas por juristas e especialistasdas outras áreas.

Todos os elementos que integram tais equipas deverão ter disponibilidadepara intervirem nas sessões e nas restantes actividades programadas e, paraalém disso, aspecto que se nos afigura essencial, conforme a prática actual ovem demonstrando, dialogarem com os auditores – fora dessas actividades, emespaço de franco debate e análise crítica – sobre a formação ministrada, osobjectivos a atingir, a evolução havida etc.

Esse novo modelo de abordagem dos diferentes conteúdos, de uma formaglobal, acarreta o abandono daquele que foi praticado no domínio do Dec-Leino 374-A/79, e a que se deu continuidade após a entrada em vigor da nova leiorgânica – divisão da formação jurídica por jurisdições: cível e comercial, penal,família e menores e trabalho e menores, ainda espartilhadas, quanto às duasprimeiras, por I (Judicial) e II (M. Público).

66 Cf. Laborinho Lúcio, comunicação citada, p. 305, e “Formação de magistrados em Portugal”,Armando Leandro, in “Textos”, C.E.J., no 3, 1994-1997, p. 220. Os temas das sessões da culturajudiciária, cujas sessões têm lugar todas as quintas-feiras, mostram-se disponíveis na Internet, emwww.C.E.J.pt.

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Sendo adepto dessa mudança, entendo que ela deverá ser implementada,de forma gradual e com as prudentes cautelas, avaliando-se previamente o modeloactual e definindo, com base nos dados objectivos colhidos e não com base emmeras opiniões, quais as áreas prioritárias em que haverá de se intervir e a melhorforma de o fazer. Caso contrário, corre-se o risco de pôr em causa os bonsresultados que, inequivocamente, vêm sendo obtidos, em termos de formaçãoinicial, em lugar de os melhorar, como se impõe.

O pluralismo, quanto aos docentes oriundos de outras áreas, haveráigualmente de ser observado no que concerne aos magistrados que exercemfunções no C.E.J., impondo-se rever o regime actual, criando condições paraque o recrutamento se possa efectuar por forma a contar com vivências eexperiências67 correspondentes às diferentes práticas dos vários distritos judiciais.Para tanto, haverá de prever um subsídio para os docentes que, ao seremnomeados para tais funções, têm de mudar a sua residência para Lisboa.

O mesmo pluralismo e equilíbrio haverá de verificar-se no âmbito directivo,não fazendo sentido que, quanto ao júris de recrutamento, haja as cautelas a quealude o no 2 do art. 37 da Lei no 16/98, e que, por exemplo, o director e odirector de estudos do C.E.J. sejam oriundos da mesma magistratura.

Voltando às sessões da cultura judiciária e ao novo modelo que ficoureferido, dir-se-á, que, pela natureza das funções a cargo, o Gabinete de EstudosJurídico-Sociais deverá ser chamado a desempenhar o importante papel que alei lhe comete – cf. als. b) e c) do no 1 do art. 19 da Lei no 16/98.

Reportando-nos às actividades teórico-práticas nos tribunais, quedecorrem sob orientação de magistrados judiciais e do Ministério Público, poriguais períodos de tempo, durante um ano – cf., supra, 4.1.3.a. – dir-se-á queessa inovação é uma das mais salutares da nova lei. A experiência vivida aolongo do período de vigência da lei permite-nos, efectivamente, afirmar que secumpriram os objectivos tidos em vista pelo legislador, ou seja, o de conseguir,

67 Cf., quanto às vantagens desse pluralismo, “La formation du juriste et du magistrat allemand auXXème. Siècle: observations critiques”, Hans Ernst Bottcher, in “La formation des magistrats enEurope et le role des syndicats et des associations professionnelles - Quelle formation, pour quellejustice dans quelle société?”, Cedam, 1992, p. 165 e ss.

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por essa via, um “compromisso mais eficaz entre a formação teórica ministradano C.E.J. e a formação prática nos futuros locais de trabalho dos auditores dejustiça”, permitindo-se ao candidato “uma experiência prática no meio de duasformações a que chamamos teóricas, mas,....a formação deve ser teórico-prática,porque o C.E.J. não pode ser uma escola de mestrado, e, em minha opinião,houve algum encaminhamento nesse sentido, que temos de emendar.”68

Tal conclusão mostra-se inteiramente secundada pelos resultados doinquérito do G.E.J.S., acima referido, sendo a esmagadora maioria dos auditoresde opinião que, para além de lhes ter propiciado uma opção mais consciente, apassagem pelas duas magistraturas permitiu-lhes uma melhor compreensão dosistema judiciário e uma leitura e uma compreensão mais abrangente das situaçõespráticas com relevo judiciário, em face dos diversos ângulos de abordagem –cf., supra, 4.1.3.a.

Durante esse período de formação, os auditores são postos em contactocom os diversos serviços do tribunal e participam nas diferentes actividadesjudiciárias – art. 61 da Lei no 16/98, sob orientação dos respectivos magistradosformadores, que tutelam o processo formativo, levando em conta as necessidadesespecíficas de cada um dos auditores, de que dão conta os elementos fornecidospelos formadores do ciclo antecedente.

A propósito dos magistrados formadores, não poderá deixar de frisar otrabalho notável que eles vêm desempenhando, mau grado o sacrifício que assimlhes é exigido, impondo-se, no desenvolvimento das medidas já adoptadas pelosConselhos, precisar melhor o seu estatuto e investir fortemente na formação deformadores.69

Para além das actividades judiciárias, e sem prejuízo do seu regulardesenvolvimento, são organizadas visitas a instituições e serviços de naturezapública e privada, com interesse para o exercício da função judiciária, bem comoseminários, colóquios e ciclos de debate e análise que se mostrem com interesse

68 Cf. D.A.R., II-A, no 69, p. 1340(343), e as palavras do então Ministro da Justiça, Dr. Vera Jardim,em D.A.R., I, no 30, p. 1048.

69 Esta é uma das prioridades da Rede Europeia de Formação de Magistrados, acima aludida.

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para a formação e nos quais devem participar, para além de magistrados,advogados e entidades de outras áreas, por forma a conseguir-se uma visãoplural e uma conjugação dos diferentes saberes.

As visitas e as restantes actividades indicadas foram, assim, transferidaspara o nível local, procurando-se, incentivar uma cultura de maior abertura àcomunidade, a adequada articulação entre as diversas entidades e uma justiçamais participada.

As visitas e os contactos efectuados abrangem, designadamente, osserviços médico-legais, os estabelecimentos prisionais, os órgãos de políciacriminal, as instituições particulares de solidariedade social e de segurança social,as equipas do Instituto de Reinserção Social etc., merecendo, por outro lado,particular atenção o atendimento do público.

O 3o ciclo de actividades teórico-práticas, introduzido pela lei actual, temalguma correspondência com as acções de síntese previstas no Dec-Lei no 304-A/79, as quais eram levadas a cabo no termo do estágio de iniciação “com vistaà integração das duas fases de formação e ao aprofundamento da reflexão críticae da preparação da fase seguinte”. Essas acções de síntese tinham, inicialmente,a duração de dois meses – entre 2 de junho e 31 de julho (arto 49 no 1, b), naredacção do Dec-Lei no 146-A/84, de 9.5), tendo o arto 50 no 4 passado adispor apenas que “antes do termo do estágio de iniciação, são organizadas, anível regional ou central, acções de síntese”.

Atender à evolução legislativa, bem como à respectiva execução práticamostra-se essencial, porquanto muitas das críticas que surgiram, após a entradaem vigor da Lei no 16/98, partiam do princípio de que o 3o ciclo de actividadesera uma estranha originalidade do legislador, quando este, limitou-se, aqui, comono restante, não a fazer uma ruptura com o modelo anterior, mas consagrar assoluções que, “recolhida a experiência encetada em 1979”, mostravam-se maisajustadas para “aperfeiçoar o sistema , ali onde ele se revela menos adequadoàs novas realidades.”70

70 Cf. D.A.R., I, no 30, 22.1.98, p. 1041.

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A experiência colhida com o único ciclo dessa natureza, realizado até omomento, aponta no sentido de que, mau grado as dificuldades havidas na suaimplementação, os resultados obtidos excederam largamente as expectativas eforam francamente positivos, como é reconhecido pela maioria dos queparticiparam na sua execução e pelos próprios auditores.

Como acima se deixou aludido, tal ciclo constitui um momento essencialno conjunto de actividades que integram a formação inicial, em termos deapuramento do sentido crítico, da criatividade, do intercâmbio de experiências edo entrosamento das diferentes fases, da intervenção activa dos auditores, nasdiversas actividades e, designadamente, em simulações, desempenhando os papéisreferentes aos vários intervenientes possíveis e na experimentação do bom sensocomo critério decisor – cf., supra, 4.1.3.b.

d. A fase de estágio

Em relação a esta fase, a mudança mais significativa consistiu na ampliaçãoda respectiva duração, que passou de 6 (anterior estágio de pré-afectação)para 10 meses. O art. 69 no 2 da Lei no 16/98 previa mesmo, na sua redacçãooriginária, a possibilidade de prolongamento do estágio, “havendo motivojustificado”. Baseando-se na insuficiência conjuntural de magistrados,71 veio aser aprovada a Lei no 3/2000, que, a par da consagração da possibilidade deantecipação dos estágios, dotou o Conselho Superior da Magistratura dapossibilidade de designar magistrados jubilados para o exercício de funções e

71 Em relação à constantemente invocada falta de magistrados, não resistimos a transcrever a exposiçãode motivos da proposta de Lei no 139/VII, nos termos da qual: “os problemas da morosidade dajustiça não encontram solução com o aumento exponencial de magistrados...mas com a sua racionaldistribuição, com o recurso a modernas tecnologias, com a simplificação das acções de massas quecolonizam os tribunais, com a libertação destes de meras funções certificadoras para efeitos fiscais”– cf. D.A.R., II-A, no 69, p. 1340(342).Precisamente no mesmo sentido, veja-se “droit negocié, droit imposé”, sous la direction dePhilipe GERARD e outros, Bruxelles, 1996, p. 423, onde se realça que “ce n’est pas seulement enaugmentant le nombre de juridictions ou les effectifs judiciaires que l’on résoudra le problème”.Quanto a tal aumento, não há planos de formação que resistam quando, em dado momento, há“juizes a mais” e “até vão sobrar magistrados na ‘bolsa de juizes’”, como referia o “Público”, emartigo publicado em 3.6.1999, citando a intervenção do Exmo. Presidente do Conselho Superior daMagistratura, na cerimónia de posse de 80 novos juizes, e que, decorrido pouco tempo, a situaçãofosse já de grande carência de magistrados, o que levou à adopção das referidas medidas excepcionais- cf.”Ensino do Centro de Estudos Judiciários contestado - estágio dos juizes encurtado”, o “Público”,19.12.99.

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abrir um concurso extraordinário para o recrutamento – para o exercíciotemporário de funções – de juiz nos tribunais de primeira instância.72

Baseando-se nessa alteração, o Conselho Superior da Magistratura e,ulteriormente, o Conselho Superior do Ministério Público vieram a deliberar oencurtamento dos períodos de estágio do XVII Curso Normal de Formação,apesar de o Conselho Pedagógico do C.E.J. haver alertado para osinconvenientes que daí resultavam. Os impactos negativos dessas antecipaçõesafiguram-se-me evidentes,73 mas, mais que discutir as antecipações já decretadas,importa, do meu ponto de vista, que, no âmbito da avaliação do regime geral deformação, ponderem-se esses dados e retirem-se as ilações pertinentes.

4.1.4 QUANTO À FORMAÇÃO COMPLEMENTAR

A formação complementar, que anteriormente tinha lugar, com carácterobrigatório, nos primeiros cinco anos que “se sigam à nomeação efectiva” dosmagistrados, manteve esse carácter, passando a ter lugar nos dois anos posterioresà colocação definitiva.

72 Apesar de sermos adeptos da abertura do recrutamento de magistrados a juristas com outrasexperiências profissionais, como se focou em em 4.1.2.b., a forma concreta como essa medida veioa ser consagrada suscita-nos as mais sérias reservas. Para além dos problemas de constitucionalidadeque se deixaram em aberto, como o reconhece a voz autorizada do Conselheiro Mário Torres – cf.“Expresso”, de 24.2.2001, p. 3, não compreendemos como é possível dispensar da prova escrita,a par dos doutores em direito, “candidatos que tenham sido magistrados....com a classificação desuficiente...” e os que, nas provas de ingresso ao C.E.J., tenham “merecido a classificação de apto”e, mais que isso, que os candidatos recrutados iniciem, de imediato, a sua actividade, sem qualquertipo de formação. Como acontece em toda a parte, onde se procede a recrutamentos excepcionais,essa formação específica não podia deixar de ser ministrada. Veja-se, p.ex., o caso da França, onde,em 1999, procedeu-se a um recrutamento excepcional de 100 magistrados, os quais, após as provasescritas e orais, foram submetidos a uma formação de 6 meses – um mês na Escola Nacional daMagistratura e cinco meses nas jurisdições – cf. www.justice.gouv.fr/publicat/magistra.htm ewww.justice.gouv.fr/publicat/formatio.htm. Como dizia o saudoso Prof. Teixeira Ribeiro, “estátudo inventado...”.

73 Cf., a propósito da discussão de medida idêntica, a ser adoptada em Espanha, as críticas que a seguirse transcrevem: “Não existe a menor dúvida acerca da bondade da intenção subjacente à idéia dereduzir em um quarto o período de formação dos novos juizes. Porém, a medida que, aparentemente,os tornaria ‘mais produtivos’ a curto prazo, traria consequências negativas dificilmente reparáveispara a qualidade da sua prática profissional ao longo de toda uma vida de trabalho. Sugeriu-se que,ao fim e ao cabo, seis meses não são grande coisa, mas introduzir um parâmetro quantitativo navaloração de uma variável de qualidade é um modo totalmente inadequado de argumentar” - “Formarjueces en serio”, em “El País”, 24.6.2000, p. 16 (tradução livre).

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Precisando os objectivos dessa formação, a lei actual visa: ao intercâmbiode experiências individuais, em uma perspectiva de valorização profissional; àreflexão sobre os dados recolhidos na prática judiciária; ao estudo de áreasespecializadas do direito – cf. art. 74 da Lei no 16/98.

Como é óbvio, tais objectivos haverão de ser prosseguidos em relaçãoa todos os magistrados e não apenas em relação aos jovens magistrados,motivo por que entendemos que, actualmente, não se justifica a autonomizaçãoda formação complementar. A formação e a complementar permanente deverãoser integradas, passando a designar-se formação contínua, que deverá passara revestir carácter obrigatório para todos os magistrados, ou, em alternativa,ser condição de acesso na carreira e de nomeação para certas áreas e paracertos lugares.

4.1.5 EM RELAÇÃO À FORMAÇÃO PERMANENTE

A formação permanente dos magistrados continua a ser assegurada peloC.E.J., tendo agora os Conselhos Superiores da Magistratura e do MinistérioPúblico um papel mais activo na definição do respectivo plano anual de actividades– cf. artos 77 e 78 da Lei no 16/98.

A audição dos Conselhos, antes da elaboração do respectivo plano anual,é da saudar. O regime de formação permanente de que dispomos continua,porém, muito aquém do que as necessidades actuais impõem. Com efeito, seolharmos para as acções oferecidas pelo C.E.J., nos diversos planos anuais,elas, como se salientava no decurso do 5o Congresso do Ministério Público,“respeitam a temas actuais, interessantes pela novidade e pela complexidades,sendo suficientemente abrangentes, pelo que em nada ficando aquém dos temaspropostos pela Academia alemã.”74

74 Cf. “Selecção e formação de magistrados - Entre o presente e o futuro”, Plácido Conde Fernandes,in “O Ministério Público, a democracia e a igualdade dos cidadãos - 5o Congresso do MinistérioPúblico”, Cosmos - S.M.M.P., p. 321.

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Só que, continuando a freqüência dessas acções a ser facultativa, e sendotal freqüência, em alguns casos, autorizada pelos Conselhos, “sem prejuízo parao serviço”, as presenças em tais acções ficam, por vezes, muito aquém dasexpectativas.

Tal situação é insustentável, impondo-se tomar medidas com urgência,para a alterar, sendo nossa opinião que os problemas sérios com que nosdefrontamos se situam no âmbito da formação permanente e não da formaçãoinicial.

Como é hoje unanimemente reconhecido, as novas tecnologias dainformação e comunicação “criaram novos problemas sociais que têm de sertomados em conta no exercício de todas as profissões”, exigindo-se, actualmente,um processo de reciclagem contínua e plural, para os profissionais de todos ossectores, ao longo de toda a sua vida activa.75

Pela natureza das funções do cargo, a freqüência dessa formação contínuaé requisito sem o qual o magistrado não estará em condições de as desempenharde “maneira eficaz e adequada” – cf. o princípio v.3.g. da citada Recomendaçãono R(94) 12 do Comité de Ministros do Conselho da Europa.

Cada magistrado deverá, pois, passar a beneficiar de um período anualde formação contínua não inferior a uma semana76, sendo o respectivo programaanual definido com uma ampla intervenção dos Conselhos Superiores, dosPresidentes das Relações, dos Procuradores Gerais Distritais e das restantesentidades que se encontrem em melhores condições para contribuir para adefinição das necessidades a que haverá de se atender prioritariamente.

75 Cf., p.ex., “The new century”, Eric Hobsbawm in conversation with Antonio Polito, Abacus, 2000,p. 147; “A universidade da idade quântica”, José Dias Urbano, in “Público”, de 5.9.99; “El eternoaprendizage - Las nuevas tecnologias exigen planes de formación continua”, “El País”, P.G. deSola, 1.8.99.

76 Esse período é o que se pratica, por exemplo, em França (cf. www.enm.justice.fr) e fica muitoaquém do tempo que, segundo os padrões internacionalmente definidos, deverá ser dedicado àformação nas diversas áreas: 15% do tempo total de actividade – cf. “El País /Negocios”, 4.10.1998.

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A freqüência dessas acções de formação contínua deverá ser encaradacomo um direito e um dever de todos e de cada um dos magistrados, passandoa revestir carácter obrigatório ou, em alternativa, a ser valorizada para efeitos deacesso na carreira e de nomeação para áreas especializadas e para lugares quesuponham uma preparação específica (p.ex., métodos de gestão para osprocuradores da República coordenadores), como já se deixou referido em4.1.4, parte final.

A formação contínua deverá continuar a ser assegurada pelo C.E.J., emestreita ligação com os Conselhos. No âmbito do C.E.J., deverá criar-se umaárea autónoma, para esse efeito, dirigida por um director-adjunto, que, em meuentender, e ao contrário do que a lei actual determina (art. 8o no 1, a), não deveráser o director de estudos, atenta, desde logo, a sobrecarga que tal acarreta.

O número de acções realizadas de forma descentralizada haverá de serreforçado, impondo-se, por outro lado, dar prioridade à realização de estudoscom vista na implementação da formação on-line.77

Os resultados das diversas actividades desenvolvidas haverão de continuara ser objecto de avaliação interna, nos moldes que vêm sendo praticados –respostas aos inquéritos distribuídos aos participantes, introduzindo-se, por outrolado, neste âmbito e no da formação inicial, uma avaliação externa, a cargo deuma entidade independente.

As alterações preconizadas supõem, fora o mais, que se dote o orçamentodo C.E.J. das verbas necessárias para esse efeito, sublinhando-se a essepropósito que cerca de 92% das receitas actuais destinam-se a fazer em facedas despesas a que aludem as alíneas a) e b) do no 2 do arto 4o da Lei no 16/98– remunerações e bolsas de estudos devidas a directores, docentes, formadores,especialistas, pessoal de secretaria e auditores de justiça; deslocações e ajudasde custo.

77 Cf., quanto às enormes potencialidades dessa forma de formação, “The promise of online education -Lessons of a virtual timetable”, The Economist, 17Fev.2001, p. 81.

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5 AS GRANDES VANTAGENS E VIRTUALIDADES DO MODELODE FORMAÇÃO VERTIDO NA LEI NO 16/98, DE 8/4

A imperiosa necessidade de avaliação das actividades formativas do C.E.J.

A elevada qualidade da formação como condição indispensável para obom desempenho dos magistrados e o adequado funcionamento da justiça –reflexos negativos das constantes mudanças dos modelos de formação.

O modelo de formação, vertido na Lei no 16/98, cuja implementação seiniciou, quanto às suas grandes linhas, em 15 de setembro de 1998 - XVIICurso (o novo regime não se aplicou aos auditores dos cursos de formaçãoanteriores à entrada em vigor da nova lei – cf. o seu art. 93), deparou inicialmentecom grandes reticências por parte de magistrados judiciais e do Ministério Público,como é habitual sempre que há mudanças significativas.

Essas reticências, que já havíamos visto combater, com grande ponderação,pelo Conselheiro Armando Leandro (então prestes a cessar funções comoDirector), designadamente no decurso das acções de síntese realizadas em junhode 1998, no Porto e em Lisboa, foram desaparecendo.

Isso mesmo veio a ser confirmado em reuniões havidas, em Coimbra,Lisboa, Évora e Porto, no decurso de abril e maio de 1999, com todos osformadores judiciais e do Ministério Público e nas quais participaram o Directore os Directores-Adjuntos do C.E.J. (directores de estágios), tendo os formadoresmais reticentes acabado por reconhecer que, afinal, o novo modelo tinhavirtualidades de que não se tinham apercebido.

As grandes vantagens do novo modelo foram expressamente reconhecidaspelos resultados do inquérito efectuado pelo Gabinete de Estudos Jurídico Sociais,por determinação do Conselho de Gestão – cf., supra, 4.1.3.a. e c.

Partindo do enorme capital de experiência recolhido pelo C.E.J., ao longodos elevados números de cursos de formação ministrados desde 1980, procurou-se, em uma atitude profundamente pragmática, recolher os dados mais importantesdessa experiência e introduzir as alterações que se impunham,78 por forma a que

78 Cf., a propósito, José F. Pereira Batista, in “Tribuna da Magistratura”, jul/ag.1999, III-VII.

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a escola continuasse a dar resposta a quanto dela se espera: preparar os futurosmagistrados para o desempenho da importantíssima função de Estado que lhesestá cometida.

E tal tem sido conseguido, mercê sobretudo da grande qualidade dosdocentes e dos magistrados formadores, que, com grande empenhamento e emesforço de actualização constante, vêm produzindo um trabalho que está aonível do melhor que o C.E.J. realizou ao longo destes vinte anos e que tantoprestígio lhe granjeou.

A avaliação que fazemos, com total objectividade, com base naindispensável análise das práticas anteriores e nos dados obtidos no dia-a-dia,haverá, como se mostra imprescindível, de ser testada em sede própria,procedendo-se, como se mostra imprescindível, à avaliação dos resultadosobtidos com a formação ministrada pelo C.E.J.

Tal avaliação deverá ser feita, de forma regular, em nível interno, no âmbitodo grupo de análise e avaliação da actividade formativa do Centro, a que aludeo arto 56 do Regulamento Interno e que urge pôr em funcionamento, e, com aperiodicidade que for determinada, e em nível externo, por uma entidadeindependente.79 Só assim dispor-se-ão de dados seguros e objectivos sobre osresultados obtidos, as deficiências que se urgem corrigir e as reformas que semostram indispensáveis implementar.80

Sem levar em conta os resultados do citado inquérito do Gabinete deEstudos Jurídico-Sociais, o Conselho Superior da Magistratura avançou, emfinais de novembro de 2000, com uma “possível base de trabalho acerca deeventual ‘figurino’ do C.E.J.”, no qual se defende um modelo de formaçãoessencialmente baseado em uma “assessoria de 17 meses nos tribunais, comafectação dos de opção de Judicatura ao CSM e dos de opção pelo Mo Po aoCSMoPo”.

79 O Centro de Estudos Sociais - que levou a cabo a investigação cujos resultados se mostram publicadosem “Os tribunais nas sociedades contemporâneas - o caso português”, Boaventura Sousa Santos eoutros, 1996, Ed. Afrontamento - ou outra entidade com características semelhantes.

80 Cf., quanto ao caso espanhol, “Estado de la administración de justicia en España - Libro Blanco”,disponível em: www.cgpj.es.

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Tal modelo, cuja base já se pode ver delineada, ao menos em parte, naacta do Conselho de Gestão, de 16.3.2000, que ordenou aquele inquérito, comcarácter de urgência81, causou-nos, como tivemos ocasião de salientar, em sedeprópria, a mais profunda perplexidade.

Isso porque, em primeiro lugar, não se compreende que se pretenda alterar,em aspectos essenciais, o modelo de formação vertido na Lei no 16/98, que foiaprovado, por unanimidade na Assembléia da República, há apenas cerca detrês anos, e que reuniu o largo “consenso legitimador” e a aprovação dasautoridades e entidades ouvidas, nos termos aludidos em 4.1.

Em segundo lugar, porque esse novo modelo de formação, apesar dasdificuldades encontradas na sua implementação,82 provou já, de forma segura,que propicia uma melhor opção de magistratura e uma melhor formação83 (melhorcompreensão do sistema e melhor apreensão das situações).

Como é óbvio, não há modelos perfeitos de formação, nem o fundamentalsão os modelos, mas sim os resultados práticos que eles propiciam.

Se o actual está a dar boas provas, há de mantê-lo, no essencial, alterandoapenas, sem o descaracterizar, as anomalias entretanto detectadas e em relaçãoàs quais haja consenso quanto à necessidade de alterações imediatas (p.ex., oprazo de dois anos a que alude a al. b) do no 1 do arto 31 da Lei no 16/98).

Por sua vez, a atribuição de prioridade à assessoria, no âmbito do modelode formação inicial, sendo “natural ‘antecâmara’ do exercício das magistraturas”,merece-me total discordância.

Tal posterga o devido equilíbrio entre a formação teórica e a formaçãoprática e adequada compreensão crítica das práticas em vigor nos tribunais,propiciados pelo modelo actual, sustentando-se em uma idéia completamenteultrapassada de mera transmissão de rotinas e ignorando o enorme capital deexperiência recolhido pelo C.E.J., ao longo destes vinte anos.

81 Cf., supra, nota 55.82 Referimo-nos, essencialmente, às perturbações decorrentes da antecipação dos estágios (supra,

4.1.3.d.), e à anunciada, e não confirmada, alteração das quotas fixadas para cada magistratura, noâmbito do XVII Curso – cf. o “Público”, 19.12.1999.

83 Baseamo-nos nos resultados do inquérito do Gabinete de Estudos Jurídico Sociais, na opiniãounânime dos quatro directores das delegações do C.E.J., nos distritos judiciais, e na dos formadorescom quem trabalhamos directamente.

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No fundo, estamos perante um modelo misto que acaba por não assegurara assessoria técnica de que os tribunais necessitam, nem uma adequada formação.

Em uma sociedade em constante mudança, os magistrados são hojeconfrontados com problemas cada vez mais complexos, aos quais só conseguirãodar resposta se estiverem apetrechados com uma formação de elevada qualidade,que lhes propicie uma adequada capacidade de compreensão do mundo que osrodeia, de inovação, modernização e criatividade, sem a qual a grave crise deconfiança na administração da justiça não parará de se acentuar.

Os modelos de formação de magistrados estão hoje estudados e testados,por toda a parte, e Portugal tem ocupado um lugar de vanguarda, nesse domínio.A estabilidade que se viveu, nesta área, ao longo de cerca de 18 anos, foi, emmeu entender, um factores essenciais da “aceitação pacífica”, do “lugarinsubstituível”84 e do prestígio que o C.E.J. alcançou – cf., supra, ponto 3.

E é nessa senda que, salvo melhor opinião, deverá prosseguir-se, mantendo,no essencial, o modelo de formação vertido na Lei no 16/98. O desafio que semostra aplicável, também aqui, é o de melhorar “o sistema o mais possível semmudar nenhuma lei.”85

A entender-se que, para além de alterações pontuais a essa Lei, mostram-senecessárias reformas de fundo, não vemos que, em matéria tão sensível e detamanhas repercussões como é a formação de magistrados, possa-se avançarpara a alteração substancial de um modelo de formação, que apenas está a seraplicado desde setembro de 1998, sem que, previamente, se proceda à avaliaçãodos respectivos resultados.

84 Cf. D.A.R., II-A, no 69, p. 1340(342).85 Boaventura de Sousa Santos, em intervenção no C.E.J., em junho de 1999.

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