o que a psicologia pode fazer pela antropologia - patricia greenfield

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O QUE A PSICOLOGIA PODE FAZER PELA ANTROPOLOGIA, OU POR QUE A ANTROPOLOGIA DECIDIU ENCARAR O PÓS-MODERNISMO 1 PATRICIA GREENFIELD Tradução: Cristopher Feliphe Ramos Os ditames do pós-modernismo requerem que eu especifique minha própria perspectiva. Obviamente, há um número infinito de posições sociais (statuses) que influenciam a perspectiva pessoal de qualquer um sobre qualquer coisa (assunto). Isto faz parte do dilema pós-moderno. Entretanto, há um conjunto restrito de condições históricas que são relevantes para tarefas (deveres) particulares. O que é relevante em minha história no que tange à tarefa que estabeleci a mim mesma neste ensaio é minha relação com as disciplinas da psicologia e da antropologia. Por conseguinte, ao falar sobre o que a psicologia tem a oferecer para a antropologia, quero deixar claro que eu não sou uma psicóloga falando sobre a antropologia como se fosse alguém de outra disciplina (falando sobre a disciplina de outrem). Embora eu esteja em um departamento de psicologia, eu recebi ambas as minhas titulações no Departamento de Relações Sociais, em Harvard, uma mistura (conjunção) interdisciplinar entre psicologia social, antropologia social e sociologia. Para mim, tanto a psicologia quanto a antropologia têm sido parte do meu conjunto instrumental (meu kit). De fato, eu estou revisando este ensaio a partir da Escola de Pesquisa Americana em Santa Fé, um instituto para estudos avançados em antropologia. Ao discutir o que a psicologia tem a oferecer à antropologia, eu estou, não obstante, falando comigo mesma, bem como aos meus colegas da antropologia. Até recentemente, eu, assim como Fish (2000) estivemos pensando consideravelmente sobre o que a antropologia teria a oferecer para a psicologia (Greenfield, 1996). Assim como muitos psicólogos culturais e transculturais (Jessor, Colby, e Shweder, 1996; Triandis e Berry, 1980), eu fiquei particularmente impressionada com o método etnográfico. Como 1 Publicado na American Anthropologist, New Series, Vol. 102, No. 3 (Setembro de 2000), p. 564 – 576.

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O Que a Psicologia Pode Fazer Pela Antropologia da antropóloga Patricia Greenfield - Método e Teoria Antropológica.

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Page 1: O Que a Psicologia Pode Fazer Pela Antropologia - Patricia Greenfield

O QUE A PSICOLOGIA PODE FAZER PELA ANTROPOLOGIA, OU POR QUE A ANTROPOLOGIA

DECIDIU ENCARAR O PÓS-MODERNISMO1

PATRICIA GREENFIELD

Tradução: Cristopher Feliphe Ramos

Os ditames do pós-modernismo requerem que eu especifique minha própria perspectiva. Obviamente, há um número infinito de posições sociais (statuses) que influenciam a perspectiva pessoal de qualquer um sobre qualquer coisa (assunto). Isto faz parte do dilema pós-moderno. Entretanto, há um conjunto restrito de condições históricas que são relevantes para tarefas (deveres) particulares. O que é relevante em minha história no que tange à tarefa que estabeleci a mim mesma neste ensaio é minha relação com as disciplinas da psicologia e da antropologia. Por conseguinte, ao falar sobre o que a psicologia tem a oferecer para a antropologia, quero deixar claro que eu não sou uma psicóloga falando sobre a antropologia como se fosse alguém de outra disciplina (falando sobre a disciplina de outrem). Embora eu esteja em um departamento de psicologia, eu recebi ambas as minhas titulações no Departamento de Relações Sociais, em Harvard, uma mistura (conjunção) interdisciplinar entre psicologia social, antropologia social e sociologia. Para mim, tanto a psicologia quanto a antropologia têm sido parte do meu conjunto instrumental (meu kit). De fato, eu estou revisando este ensaio a partir da Escola de Pesquisa Americana em Santa Fé, um instituto para estudos avançados em antropologia. Ao discutir o que a psicologia tem a oferecer à antropologia, eu estou, não obstante, falando comigo mesma, bem como aos meus colegas da antropologia.

Até recentemente, eu, assim como Fish (2000) estivemos pensando consideravelmente sobre o que a antropologia teria a oferecer para a psicologia (Greenfield, 1996). Assim como muitos psicólogos culturais e transculturais (Jessor, Colby, e Shweder, 1996; Triandis e Berry, 1980), eu fiquei particularmente impressionada com o método etnográfico. Como reconciliar esta admiração do campo da psicologia com esta mea culpa e auto-flagelo que está ocorrendo no campo da antropologia cultural? Ao pensar sobre este problema, de repente me ocorreu que a metodologia da psicologia tem sido sucedidamente endereçada a alguns dos principais problemas identificados pela crítica pós-moderna na antropologia. Neste sentido eu acredito que este possa ser o motivo pelo qual a psicologia conseguiu arejar o (desviar da tempestade do) pós-modernismo melhor do que a antropologia. Por “desviar (arejar) melhor o pós-modernismo” estou me referindo a um sentido otimista de que a tradição da pesquisa empírica continuará a produzir ricas recompensas em nosso conhecimento sobre a natureza humana.

É claro, minha premissa pode ser instantaneamente rejeitada pelos antropólogos culturais, pois o empirismo em si mesmo está, claramente, sob ataque na crítica pós-moderna (Geertz, 1973). Conjuntamente ao empirismo, as generalizações científicas também têm sido objeto de escárnio. No curso deste ensaio, eu espero convencer meus leitores de que os bebês do empirismo e da generalização foram jogados fora junto às águas da banheira (senão a própria banheira – comentário do tradutor) da objetividade, homogeneidade cultural, fato, verdade, alteridade, e ciência enquanto empreendimentos apolíticos. Em suma, aceitar estes últimos seis pressupostos como alvos válidos da crítica pós-moderna não acarreta necessariamente um afastamento da metodologia empírica; tal fato não ocasiona necessariamente a redefinição da antropologia enquanto literatura, tanto quanto como ciência.

1 Publicado na American Anthropologist, New Series, Vol. 102, No. 3 (Setembro de 2000), p. 564 – 576.

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Uma análise da abordagem psicológica a alguns dos problemas extremamente importantes identificados pelo pós-modernismo podem prover idéias para como a antropologia cultural pode retornar a si mesma enquanto um empreendimento empírico, mais forte e sábia do que antes dos golpes da crítica pós-moderna. Entretanto, antes de iniciar meu argumento, devo endereçar duas questões principais que a complicam de modos bastante interessantes. O primeiro tópico tem a ver com o fato de alguns dos estímulos (entradas) e insights (percepções) do campo da psicologia já foram integrados nos sub-campos antropológicos da antropologia psicológica, antropologia lingüística, antropologia biológica, e antropologia aplicada. Muitos métodos empíricos da psicologia estão devidamente entranhados na antropologia psicológica (Bock, 1999; Hollan e Wellenkamp, 1994, 1996). A antropologia lingüística oferece métodos explícitos e um novo arcabouço de técnicas que preservam dados concretos e as enunciações dos sujeitos em face da crítica pós-moderna (Duranti, 1997). Na antropologia biológica, a antropologia possui uma causa em comum com a psicologia, lembrando à antropologia do substrato biológico do comportamento humano e desafiando o dualismo da biologia e da cultura (questões que não serão abordadas neste ensaio). Na antropologia aplicada, uma série de livros (Schensul, e LeCompte, 1999) tratam a etnografia como um método empírico que pode ser descrito, aprendido e ensinado. Muitos destes estímulos (entradas) que parte de dentro da antropologia, igualmente constituem respostas empíricas construtivas à crítica pós-moderna.

Entretanto, no âmbito da antropologia estas são vozes minoritárias, e não esta claro se estas vozes tem sempre sido ouvidas pela maioria pós-moderna dos antropólogos culturais; além disso, mesmo no âmbito dos sub-campos da antropologia psicológica, lingüística, biológica e aplicada, há muitos para quem a pesquisa empírica tem sido descarrilada pela pesquisa pós-moderna (D’Andrade, 1999). Se esta minoria de vozes tivesse recebido mais atenção pela antropologia cultural e a antropologia como um todo, a crítica pós-moderna bem poderia ter produzido um dano menor às investigações empíricas e científicas da cultura e das culturas. Neste ensaio, eu espero fornecer nova munição a estas vozes minoritárias dentro do campo da antropologia.

A segunda questão surge do fato de que a psicologia já teve suas próprias críticas pós-modernas (Gergen, 1990, 1995). Embora estas tenham sido uma modalidade menor dentro do campo da psicologia científica e empírica (e neste sentido a psicologia desviou [arejou] o pós-modernismo, muito melhor do que a antropologia), estas merecem sérias considerações. Igualmente, onde o pós-modernismo de Gergen (1985, 1991a, 1991b) foi mais influente na psicologia – na terapia familiar (Nichols e Schwartz, 1995) – sua influência pós-moderna teve um efeito construtivo na prática, sem ter qualquer impacto negativo no empreendimento científico.

Eu igualmente reconheço que estou pisando em ovos (numa fina camada de gelo) enquanto psicóloga. Na “descrição densa: em direção a uma teoria interpretativa da cultura”, o primeiro bloco da construção pós-moderna, Geertz (1973) não somente é anti-científico, mas é igualmente anti-psicológico, e desavergonhadamente. Entretanto, a dicotomia de Geertz entre a “ciência experimental na busca de uma lei” e “uma ciência interpretativa em busca da significação” (1973: 5) é falsa. A psicologia cultural, para não mencionar a antropologia lingüística e a antropologia psicológica, têm se demonstrado extremamente capazes de utilizar meios empíricos sistemáticos para investigar a criação (fabricação, formulação) e interpretação de significados enquanto um tema central da natureza humana (Greenfield, 1996).

A PERSPECTIVA OBJETIVA

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Na etnografia antropológica a cultura foi tradicionalmente tratada enquanto uma totalidade objetiva. Embora o etnógrafo fosse um observador participante, a etnografia final era escrita como se o observador fosse onisciente, despojado de quaisquer particularidades perspectivas. O modo principal através do qual isto se revelava consistia na formulação de declarações gerais (genéricas), sem quaisquer informações sobre a fonte das afirmações (declarações), ou a evidência para elas. Um exemplo (escolhido aleatoriamente) é a seguinte sentença da clássica etnografia de Guiteras-Holmes Perils of the Soul (1961: 10 – Riscos [perigos] da alma): “O que atualmente consiste no Estado de Chiapas pertenceu a uma capitania geral da Guatemala, uma das duas subdivisões administrativas da vice-realeza da Nova Espanha.” Guiteras-Holmes não faz menção a esta fonte de informação. Isto é particularmente estarrecedor por que imediatamente antes, elas nos informa que os dados históricos sobre a região que ela está discutindo “são escassos” (p. 10). Ainda assim, por causa da convenção antropológica, ela não considera necessário nos informar onde ela encontrou seus dados.

Assim como nenhuma fonte para suas declarações históricas é fornecida, nenhuma evidência sobre suas conclusões contemporâneas é dada. Por conseguinte, ao falar sobre as relações interculturais, ela afirma: “o comércio e a contratação de trabalhadores para o campo são responsáveis pela maioria das relações” (Guiteras-Holmes, 1961: 17 – 18), mas nós não recebemos indicações sobre as evidências para este tipo de afirmação. Esta convenção da realização de uma declaração genérica sem a apresentação da fonte histórica, ou evidência etnográfica, é seguida no decorrer livro e é geralmente verdadeira quando falamos sobre as etnografias clássicas.

As implicações metodológicas desta afirmação geral sem a evidência é de que os métodos não importam por que há uma verdade objetiva, homogênea e que perpassa toda a cultura. O pressuposto subjacente (mas nunca mencionado) é que não importa como você consegue suas informações; a conclusão será sempre a mesma por que é, objetivamente, verdade(ira).

A CRÍTICA DO PRESSUPOSTO DA OBJETIVIDADE NA ANTROPOLOGIA

Este pressuposto sobre a existência de um sistema cultural homogêneo objetivo, ou que possa ser observado externamente recebeu duras críticas na antropologia pós-moderna. Clifford (1986: 22), na introdução a um trabalho clássico em antropologia pós-moderna, Writing Culture (Escrevendo a cultura), escreve: “não há mais qualquer lugar perspectivo (cume da montanha) a partir do qual seja possível mapear as formas de vida humanas, nenhum ponto arquimediano a partir do qual representar o mundo.” A crítica pós-moderna chamou atenção às posições de gênero e políticas enquanto influências sobre como os dados são coletados e como se derivam conclusões, bem como de uma miríade de outras influencias em potencial. A noção é que todos os etnógrafos possuem um posicionamento particular a partir do qual eles trabalham; não obstante a noção de objetividade como se encontrando para além do “viés” de um ponto de vista (vantajoso) se torna simplesmente inválida.

Da perspectiva da antropologia lingüística, Duranti escreve:

No que diz respeito à etnografia, os problemas com o termo “objetividade” surgem de sua identificação com uma forma de escrita positivista que pretendia excluir o posicionamento subjetivo do observador, incluindo emoções, bem como atitudes políticas, morais e teóricas. Tal exclusão, em sua forma mais “purista” extrema, não somente é impossível de ser atingida, como também consiste num objetivo questionável, dado que produziria um registro muito empobrecido da experiência do etnógrafo (De Martino, 1961). Como se poderia ser capaz de dizer o que as pessoas estão fazendo sem, ao menos, se identificarem minimamente com seu ponto de vista? Poder-se-ia acabar dizendo que coisas como “as pessoas ficam de cócoras no

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chão, pegam seu alimento com suas mãos e o trazem a boca – e a isto elas denominam ‘alimentar-se’”. Como está óbvio neste exemplo, ao invés de serem “objetivas” e imparciais, explicações deste tipo podem ser facilmente lidas como se supusessem uma avaliação negativa de práticas locais. Igualmente implausível seria uma descrição que se identifica plenamente com a perspectiva nativa e ao mesmo tempo não o faz, e que de algum modo (estilístico), reflete a percepção do pesquisador sobre os eventos descritos... Uma ciência das pessoas, uma ciência humana, não pode, senão somente explorar a habilidade dos pesquisadores em se identificar, e ter empatia (empatizar) com as pessoas que eles estão estudando. Isto implica que existe na etnografia certo elemento lúdico (um gracejo) que consiste na alternância do familiar para o estranho, e vice-versa, o estranho em familiar (Spiro, 1990).

A CRÍTICA DO PRESSUPOSTO DA OBJETIVIDADE NA PSICOLOGIA

Kenneth Gergen, um líder pós-moderno no campo da psicologia, escreve que: “se nossas convenções de escrita são, por sua vez, dependentes de acordos sociais, e estes acordos carregam consigo diversos vieses ideológicos, então toda escrita científica – todas as nossas tentativas em estabelecermos a objetividades – são essencialmente produtos de acordos sociais saturados de valor” (1990: 28). Esta linha argumentativa conduz Gergen à conclusão de que o tema de investigação da psicologia desapareceu (dissipou-se):

O pós-modernismo suscita questões fundamentais ao pressuposto de que nossa linguagem sobre o mundo opera como um espelho deste mundo. Ao invés disso, o discurso sobre o mundo opera amplamente com base em convenções sociais, que, por sua vez, são cristalizados nos termos de várias regras retóricas e opções (tais como regras sobre o modo adequado de contar histórias). Por conseguinte, presumir a existência independente de um tema de investigação, refletido no discurso, seria envolver-se numa objetificação não autorizada do discurso [1990: 29]

A crítica da objetividade de Gergen conduz à “marginalização do método” em psicologia:

Sob o modernismo, a metodologia foi submetida a uma apoteose virtual (potencial). A metodologia era o meio de se chegar à verdade e à luz, e, por conseguinte, à salvação... sob o pós-modernismo, entretanto, a metodologia perde sua posição cobiçada. Sob o pós-modernismo os métodos são percebidos enquanto dispositivos de justificação errôneos. Eles erroneamente operam como autorizações verdadeiras para proposições particulares, quando as proposições não são fundamentalmente capazes de “portar a verdade” [1990: 30].

A RESPOSTA DA ANTROPOLOGIA À CRÍTICA DA OBJETIVIDADE

Sim, a metodologia foi destronada na antropologia (D’Andrade, 1999). Geertz (1973) (fundamentado nas noções psicológicas de uma era precedente) deu um golpe corporal total na definição operacional e na metodologia sistemática. Daí é que surgem etnografias conceitualmente importantes (tais como a de Tsing, 1993) que inovam com idéias importantes (e.g., interação intercultural), mas que ainda assim afrouxaram os laços entre os dados e a análise, ao ponto onde os dados e a análise viajam (caminham, se transportam) por caminhos relativamente independentes (Marcus, 1998). Esta desconexão é o resultado natural do princípio de que as técnicas metodológicas e procedimentos são irrelevantes (Geertz, 1973).

Outra resposta ainda consiste em passarmos dos pressupostos da objetividade em uma etnografia tradicional (e.g., Dumont, 1972) para uma descrição explicita da própria relação e perspectiva do etnógrafo com os sujeitos de estudo em uma mesma comunidade (e.g.,

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Dumont, [1978], 1992). (Esta estratégia responde não somente à crítica objetiva, mas igualmente a critica da “alteridade”, um tópico posterior de discussão).

POR QUE A PSICOLOGIA TEM SIDO MENOS VULNERÁVEL À CRÍTICA DA OBJETIVIDADE: MÉTODOS DE OPERACIONALIZAÇÃO E DE DESCRIÇÃO

A despeito das predições de Gergen, a metodologia não foi destronada na psicologia. De fato, é irônico que a metodologia tão duramente criticada por Geertz e Gergen tornou a psicologia menos vulnerável à crítica da objetividade. Talvez isto seja um dos motivos pelos quais a hegemonia da metodologia tenha sobrevivido tanto na educação nos níveis da graduação e pós-graduação, virtualmente ilesa a critica de Gergen. O argumento em favor da metodologia pode ser remontado à história da psicologia.

No nível filosófico, a psicologia científica foi fundada sob o princípio de que um construto psicológico não existe para além de uma maneira específica na qual este possa ser mensurado. Por exemplo, uma definição clássica de inteligência no campo da psicologia tem sido “a inteligência é o que os testes de inteligência mensuram.” Esta noção é uma intrinsecamente relativista. A idéia é que, se você modificar seu teste, você igualmente modifica seu conceito de inteligência.

Na psicologia, os pesquisadores sempre são obrigados a descrever como eles obtiveram seus dados e como eles procederam de seus dados à suas conclusões. A seção de métodos obrigatórios em um artigo de psicologia inclui a descrição dos sujeitos que forneceram os dados, as operações que foram utilizadas para enunciar os dados, o sistema que foi utilizado para interpretar, ou codificar os dados, e as estatísticas que foram empregadas para analisar os dados. Embora a psicologia, mais ainda do que a antropologia, tenha reificado o observador objetivo, ela não obstante, requere a explicitação dos procedimentos. Implicitamente, a descrição dos procedimentos efetivamente localiza a perspectiva do pesquisador em alguma medida. Por exemplo, nós sabemos se o observador está por detrás de uma câmera de vídeo, tomando notas sobre uma situação que ocorre naturalmente, ou está carregando uma entrevista a partir dos contextos da vida cotidiana.

Em essência o pressuposto dentro da psicologia – de que os resultados e conclusões são intrinsecamente relativos aos métodos utilizados – poupou a psicologia do grau de dano sofrido pela antropologia nas mãos da crítica à objetividade. Isto não significa dizer que a psicologia seja metodologicamente invulnerável. Sua reificação da objetividade é uma rachadura em uma armadura contra a crítica pós-moderna (e conduz ao etnocentrismo inconsciente tão bem descrito por Fish [2000] em seu artigo que acompanha este). Entretanto, por causa de sua relatividade metodológica e seu tratamento auto-consciente de seus métodos, a psicologia, enquanto disciplina, tem estado livre para desenvolver novos métodos a fim de lidar com subjetividades variadas. Uma boa ilustração da psicologia trans-cultural é a colaboração de pesquisadores de cada uma das culturas sendo comparadas em um estudo trans-cultural (e.g., Stevenson et al., 1985). Esta técnica permite que a pesquisa tenha potencialmente tanto uma perspectiva externa, quanto interna, sobre cada uma das culturas em comparação.

COMPARAÇÃO POTENCIAL À ANTROPOLOGIA

No campo da educação (ou talvez nós poderíamos denominar este campo de antropologia aplicada), um uso mais radical de múltiplas perspectivas foi desenvolvido por Tobin, Wu, e Davidson (1989); a etnografia multivocal. A etnografia multivocal consiste numa etnografia composta por muitas vozes, ao invés da voz exclusiva do antropólogo. O método da etnografia vocal de Tobin, Wu e Davidson se utiliza de dados gravados em fitas de

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vídeo. Pelo fato de tais dados serem permanentes (diferentemente das observações mais tradicionais), eles podem ser vistos e interpretados por múltiplos grupos (as múltiplas vozes). Tobin, Wu, e Davidson gravaram fitas de vídeo sobre a atividade em três escolas, uma na China, uma no Japão e uma nos Estados Unidos. Professores e pais das três culturas viram e comentaram as fitas dos três países. Por conseguinte, os dados de cada país foram interpretados tanto das perspectivas dos insiders, quando dos outsiders. Note que a partir deste método a etnografia típica na qual um observador Ocidental estrutura a cultura Oriental enquanto objeto de estudo é mantida, mas igualmente virada de ponta cabeça pelo acréscimo da reciprocidade. O observador Oriental agora não somente tem a oportunidade de interpretar sua própria cultura, mas de igualmente interpretar a cultura Ocidental (além de uma segunda cultura Oriental). Embora Tobin, Wu e Davidson tenham desenvolvido seu método e metodologia no contexto de um estudo trans-cultural sobre práticas educativas e seus valores, este é um exemplo de um novo tipo de etnografia que é potencialmente aplicável a qualquer uma das arenas tradicionais da etnografia antropológica.

O exemplo precedente é denominado de etnografia, mesmo que se utilize das tecnologias de vídeo. Mas a antropologia poderia fazer qualquer uso dos pressupostos metodológicos e convenções mais tradicionais provindos da psicologia? Creio que sim. O etnógrafo poderia nos dizer o que fez para ganhar um conhecimento que o conduziu a uma conclusão particular. Por exemplo, quando Guiteras-Holmes diz (1961: 24): “aquele que está distante de casa expressa seu desejo de retornar”, um pesquisador psicológico poderia sugerir que o antropólogo nos dissesse com quem ela conversou, ou observou sob determinadas circunstâncias. Por exemplo, a antropóloga derivou suas conclusões a partir de entrevistas, ela as aprendeu enquanto uma partícipe quando estava viajando longe de seu lar, convivendo conjuntamente de seus informantes?

No âmbito da antropologia, Warren (1996) notou que a antropologia necessita acrescentar uma relação entre as notas de campo e os trabalhos publicados. A psicologia já estabeleceu uma distinção paralela entre os dados (freqüentemente quantitativamente encapsulados), codificação (onde for relevante), e as discussões dos resultados. A implicação obtida através da psicologia é que a elaboração de amostras (samples) das notas de campo consistiria num acréscimo valioso à etnografia, uma descrição dos princípios que orientaram a produção das notas, e, mais importante, uma descrição do método através do qual as notas de campo foram convertidas em conclusões etnográficas e em escrita. A fascinante etnografia de Seymour (1999) com base em um trabalho de campo extensivo e referente a mudanças sociais na Índia é impecável neste respeito e, interessantemente, representa uma contribuição ao subcampo da antropologia psicológica.

Outro exemplo instrutivo provém de Bambi Schieffelin, uma antropóloga lingüística que tem sido metodologicamente influenciada por seu treinamento na psicologia (realizado sob a orientação de Lois Bloom no Departamento de Psicologia do Desenvolvimento na Faculdade Teachers [de Professores], da Universidade de Colúmbia.). Na etnografia de Schieffelin (1990) sobre a socialização da linguagem das crianças Kaluli, ela inclui uma seção de 12 páginas sobre “método e interpretação” (p. 24 – 36). Os títulos das subseções por si mesmos provêm às evidências de que ela não somente abarcou todo o território englobado pela metodologia psicológica, mas que, além disso, adaptou as categorias metodológicas sobre a psicologia dos sujeitos, os procedimentos e analises de dados à comunidade estudada e aos tópicos de pesquisa. Os títulos de suas subseções são tais como se segue: “selecionando famílias e contextos”, “coletando os dados narrativos (discursivos) e preparando a anotação dos roteiros”, “a leitura dos transcritos e a interpretação dos exemplos”, “alguns pensamentos sobre o processo de escrita desta etnografia”. Esta última sessão parece dever sua existência mais à noção de escrita da cultura de Clifford e Markus do que à psicologia. Entretanto, é interessante que uma vez que a noção da escrita da cultura for integrada a uma metodologia

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mais, ou menos, auto-consciente, ela não conduz ao auto-flagelo de “como será que nós poderemos saber alguma coisa em algum momento? Nós estamos desesperançosamente presos (imobilizados) em nossas perspectivas limitadas e enviesadas.” Ao invés disso, ela conduz a uma descrição integrada dos métodos que constituem um aspecto importante da “perspectiva” do estudo de Schieffelin.

Ao mesmo tempo, tal descrição conduz a uma modéstia apropriada (avaliação modestamente apropriada) do próprio trabalho. O etnógrafo teóricamente onisciente se foi. Em seu lugar está o etnógrafo, ou sua relação com a cultura e a avaliação permitida por esta relação. Schieffelin escreve (1990: 23 – 24):

Enquanto mulher, eu tive o acesso privilegiado às atividades das mulheres e crianças. Nenhum homem poderia sentar-se nas seções femininas, ou banhar-se com as crianças pequenas. Como mãe, eu era percebida como uma adulta, uma que partilhava de outras perspectivas com as outras mulheres. Ser uma observadora imparcial não era possível, tampouco desejável. Os Kaluli me incorporaram ao seu mundo social e seu sistema social, e de acordo com as minhas várias relações recebi nomes de parentesco e de relacionamento utilizados pelos amigos.

Este parágrafo é importante, pois ele demonstra que a particularidade de uma perspectiva não é necessariamente negativa; tais conotações negativas estão contidas no termo “viés”. Entretanto, a particularidade da perspectiva pode ser considerada um forte ponto positivo, tal como o foram o gênero feminino e a maternidade no estudo da socialização da linguagem entre as crianças de Schieffelin.

Dentro da antropologia cultural e psicológica, um novo gênero se desenvolveu, a história de vida individual. Este gênero, tal como no belamente trabalhado Mulheres Traduzidas (Translated women) escrito por Ruth Behar (1993), torna seus métodos e fontes extremamente claros. Todo o livro de Behar consiste em citações editadas de conversas realizadas na mesa da cozinha com Esperanza, o pseudônimo de seu sujeito. Esta é uma maneira de estudar a cultura por meio de um estudo de caso particular que produz uma forte conexão entre seus dados e conclusões.

A CULTURA COMO UNIDADE TOTALITÁRIA

Enquanto que a última sessão lidou com a crítica do antropólogo onisciente, esta seção lida com uma crítica do informante onisciente. O pressuposto tradicional no âmbito da antropologia tem sido de que a cultura é uma totalidade homogênea, unitária, e, possivelmente, superorgânica. Cada membro da cultura partilha dos mesmos conhecimentos culturais. Um pressuposto amplamente derivado de Durkheim: “que subjaz boa parte da prática do trabalho de campo tradicional [é] que os antropólogos não estão preocupados com os indivíduos enquanto tais, mas meramente com seu funcionamento qua (enquanto) portadores de uma cultura comum” (Wassmann, 1995: 176). Na medida em que todos partilham de uma cultura em comum, os informantes são tanto intercambiáveis, quanto oniscientes, vis-à-vis sua própria cultura. Conforme colocou Sapir ([1932] 1949: 509):

É o que todos os indivíduos de uma sociedade possuem em comum em suas relações mútuas que se supõe constituir o verdadeiro tema (assunto de investigação) da antropologia cultural e da sociologia. Se o testemunho de um indivíduo é estabelecido como tal, como freqüentemente ocorre em nossas monografias etnográficas, não é por causa de um interesse no indivíduo em si mesmo enquanto um único organismo desenvolvido com suas idéias, mas em sua tipicalidade pressuposta para a comunidade enquanto um todo.

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A CRÍTICA DO PRESSUPOSTO ANTROPOLÓGICO DE QUE A CULTURA É UMA TOTALIDADE UNITÁRIA

O próprio Sapir percebeu os perigos desta abordagem:

É verdade que há muitas declarações em nossas monografias etnológicas que, por tudo que elas apresentam em termos gerais, efetivamente jazem na autoridade de uns poucos indivíduos, ou até mesmo de um indivíduo, que sustentou o testemunho de um grupo como um todo. Informações sobre sistemas de parentesco, ou rituais, ou sistemas tecnológicos, ou detalhes sobre a organização social, ou as formas linguísticas não são comumente avaliados pelo antropólogo cultural enquanto um documento pessoal. Ele sempre espera que o informante individual esteja suficientemente próximo às compreensões e intenções de sua sociedade relatando-as monotonamente, não obstante eliminando a si mesmo enquanto um fator no método de pesquisa. Todos os pesquisadores de campo realistas sobre os costumes nativos estão mais, ou menos, cientes dos perigos de tais pressupostos e é suficientemente natural que os esforços geralmente são feitos com vistas à “checagem” das declarações recebidas a partir de indivíduos singulares. Entretanto, isto nem sempre é possível, e desta feita, nossas monografias etnológicas apresentam um retrato caleidoscópico com graus variados de generalidade, frequentemente sob a capa de um volume único. [(1932) 1949: 509 – 510].

A noção do informante onisciente continua a ser questionada dentro da antropologia. De fato, um artigo de Wassmann (1995) foi intitulado “O réquiem final para o informante onisciente?” Lawrence (1995: 216), em sua resposta à Wassmann, argumenta que todos os informantes que possuem algum conhecimento especializado, são especialistas em algum campo; Entretanto, nenhum destes é onisciente, “conhecedor de tudo e revelador de tudo”.

Generalizando este ponto, Ochs (1994), proveniente da perspectiva disciplinar da antropologia linguística e da análise do discurso, nota que diferentes membros de uma cultura possuem diferentes parcelas de conhecimento cultural; Nenhuma pessoa possui a totalidade. Wassman (1995: 176) escreve que “torna-se necessário o estudo dos indivíduos, ou categorias das pessoas em seu próprio direito [in its own right – em seus próprios termos], do que meramente enquanto subunidades culturais.” Este ponto é particularmente aplicável às crianças que estão no processo de serem induzidas (introduzidas) em uma cultura (Zukow, 1989) e assim, por definição, possuem conhecimentos culturais incompletos.

De fato, a parcialidade da perspectiva dos sujeitos de estudo paraleliza a parcialidade da perspectiva do etnógrafo. Assim como Schieffelin foi a lugares que nenhum etnógrafo do sexo masculino poderia ter ido, da mesma maneira as mulheres Kaluli iam a lugares que nenhum Kaluli do sexo masculino poderia ir. As mulheres Kaluli são especialistas de parcelas da cultura sob as quais os homens Kaluli são ignorantes e, é claro, vice-versa. Outras variáveis sociológicas para além do gênero desempenham sua parte, tais como a posição econômica e a posição social.Cada um destes posicionamentos sociais privilegia certos aspectos tanto comportamentais, quanto relativos ao conhecimento. Então acrescente-se às diferenças que emanam das variáveis para a estratificação social, as variáveis emanando das diferenças temperamentais e variáveis da personalidade. Todos estes fatores são fontes de diferenciação intra-cultural.na etnografia tradicional, todos estes fatores afetam os informantes do etnógrafo e o conhecimento e o comportamento que estes são capazes de demonstrar (apresentar, desempenhar – display) ao antropólogo. Ainda assim como pontua Clifford (1986) é o raro etnógrafo que descreve os informantes individuais.

Minha própria experiência de campo em Zinacantán, Chiapas, México, ilustra como a posição social de um informante pode não somente facilitar a metodologia, mas efetivamente influenciar os resultados de pesquisa. Em 1969, eu fui até a comunidade Maya de Zinacantán, como parte do Projeto Chiapas de Harvard. Dois antropólogos, Evon Vogt,o diretor do

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projeto, e George Collier, um aluno (alumnus) do projeto, selecionaram um informante para mim. Seu nome era Xun Pavlu, eles pensaram que ele seria bom comigo, e ele foi. Minhas necessidades eram diferentes daquelas de um etnógrafo. Enquanto pesquisadora em psicologia cultural e do desenvolvimento, eu necessitava de vários sujeitos para meus experimentos. Xun não proveu dados para mim; ele me proveu sujeitos. Ele utilizava sua influência política e sua ampliada rede familiar extensa e compadradzgo (co-padrinho, compadre/compadrio – em português) a fim de persuadir os pais a deixarem as crianças participarem e a eles próprios participares (da investigação). Sem esta influência, os mais de cem sujeitos por ele recrutados (convocados) (de uma vila de aproximadamente quinze mil pessoas) não teria sido disponibilizados (não estariam disponíveis).

Eu retornei ao povoado de Xun, Nabenchauk em 1991 para estudar os efeitos da transição econômica da agricultura para o comércio e empreendedorismo que estavam ocorrendo desde que parti em 1970 (Greenfield, 1999; Greenfield e Childs, 1996; Greenfield et al., 1997). Eu queria estudar os descendentes dos meus antigos sujeitos objetivando avaliar os efeitos da mudança histórica, não contaminados por fatores estranhos. Xun, mais uma vez, tornou a disponibilizar sua rede, como havia feito há duas décadas. O que se tornou claro é que de todas as famílias em Nabenchauk, a família Pavlu era a mais envolvida no comércio e empreendedorismo. Todos os sete filhos de Xun, e todos, menos um de seus três genros estavam envolvidos no comércio, ou empreendendorismo, ora como donos de caminhões e vans, ou como seus motoristas. O genro remanescente estava significativamente no aspecto consumidor do comércio. Ele possuía um trabalho técnico em uma fabrica em Tuxtla Gutiérrez, e não obstante, possuía certa quantia de renda disponível para produtos de consumo. Por que os membros da família Pavlu eram líderes comerciais na comunidade, nossa amostra incluía aquelas famílias que tinham sido mais afetadas pelas tendências históricas de pertinência ao estudo. Se a hipótese tivesse mérito, esta seria a amostra que o demonstraria.

Como vimos em relação ao etnógrafo, este exemplo demonstra como a posição social do informante pode possuir um efeito positivo sobre a pesquisa se a posição for uma que facilite o estudo do problema peculiar sendo investigado. Tal como no caso do etnógrafo, a natureza da posição social do informante tanto o limita, quanto o facilita. Qual resultado ocorre em um caso particular depende da relação entre a posição do informante e o problema em estudo. Se eu quisesse ter estudado a socialização nas famílias mais tradicionais de Nabenchauk, por exemplo, a posição de Xun Pavlu teria sido um entrave, ao invés de uma ajuda.

ENQUANTO UMA CIÊNCIA DOS INDIVÍDUOS, A PSICOLOGIA NÃO FOI AFETADA PELA CRÍTICA DA TOTALIDADE UNITÁRIA (UNIFICADA)

Por que a unidade de análise na psicologia é o indivíduo, a psicologia não tem sido suscetível à crítica da totalidade unificada. De fato, o estudo das diferenças individuais consiste em uma boa parcela e da prática da psicologia. O estudo sobre a influência dos fatores sociais tais como classe e posição econômica, igualmente possui uma tradição no interior da disciplina (embora suas origens possam provir da sociologia). Na seção de métodos de um artigo de psicologia, as características que compõem o horizonte (pano de fundo) de uma amostragem, incluindo-se as extensões das variáveis pertinentemente descritíveis, frequentemente são apresentadas; o papel do gênero, classe social, e educação sobre o comportamento são frequentemente analisados. Não obstante, eu concordo com Fish (2000) que a análise é frequentemente superficial; uma questão importante é se é possível combinar a profundidade etnográfica com uma amostragem não enviesada de diferenças intra-culturais, e esta questão será discutida na próxima sessão.

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A APLICAÇÃO POTÊNCIAL À ANTTROPOLOGIA

A principal aplicação da psicologia ao endereçar a crítica da totalidade unitária consiste em tornar conhecido em seus próprios escritos exatamente quem são os informantes nos termos de suas características individuais e posições sociais. Uma segunda aplicação consiste em se envolver em algum tipo de amostragem sistemática se o objetivo de um estudo consiste em explanar a totalidade cultural, ao invés da cultura tal como experimentada por uns poucos indivíduos. A noção metodológica de amostragem (da psicologia, ou da sociologia) desafia a idéia da etnografia, com seus usos clássicos de uns poucos informantes. Entretanto, o antropólogo e o informante frequentemente desenvolvem relações bastante íntimas. Este não é o caso dos psicólogos e seus inúmeros sujeitos. Consequentemente podem haver compensações de profundidade e amplitude que necessitam ser cuidadosamente considerados e controlados.

Dasen (um psicólogo trans-cultural) e Wassmann (um antropólogo cultural) recentemente fizeram alguns avanços nesta área de problemas integrando conscientemente antropologia e psicologia. Eles desenvolveram uma abordagem de três estágios a sua pesquisa em antropologia cognitiva (Wassman e Dasen, 1994). O Estágio I é etnográfico; Então este forma a base (o fundamento) para a observação das atividades cotidianas (Estágio II) e para o desenvolvimento de experimentos culturalmente relevantes a serem aplicados a uma diversidade de sujeitos (Estágio III). Entretanto, até mesmo na fase etnográfica, Wassen e Dasen utilizam uma técnica de amostragem que sustenta a marca da psicologia. Eles não utilizam um, mas múltiplos informantes, e eles selecionam seus informantes sistematicamente com vistas a efetivação de uma amostragem (levantamento) dos diferentes papéis sociais e posições sociais existentes em uma comunidade (Wassmann, 1995)2.

FATO VS. INTERPRETAÇÃO

Os etnógrafos costumavam pensar que eles estavam surgindo de seus estudos com fatos. Atualmente, eles se sentem diminuídos pelo aprendizado de que eles estão surgindo (emergindo) com interpretações. Denzin (1996), por exemplo, escreve sobre uma crise das representações (representativa – representational). Esta crise surge do fato de que “os pesquisadores não podem mais captar diretamente a experiência vivida; tal experiência, segundo seu argumento, é criada no texto social escrito pelo pesquisador” (Denzin, 1996: 127). Nas palavras de Clifford: “cada versão de um ‘outro’, seja lá onde for encontrado, é igualmente a construção de um ‘self’” (Clifford, 1986: 23).

A CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA

Estas criticas são desencorajadoras. Elas implicam que um pesquisador não possui escapatória de seu, ou sua, estrutura (módulo) de observação (ou análise – framework). Mesmo quando se tenta compreender uma nova cultura, não se está meramente construindo um edifício que é um espelho de si mesmo. Este parece um circulo fechado. Entretanto, pelo fato de que a psicologia possui uma longa tradição no estudo de subjetividades variadas, este não é necessariamente um problema sério. De fato, a construção do significado é central a disciplina em surgimento a qual denominamos de psicologia cultural (Bruner, 1990; Shweder, 1990). Nós podemos abrir o circulo fechado vendo como os sujeitos nos interpretam, e não

2 Ver igualmente Strauss (1999) para uma abordagem importante da antropologia psicológica desenvolvida a fim de lidar realisticamente com a natureza não-homogênea da cultura.

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meramente como nós os interpretamos. Assim como nós construímos a nós mesmos por meio do estudo de nossos sujeitos, nossos sujeitos constroem a si mesmos estudando-nos.

Há alguns exemplos maravilhosos de interpretações reciprocas na psicologia cultural. O exemplo clássico provém de Glick, Cole, Gay, Glick e Sharp (1971) realizaram uma tarefa de distribuição de objetos na Libéria, onde estas foram apresentadas aos sujeitos Kpelle. Havia vinte objetos que foram divididos uniformemente nas categorias linguísticas de alimentos, implementos, recipientes alimentícios, e roupagem. Ao invés de realizarem distribuições taxonômicas (categóricas) esperadas pelos pesquisadores, os sujeitos persistentemente realizavam emparelhamentos (combinações de pares) funcionais (Glick, 1968). Por exemplo, ao invés de distribuírem os objetos em grupos de instrumentos e alimentos, os sujeitos escolheriam uma batata e uma faca conjuntamente por que “você pega a faca e corta a batata” (Cole et al., 1971: 79). De acordo com Glick (1968), os sujeitos frequentemente justificavam a combinação em pares alegando que “um homem sábio poderia proceder apenas desta, ou daquela maneira” (p. 13). Totalmente irritados, “os pesquisadores finalmente questionaram: ‘E como um bobo (idiota) o faria?’ O resultado foi um conjunto de categorias linguisticamente agradáveis – quatro delas com cinco itens cada” (p. 13). Em suma, o critério dos pesquisadores para o comportamento “inteligente” era o critério dos sujeitos para “idiota”; o critério dos sujeitos para o comportamento “sábio”, era o critério dos pesquisadores para “débil (idiota)”. Aqui, tanto o sujeito, quanto o pesquisador tiveram a chance de interpretar um ao outro. Cada interpretação fornecia tanta informação sobre o sistema de valores culturais do interpretador, como igualmente fornecia sobre a natureza do mundo.

Este exemplo é citado e descrito em uma miríade de artigos. Este é instantemente reconhecível como capaz de demonstrar algo profundo sobre a definição Kpelle de inteligência, bem como sobre a relatividade cultural de nossa própria definição. Ainda assim a oportunidade para uma interpretação reciproca é rara na psicologia, tal como o é para a antropologia. Não obstante, é um método que poderia ser generalizado, e utilizado tanto na etnografia, quanto na psicologia. Ao se estudar múltiplas subjetividades sistematicamente em um estudo trans-cultural, o pesquisador é capaz de escapar do circulo hermenêutico.

VERDADE VS. CONSTRUÇÃO

A posição tradicional, ou moderna, é que a ciência requere a verdade e que o etnógrafo descobrirá a “verdadeira cultura” através de métodos que devem sua honra à extensão temporal (time honored methods) característicos da observação participante. A noção geral sobre o conhecimento cultural, como outros tipos de conhecimento, é que este “deveria refletir, retratar, ou de alguma maneira corresponder ao mundo tal como este deveria ser sem o conhecedor (ou aquele que conhece) [leia-se: o antropólogo] (Von Glasersfeld, 1984: 3).

CONSTRUTIVISMO: A CRÍTICA PÓS-MODERNA DA VERDADE

A “verdade” foi radicalmente desconstruída. Na antropologia, assim como em muitos campos, o conhecimento se tornou um conjunto de “meras convenções sociais desenvolvidas pelas pessoas com suas próprias perspectivas e motivos enviesados” (Nichols e Schwartz, 1995: 119). Por conseguinte, nas palavras de Geertz: “O que nós denominamos de nossos dados consistem realmente em nossas construções sobre as construções das outras pessoas sobre aquilo que elas e seus compatriotas fazem, ou pretendem fazer” (1973: 9).

A RESPOSTA DA ANTROPOLOGIA À CRÍTICA

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A resposta dominante tem consistido na solicitação de que o pesquisador explique estes vieses e motivos. Um exemplo bem conhecido está no Reino da rainha de diamante (The Realm of the Diamond Queen) de Tsing (1993). O perigo aqui, é que o número de páginas devotadas ao estudo da população pode ser pequeno em relação ao número de páginas devotadas ao pesquisador e sua cultura de origem. Duranti (e-mail encaminhado ao autor, em 27 de Junho de 1998) coloca o dilema de outra maneira: “Como nós contamos histórias sobre outras pessoas sem fingir que não estávamos lá?”

A RESPOSTA DA PSICOLOGIA À CRÍTICA

O construtivismo desempenhou um importante papel na psicologia, especialmente na psicologia do desenvolvimento e na terapia familiar. Por exemplo, “com este pressuposto pós-moderno – de que não existem realidades, apenas pontos de vista – provém um interesse sobre como as narrativas que organizam as vidas das pessoas são geradas. As psicologias pós-modernas preocupam-se com como as pessoas produzem significações nas suas vidas; como elas constroem a realidade” (Nichols e Schwartz, 1995: 119 – 120). Um exemplo desta abordagem na antropologia psicológica jaz nas explorações de Hollan e Wellenkamp (1994, 1996) sobre a produção de significações em uma comunidade Toraja da Indonésia. Em outras palavras, ao invés de enfatizar a produção de significações do pesquisador (tal como o faz a antropologia cultural) em resposta ao pós-modernismo, as abordagens psicológicas enfatizaram a produção de significações do sujeito e considerou esta atividade como um objeto de estudo (e.g., Bruner, 1990). De fato, o construtivismo tem estado no centro do estudo do desenvolvimento cognitivo, desde Piaget (1954).

Há outra diferença radical entre a resposta da psicologia e a resposta da antropologia ao construtivismo. Enquanto que a antropologia tem visto o construtivismo como solapando a antropologia como ciência, a psicologia reconheceu que todas as ciências, nenhuma delas sendo barrada, são construções narrativas. Por exemplo, de Shazer questiona “mas os físicos não contam histórias sobre partículas subatômicas e buracos negros, de modo que eles podem fazer com que uns e outros saibam sobre tais coisas? Estas histórias são ciência, ou narrativa?” (1991: 49). Se todas as ciências são construções narrativas, então, do ponto de vista da psicologia enquanto um campo de pesquisa, a construção humana da realidade provê razões insuficientes que um indivíduo se declare enquanto pertencendo às humanidades, do que pertencendo às ciências sociais.

A psicologia apresentou outra resposta ao construtivismo: mover-se da construção enquanto uma atividade individual para construção enquanto uma atividade interindividual (Vygotsky, 1978). De fato, a construção social é uma parte importante tanto da psicologia do desenvolvimento e da terapia familiar (Nichols e Schwartz, 1995). O campo da terapia familiar adquire sua aparência, segundo Gergen (1985, 1991a, 1991b) da ênfase sobre o “poder da interação social na geração de significações às pessoas” (Nichols e Schwartz, 1995: 120). A construção social é igualmente a base para o desenvolvimento primário (inicial) das convenções sociais entre e mãe e criança (Bruner, 1983) e a posterior criação de normas partilhadas entre as crianças (Piaget [1932] 1965). Novamente, os estudos empíricos destas construções têm constituído uma importante parte do campo da psicologia do desenvolvimento.

APLICAÇÃO NA ANTROPOLOGIA

Geertz (1973: 12) nota que a “cultura consiste de estruturas socialmente estabelecidas de significação.” Como estas estruturas se estabelecem através da interação? A antropologia pós-moderna enfatiza a criação de significações através de um processo de criação de

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significados por meio de um processo de negociação. Os processos interativos através dos quais as significações são negociadas são um principal foco empírico da antropologia linguística (Greenfield et al., 1998). Estes processos poderiam igualmente se tornar um foco empírico para a antropologia cultural.

Eu creio que tem havido uma barreira a perspectivação do construtivismo na antropologia. Esta barreira é a ênfase conceitual sobre a construção individual na forma da escrita e leitura:

O leitor traz a tarefa de ler todas as suas experiências prévias, todos os seus usos prévios das palavras e conceitos, que contaminam o que ele lê. Por isto, os desconstrucionistas utilizam o termo “ler erroneamente”. Visto a partir desta perspectiva, não é possível ler, apenas pode-se ler erroneamente. Todos os textos permitem um conjunto de leituras errôneas em potencial [de Shazer, 1991: 50 – 51].

Sim, isto é geralmente verdadeiro para textos escritos. Mas o discurso falado, com seu componente interativo, é frequentemente um processo no qual aqueles que interagem constrangem e constroem as significações uns dos outros. Este processo, é, não obstante, muito menos solipsista do que a comunicação entre escritor e leitor. É irônico que os antropólogos culturais pós-modernos tenham focado em suas próprias construções individuais, ai invés de estudarem as construções sociais de seus sujeitos.

A ANTROPOLOGIA ENQUANTO UMA CIÊNCIA DA ALTERIDADE

A antropologia foi concebida como a ciência da alteridade (Trouillot, 1991). “Desde o início do século XIX até a Segunda Grande Guerra a agenda primária da antropologia cultural e social consistia na documentação da vida de povos não letrados” (D’Andrade, 1999: 2). Claramente a agenda consistia num modo das pessoas letradas das sociedades Ocidentais conhecerem e compreenderem os povos iletrados das sociedades não-Ocidentais.

A CRÍTICA DA ANTROPOLOGIA COMO A CIÊNCIA DO OUTRO

De acordo com a crítica pós-moderna, há dois problemas com esta agenda. A primeira é a de que é impossível conhecer o Outro, pois o Outro possui sua própria perspectiva única (Geertz, 1983). Dado que isto não constitui uma perspectiva objetiva e que é impossível conhecer outra, os dados e objetos de estudo da antropologia cultural desapareceram. Isto conduziu a um “relativismo epistemológico” (não há um fundamento real para o conhecimento) (D’Andrade, 1999: 8).

De acordo com a crítica pós-moderna, o segundo problema desta agenda é que o estudo da Alteridade exagera as diferenças entre as pessoas sob estudo e o pesquisador. Este exagero cria o que Tsing denomina de “o precipício fantasiado entre o Ocidente e seu Outro” (1993: 13). Na perspectiva de Tsing, a retratação de tal precipício possui uma dimensão política importante; ela expressa uma relação do colonizador com o colonizado. (Eu retorno à dimensão política da crítica pós-moderna ao final deste ensaio).

POR QUE A PSICOLOGIA TEM SIDO MENOS VULNERÁVEL A ESTA CRÍTICA?

A psicologia surgiu como a ciência do self (da ipseidade, do mesmo, de si). Uma das psicologias originais surgida na Alemanha foi o introspeccionismo. Enquanto que o introspeccionismo foi posteriormente banido por sua falta de “objetividade”, a psicologia permaneceu basicamente sendo a ciência de nós mesmos, e não a ciência dos outros. É claro que, em combinação com as ambições universalistas da psicologia (enquanto a ciência de

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todos os seres humanos), esta perspectiva constituiu outro fator para o desenvolvimento de um etnocentrismo inconsciente na própria psicologia (Fish, 2000). Este etnocentrismo é igualmente um importante elemento na crítica pós-moderna da psicologia de Misra e Gergen (1993) (ver igualmente a crítica ao etnocentrismo da psicologia elaborada por Dasen [1993]). Enquanto que na antropologia os conflitantes esforços consistiam em como compreender a perspectiva dos outros sem pressupor diferenças essencialistas (essenciais), o confronto da psicologia tem sido o de como compreender a perspectiva dos outros sem pressupor similaridades essencialistas (essenciais). Estes problemas diametricamente opostos deveria nos indicar que a verdade jaz em algum lugar entre as duas proposições.

A RESPOSTA DA PSICOLOGIA A ESTE CONFLITO

Muitos estudiosos das minorias e de origem internacional atualmente preenchem (ou ocupam) os escalões da psicologia. Em sua maior parte eles estão cuidando de clientes de seus próprios grupos nos campos clínicos. Em alguma medida eles estão pesquisando e publicando sobre o desenvolvimento e relações sociais de seus próprios grupos. A perspectiva do insider é validada na prática, se-não, na teoria. O mesmo conflito permanece: após serem educados no campo da psicologia tal como esta existe, em que medida estes psicólogos abandonam os módulos (estruturas) etnocentricamente universalistas da psicologia clássica e validam as estruturas (módulos, perspectivas – frameworks) daqueles a quem estas perspectivas (estruturas) não se adequam?

Isto pode ser feito. Por exemplo, Triandis (1989, 1993) valorizou sua hereditariedade grega (herança, provavelmente cultural) ao opor o conceito de coletivismo aos pressupostos individualistas da psicologia estadunidense. Markus e Kitayama (1991) tiveram uma colaboração trans-cultural (Estados Unidos e Japão) que expandiu este conceito mais direta (imediata) e amplamente no domínio da psicologia social com seu conceito de um self interdependente. Com Rodney Cocking, eu editei um livro denominado Raízes trans-culturais do desenvolvimento infantil entre as minorias (Cross Cultural Roots Of Minority Child Development) que reuniu pesquisadores dos arredores do mundo não Ocidental (Ásia, África, México, e Nativos Americanos) com pesquisadores de origem minoritária para que identificassem continuidades, descontinuidades, e mudanças nos padrões de socialização e desenvolvimento ancestrais e étnicos (Greenfield e Cocking, 1994). Enquanto que as perspectivas dos insiders propositalmente dominavam os textos, perspectivas outsiders foram igualmente introduzidas na discussão. (Ao mesmo tempo, nós devemos reconhecer as perspectivas biculturais que ocorrem quando os membros das sociedades do Terceiro Mundo são iniciados na cultura da escolarização, academia e ciências sociais [Limón, 1991]).

APLICAÇÃO À ANTROPOLOGIA

A antropologia se iniciou viajando por esta mesma rota. Enquanto que os antropólogos dos Estados Unidos costumavam ir a uma cultura muito “diferente” da sua própria, atualmente eles se encontram fazendo pesquisas antropológicas no próprio país, Estados Unidos. Entretanto mais um passo é necessário. O típico estudo de comunidades é pobre, desvantajoso, e referente a uma minoria étnica, enquanto que seu pesquisador comum (usual) geralmente pertence à classe média, é avantajado, e membro de uma maioria dominante. A população sobre estudo ainda é o Outro. Mas há sinais de mudança: enquanto que os pesquisadores minoritários e estrangeiros igualmente costumavam estudar os Outros, atualmente tem se tornado muito mais comum que os jovens antropólogos estudem suas comunidades de origem (e.g., Limón, 1991).

No livro Antropologia Linguistica (Linguistic Anthropology), Duranti (1997) escreve:

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Conforme uma nova geração de alunos de uma ampla extensão de origens étnicas, raciais e nacionais adentra a arena da academia Ocidental, nossas descrições estão fadadas a serem afetadas; Nosso discurso sobre o Outro nunca mais será o mesmo. Os netos dos “primitivos” descritos pelos pais fundadores (Boas, Malinowski, Radcliffe-Brown) e mães fundadoras (Benedict, Mead, Elsie Clew Parsons) da antropologia não estão somente lendo nossos livros, eles igualmente estão sentando em nossas salas de aula, avaliando nossas descrições, e esperançosamente sendo treinados a formular novas questões e propor novas respostas. [p. 98].

O último passo sugerido pela psicologia, é que os pesquisadores brancos de classe média estudem suas próprias comunidades a partir de uma perspectiva antropológica. Os estudos sobre as culturas dominantes nos Estados Unidos e na Europa têm sido excepcionais na história da antropologia (e.g., Bourdieu, 1984; Ortner, 1991; Schneider, [1968] 1980). Entretanto se estes estão se tornando mais frequentes, já não está tão claro.

Ao invés disso, a resposta dominante ao problema do Outro na antropologia cultural tem sido o de passar mais tempo escrevendo sobre si mesmo e suas relações do que sobre os Outros que você foi estudar; esta é a reflexividade da antropologia pós-moderna. Uma de suas consequências empíricas construtivas tem sido um conjunto de estudos que foca na interseção entre “nós” e “eles” – tópicos tais como globalização, colonialismo e turismo (Appadurai, 1991; Ortner, 1991). Entretanto, a resposta simultaneamente invalida a etnografia clássica: explorações de uma cultura enquanto “fontes de valor, significação, e modos de compreensão” (Ortner, 1991: 187). Um modo de se preservar o estudo etnográfico da cultura, enquanto eliminando a “Alteridade” do sujeito etnográfico consiste em encorajar os alunos e pesquisadores a estudarem suas próprias comunidades; esta abordagem livra-se do problema do Outro de um modo que estimula, ao invés de bloquear, a pesquisa etnográfica.

Parecem haver barreiras a este plano. O primeiro deles é a desconfiança antropológica quanto à empatia (Geertz, 1973). Tsing (1993) escreve sobre como as antropólogas feministas temem ser desacreditadas (desvalorizadas) ao menos que “evitem quaisquer pressupostos de que as mulheres antropólogas possuem uma compatibilidade especial com as mulheres de outras culturas” (p. 224). Abu-Lughod (1991) fala de uma barreira intimamente relacionada sobre a “convicção do antropólogo de que não se pode ser objetivo sobre sua própria sociedade” (p. 139). Por conseguinte, a antropologia cultural possui a ironia de advogar uma abordagem interpretativa, enquanto igualmente denegrindo as relações de proximidade e familiaridade que maximizariam corretamente a interpretação da perspectiva do Outro. O ideal de uma objetividade desvinculada ainda não foi completamente banido da antropologia cultural. Não obstante, a perspectiva do insider aparenta estar bastante viva e bem na antropologia linguística e urbana (e.g., Goodwin, 1994; Morgan, 1996; Ochs et al., 1989; Vigil, 1997); Se estes modelos foram estimulados pela psicologia, ou não, outros antropólogos culturais podem derivar inspirações destes exemplos dinâmicos e teoricamente importantes.

A CIÊNCIA COMO APOLÍTICA

Através de diferentes campos, a posição tradicional vê a verdade como sendo apolítica. Esta posição caracteriza a psicologia tradicional, bem como as etnografias tradicionais.

A CRÍTICA PÓS-MODERNA: A ANTROPOLOGIA É POLÍTICA

A crítica da antropologia pós-moderna vê a diferenciação do self (de si, do mesmo) e do Outro, o contexto colonial no qual boa parcela da etnografia tradicional foi feita, e o status

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não letrado de muitos sujeitos como representando uma forma de opressão política. Ortner, em sua história da antropologia dos anos sessenta até os anos oitenta, reconta esta história da seguinte forma:

Na antropologia as primeiras críticas assumiram a forma da denúncia dos vínculos históricos entre a antropologia, por um lado, e o colonialismo e o imperialismo, de outro. Mas isto meramente arranhou a superfície. A questão rapidamente se mudou para um questionamento mais profundo sobre a natureza de nossas estruturas (modulações) teóricas, e especialmente o grau no qual elas incorporavam (corporificavam) e levavam adiante os pressupostos da cultura burguesa Ocidental [184: 138].

Doravante, toda generalização passou a ser entrevista como opressiva.

A RESPOSTA DA PSICOLOGIA À POLÍTICA

A relevância política e social também atingiu a psicologia; entretanto, esta não produziu um grande dano à imaginação empírica. D’Andrade afirma: “Se os defensores da moral na psicologia social produzem um bom trabalho experimental, e se isto apoia seus posicionamentos morais, melhor para a disciplina. Tal trabalho, seja lá qual for seu ânimo, pelo fato de avançar no domínio do conhecimento, promove, ao invés de ameaçar, a agenda científica” (1999: 8).

COSTUMES ESPECÍFICOS VS. A ESTRUTURA PROFUNDA DE UMA CULTURA

Esta última questão está relacionada à particularidade da antropologia cultural que antecede a crítica pós-moderna. Este se trata do fascínio com os costumes exóticos e a profunda desconfiança sobre os princípios culturais gerais, princípios que poderiam agrupar diversas culturas, por um lado, e diversos comportamentos e atitudes, por outro. Os psicólogos, em contraste, estão sempre procurando exatamente por tais princípios. Constitui parte do fascínio com os universais e o desejo reducionista de se explicar os seres humanos por um número mínimo de princípios. Contrastivamente, os antropólogos culturais, são profundamente desconfiados quanto ao reducionismo, que é antiético aos primeiros princípios da disciplina. Entretanto, eu gostaria de contar uma história sobre a minha própria experiência em campo. Esta experiência sugere tanto um valor heurístico, quanto teórico, à idéia de princípios gerais e uma profunda estrutura cultural.

Quando me dirigi à Zinacantán primeiramente em 1969, eu fui preparada por membros experientes do Projeto Chiapas de Harvard. Eles me forneceram muitas informações úteis sobre como agir em situações específicas. Entretanto, percebi que esta informação era constituída de fragmentos e pedaços desconectados que eu teria de memorizar individualmente. Quando eu retornei à Zinacantán em 1991, eu tinha recentemente organizado uma conferência sobre as raízes trans-culturais do desenvolvimento infantil entre grupos minoritários (Greenfield e Cocking, 1994). Seus temas principais eram os construtos do individualismo e do coletivismo (Triandis, 1993) e sobre como os imigrantes geralmente traziam origens (panos de fundo – horizontes) culturais coletivistas consigo de suas terras natais quando vinham para os Estados Unidos. Eu adotei esta estrutura (módulo) conceitual comigo quando retornei à Zinacantán em 1991 pela primeira vez em 21 anos. O que eu descobri foi o seguinte. Se eu pensasse sobre a cultura Zinacantéca como sendo altamente coletivista, a cultura como um todo faria bastante sentido em um primeiro olhar (a primeira vista). Não somente isso; Eu poderia finalmente compreender como agir e (entender) novas situações – por que eu tinha um princípio geral, coletivismo, que poderia ser aplicado em uma

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ampla gama de situações específicas. Eu possuía um profundo princípio gerador tanto para a compreensão do comportamento e das atitudes dos Zinacantécas, quanto para a produção dos comportamentos adequados, enquanto eu estivesse na aldeia Maya de Nabenchauk. Eu fui muito mais bem sucedida e confiante na integração às cercanias Zinacantécas, uma vez que tivesse aprendido este princípio este princípio bastante geral.

A partir de uma perspectiva teórica, eu concluí que o individualismo e o coletivismo são princípios profundos de interpretação cultural e organização que possuem valores criativos. Eles não obliteram costumes culturalmente específicos; os costumes são apenas instanciações culturalmente variáveis de princípios (Greenfield, 2000). Isto se assemelha muito a maneira como (idiomas) linguagens específicas são instanciações culturalmente variáveis de uma capacidade linguística geral. Sua implicação para a antropologia consiste no fato de que esta deveria estar aberta a tais princípios gerais enquanto um modo de avançar mais profundamente na compreensão das culturas e na evitação das desinteressantes armadilhas produzidas nas etnografias que consistem em coleções (coletâneas) de costumes exóticos. De fato, Fiske (1991), um antropólogo psicológico que ensinou em um departamento de psicologia de ponta (liderança), apresentou “quatro estruturas da vida social” que são refinamentos do individualismo e do coletivismo e que são possíveis candidatos àquilo que eu denomino de “estrutura profunda de uma cultura”. As estruturas da vida social elaboradas por Fiske, assim como o individualismo e o coletivismo, são estruturas interpretativas. Como consequência, seu reconhecimento permite uma generalização científica (importante à disciplina da psicologia) no âmbito do contexto do método interpretativo (importante à disciplina da antropologia).

CONCLUSÃO

Na psicologia cultural e trans-cultural, nós estamos acostumados a admirar a antropologia e a considerar suas contribuições ao nosso campo, tanto metodologicamente, quanto substancialmente. Contrastivamente, os antropólogos, raramente, quando muito, expressam admiração pela psicologia e seu conjunto de métodos. Entretanto, a antropologia cultural em geral e a metodologia etnográfica, em particular, têm, em anos recentes, sido fustigados pela crítica pós-moderna. Em geral, a resposta tem sido um auto-flagelo e um distanciamento da pesquisa empírica. Títulos tais como “A crise epistemológica nas disciplinas humanas” (The Epistemological Crisis in the Human Disciplines, Denzin, 1993) são abundantes. O ponto do argumento do presente ensaio consiste em apresentar outra resposta – uma resposta a partir de outro lado, por assim dizer. Esta resposta provém da disciplina da psicologia. Embora fundamentada em um principio não mais sustentável de objetividade, a psicologia possui alguns pressupostos epistemológicos intrínsecos que tornaram seu empreendimento empírico muito menos vulnerável do que o foi a antropologia à crítica pós-moderna.

Eu costumava pensar que a razão pela qual a psicologia permaneceu relativamente ilesa ao pós-modernismo era a de que ela estava simplesmente atrás (atrasada) de seu tempo. Entretanto, agora eu sinto – e espero que este ensaio tenha demonstrado – que a psicologia contém as sementes para resolver os problemas da antropologia no que concerne a um grande número de questões: uma objetividade singular (única) vs. subjetividades múltiplas, cultura enquanto uma totalidade homogênea vs. cultura enquanto um conjunto de portadores culturais diferenciados, fato vs. intepretação, verdade vs. construção, o problema do Outro, a política da pesquisa, e costumes específicos vs. a estrutura profunda da cultura. Ao se plantar as sementes para a resolução de cada uma destas questões, a psicologia oferece uma resposta à oposição pós-moderna prevalecente: uma metodologia empírica para a investigação da construção das significações.

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NOTAS

Agradecimentos. Uma versão prévia deste ensaio foi apresentada em uma conferência denominada “O conceito de antropologia: abordagens transdisciplinares ao ser humano”, da Universidade de Constance, de 29 a 31 de Maio, 1997. Estou profundamente agradecida à Philip Bock, Jerome Bruner, Alessandro Duranti, Jefferson Fish, Karl Heider, Dolores Newton, Susan Seymour, Jim Wilce, e Isabel Zambrano, bem como aso revisores anônimos, pelo encorajamento e auxílio na revisão deste ensaio para publicação.

REFERÊNCIAS

Disponíveis no site de pesquisado “google”, mediante a consulta do nome original do texto em inglês: “What Psychology Can Do for Anthropology, or Why Anthropology Took

Postmodernism on the Chin.”

Boa leitura!