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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA O PROCESSO DE DIGITAÇÃO PARA VIOLÃO DA CIACCONA BWV 1004 DE JOHANN SEBASTIAN BACH Alisson Alípio Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Daniel Wolff Porto Alegre 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

O PROCESSO DE DIGITAÇÃO PARA VIOLÃO DA

CIACCONA BWV 1004 DE JOHANN SEBASTIAN

BACH

Alisson Alípio

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Daniel Wolff

Porto Alegre

2010

Dedico este trabalho a

Luiz Cláudio Ribas Ferreira

Amigo e professor

AGRADECIMENTOS

Ao meu professor e orientador Daniel Wolff, pela dedicação e entusiasmo

empreendidos a esta pesquisa.

À professora Luciana Del Ben, pelas orientações durante o Seminário de Pesquisa em

Música e pelas reflexões sobre a produção de conhecimento.

Aos meus amigos Marcos Araújo e Fabio Dalla Costa pela amizade e

companheirismo.

Aos professores Any Raquel Carvalho, Leonardo Loureiro Winter e Orlando Fraga por

constituírem a banca examinadora da minha defesa.

A todos os professores, alunos, colegas de curso, e funcionários do PPGMUS e

Instituto de Artes da UFRGS.

A Orlando Fraga, Marcos Araújo, Fabio Dalla Costa, Thiago Kreutz, Thomas Pires,

Renato Cesar, Guilherme Sperb, Maria Aparecida Alvim e Daniel Tarquínio pelos materiais

de estudo fornecidos.

A Rubens Holzmann, pela ajuda com o software de edição de partitura.

Ao Forum Violao.org, fonte de pesquisa diária e a Fabio Zanon, por permitir o uso de

seus comentários, sempre pontuais e esclarecedores.

A Aline Piotto e Ismael Ferreira Lourenço pelo patrocínio de passagens aéreas no

período da minha pesquisa.

Aos amigos Nery Borges, Eber Oliveira, Francisco Esmaile e Roberto Escobar.

A Luiz Cláudio Ribas Ferreira, pela sabedoria compartilhada.

À minha esposa, Eliane, pelo amor, paciência e compreensão.

À minha mãe, Maria Dolores, por toda a ajuda e preocupação em todas as horas.

Aos meus irmãos, sempre presentes, cada um à sua maneira.

Ao meu pai, Alípio (in memoriam), pelos ensinamentos.

E por fim, à CAPES, pela concessão da bolsa de estudos, o que me permitiu

desenvolver e concluir este trabalho.

É igualmente fatal haver um sistema e não haver um sistema.

Deve-se tentar combiná-los.

Friedrich Schlegel

RESUMO

Este trabalho trata do processo de digitação para violão da Ciaccona BWV 1004 (original

para violino) de Johann Sebastian Bach (1685-1750). O objetivo foi desenvolver uma

digitação de mão esquerda capaz de refletir as intenções musicais do presente autor. Para tal,

foi estabelecido um modelo de análise, onde a textura musical é dividida e classificada, com

base em referenciais teóricos, como: melódica, harmônica, motívica e polifônica. Ao analisar

as digitações usadas em transcrições, e compará-las às desta pesquisa, concluímos que se pode

ter autonomia para contestar uma digitação grafada, pois ela reflete nada mais que as decisões

do seu autor, sejam musicais ou técnicas. A partir disto, podemos deduzir que elas se alteram

conforme as nossas próprias decisões.

Palavras-chave: violão; digitação; transcrição; motivo; melodia polifônica.

ABSTRACT

This work deals with the process of elaborating guitar fingerings for J. S. Bach‟s Ciaccona

BWV 1004 (original for violin). The aim was to develop a left hand fingering able to reflect

the musical intentions of the present author. To this end, a model of analysis was established,

in which the musical texture is divided and classified, based on theoretical references, into the

following categories: melodic, harmonic, motivic and polyphonic. By analyzing the fingering

used on transcriptions, and comparing it with the results of this research, we conclude that we

can question a suggested fingering, because it reflects nothing more than the decisions of its

author, whether musical or technical. From this we can deduce that they change according to

our own decisions.

Keywords: classical guitar; fingering; transcription; motive; polyphonic melody.

7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10

1.1 REFERENCIAL TEÓRICO 16

1.2 METODOLOGIA 19

2 CIACCONA BWV II 1004 DE JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750) 21

2.1 CARACTERÍSTICAS DA CIACCONA 21

2.2 TRANSCRIÇÃO PARA VIOLÃO 23

3 O PROCESSO DE DIGITAÇÃO PARA VIOLÃO 29

3.1 CASOS 32

3.1.1 Motivos 32

3.1.1.1 Motivos de figuras curtas ligadas 32

3.1.1.2 Motivos em cruz 35

3.1.1.3 Motivos sequenciais 36

3.1.1.4 Motivos em ostinato 38

3.1.2 Melodia polifônica 39

3.1.3 Arpejos 43

3.1.4 Homogeneidade tímbrica 45

3.1.5 Exceções 47

3.1.5.1 Exceção nos motivos de figuras curtas 47

3.1.5.2 Exceção nas melodias polifônicas 48

3.1.5.3 Exceção nos arpejos 48

3.1.5.4 Exceção na homogeneidade tímbrica 51

4 CONCLUSÕES 52

REFERÊNCIAS 55

ANEXOS 59

Anexo 1 - Ciaccona BWV 1004 de J. S. Bach - Manuscrito 60

APÊNDICES 66

Apêndice A - Ciaccona BWV 1004 de J. S. Bach - Transcrição para violão 67

Apêndice B - Ciaccona BWV 1004 de J. S. Bach - Edição comparativa 90

Apêndice C - Ciaccona BWV 1004 de J. S. Bach - DVD - Interpretação ao violão 123

8

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Exemplo 1: El testament d‟Amelia de Miguel Llobet (1878-1928) (c. 1-4). Digitação nas

posições agudas 13

Exemplo 2: Fuga BWV 998 para alaúde, de J. S. Bach. (c. 1-2) Digitações do autor para esta

pesquisa. Possibilidades de digitação para um mesmo fragmento 14

Exemplo 3: Ciaccona (c. 12-13) – Preenchimento de acordes 26

Exemplo 4: Ciaccona (c. 30-33) – Encadeamento de baixos 26

Exemplo 5: Ciaccona (c.190) – Mudança de oitava 27

Exemplo 6: Ciaccona (c.199) – Mudança de oitava 27

Exemplo 7: Ciaccona (c. 229-230) – Mudança de oitava 28

Exemplo 8: Ciaccona (c. 1-3) - Características do ritmo 30

Exemplo 9: Ciaccona (c.199) – Motivos de figuras curtas ligadas 33

Exemplo 10: Ciaccona (c. 26-27) – Motivos de figuras curtas ligadas 34

Exemplo 11: Motivo em Cruz com as letras do nome BACH 35

Exemplo 12: Ciaccona (c. 29-32) – Segundas menores ligadas 36

Exemplo 13: Ciaccona (c. 33-35) – Repetição idêntica de caminhos 37

Exemplo 14: Ciaccona (c. 53-56) – Motivos nas mudanças de harmonia 37

Exemplo 15: Ciaccona (c. 85-86) – Repetição idêntica de caminhos 38

Exemplo 16: Ciaccona (c.217-220) – Ostinato de segundas menores melódicas entre melodias

polifônicas 39

Exemplo 17: Ciaccona (c. 41-46) – Independência das diferentes vozes da obra 40

Exemplo 18: Ciaccona (c. 49-51) – Melodia polifônica do tetracorde de Ré 41

Exemplo 19: Ciaccona (c.161-163) – Execução da tripla nota Lá 42

Exemplo 20: Ciaccona (c. 161-163) – Execução da tripla nota Lá. Comparação das digitações

de Andrés Segovia, Abel Carlevaro e Kazuhiro Yamashita 43

Exemplo 21: Ciaccona (c. 149-156) – Disposição harmônica da digitação 44

Exemplo 22: Ciaccona (c. 213-214) – Arpejos 45

Exemplo 23: Ciaccona (c. 18-20) – Homogeneidade tímbrica 46

Exemplo 24: Ciaccona (c. 133-137) – Homogeneidade tímbrica 46

Exemplo 25: Ciaccona (c. 65-67) – Campanellas substituindo os ligados dos motivos de

figuras curtas 47

9

Exemplo 26: Ciaccona (c. 43) – Exceções – Melodia polifônica não sustentada em função do

baixo 48

Exemplo 27: Ciaccona (c. 37-38) – Graus disjuntos ligados na mesma corda 49

Exemplo 28: Ciaccona (c. 56) – Graus disjuntos tocados na mesma corda 49

Exemplo 29: Ciaccona (c.81-84) – Graus disjuntos ligados na mesma corda 50

Exemplo 30: Ciaccona (c. 243) – Nota de arpejo ligada na mesma corda 51

Exemplo 31: Ciaccona (48-49) – Campanella 51

10

1 INTRODUÇÃO

A digitação é um processo inerente à prática da maioria dos instrumentos musicais.

Em muitos instrumentos de sopro, por exemplo, as chaves ou válvulas são acionadas em

combinações, de modo a viabilizar a obtenção de uma nota. Neles, a digitação é a combinação

específica ou ainda o conjunto de todas essas combinações. É possível a um instrumento de

sopro ter mais de uma digitação para uma mesma nota. Todos, contudo, contam com uma

digitação padrão, sendo que as demais combinações são chamadas digitações alternativas.

Nos instrumentos de teclados, a digitação é determinada não somente pela nota a ser

tocada, mas pela escolha da maneira mais adequada para a interpretação do instrumentista,

uma vez que há várias posições dos dedos para se obter a mesma nota ou acorde. Há um

consenso difundido entre os estudiosos da música antiga para teclado de que, “sem uma

compreensão adequada dos sistemas antigos de dedilhado, é impossível articular a música da

maneira que o compositor pretendia originalmente” (SADIE, 1994, p. 258). Segundo

Donington (1963), “dedilhados modernos são planejados para auxiliar a velocidade, sendo

intercambiáveis em todas as tonalidades; dedilhados antigos foram concebidos para ajudar no

fraseado e na articulação enfatizando as separações onde elas são musicalmente desejáveis.

(DONINGTON, 1963, p. 410)1

Nos instrumentos de cordas, digitar envolve a ação de pressionar as cordas com a mão

esquerda e está estreitamente ligada à notação, ao timbre e à expressão. “Já nos instrumentos

executados sem arco, tais como o alaúde e o violão, chama-se dedilhar o ato de tanger as

cordas com a mão direita”. (SADIE, 1994, p. 258)

O violão, porém, possui recursos que tornam o processo de digitação mais complexo.

A possibilidade de produzir uma mesma nota em mais de uma localização da escala e a

diferença de materiais2, espessura e tensões entre suas cordas, fazem com que haja uma ampla

gama de timbres, gerando diferentes resultados auditivos para uma mesma situação. Mais que

isso, esses recursos trazem dúvidas e impõem decisões ao intérprete. Segundo Wolff (2001),

“a digitação é decorrente da interpretação musical. Ao estudar uma nova obra, resolva

primeiro os problemas interpretativos, e somente depois escolha uma digitação que reflita a

sua interpretação.” (WOLFF, 2001)

1 Modern fingerings are devised to assist velocity by being interchangeable in all keys; early fingerings were

devised to assist phrasing and articulation by enforcing separations where they are musically desirable.

(DONINGTON, 1963, p. 410) 2 As três primeiras cordas do violão são de náilon, e as demais, revestidas de metal.

11

A digitação não é somente uma questão de melhor combinação dos dedos para uma ou

várias passagens. O fato de o violão ser um instrumento polifônico, de cordas dedilhadas e

não friccionadas, e de não oferecer uma sustentação contínua de som, assim como um

instrumento de arco, fazem com que o executante tenha que considerar um conjunto de fatores

para tomar decisões quanto à digitação, principalmente no que se refere ao legato. Ferreira

(2004) diz que “o legato é a atitude técnica que não te deixa „gaguejar‟ no discurso. Não

obstante alguns estilos e, também alguns momentos exigirem de sua técnica artifícios como

stacatto, non legato, detaché, ter a consciência do que é o legato e saber reproduzi-lo é atitude

de suma importância” (FERREIRA, 2004, p. 1). Segundo Russell (1998):

[Ao digitar, deve-se] buscar sempre maior fluidez no fraseado. Tocar a frase em

questão por partes, e ver onde se pode cortar o som e onde não, para estabelecer a

digitação mais adequada [...] Em um salto de mão esquerda, buscar que este não

coincida com um ponto importante da frase, para que não se perceba o corte do som

no fraseado. (RUSSELL, 1998, p. 25) 3

Tocar um segmento de notas, por mais simples tecnicamente que seja, exige sutileza

de mecanismo, sincronia nas funções de cada dedo e criatividade para elaborar combinações

de digitação. “Falta aos estudantes „repertório‟ de digitações e flexibilidade para mudá-las.

Um maior número de recursos de digitação faz com que o músico tenha maiores opções

musicais” (ZANON, 2006).

Segundo Wolff (2001), “a escolha da digitação depende de diversos fatores [entre os

quais se encontram]: a dificuldade técnica da obra, as características individuais do intérprete

(anatomia das mãos, nível técnico e sonoridade do instrumento), estilo da obra e a

interpretação (fraseado, articulação, timbre, etc.)” (WOLFF, 2001). Importantes violonistas

comentam sobre a relação entre a digitação e os dois últimos fatores. Eduardo Fernandez

(2000), por exemplo, menciona que:

É necessário que a busca de uma digitação seja extremamente rigorosa e, que

tenhamos a paciência de buscar todas as variáveis imagináveis, tendo sempre em

conta a relação inseparável entre a digitação e o resultado musical. Digitar é já

interpretar, não é simplesmente buscar a maneira mais fácil de tocar as notas. [...]

[caso contrário] nossas idéias musicais correm o risco de ficarem afogadas dentro

de um modo de digitação estabelecido quase que ao acaso. (Fernandez, 2000, p.15)4

3 Digitar siempre buscando la maior fluidez en el fraseo. Tocar la frase en cuestión por trozos y ver donde se

puede parar el sonido y donde no, para estabelecer la digitación más adecuada.En una frase con un traslado,

procurar que no coincida el mismo con un punto importante de la frase. (RUSSELL, 1998, p. 25) Nota: Todas as

traduções são do autor do presente trabalho. 4 Es necesario en la búsqueda de la digitación ser extremadamente riguroso y tener la paciencia de buscar todas

las variantes imaginables, teniendo siempre en cuenta la relación inseparable entre la digitación y el resultado

musical. [...] Digitar es ya interpretar, no es simplemente buscar la manera más fácil de tocar las notas [...] De

12

A busca de “todas as variáveis imagináveis” é salientada por Fernandez como o

procedimento ideal para escolhermos a digitação que mais estará de acordo com as

características de determinada peça musical. E complementa adiante: “Isto não difere em nada

da atitude de um maestro de orquestra, que deve ter uma concepção sonora completa das

obras antes do primeiro ensaio” (FERNANDEZ, 2000, p. 44) 5. No entanto, vale lembrar que

nem sempre existirão muitas variáveis, pois, “passagens tecnicamente complexas como, por

exemplo, trechos contrapontísticos a várias vozes oferecem frequentemente não mais do que

uma ou duas opções de digitação”. (WOLFF, 2001)

Para que a digitação esteja relacionada com o resultado musical, torna-se necessário

um conhecimento mais profundo de determinada obra, proveniente da observação às práticas

interpretativas da época:

O período de composição de uma peça é fator decisivo para uma digitação

estilisticamente correta. Nas tablaturas das obras originalmente compostas para os

instrumentos precursores do violão, tal como o alaúde e a vihuela, observa-se uma

preferência pelas primeiras posições do braço do instrumento, característica esta

que deve ser preservada para uma maior autenticidade na execução. Já em obras

compostas na segunda metade do século dezenove (Coste, Regondi, Tárrega),

favoreciam-se as posições mais agudas e o freqüente uso de glissandos. Tais

características permaneceram em uso durante boa parte do século vinte, como se

pode observar nas digitações de Miguel Llobet e Andrés Segóvia. (Ibid., 2001)

Segundo Zanon (2004), “os violonistas do século XIX tendiam a empregar as posições

abertas e as cordas soltas, buscando um brilho e amplitude que faltava a seus instrumentos.

Tarrega desenvolveu a digitação ao longo das cordas, similar ao violino, explorando uma

sonoridade mais diáfana, calorosa e cantabile das posições altas, ressaltando assim os

movimentos caprichosos do fraseado musical e as riquezas harmônicas através da

sonoridade.” (ZANON, 2004, p. 6)

O exemplo seguinte ilustra a situação citada por Wolff (2001) e Zanon (2004), onde a

digitação nas posições agudas é fundamental para a realização dos glissandos desejados pelo

compositor6.

otro modo, nuestras ideas musicales corren el riesgo de quedar ahogadas dentro de un marco de digitación

establecido casi al azar. (FERNANDEZ, 2000, p. 15) 5 Esto no difiere para nada de la actitud de un director de orquesta, que debe tener una concepción sonora

completa de la obra antes del primer ensayo. (FERNANDEZ, 2000, p. 44) 6 Os números representam os dedos da mão esquerda e, os números circulados as cordas do violão.

13

Ex. 1: El testament d’Amelia de Miguel Llobet (1878-1928) (compassos 1-4). Digitação nas posições agudas.

Logo, o ato de digitar uma obra para violão deve ser não só uma prática a serviço da

fluidez técnica, mas, principalmente, um fator de interpretação, visto que as características da

música são inerentes à digitação.

No levantamento bibliográfico constatamos que os poucos escritos, apesar de fazerem

referência à interpretação como algo primordial na prática de digitar, tratam do assunto de

forma superficial, comparado à vasta abordagem técnica do instrumento, ou seja, a digitação a

partir da mecânica das mãos, sem levar em consideração outros aspectos envolvidos na

execução musical, como articulação, fraseado ou hierarquia vocal. A respeito disso, Silveira

Filho (2004) afirma que “em muitos trabalhos consultados da literatura violonística, a

abordagem da digitação limita-se a questões relacionadas a dificuldades técnicas. Não que

abordagens dessa natureza sejam irrelevantes, porém as possibilidades de correlação de uma

digitação com a interpretação/execução não são necessariamente tratadas. (SILVEIRA

FILHO, 2004, p. 10)

Outros fatores contribuem para esses equívocos, até mesmo para violonistas já

consagrados. Muito se atribui ao fato de que “o violonista tende a efetuar digitações cujo

resultado sonoro é fruto de uma execução já convencional ao violão” (CHOBANIAN, 2001

apud SILVEIRA FILHO, 2004, p. 9) e também pela propagação de métodos onde a digitação

só é tratada como uma ferramenta técnica, e imposta ao estudante pelo seu autor. Gilardino

(1998) diz que “muitas vezes, por pressão das editoras, suas indicações de digitação foram

elaboradas em função do interesse de facilitar passagens, não representando possivelmente a

melhor opção para problemas de execução de peças musicais” (GILARDINO, 1998 apud

SILVEIRA FILHO, 2004, p. 9).

A respeito de execução convencional, Freitas (2005) discorre sobre um determinado

trecho da Ciaccona de Bach, editada por Andrés Segovia7: “Segovia também usa ligados

mecânicos de maneira não padronizada, o que podemos interpretar como uma forma de

7 Violonista espanhol, considerado um dos mais importantes do século XX.

14

conquistar o legato, mas também podemos entender como motivado puramente por uma

facilidade digital” (FREITAS, 2005, p. 69). Sendo Segovia um ícone mundial do violão,

pode-se deduzir que ainda hoje suas escolhas influenciem violonistas estudantes, amadores ou

mesmo profissionais. Isto, claro, sem esquecermos que Segovia é “dono” de um estilo, e suas

digitações, acima de tudo, “obrigam um certo fraseado, uma articulação, um tipo de rubato e

uma concepção de som „belo‟ que correspondem inequivocadamente à sua época e geração”.

(FERNANDEZ, 2000, p. 15) 8

A facilidade digital, citada por Freitas (2005), diz respeito às diversas formas de se

conceber um determinado trecho musical, como exemplificado a seguir. Os exemplos abaixo

ilustram três possibilidades de digitação para um mesmo fragmento9.

Ex. 2: Fuga BWV 998 para alaúde, de J. S. Bach. (c. 1-2) Digitações do autor para esta pesquisa.

Possibilidades de digitação para um mesmo fragmento.

Neste exemplo é possível prever as diferenças de timbre entre as três formas de

digitar:

Exemplo 2a - As notas são realizadas nas três primeiras cordas do instrumento,

utilizando cordas soltas quando possível (Si e Mi). Desta forma, exige do intérprete um

cuidado à parte para esta passagem, pois, assim como vimos no exemplo 1, é natural que o

timbre das cordas soltas seja mais brilhante que as demais, o que descaracteriza o sentido de

unidade da frase.

8 La digitación misma obliga a un cierto fraseo, una cierta articulación, un cierto tipo de rubato y una concepción

del sonido “bello” que corresponden inequívocamente a la época y generación de Segovia. (FERNANDEZ,

2000, p. 15) 9 Os números representam os dedos da mão esquerda e, os números circulados as cordas do violão.

15

Exemplo 2b – A digitação é feita somente sobre a segunda e terceira cordas do

instrumento, possibilitando, assim, ao contrário do exemplo 2a, maior unidade de timbre,

além do uso do vibrato.

Exemplo 2c – Apesar de ser um caminho parecido com o do exemplo 2b, o timbre da

terceira corda é demasiado dolce, o qual após poucos compassos pode ser descaracterizado

pela necessidade do violonista em recorrer às cordas soltas e primeiras posições em função da

polifonia.

Com base nas considerações expostas acerca da digitação, as seguintes questões foram

levantadas: Quais são os critérios para se escolher a digitação? Um estudante, ou um

violonista profissional que se depara com uma digitação grafada, tem autonomia para

contestá-la? Sendo o intérprete o seu próprio editor, e à medida que este constata uma

digitação bem sucedida, é possível, a partir dessa experiência, estabelecer padrões de

digitação para outros intérpretes? Se cada intérprete é diferente no seu tocar e também no seu

pensar, é possível identificar um conjunto de dimensões e procedimentos necessário ao

processo de digitação?

Neste trabalho, é descrito o processo de digitação para violão da Ciaccona em Ré

menor BWV 1004 de J. S. Bach (1685-1750), original para violino solo. Também foram

incluídos: análise de trechos segundo critérios de interpretação, comparação de diferentes

possibilidades de digitação, uma transcrição para o violão da Ciaccona de J. S. Bach e a

digitação que reflete as decisões interpretativas do presente autor.

Abordamos a digitação para violão como uma ferramenta na interpretação musical,

expondo a reflexão na prática de digitar uma peça antes de iniciar outros processos de estudo,

como memorização, mecânica ou técnica. Para tal, discorremos sobre a relação entre digitação

e interpretação através da transcrição para violão da Ciaccona, e sobre a análise de trechos

onde a digitação é um fator decisivo, seja pela complexidade técnica, ou por razões estilísticas

e visões musicológicas que permeiam a execução.

A escolha da Ciaccona de Bach justifica-se pela quantidade de elementos que esta

obra apresenta, pertinentes ao desenvolvimento deste trabalho. A motivação deste estudo é

proveniente da minha experiência como estudante e, posteriormente, como intérprete e

professor de violão, onde, através da prática de repertório, percebi a necessidade de reflexão

quanto à digitação.

16

1. 1 Referencial teórico

Como referencial teórico deste trabalho, foram utilizadas publicações que abordam a

técnica violonística moderna e tratam dos problemas de digitação em uma obra, tais como as

de Abel Carlevaro10

e Eduardo Fernandez11

, e publicações sobre estilo e interpretação

barroca, como Robert Donington12

, Nikolaus Harnoncourt13

, Thurston Dart14

e Stanley

Yates15

.

Em época alguma como em nosso tempo, houve tamanha preocupação com a

herança artística do passado aliada à responsabilidade consciente de sua importância.

As interpretações das últimas décadas não mais são aceitas [...] porque a dupla

interpretação do arranjador e do músico não é mais julgada indispensável. O

objetivo, hoje em dia, é considerar a composição em si mesma como única e

legítima fonte, apresentando-a pelos seus méritos próprios. Em especial, no que se

refere a Bach, devemos procurar ouvir e tocar as suas obras primas como se jamais

tivessem sido interpretadas – como se nunca tivessem sido reformadas ou

deformadas. É preciso tentar uma leitura que ignore toda a tradição interpretativa do

Romantismo. Todas as questões devem ser renovadamente formuladas, tomando-se

por base apenas as partituras que Bach nos legou, pois elas fixam uma arte

intemporal, cuja expressividade está intimamente ligada à sua época.

(HARNONCOURT, 1985, p. 52)

O texto acima exemplifica a preocupação de Nikolaus Harnoncourt quando este fala

sobre o compromisso do intérprete de hoje em resgatar os valores do barroco e sua música.

Não somente chama a atenção para o esquecimento destes, como também para a falsa

autenticidade, aquela onde o intérprete tenta reproduzir uma condição original de execução,

baseado apenas no que é óbvio e esquecendo por completo que, o que nos interessa, é

exatamente o que não foi escrito. E complementa:

Esta decisão de ignorar a tradição interpretativa não deve, naturalmente, nos

conduzir a uma postura artificial de sistemática oposição, onde se faz tudo ao

contrário do habitual: é sempre possível conciliar novos resultados com a prática

tradicional. Faz-se necessária a abordagem das grandes obras-primas, da maneira a

mais direta possível, despindo-as da suntuosa roupagem da experiência

interpretativa tradicional, para recomeçar da estaca zero. (Ibid.)

10

CARLEVARO, Abel. Escuela de la guitarra: exposición de la teoria instrumental. Buenos Aires. Barry

editorial, 1979. 11

FERNANDEZ, Eduardo. Técnica, mecanismo y aprendizaje. Una investigación sobre llegar a ser guitarrista.

Ediciones Art-Montevideo - Uruguay, 2000. 12

DONINGTON, R. The Interpretation of Early Music. London: Faber and Faber, 1963. 13

HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos Sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Salzburg:

Residenz Verlag, 1984. trad. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

HARNONCOURT, Nikolaus. O Diálogo Musical: Monteverdi, Bach e Mozart. Salzburg: Residenz Verlag,

1985. trad. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 14

DART, Thurston. Interpretação da Música. Hutchinson and Co. Ltd. 1960. 2° ed. São Paulo: Martins Fontes,

2000. 15

YATES, S. Bach's unaccompanied string music: A new (old) approach to stylistic and Idiomatic transcription

for the guitar, 1998.

17

A respeito da execução das obras de Bach, é importante lembrar que o violão tem

certas idiossincrasias que permeiam a interpretação, muitas vezes contrastando com princípios

básicos daquela música. Assim como podem acarretar em benefícios de idiomatismo,

proporcionalmente são motivo de efeitos indesejáveis. Por exemplo, a resolução de uma

apogiatura através de um ligado ascendente é uma solução natural para se obter a cadência

suave em relação à sua tensão, mas, da mesma forma, um ligado descendente pode causar um

desagradável acento. Isto ocorre porque os mecanismos de mão esquerda diferem para cada

tipo de ligado, sendo um mais dispendioso que outro em termos de força e clareza.

Um fator que reforça a indução deste mecanismo, é que em dada fase da nossa

formação musical, aprendemos que em um compasso quaternário, por exemplo, os tempos um

e três são fortes (o três é meio forte) e os demais, fracos. É natural, portanto, pensarmos desta

forma, pois geralmente o contexto desta aprendizagem é puramente a métrica, divisão e forma

de compasso, e não a arcada cujas notas estão unidas por uma ligadura, e significam um

determinado afeto ou um passo de dança que exija uma articulação mais cuidadosa do que a

hierarquia dos tempos.

Para ilustrar esta situação, citamos aqui as palavras de Harnoncourt (1984):

Na música barroca, tudo é ordenado hierarquicamente, tal como acontecia outrora

em todos os outros domínios da vida. [...] De acordo com os autores musicais dos

séculos XVII e XVIII, temos, em um compasso 4/4, notas boas ou ruins, nobiles ou

viles: assim, o primeiro tempo é nobre, o segundo ruim, o terceiro não tão nobre e o

quarto tempo é miserável. [...] Este esquema de acentuação, que se assemelha a uma

curva de peso, é um dos pilares da música barroca. [...] [porém] há algumas

hierarquias superiores que quebram esta monotonia da acentuação: uma das mais

poderosas é a harmonia. Há ainda duas outras sub-hierarquias que vêm perturbar a

acentuação principal: o ritmo e a ênfase. Caso uma nota curta seja seguida de uma

mais longa, esta última será em princípio acentuada, mesmo que caia num tempo

“ruim”, fraco, sem acentuação; com isto, os ritmos sincopados e saltados estarão

sendo salientados. (HARNONCOURT, 1984, p. 50-53)

Portanto, sendo “possível conciliar novos resultados à prática tradicional”, também o é

trazer aquela música a um novo universo, provido de hierarquias de primeira grandeza.

Até poucas gerações antes de Bach, a realização sonora de uma obra era deixada a

critério do executante e que, mesmo à época de Bach, existiam numerosas

composições, nas quais um solo de flauta, por exemplo, podia ser tocado

indiferentemente por um oboé ou violino. Desde que o compositor não utilize

conscientemente as possibilidades técnicas específicas ou as propriedades sonoras

peculiares a cada instrumento, torna-se perfeitamente legítima a instrumentação ad

libitum. (Idem, 1985, p. 57)

Se considerarmos que o violão possui um sistema diversificado de concepção, ou seja,

não sendo somente um instrumento melódico ou harmônico, permitindo técnicas de execução

18

como ligados ascendentes, descendentes e mistos, saltos melódicos sem interrupção de som e

até mesmo escalas em digitação cross string 16

(cruzamento de corda) (WOLFF, 2001), pode-

se prever possibilidades articulatórias e retóricas para uma interpretação das obras de Bach,

como no caso, a Ciaccona, original para violino solo. Segundo Yates (1998):

O termo “unaccompanied” [não-acompanhado], quando aplicado à música solo de

Bach para instrumentos de corda representa um equívoco de terminologia. Na

verdade, essas obras são auto-acompanhadas, com o acompanhamento embutido em

uma linha “melódica” junto da parte “solo” propriamente dita. Bach subentende esta

textura polifônica de três maneiras: através de arpejos, de saltos melódicos e de

notas tocadas de forma simultânea. (YATES, 1998 apud FREITAS, 2005, p. 55) 17

O processo de digitação da Ciaccona deu-se pelas escolhas interpretativas envolvidas

nestes elementos citados por Yates, ou seja, a digitação é a resultante das concepções

melódicas e harmônicas contidas na textura da obra. Eduardo Fernandez (2003) também alerta

para a compreensão destes elementos:

Uma vez compreendida a função de cada elemento e qual o tipo de relação que

existe entre as frases, todo o processo de realização instrumental pode levar-se a

cabo com vistas a um objetivo musical claramente estabelecido; a digitação pode ser

encontrada desde o ponto de vista da articulação, e as relações dinâmicas podem ser

utilizadas para realçar o discurso. Não falo aqui de “articulação” no sentido quase

coloquial que geralmente se tem, e que refere basicamente a que todas as notas se

ouçam com clareza. Isto deveria se dar por suposto em uma execução de nível

profissional. Estou me referindo à clara apresentação desta divisão em partes do

discurso musical, que sem dúvida é essencial para que o discurso possa ser

compreendido. (FERNANDEZ, 2003, p. 29) 18

Esta “clara apresentação” dos elementos diz respeito, sobretudo, à capacidade do

intérprete de estabelecer o diálogo musical existente entre as frases. Segundo Quantz (1752),

“é necessário estudar como detectar e compreender o que faz o sentido musical, e o que deve

ser unido. É necessário evitar, com igual cuidado, a separação do que é junto, e junção do que

compreende mais de uma idéia e que deve, consequentemente, ser separado. Pois é nisso que

16

Geralmente usada em obras barrocas, a digitação cross string distribui os graus conjuntos da escala em cordas

diferentes, permitindo que várias notas contíguas da escala soem simultaneamente, favorecendo o legato na

execução. (WOLFF, 2001) 17

The appellation "unaccompanied," when applied to Bach‟s solo string music, therefore, is something of a

misnomer. Rather, these works are self-accompanied, the accompaniment being embedded in a single "melodic"

line along with the "solo" part proper. Bach implies this polyphonic texture in three ways: through arpeggiation,

through melodic leaps, and through multi-stopped chords. (YATES, 1998) 18

Una vez comprendida la función de cada elemento y cuál es el tipo de relación que existe entre las frases, todo

el proceso de realización instrumental puede llevarse a cabo con vistas a un objtivo musical claramente

establecido; la digitación puede ser encontrada desde el punto de vista de la articulación, las relaciones

dinámicas pueden ser utilizadas para realzar el discurso. No hablo aquí de “articulación” en el sentido casi

coloquial que geralmente tiene, y que se refiere básicamente a que todas las notas se oigan con claridad. Esto

debería darse por supuesto en una ejecución de nivel professional. Me estoy refiriendo a la clara presentación de

esta división en partes del discurso musical, quesin duda es esencial para que el discurso pueda ser comprendido.

(FERNANDEZ, 2003, p. 29)

19

um elemento de verdadeira expressão depende”. (QUANTZ, 1752 apud DONINGTON, 1963,

p. 412)19

Thurston Dart (1960), em seu livro “Interpretação da música”, traça as principais

diferenças na execução de danças barrocas, além de fornecer informações gerais sobre a

interpretação:

As obras para violino solo: Bach teve o cuidado de descrever a I, III e V como

“sonatas”, e são integralmente no estilo italiano; intitulou a II, IV e VI “partitas”, e a

maior parte delas está no estilo italiano; no II, a corrente e a sarabanda são italianas;

a corrente da IV também é italiana e, portanto, deve ser tocada, do começo ao fim,

em fluente compasso 9/8, sem nenhuma das hesitações e sutilezas do ritmo de uma

corrente francesa; a VI está recheada de danças francesas, mas a giga é italiana.

(DART, 1960, p. 115)

O entendimento sobre as características da Ciaccona, e sobre o tratamento das notas

pontuadas, bem como da articulação, é importante para nortear o pensamento acerca das

digitações, da mesma forma que estas são imprescindíveis para o entendimento da música

barroca, como sugere Dart (1960), quanto aos métodos para teclado:

Os métodos atuais de dedilhado estão igualmente arraigados na mente do intérprete

moderno, e seria ridículo sugerir que se voltasse àqueles usados em outros séculos.

[...] Mas o estudo cuidadoso dos métodos de dedilhado antigos será recompensador,

pois eles dão pistas para muitos pormenores de interpretação que, de outro modo, se

perderiam. (Ibid., 1960, p. 123)

1.2 Metodologia

Neste capítulo descrevemos a sequência metodológica para a realização da pesquisa

em cinco tópicos: transcrição, modelo de análise, experimentação de digitações, registro da

Ciaccona em vídeo e edição da partitura. Vejamos:

1.2.1 Transcrição para violão

O primeiro passo na metodologia constituiu-se da transcrição da Ciaccona para o

violão, onde constatamos a possibilidade da digitação como algo intrinsecamente relacionado,

fosse à articulação, sustentação de vozes, legato, efeito, idiomatismo ou mesmo à simples

fluência técnica. Para cada caso foram considerados o estilo e a viabilidade de execução.

19

Joachim Quantz, Essay, Berlin, 1752, VII, 10:

It is necessary to study how to detect and understand well what makes musical sense, and what must be joined

together. It is necessary to avoid, with equal care, separating what belongs together, and joining what comprises

more than one thought and should therefore be separate. For it is on this that one element in true expression

depends. (DONINGTON, 1963, p. 412)

20

Neste processo, transcrições e gravações de referência foram constantemente consultadas

(vide referências).

1.2.2 Modelo de análise

Após a transcrição, foi estabelecido um modelo de análise que consiste na divisão e

classificação dos elementos melódicos e harmônicos da obra, de modo a aplicar uma digitação

eficaz para cada caso, como assim chamaremos esta classificação daqui por diante. São eles:

motivos, melodia polifônica, arpejos e homogeneidade tímbrica. Após a análise, verificou-se a

necessidade de incluir uma quinta classificação que trata da não realização dos critérios

estabelecidos em cada caso. A esta, denominaremos exceções.

1.2.3 Experimentação de diferentes digitações

Para cada possibilidade de digitação, foi encontrada pelo menos uma opção satisfatória

onde pudemos englobar o maior número de aspectos da música, fossem eles históricos,

estilísticos ou analíticos. Escolhida a digitação, esta foi grafada na transcrição.

1.2.4 Registro em video da execução da Ciaccona BWV 1004

Estabelecida a digitação na partitura, incluí a Ciaccona em meu repertório durante o

curso e a apresentei em meu último recital de mestrado, em 05 de novembro de 2009, de

modo que eu pude analisar, através de vídeo, os resultados obtidos até então e obter novos

parâmetros de avaliação. Seis meses após este recital, regravei a minha interpretação da

Ciaccona em DVD, focando a câmera nos movimentos de mão esquerda. O objetivo dessa

etapa da metodologia foi registrar visual e auditivamente os resultados da pesquisa, de forma

que possa auxiliar futuros trabalhos, tanto da digitação propriamente dita, quanto do processo

de preparação de uma peça, sendo a digitação apenas um aspecto.

1.2.5 Edição da partitura

Como última etapa, foi realizada a edição da Ciaccona de Bach, transcrita para violão

solo em duas edições: 1) Edição com digitação, 2) Edição comparativa em dois sistemas (o

primeiro com o original e o segundo com a transcrição). Para as duas versões foi usado o

software de edição de partitura Encore, v. 4.5.3.

21

2 CIACCONA BWV 1004 DE JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)

2.1 Características da Ciaccona

Baseada na variação de uma pequena progressão harmônica repetida, a Ciaccona

originou-se na América Latina como uma dança cantada e, no século XVII, difundiu-se na

Espanha e na Itália. Em compasso ternário, “os acordes mais utilizados para refrões

forneceram um grande número de baixos de chacona, que foram usados como bassos

ostinatos para árias (de Monteverdi e outros) e para peças instrumentais” (SADIE, 1994, p.

184). A Ciaccona compõe um grande painel de variações a partir de um tema de quatro

compassos, onde Bach se utiliza dos estilos francês, “como uma Abertura Francesa” (DART,

1960), e italiano, justapostos numa variedade quase infinita de diminuições, síncopes, ritmos

pontuados e ornamentação. Carlevaro (1989) a descreve da seguinte forma:

É uma dança que se projeta em forma de variações. Está tradicionalmente baseada

sobre quatro compassos em tempo de 3/4, que sempre começam (é sua

característica) sobre o segundo tempo. Sua força é derivada da obsessiva repetição –

em inumeráveis transformações – da idéia original. Essas contínuas transformações

são altamente elaboradas, e nunca perdem contato com os compassos iniciais; eles

estão sempre presentes. (CARLEVARO, 1989, p. 4) 20

Embora a Ciaccona seja designada como uma forma barroca de variações, há autores

que apontam o simbolismo nesta obra, onde ela deixa de ser meramente um esquema formal

do período e passa a ser vista como um Tambeau à morte de Maria Barbara, primeira esposa

de Johann Sebastian Bach. Segundo Harnoncourt (1984):

Na [música] de Bach [...] encontram-se continuamente números que representam

jogos aritméticos ou números elevados a certas potências mágicas, freqüentemente

em trechos onde se acham passagens bíblicas ou dados biográficos. Estão

codificados da maneira mais diversa: algumas vezes, indicando o número de

repetições de uma nota ou de compassos, outras, certos valores ou alturas de notas, e

assim por diante. O conhecimento do simbolismo numérico e do alfabeto numérico

era algo tão comum, que o compositor podia incorporar às suas obras mensagens

codificadas deste gênero, uma parte das quais era certamente compreendida na

audição e na leitura de sua música. (HARNONCOURT, 1984, p. 80)

Além dos símbolos e combinações aritméticas citados por Harnoncourt (1984), os

quatro movimentos da Partita II BWV 1004 que antecedem a Ciaccona (Allemanda,

20

La Ciaccona es una danza que se proyecta en forma de variaciones. Está tradicionalmente basada sobre cuatro

compases en tiempo de ¾, que siempre comienzan (es su característica) sobre el segundo tiempo. Su fuerza es

derivada de la obsesiva repetición – en innumerables transformaciones – de la idea original. Esas continuas

transformaciones son altamente elaboradas, y no pierden nunca contacto con los compases iniciales; ellos están

siempre presentes. (CARLEVARO, 1989, p. 4)

22

Corrente, Sarabanda, Giga) partilham de um tetracorde descendente de Ré menor (Ré – Dó –

Sib – Lá) que surge a todo o momento nas mais variadas formas. É também vital o uso da

substância musical de corais religiosos, além da tonalidade menor que já traz por si só o que

Zarlino chama de Affetto Tristo, um sentimento ruim (ALVARENGA, 1992, p. 56). Segundo

Harnoncourt (1984), “todas as harmonias eram julgadas „moralmente‟, podendo-se

compreender porque as peças necessariamente terminavam com um acorde perfeito maior:

não se poderia finalizar uma obra no caos (uma regra cujas ocasionais infrações servem para

denotar uma intenção particular do autor)”. (HARNONCOURT, 1984, p. 79)

A criatividade de Bach em incrustar símbolos em sua música transcendia a “idéia

barroca de que a música seria um reflexo ou uma imagem da ordem divina” (Idem). Segundo

Zanon (2009):

Dá pra afirmar com segurança que ele compunha levando em conta [ciência e

religião] como se fossem uma só. [...] Uma antiga catedral está cheia de símbolos,

de cima a baixo, até no padrão dos ladrilhos ou na cor dos mármores. Não acho que

se tente passar nenhuma „mensagem oculta‟ em todos os casos; [...] a questão central

é a persistência de uma visão cosmológica, de tudo pertencer a uma ordem superior.

(ZANON, 2009)

As letras dos seus hinos não só fazem referência à morte como uma perda, como

também evocam o consolo de, após deixar o prazer terreno, passar a pertencer a uma paz

celeste. Dentro da harmonia da Ciaccona estão as notas do coral Christ lag in todesbanden

(Cristo está deitado nos braços da morte), principal hino de Páscoa em Leipzig, publicado em

1524, que representa a “intensa tristeza da morte e a esperança de uma vida eterna”

(CAMPOS, 2010), e o coral Vom Himmel höch da komm`ich her (Desde o alto dos céus aqui

eu venho), o qual fala do advento do Salvador e cuja melodia é encontrada também nas

seguintes obras para órgão: BWV 700, 701, 738, 738a e 769, três vezes no Christmas

Oratorio e em um dos movimentos do Magnificat BWV 243.

O aspecto do texto de Vom Himmel höch da komm`ich her que se destaca na Ciaccona

é a aparição dos anjos, expressada na música por uma “encantadora desordem de escalas

ascendentes e descendentes” 21

(Schweitzer, 1905). Segundo Zanon (2009):

Bach, a partir do momento em que sua escrita atingiu um domínio supremo, em que

era capaz de escrever qualquer tipo de música com total fluência, para quem

contraponto não tinha nenhum segredo, deve ter aumentado o desafio mental ao

tentar fazer seu material encaixar em um conjunto pré-determinado de elementos

que poderiam trazer alguma carga simbólica. Isso é tão claro e evidente nas duas

Paixões que não vejo razão para não ter se espalhado às outras obras. [...] Com

enorme freqüência, nas obras sacras, ele associa certas tonalidades ao conteúdo do

texto, e faz o mesmo com uma infinidade de desenhos melódicos, motivos, número

21

Ver compassos 169 a 176 da Ciaccona.

23

de repetições nas imitações e assim por diante; o uso de seqüências harmônicas

extraídas de corais com um significado muito preciso na liturgia aparece a toda hora

na música instrumental. (ZANON, 2009)

Um dos principais estudos hoje sobre o simbolismo na Ciaccona é o da musicóloga

alemã Helga Thoene22

, que em 1994 escreveu “Johann Sebastian Bach - Ciaccona: Tanz oder

Tombeau”. Segundo Thoene, “cada um dos movimentos da Partita II BWV 1004 de Bach é

inspirado num coral religioso associado à meditação sobre a morte” (CAMPOS, 2010). A

respeito de sua teoria, Zanon (2009) diz o seguinte:

A teoria se aplica a duas questões. A primeira é o uso das seqüências harmônicas

dos corais para trazer uma carga semântica a obras instrumentais. [...] A segunda é a

questão numerológica. Ele teria feito a correspondência entre o alfabeto das notas

em alemão e os números (como o Castelnuovo faz na Tonadilla); os temas da

chaconne teriam sido montados de acordo com o nome de Maria Barbara e de seus

filhos. A Helga Thoene mostra isso de forma muito persuasiva. Inclusive na última

página, quando o tema volta, a contagem traz os nomes dos filhos, mas não o da

Maria Barbara. (ZANON, 2009)

Apesar de não ser o propósito deste trabalho, o conhecimento da presença de

“significados quase icônicos”, como se refere Fernandez (2003, p. 38)23

, de alusões a

passagens bíblicas e determinadas relações numéricas contidos nas obras de Bach nos dá

subsídios para uma maior opção de caminhos a serem tomados durante o processo de

digitação. Isto se considerarmos, obviamente, todo o processo investigativo que pode haver

desde o primeiro contato com a obra até a sua realização.

2.2 Transcrição para violão

Desde a época de Bach, várias transcrições24

distintas de sua obra foram realizadas

para outros instrumentos, particularmente para o piano e para o violão. Em relação a este

último, Yates (1998) atribui esta grande quantidade de transcrições à “completude polifônica

e textural” proporcionada pelo violão, cujas capacidades polifônicas são maiores que do

instrumento original. Especificamente as Sonatas e Partitas para violino solo têm uma razão

especial para ganharem um novo meio de realização, pois:

22

THOENE, Helga. Johann Sebastian Bach, Ciaccona: Tanz oder Tombeau. Verborgene Sprache eines

berühmten Werkes (Veröffentlichungen des Historischen Museums Köthen/Anhalt XIX, Cöthener Bach-Hefte 6,

Köthen 1994) 23

La organización de los elementos temáticos en sí mismos, que en algunos casos, como veremos más adelante,

remite a significados casi icónicos. (FERNANDEZ, 2003, p. 38) 24

Segundo o Dicionário Grove de Música (1994), transcrição é o “termo que designa a cópia grafada de uma

obra musical, envolvendo alguma modificação. Pode ser uma mudança de meio (significando o mesmo que

“arranjo”); ou pode significar que sua notação foi transformada (p. ex. de tablatura para pauta)” (SADIE, 1994,

p. 957).

24

As obras para violino são facilmente acomodadas, a tessitura grafada é semelhante, e

quase todos os saltos podem ser confortavelmente reproduzidos e sustentados. De

fato, em alguns aspectos, a música é mais possível tecnicamente no violão do que no

violino. No entanto, o motivo mais importante para o sucesso desta música quando

tocada ao violão é a completude polifônica e textural do original - muito pouco

precisa ser mudado ou adicionado. (YATES, 1998) 25

Nestas obras, Bach “deu provas da sua capacidade para criar a ilusão de uma textura

harmônica e contrapontística através das cordas múltiplas ou das linhas melódicas simples

que delineiam ou sugerem uma interação de vozes independentes.” (GROUT; PALISCA,

2007, p. 448)

Para este trabalho, selecionamos as versões publicadas da Ciaccona que hoje têm

destaque no cenário violonístico e por oferecerem suporte a esta pesquisa, seja pelas

performances de referência como as de Andrés Segovia26

e Kazuhiro Yamashita27

ou pelo

cunho didático de autores como Abel Carlevaro28

e Thiago Colombo de Freitas29

. Com base

nos procedimentos utilizados nestas versões, a transcrição da Ciaccona BWV 1004 para

violino solo se deu a partir da edição Urtext30

, baseada no manuscrito de J. S. Bach31

.

Nicolaus Harnoncourt (1984) sugere que podemos ter mais informações provenientes de um

manuscrito (sobretudo autógrafo) do que de um texto musical impresso, onde a escrita do

compositor é transportada sem trazer por completo o conteúdo emocional que se manifesta no

25

The violin works are readily accommodated, the notated tessitura is similar, and almost all multi-stops can be

comfortably reproduced and sustained. Indeed, in some ways the music is more technically feasible on the guitar

than it is on the violin. However, the most important reason for the success of this music when played on the

guitar is the polyphonic and textural completeness of the original - very little needs to be changed or added

(YATES, 1998). 26

Andrés Segovia – B. Schott‟s, Mainz, 1934. Transcrita em torno de 1920, publicada em 1934, apresentada em

Paris em junho de 1935 e gravada em 1955, a versão de Segovia não foi baseada exclusivamente na partitura de

Bach para violino. “Ele transcreveu partes da versão de Ferruccio Busoni, uma transcrição [para piano] feita em

1891-1892, enquanto este vivia em Boston” (BERG, 2009). “Segovia transcribed parts of Ferruccio Busoni's

transcription/arrangement of the Chaconne, a transcription made in 1891-1892 while Busoni was living in

Boston”. 27

Kazuhiro Yamashita – K. Yamashita Edition, s/d. Transcrição semelhante à de Segovia, porém informando, na

maioria das vezes, apenas as cordas pelas quais devem ser realizadas as digitações. 28

Abel Carlevaro – Chanterelle: Heidelberg, 1989. Nesta transcrição, Carlevaro deixa claro sua intenção

didática, sugerindo interpretações alternativas para determinadas passagens, considerando a técnica e as

diferentes abordagens históricas. 29

Thiago Colombo de Freitas – UFRGS, 2005. Sua transcrição é resultado de sua dissertação de mestrado,

“Ciaccona em Ré menor BWV 1004 de J. S. Bach: um estudo das articulações e uma transcrição para violão”,

defendida em 2005 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde o autor analisa as articulações indicadas

por Bach e traça um paralelo contrapondo às tradições de execução. Sua transcrição não fornece digitações ou

dedilhados, mas a rigorosa articulação através dos ligados sugere a digitação. 30

BACH, J. S. Partitura. Works for violin: The complete Sonatas and Partitas for unaccompanied violin. From

the Bach-Gesellschaft Edition, 1900. Dover Publications, Inc. New York 31

Staatsbibliothek, Preussischer, Berlin. Disponível em www.imslp.org

25

gesto da escrita.32

E complementa: “é simplesmente impossível escrever uma passagem

allegro perturbadora ou uma harmonia angustiada com notas bem arrumadinhas e limpas”

(HARNONCOURT., 1984, p. 224). Porém, esta é uma observação não oportuna à Ciaccona,

visto que sua grafia no manuscrito é sim bastante regular e não demonstra qualquer afetação

por parte do compositor. Deste modo, a nossa principal fonte foi a edição Urtext, por uma

praticidade de leitura, sendo o manuscrito apenas um apoio para eventuais comparações.

Sendo a Ciaccona na tonalidade de Ré menor, não houve necessidade de transpô-la a

outra tonalidade para executar ao violão, pois sua afinação natural, alterada somente na sexta

corda um tom abaixo (de Mi para Ré), permite uma execução confortável de modo que

aproveita-se ao máximo as cordas soltas, o que possibilita uma maior ressonância do

instrumento.

Segundo Barbeitas (2000), “transcrever requer, minimamente, uma reflexão não

apenas em relação aos problemas idiomáticos que a operação de mudança de instrumentos

produz, mas também quanto à possibilidade de se preservar, num outro meio, a coerência e a

proposta de organização contidas no original” (BARBEITAS, 2000, p. 95). Desta forma, a

transcrição consistiu na adição de notas que estavam de acordo com a harmonia, ornamentos e

mudanças de registro para melhor adequá-la ao violão, resultando, segundo Figueiredo

(2004), em uma Edição Prática, “destinada exclusivamente a executantes, sendo baseada em

uma única fonte, na verdade qualquer fonte, com a utilização de critérios ecléticos para atingir

seu texto”. (Figueiredo, 2004, p. 50)

32

É um erro bastante difundido acreditar que, para um músico, a partitura, a apresentação gráfica, seja

meramente uma indicação que lhe mostra que notas devem ser tocadas, com que velocidade, com que

intensidade e com que nuanças expressivas. A notação [...] possui, além do conteúdo puramente informativo,

uma irradiação sugestiva, uma magia à qual nenhum músico sensível pode escapar. (HARNONCOURT, 1984, p.

224)

26

Os critérios para a sua transcrição ao violão envolveram:

1. Preenchimento de acordes:

No intuito de obter uma sonoridade ampla e de explorar os recursos harmônicos do

violão, completamos os acordes que Bach “sugere” no original. Observemos abaixo os

acordes de Lá Maior e Ré Maior nos compassos 12 e 13.

Ex. 3: Ciaccona (c. 12-13) – Preenchimento de acordes.

2. Encadeamento de baixos:

Uma das razões de transcrever esta obra para o violão é a possibilidade de

complexificar o processo de digitação tendo em vista o contraponto que pode ser agregado às

linhas melódicas. Vejamos no exemplo abaixo, na transcrição, a forma como se conduz a

digitação da melodia em função dos baixos que a acompanham.

Ex. 4: Ciaccona (c. 30-33) – Encadeamento de baixos.

27

3. Mudança de oitava:

É uma prática comum de Bach escrever acordes invertidos em suas Sonatas e Partitas

para violino, isto devido à impossibilidade de se realizar naquele instrumento alguns acordes

no estado fundamental. Com base nisto, optamos, em alguns casos, manter os acordes

invertidos, ajustando somente notas que propiciam uma melhor disposição harmônica no

violão.

Ex.5: Ciaccona (c.190) – Mudança de oitava.

Vejamos outros exemplos:

Ex. 6: Ciaccona (c.199) – Mudança de oitava.

Como podemos observar no Exemplo 6, as notas Sol# passaram para o registro grave,

tornando o trecho mais ressoante do que seria no original; não só pelo Sol# oitava abaixo, que

permite maior sustentação, mas pela reentrância da nota Ré na terceira corda e adição da nota

Si na segunda corda.

28

Ex. 7: Ciaccona (c. 229-230) – Mudança de oitava.

No Exemplo 7, as notas Lá que servem como um pedal às notas melódicas foram

oitavadas para melhor evidenciação da linha melódica que se encontra com hastes para baixo.

29

3 O PROCESSO DE DIGITAÇÃO

Neste capítulo é descrito o processo de digitação da Ciaccona e comparado, quando

oportuno, às digitações de transcrições consagradas, como um retrospecto às tradições de

execução e possibilidades de aplicação no presente trabalho.

Ao iniciar o processo, foram considerados alguns aspectos33

inerentes à escrita de

Bach, como recorrência motívica, melodia polifônica e a disposição intervalar que divide uma

idéia em melódica (grau conjunto) ou harmônica (grau disjunto). Segundo Yates (1998):

A escolha da digitação de mão esquerda é determinada pelo contexto melódico e

harmônico, e o compromisso entre o efeito musical, a sonoridade do instrumento e

conveniência técnica. Digitações melódicas, que se movem estritamente nota-a-nota,

sem permitir qualquer sobreposição de notas dentro da linha, estão em contraste com

digitações harmônicas, que permitem a sobreposição de notas pertencentes à mesma

harmonia, embora a notação não possa indicar isto. O fator decisivo na escolha de

um sistema sobre o outro é decidido pelo contexto musical e pela sonoridade

instrumental. O grau em que qualquer sistema pode ser empregado de forma

consistente é ainda mais restrito pelos limites físicos do instrumento e pela

facilidade do violonista, ressaltando que, o que resulta em performance,

provavelmente reflete as intenções do intérprete, tanto quanto as implicações das

próprias digitações. (YATES, 1998) 34

A observação destes casos possibilita ao violonista desempenhar uma divisão

organizada de tarefas, onde concebe a digitação de mão esquerda de modo a distribuir os

elementos da música de maneira uniforme e coerente.

Considerando que a música de Bach é composta de um número reduzido de células

que, variadas e combinadas, servem de base para toda a composição, faz-se necessária a

evidenciação dessas células, onde o ouvinte possa identificá-las e sua audição seja capaz de

assimilar suas relações motívicas. Segundo Reti (1951), motivo é “qualquer elemento

musical, seja ele uma frase ou fragmento melódico, ou mesmo uma característica rítmica ou

33

Estes aspectos chamaremos de “casos” daqui por diante. 34

The choice of left-hand fingering is determined by melodic and harmonic context, and the compromise

between musical effect, instrumental sonority, and technical expediency. Melodic fingerings, which move

strictly from note-to-note without allowing any overlapping of notes within the line, stand in contrast to

harmonic fingerings which allow for the overlapping of notes belonging to the same harmony, even though the

notation may not indicate it. The deciding factor in choosing one system over the other is decided by musical

context and instrumental sonority. The degree to which either system may be employed consistently is further

restrained by the physical limits of the instrument and by the facility of the player, noting that results in

performance will likely reflect the intentions of the player as much as the implications of the fingerings

themselves. (YATES, 1998)

30

dinâmica que, por ser constantemente repetida e variada ao longo de um trabalho ou uma

seção, assume um papel no 'design' da composição [...]”. (RETI, 1951, p. 11)35

Observemos abaixo o compasso inicial acéfalo, bem como o ritmo predominante de

semínima – semínima pontuada – colcheia. A ênfase no segundo tempo aliada à colcheia no

último tempo (assim como semicolcheias e fusas) são elementos motores deste ritmo e

constituem um motivo.

Ex. 8: Ciaccona (c. 1-3) - Características do ritmo.

Segundo tratados de época, para uma melhor articulação destas figuras recomenda-se

aumentar a duração das notas pontuadas, tocando mais rapidamente as figuras de notas curtas

subsequentes. Thurston Dart (1960) diz, inclusive, que “uma curta pausa antes da nota de

menor duração melhorará a articulação [...] [e que] todos os ritmos pontuados devem ser

ajustados de maneira a coincidir com o mais curto deles na peça” (DART, 1960, p. 97).

Segundo Engramelle (1775), “todas as notas em uma execução têm uma certa proporção de

som e uma certa proporção de silêncio que, juntos, compõem o valor total da nota. Esses

silêncios no final de cada nota determinam a sua articulação” (ENGRAMELLE, 1775 apud

DONINGTON, 1963, p. 413)36

. Por outro lado, “estes silêncios devem variar de acordo com o

tipo de expressão que se adéqua à peça; em melodias animadas, eles normalmente são menos

importantes do que em melodias graciosas”. (BEDOS DE CELLES, 1766 apud

DONINGTON, 1963, p. 414) 37

Estes preceitos foram importantes para a decisão de quais digitações usar nos ritmos

pontuados, bem como para eleger o tipo de articulação usado nas figuras curtas. Segundo

Betancourt (1999), “após os anos sessenta, estudos musicológicos deram ao arranjador uma

35

We call a motif any musical element, be it a melodic phrase or fragment or even only a rhythmical or

dynamical feature which, by being constantly repeated and varied throughout a work or a section, assumes a role

in the compositional design somewhat similar to that of a motif in the fine arts. (RETI, 1951, p. 11) 36

M. D. J. Engramelle, Tonotechnie, Paris, 1775, p. 18:

All notes in performance have a certain proportion of sound and a certain proportion of silence which together

make up the total value of the note. These silences at the end of each note determine its articulation.

(ENGRAMELLE, 1775 apud DONINGTON, 1963, p. 413) 37

Bedos de Celles, VArt du Facteur d'Orgues [Paris] 1766-78, p. 599:

These silences ought to vary according to the kind of expression which suits the piece; in lively melodies, they

are ordinarily less considerable than in gracious ones. (BEDOS DE CELLES, 1766 apud DONINGTON, 1963,

p. 414)

31

rica fonte de informações sobre peças originais e sobre a prática de performance de períodos

históricos. Entre arranjadores e editores, a tendência tem sido em direção a um trabalho mais

acadêmico e „puro‟”. (BETANCOURT, 1999, p. 18) 38

Baseado nestes preceitos, buscamos aderir a uma digitação que por si só fosse capaz

de realizar as incumbências polifônicas e motívicas desta obra. Obviamente não se exclui aqui

a necessidade do intérprete de, por meio de outros artifícios como expressão, articulação e

ênfase, ressaltar tais incumbências. Muito pelo contrário, esta distribuição de funções serve

como um ponto de partida, como um guia para o executante direcionar suas escolhas

interpretativas.

38

After the sixties musicological studies have given to the transcriber a richer source of information about

original pieces and the performance practice of historical periods. Among transcribers and editors, the tendency

has been toward a more scholastic and “pure” work. (BETANCOURT, 1999, p. 18)

32

3.1 Casos

3.1.1 Motivos

Como dito acima, o motivo é uma célula recorrente no trecho, ou mesmo na obra.

Durante o discurso musical, os motivos formam as frases e permitem ao intérprete e ao

ouvinte estabelecerem conexões entre elas, lembrando, no âmbito fraseológico, de

acontecimentos passados ou proporcionando novas previsões. Estes motivos podem se

caracterizar por uma sequência lógica, como por exemplo, a sucessão de um grupo específico

de figuras rítmicas e melódicas, ou simplesmente por figuras que demarcam pontos na obra.

Mas, independente de sua natureza, o motivo deve ser visto (e lembrado) como um fator que

unifica a obra, capaz de suportar sua trama de temas, episódios, seções, reexposições,

divertimentos, ou seja, tudo o que compõe sua estrutura.

Tomando como base as considerações acerca dos problemas da digitação ao violão e

sua idiossincrasia enquanto instrumento polifônico, fez-se necessário adequar estes motivos

de maneira que todos fossem realizados da mesma forma, atribuindo-lhes as mesmas

disposições digitais, para então conferir-lhes o mesmo caráter, seja no âmbito da articulação,

do fraseado ou da sustentação.

Para uma melhor visualização dos exemplos, os classificamos de quatro formas: 1)

motivos de figuras curtas ligadas, 2) motivos em cruz, 3) motivos sequenciais e 4) motivos

em ostinato.

3.1.1.1 Motivos de figuras curtas ligadas

Convencionaremos chamar de “figuras curtas” aquelas que têm menor valor dentro de

um contexto, como por exemplo, fusas dentro de um compasso onde a figura predominante é

a de semicolcheia (ou maiores valores) ou, semicolcheias dentro de compasso de colcheias, e

assim por diante. No entanto, o motivo aqui não se caracteriza somente pelas figuras curtas

ligadas, mas sim por elas e sua nota resultante, uma figura de maior valor, formando então um

motivo de três notas.

A respeito dos ligados, é importante distingui-los. Segundo Yates (1998):

Ligados de mão esquerda são adequados a esta música, e podem ser categorizados

de três formas: técnicos, texturais e fraseológicos. Ligados técnicos são utilizados

apenas para ajudar a mão direita na execução de passagens rápidas; ligados texturais

aliviam a monotonia de passagens de notas iguais constantemente articuladas,

especialmente quando não é possível fornecer variedade de toque com a mão direita

33

por si só; ligados fraseológicos são definidos de acordo com seu efeito musical. É

interessante notar que, independentemente da motivação para a sua utilização, todos

os ligados têm uma consequência musical ou fraseológica - geralmente o da ligação

ou do agrupamento de notas juntas, salientando a primeira nota do grupo. (YATES,

1998) 39

Robert Donington (1963) diz que ligaduras reais (grafadas) são um elemento comum à

prática dos instrumentos de arco, mas que devem, sobretudo, “ser utilizadas mesmo na música

dos períodos em que não havia o costume de mostrá-las”. (DONINGTON, 1963, p. 411)40

Donington discorre inclusive sobre um trecho em uma determinada obra de Couperin citada

por Wilfrid Mellers, o qual aponta ligaduras pontilhadas, não presentes no original, mas que

mostram a frase implícita através da digitação (Ibid. p. 410)41

. Ressalta, portanto, o estudo e o

uso deste procedimento.

A partir do compasso 8 da Ciaccona já nos deparamos com os motivos de figuras

curtas ligadas, os quais se destacam meio ao ritmo predominante de colcheias pontuadas e

semicolcheias. Vejamos:

Ex. 9: Ciaccona (c.8-9) – Motivos de figuras curtas ligadas.

39

Left-hand slurs are appropriate to this music, and may be categorized in three ways: technical, textural, and

phraseological. Technical slurs are used simply to aid the right hand in the execution of fast passage-work;

textural slurs relieve the monotony of constantly-articulated equal-note passages, particularly when it may not be

possible to provide enough variety of touch with the right-hand alone; and phraseological slurs are defined

according to their musical effect. It is worth noting that, regardless of the motivation for their use, all slurs have a

musical, or phraseological, consequence - generally that of connecting or grouping notes together, stressing the

first note of the group. (YATES, 1998) 40

Actual slurs are a normal part of the technique of bowed instruments, and are to be used even in the music of

periods at which it was not customary to show them. (DONINGTON, 1963, p. 411) 41

They may often be used, and can always be studied, to advantage. Two excellent examples from Couperin are

cited by Wilfrid Mellers (Francois Couperin, London, 1950, p. 310). The slurs shown with dotted lines are not

present in the original, but show the phrasing implied by the fingering. (DONINGTON, 1963, p. 410)

34

Na intenção de obter precisão rítmica e estabelecer um padrão motívico, optamos por

ligar mecanicamente as fusas Sol e Fá. Neste caso, os ligados são técnicos, conforme a

descrição de Yates. No compasso 9 houve o mesmo procedimento entre as notas Sol e Lá e

assim se segue em todas as vezes que eles aparecem. Lembrando que os motivos então são

formados pelas notas Sol-Fá-Sol, no compasso 8 e, Sol-Lá-Sib no compasso 9.

É importante ressaltar que se levarmos a cabo todas as possibilidades motívicas que

pode haver em uma obra de Bach, ou mesmo em um trecho ou compasso, teremos obviamente

uma infinidade de exemplos. As próprias figuras de colcheias pontuadas e semicolcheias

predominantes no início da Ciaccona, como já vimos, são o motivo. O fato de haver nesta

obra uma figura anacrústica servindo de mola propulsora do ritmo a cada tempo de compasso

já caracteriza um motivo. Porém, o que nos interessa abordar neste trabalho são aqueles onde

a digitação tem um papel primordial na sua realização, como no caso, os motivos de figuras

curtas ligadas. Vejamos outro exemplo:

Ex. 10: Ciaccona (c. 26-27) – Motivos de figuras curtas ligadas.

Assim como se apresenta no original, as notas curtas dos compassos 26 e 27 foram

ligadas. Neste caso, o ligado tem uma função textural, aliviando a insipidez do trecho formado

por figuras iguais e conferindo um maior legato à frase. Os ligados texturais também podem

servir como ornamentação e eram usados principalmente em obras para alaúde e guitarra de

cinco ordens:

Ligados encontrados em tablaturas de alaúde barroco e guitarra de cinco ordens são

geralmente dos tipos técnicos e texturais. Uma importante característica de estilo

reside na sua colocação - são invariavelmente colocados por conveniência e não por

razões de coerência ou relação motívica. Os ligados grafados na versão para alaúde

da fuga em Sol menor (BWV 1000), por exemplo, são todos do tipo descendente, e

quase sempre posicionados de modo a "puxar" para uma corda solta. Ligados

texturais podem ser considerados como ornamentais (e estão incluídos neste

contexto em tabelas de ornamentação para o alaúde e a guitarra de cinco ordens),

35

contribuindo para a constante variação que aparece no nível da superfície em grande

parte da música barroca. (Ibid., 1998) 42

Este procedimento de ligar as figuras curtas também está presente nas transcrições de

referência, apesar de não constituir uma regra.

3.1.1.2 Motivos em cruz

Como vimos no capítulo 2 deste trabalho, Bach insere símbolos em sua música que

remetem a significados pessoais, religiosos e numerológicos. Um desses símbolos é o motivo

cuja disposição horizontal das notas forma uma cruz. Segundo Williams (1980), motivo em

cruz é “um grupo angular de quatro notas das quais a primeira e a última são em torno da

mesma altura, e a segunda e terceira são superior e inferior (ou inferior e superior),

respectivamente, de modo que duas linhas traçadas entre 1 e 4 e, 2 e 3, cruzam-se”.

(WILLIAMS, 1980, p. 586)43

O exemplo típico é o motivo usado como o terceiro sujeito do Contrapunctus XIV da

“Arte da Fuga” formado pelas letras do seu nome, B-A-C-H, cada uma representando, no

alfabeto alemão, suas respectivas notas, Sib-Lá-Dó-Si. Vejamos na pauta a disposição dessas

notas:

Ex. 11: Motivo em Cruz com as letras do nome BACH.

42

Slurs found in Baroque lute and five-course guitar tablatures are generally of the technical and textural type.

An important stylistic characteristic lies in their placement - they are invariably placed for convenience rather

than for motivic consistency or relationship. The slurs notated in the lute version of the fugue in g-minor (BWV

1000), for example, are all of the descending type, and are almost always positioned so as to "pull-off" to an

open string. Textural slurs may therefore be regarded as ornamental (and are included in this context in

ornamentation tables for the lute and five-course guitar), contributing to the constant variation that appears at the

surface level of much Baroque music. (YATES, 1998) 43

An angular group of four notes of which the first and last are around the same pitch, the second and third

respectively higher and lower (or lower and higher), so that two lines drawn between 1 and 4, 2 and 3 would

cross halfway. (WILLIAMS, 1980, p. 586)

36

Entendendo a cruz como um motivo, e o mais recorrente em toda a obra,

convencionamos ligar, salvo algumas exceções para melhor adequação digital e sonora, as

notas que compõem um intervalo expressivo, como por exemplo, notas atrativas às suas

resoluções ou raros saltos melódicos. A cruz evidencia-se por si só na textura musical, mas o

“gesto” de ligá-la em seus intervalos sensíveis confere uma articulação que a torna mais

expressiva do ponto de vista retórico. Segundo Donington (1963), “uma determinada melodia,

um determinado trecho, quando tocado de uma certa maneira [de digitação], produz no ouvido

de uma pessoa [...] um efeito diferente" (DONINGTON, 1963, p. 410)44

Ex. 12: Ciaccona (c. 29-32) – Motivos em cruz – Segundas menores ligadas.

Ligar motivos em cruz também é uma constante nas transcrições de Segovia e

Yamashita. Já na de Carlevaro, não há quaisquer ligados nestes motivos; ele reserva-os, em

sua maioria, às passagens virtuosísticas, como nas seções de escalas em fusas. Freitas, no

entanto, os aplica de forma deliberada; sempre coincidindo com as ligaduras originais,

independentemente de constituírem ou não um motivo.

3.1.1.3 Motivos sequenciais

Definimos assim os motivos que caracterizam uma sequência padronizada de

elementos, sejam eles melódicos ou rítmicos. Poderíamos inclusive falar em elementos

harmônicos, visto que se trata de uma obra de variações, porém pouco agregaria ao trabalho

em termos de digitação.

44

It is certain that a certain melody, a certain passage, when taken in a certain manner [of fingering], produces to

the ear of a person of taste (de la personne de gout), a different effect. (DONINGTON, 1963, p. 410)

37

Para estes motivos, buscamos digitar de modo que possibilitasse a repetição idêntica

de padrões para cada parte da sequência. Vejamos:

Ex. 13: Ciaccona (c. 33-35) – Motivos sequenciais – Repetição idêntica de padrões.

Este é um trecho na Ciaccona onde vários casos acontecem simultaneamente. Além

dos motivos sequenciais, ocorre também a melodia polifônica, com a suspensão da penúltima

nota melódica de cada compasso e a disposição da última com a primeira do compasso

seguinte; o arpejo, com a disposição intervalar das três primeiras notas de cada compasso; e a

homogeneidade tímbrica, pelo fato de se poder tocar a melodia na mesma corda. Vejamos

outro exemplo:

Ex. 14: Ciaccona (c. 53-56) – Motivos sequenciais – Motivos nas mudanças de harmonia.

Este ciclo de quintas também abarca mais de um caso. De qualquer maneira, como já

mencionado no Exemplo 13, o que se destaca neste trecho são os motivos, sempre no último

38

tempo de cada compasso, e os arpejos que o antecedem, contrastando a textura em harmônica

e melódica. A exemplo do original, convencionamos ligar as duas últimas notas para

evidenciar o salto melódico que há entre a última nota e a primeira do compasso seguinte. A

razão de ligarmos duas notas ao invés de três, como consta no original, é para coincidir o

momento do ligado com o baixo que o acompanha. De outra forma, ainda que possível, as

notas ligadas podem não ficar tão claras. Através desses motivos é que ocorrem as mudanças

de harmonia, o que reforça a necessidade de um gesto expressivo.

Ex. 15: Ciaccona (c. 85-86) – Motivos sequenciais – Repetição idêntica de caminhos.

No Exemplo 15, aliamos os motivos sequenciais com a viabilidade técnica. Trata-se de

um trecho virtuosístico e o uso de notas ligadas ajuda na fluência mecânica das mãos.

3.1.1.4 Motivos em ostinato

Nos compassos 217 a 220 da Ciaccona acontece um ostinato de segundas menores,

dispostas como bordaduras inseridas entre duas melodias de polifonia implícita.

39

Ex. 16: Ciaccona (c.217-220) – Motivos em ostinato

Ostinato de segundas menores melódicas entre melodias polifônicas.

Os motivos em segundas menores do Exemplo 16 são o elemento “perturbador” da

melodia polifônica que ocorre entre os compassos 217 e 220. Como base nisto, optamos por

ligá-las de forma não usual, ou seja, da segunda para a terceira figura de semicolcheia,

atribuindo-lhes uma articulação diferenciada dos demais motivos, por se tratarem de um

elemento inusitado na obra.

3.1.2 - Melodia polifônica

Um fenômeno similar ao motivo, ou seja, de estabelecer uma “conexão” entre as

notas, ocorre nas melodias polifônicas. “Embora a melodia polifônica não constitua

necessariamente um prolongamento, em algumas situações ela pode configurar uma extensão

[...] é um recurso muito usado por compositores para „forjar‟ polifonia em instrumentos

melódicos, como a flauta ou o violino” (FRAGA, 2009, p. 30). Ou seja, a concepção melódica

que se encontra “forjada” em um aglomerado de saltos intervalares, pode conferir polifonia à

obra. Nas obras não acompanhadas de Bach, como as Sonatas e Partitas para violino, este é

um recurso comum. Segundo Ferraz (1989):

Nas obras de Bach, mais precisamente em suas Partitas para violino solo e Suítes

para violoncelo, a textura de „melodias polifônicas‟ é bastante clara. Nessas peças,

as melodias são facilmente identificáveis. Funcionalmente apresentam-se com as

mesmas características dos contrapontos realizados em peças para conjuntos

40

instrumentais polifônicos. Distribuídas em regiões específicas e delimitadas da

tessitura, as diversas vozes dividem-se em sujeitos, respostas, contrapontos, base

harmônica, etc. De forma não restritiva, mas determinante, ao grave cabe a função

de qualificar harmonicamente a peça e ao agudo e médio sua condução melódica

linear. Assim, dentro dos padrões melódicos e harmônicos do Barroco, Bach garante

a legitimidade de suas „melodias polifônicas‟ de forma bastante particular sem, no

entanto fugir a uma linguagem coletiva e pertinente à sua época. (FERRAZ, 1989)

No violão, quando uma melodia encontra-se implícita, pode ser frisada através de uma

digitação que permita a independência das diferentes vozes da obra. Observemos no gráfico

como se dá a polifonia obtida através da digitação.

Ex. 17: Ciaccona (c. 41-46) – Melodia polifônica – Independência das diferentes vozes da obra.

41

No exemplo abaixo, a melodia polifônica constitui o próprio tetracorde descendente de

Ré, base para toda a Ciaccona.

Ex. 18: Ciaccona (c. 49-51) – Melodia polifônica – Melodia polifônica do tetracorde descendente de Ré.

No exemplo seguinte podemos verificar um dos aspectos citados por Harnoncourt,

onde Bach utiliza a tripla repetição da nota Lá, ou “CCC – Christus Coronabit Crucigeres”

(FERNANDEZ, 2003, p. 50) na Ciaccona para aludir à crucificação de Cristo. Este símbolo,

por representar um motivo e ser intercalado por sequências de arpejos, se destaca por si só no

contexto musical. Porém, o simples fato de se ter em determinadas notas um significado,

como é o caso, e este ir de encontro a outros aspectos presentes no trecho, como a melodia

polifônica, exige do intérprete uma maior reflexão sobre quais caminhos tomar para executar

tal trecho. Observemos como se configura a execução da tripla repetição da nota Lá na escrita

monofônica do original e na escrita também monofônica da transcrição, com a ressalva de que

esta última traz na digitação uma informação decisiva de como estas notas devem (ou podem)

soar, segundo os critérios estabelecidos.

42

Ex. 19: Ciaccona (c.161-163) – Execução da tripla nota Lá.

Neste caso, como podemos observar no gráfico, a última nota Lá da tripla repetição

permanece soando enquanto os arpejos tomam conta do preenchimento harmônico. Isto, além

de valorizar o ícone CCC, que se apresenta como um elemento à parte no emaranhado de

notas, propicia uma maior sensação polifônica ao trecho, pois esta nota, soando por mais

tempo do que está escrita, cria relações de retardo com as notas do arpejo, que por sua vez se

encaminha a baixos que formam melodias polifônicas. Em uma execução convencional, estas

notas Lá se ligariam imediatamente às notas seguintes, pois, além de terem uma relação

intervalar muito próxima, o que configura até mesmo (com poucas exceções) um recorrente

motivo em terças, podem ser tocadas na mesma corda e mesma região do braço do

instrumento. Observemos abaixo as decisões tomadas por Andrés Segovia, Abel Carlevaro e

Kazuhiro Yamashita, intérpretes de referência da Ciaccona.

43

Ex. 20: Ciaccona (c. 161-163) – Execução da tripla nota Lá. Comparação das digitações de Andrés Segovia,

Abel Carlevaro e Kazuhiro Yamashita.

Como podemos ver no exemplo acima, Segovia e Carlevaro optam por ligar a última

nota Lá do motivo CCC à nota seguinte. Isto ocorre em todos os compassos onde aparece este

motivo, exceto por aqueles onde a própria digitação convencional permite, ocasionalmente,

que ele permaneça soando, por pertencer a uma posição fixa dentro do acorde. Yamashita,

apesar de não indicar a digitação usada no trecho, não deixa dúvidas a respeito do mesmo

procedimento, por indicar ligados mecânicos (pontilhados no original) nas mesmas notas45

.

3.1.3 – Arpejos

Outra forma que Bach encontrou para obter polifonia em uma escrita monofônica foi a

distribuição intercalada de melodia e acompanhamento. Este recurso tem ligação direta com a

melodia polifônica; é uma forma de prolongar a duração das notas de uma melodia para obter

um preenchimento harmônico. Segundo Donington (1963), o arpejo é “um dispositivo para

espalhar o som” (DONINGTON, 1963, p. 212)46

. A disposição harmônica (graus disjuntos)

45

A ausência do ligado no compasso 161 trata-se de um erro de impressão, pois em suas gravações da Ciaccona,

Yamashita liga as duas primeiras notas (Lá-Fá#) do segundo tempo, assim como o faz nos compassos seguintes. 46

It is a device for spreading the sound. (DONINGTON, 1963, p. 212)

44

de notas que intercalam uma melodia (graus conjuntos) pode ajudar na polifonia da obra,

através de sua distribuição em cordas diferentes. Na presente transcrição, os arpejos são

digitados desta forma, exceto por poucos momentos de inviabilidade técnica.

Observemos abaixo o compasso 149. O Sol# do segundo tempo é digitado na quarta

corda para poder formar uma posição fixa de mão esquerda, possibilitando então a realização

do arpejo sem que hajam notas interrompidas. Desta forma, a textura melódica do primeiro

tempo se contrasta com a textura harmônica do segundo. O mesmo ocorre nos compassos

seguintes.

Ex. 21: Ciaccona (c. 149-156) – Arpejos – Disposição harmônica da digitação.

45

No exemplo seguinte, é da última nota do arpejo que surge a melodia. O legato obtido

pelo arpejo tocado em posição fixa possibilita uma maior expressividade das notas melódicas.

Ex. 22: Ciaccona (c. 213-214) – Arpejos.

Porém, é importante não confundir graus disjuntos, que geralmente têm a função de

preenchimento harmônico e que podem dar vazão à existência de mais de uma voz, com

saltos melódicos que, segundo Koonce (2005), sinalizam um gesto expressivo47

:

Deve-se também determinar se um salto melódico é um gesto retórico expressivo de

uma única voz ou se sinaliza a entrada de uma segunda voz implícita no diálogo

com a primeira. Digitações, portanto, tornam-se fator crítico para transmitir

eficazmente a existência de múltiplas vozes. (KOONCE, 2005) 48

3.1.4 – Homogeneidade tímbrica

Há determinados trechos na Ciaccona onde é recomendável a realização de uma

melodia em uma só corda, percorrendo-a pelo braço do instrumento. Isto porque se tratam de

frases extensas, com notas longas, e uma simples mudança de corda compromete a sua

unidade tímbrica. Segundo Wolff (2001):

Digitar uma melodia em uma única corda é um recurso bastante utilizado para obter

uma homogeneidade tímbrica. Tal recurso geralmente resulta em diversos translados

de mão esquerda, devendo, portanto ser reservado para passagens relativamente

lentas nas quais as mudanças de posição não afetam a fluência da execução.

(WOLFF, 2001)

47

Ver exemplo 27. 48

One must also often determine whether a melodic leap is an expressive rhetorical gesture of a single voice or

whether it signals the entrance of a second, implied, voice in dialog with the first. Fingerings, therefore, become

a critical factor in effectively conveying the existence of multiple voices. (KOONCE, 2005)

46

Observemos no Exemplo 23 que as notas com haste para baixo são digitadas pela

terceira corda, à exceção do compasso 20 onde isto se torna inviável. Por outro lado, neste

compasso é estabelecido um novo padrão na segunda corda. Esta decisão permite não só que

elas tenham um mesmo peso e timbre, como também auxilia no comportamento de mão

direita, que pode atribuir ao polegar a tarefa de tanger as notas da terceira corda e destinar aos

dedos indicador, médio e anular a precisão necessária para executar as figuras curtas.

Ex. 23: Ciaccona (c. 18-20) – Homogeneidade tímbrica.

Outro exemplo de homogeneidade tímbrica ocorre nos primeiros compassos da seção

em Ré Maior da obra, onde requer do violonista o domínio dos translados para tocar o trecho

legato.

Ex. 24: Ciaccona (c. 133-137) – Homogeneidade tímbrica.

47

Segundo Wolff (2001):

A utilização de translados deve sempre respeitar limites razoáveis de dificuldade

técnica. Na digitação de escalas velozes, por exemplo, convém evitar mudanças de

posição. Se tal não for possível, é prudente coincidir os translados com o uso de

cordas soltas, a fim de obter maior clareza e fluência na execução. (Ibid., 2001)

3.1.5 – Exceções

Durante a análise da Ciaccona, verificou-se a impossibilidade técnica de se cumprir

alguns critérios estabelecidos em cada caso, bem como houve decisões deliberadas a respeito

da não realização de casos possíveis. Chamemos de exceções os critérios não cumpridos.

3.1.5.1 Exceção nos motivos de figuras curtas ligadas

Entre os compassos 65 e 67 houve exceção no tratamento das figuras curtas, que

deveriam ser ligadas. Neste caso, decidimos por tocar em campanella (ou digitação cross

string) aquelas que fossem em escala descendente e ligadas as que fossem ascendentes.

Ainda que não cumprida a regra que diz que as figuras curtas devem ser ligadas, houve

simetria enquanto figuras motívicas.

Ex. 25: Ciaccona (c. 65-67) – Exceções – Campanellas substituindo os ligados dos motivos de figuras curtas.

48

3.1.5.2 Exceção nas melodias polifônicas

No compasso 43, seguindo o critério da melodia polifônica, a primeira nota, o Sib,

deveria ser sustentada durante a execução da escala de Sol menor, porém isso requereria que o

baixo Sol fosse apagado. Optamos por manter o baixo soando, fazendo apenas um tenuto na

nota Sib. Dessa forma, a sensação de legato do trecho não perde, e ainda assim fica implícito

o efeito do Sib, visto que é uma nota melódica.

Ex. 26: Ciaccona (c. 43) – Exceções – Melodia polifônica não sustentada em função do baixo.

Uma forma de sustentar tanto a nota Sib quanto o baixo Sol, seria fazer uma pestana

na terceira casa do braço do violão, porém isto faria com que as notas Fá, tocada na quarta

corda e Mib, tocada na quinta, criassem uma dissonância indesejada.

3.1.5.3 Exceção nos arpejos

Nos compassos 37 e 38, os graus disjuntos do terceiro tempo do primeiro compasso e

do segundo tempo do compasso seguinte foram ligados, por representarem mais que um

arpejo, um “gesto retórico expressivo”, como define Koonce (2005). Observemos que não se

tratam somente de passagens harmônicas. Há uma relação temática entre o segundo e terceiro

tempos do compasso 37 e o primeiro e segundo tempos do compasso 38. A execução desse

trecho seguindo o critério do caso arpejos torná-lo-ia apático. De qualquer forma, mesmo

havendo quebrado a regra, foram tratados motivicamente através dos ligados.

49

Ex. 27: Ciaccona (c. 37-38) – Exceções – Graus disjuntos ligados na mesma corda.

No compasso 56, a decisão de tocar a continuação do arpejo na primeira corda tem a

ver com a expressividade gestual das notas percorridas pelo braço do violão, aliada ao caráter

de final de seção. Neste caso, foi ignorada a regra que diz para se tocar graus disjuntos em

cordas diferentes.

Ex. 28: Ciaccona (c. 56) – Exceções – Graus disjuntos tocados na mesma corda.

No exemplo abaixo, foram ligadas as duas últimas notas do primeiro e segundo grupos

de semicolcheias de cada compasso, e as duas primeiras notas do compasso 84, além das

notas curtas, já estabelecidas anteriormente no caso motivos. Segundo o critério do caso

arpejos, as notas em graus disjuntos devem ser dispostas em cordas diferentes. Porém, nestes

compassos, assim como no Exemplo 28, esta divisão tornaria o trecho inexpressivo, pois há

saltos melódicos que simbolizam um gesto retórico, e não a entrada de uma nova voz. Este é

um trecho onde o próprio Bach incluiu ligaduras em pares de notas, diferentemente do que fez

no resto da obra. Isto nos dá subsídio para tratá-lo motivicamente. Mas, ainda assim,

50

observemos o último grupo de semicolcheias dos c. 81 a 83: estão dispostos corretamente,

conforme o caso arpejos. É importante lembrar que nem sempre é possível conciliar todos os

critérios estabelecidos para se digitar uma obra. Neste caso, opta-se por aquele que representar

maior relevância para o trecho musical.

Ex. 29: Ciaccona (c.81-84) – Exceções – Graus disjuntos ligados na mesma corda.

Segovia, neste mesmo trecho da obra (c. 81 a 84), faz a digitação de forma

indiscriminada; não há um padrão ou coerência no uso dos ligados ou nas mudanças de corda.

Fica claro que ele preza pelo timbre obtido pela digitação nas posições altas da escala e pelo

caráter misterioso; reforçado pelo tetracorde descendente de Ré que, como já vimos, fica

“perambulando” pela obra e, principalmente por suas indicações na partitura de “pp” e

“expressivo”.

Durante a análise da digitação para o trecho abaixo, constatamos que era possível

manter o critério do caso arpejos em todos os grupos de tercina, porém isto requereria uma

distensão exagerada de mão esquerda para se realizar as notas Sib – Ré – Fá da segunda

metade do primeiro tempo. Foi decidido, então, digitar o Sib na quinta corda, em sua

localização inicial, e as notas Ré e Fá na quarta corda ligando-as, o que facilitou a realização

51

desta passagem sem causar uma diferença sonora perceptível, visto que é um trecho

relativamente rápido. Segundo Zanon (2006):

O efeito de articulação e sonoridade [entre nota tocada e nota ligada] é

perceptivelmente diferente [...] [porém], dentro de um contexto em que há relações

motívicas que têm de ser mantidas com a mesma articulação, é possível, com muito

cuidado, substituir um pelo outro em alguns casos de digitação e, se tocado com

jeito, o ouvinte vai „registrar‟ como se fossem efeitos similares. (ZANON, 2006)

Ex. 30: Ciaccona (c. 243) – Exceções – Nota de arpejo ligada na mesma corda.

3.1.5.4 Exceção na homogeneidade tímbrica

No exemplo abaixo, por se tratar de um final de frase em apogiaturas, foi usada a

campanella, na intenção de se obter um efeito. Neste trecho ela tem função ornamental.

Ex. 31: Ciaccona (48-49) – Exceções – Campanella.

52

4 CONCLUSÕES

O objetivo inicial deste trabalho era o de descrever o processo de digitação dos cinco

movimentos da Partita II BWV 1004 de Bach. Porém, durante a revisão de literatura e

levantamento de edições e gravações, notou-se uma disparidade entre a quantidade de

materiais existentes sobre os quatro primeiros movimentos, Allemanda, Corrente, Sarabanda

e Giga, e o último, a Ciaccona. Muitos dos que realizaram transcrições da Partita completa

não as publicaram, restando-nos então a observação através de gravações. Diante da escassez

de partituras completas, selecionamos somente as versões da Ciaccona, que tem hoje destaque

no cenário violonístico, para obtermos parâmetros equivalentes de comparação.

Classificamos os elementos elegidos como principais na obra, com base em

referenciais teóricos, buscando uma sistematização no processo de digitá-la. Os elementos

foram os “motivos”, aos quais atribuímos uma digitação que estabelecesse padrão e conexão

entre eles; a “melodia polifônica”, evidenciando, através da digitação, a polifonia implícita

presente em toda a obra; os “arpejos”, aos quais distribuímos ao máximo possível em cordas

adjacentes, possibilitando assim uma maior sensação harmônica pelas notas sustentadas; e por

fim a “homogeneidade tímbrica”, que se refere aos casos onde foi recomendável a realização

de determinadas frases ou trechos em uma mesma corda, para não haver diferença de timbre

entre suas notas. Os elementos cujos critérios não foram cumpridos receberam o nome de

“exceções” e foram justificados. Estas exceções tratam-se, na verdade, do pressuposto de que

não há apenas uma forma de se conceber uma digitação, e tampouco uma só maneira de “ver”

a música.

Durante a observação das transcrições de referência, percebemos que Kazuhiro

Yamashita não se preocupa em indicar a digitação de uma forma precisa e sem passividade de

interpretação; deixa a critério do intérprete, como se houvessem soluções óbvias a se buscar.

Se ele simplesmente se abstivesse de sugerir digitações, seria comum, pois isto mostraria uma

resignação ao fato da digitação ser um procedimento pessoal. Por outro lado, ele especifica

em quais cordas determinados trechos devem ser realizados, tornando relevante não a

disposição digital em si, mas sim os caminhos pelos quais ela deve acontecer.

Ao analisar as digitações usadas nas transcrições, e compará-las às desta pesquisa,

concluímos que se pode ter autonomia para contestar uma digitação grafada, pois ela reflete

nada mais que as decisões do seu autor, sejam musicais ou técnicas. A partir disto, podemos

deduzir que elas se alteram conforme as nossas próprias decisões. A eficácia desta atitude,

53

porém, não depende de uma autonomia onde se desconsidera arbitrariamente as informações

contidas na digitação grafada, pois esta deve, antes de tudo, ser uma atitude reflexiva, onde se

busque entender a natureza daquela digitação, e a partir disso encontrar novas possibilidades.

Fernandez (2000) diz que:

Nem sempre é possível escolher [uma digitação] de forma inequívoca, mas o próprio

exercício de tentar tem um grande valor didático, e nos faz perceber até que ponto

uma digitação pode determinar uma interpretação com mais riqueza e exatidão do

que vários milhares de palavras. Estou firmemente convencido de que estas

digitações são aperfeiçoáveis, e que esta melhoria pode ser feita por cada leitor, pelo

menos do seu próprio ponto de vista. E, basicamente, para cada um de nós não pode

haver outro ponto de vista além do próprio. (FERNANDEZ, 2000, p. 50) 49

Por outro lado, sendo o intérprete o seu próprio editor, e à medida que este constata

uma digitação bem sucedida, é possível, a partir dessa experiência, estabelecer preceitos que

estreitam as possibilidades a outros intérpretes, excluindo aquelas que representam nada mais

que especulações. Isto, no entanto, não caracteriza um padrão, apenas evidencia um possível

caminho. Segundo Koonce (2005):

Dentro de uma determinada parte da música, existem muitas possibilidades de

digitação, e raramente fazem dois executantes estarem completamente de acordo em

todas as melhores condições para o seu uso. Isso ocorre porque a interpretação e a

execução da música são amplamente subjetivas, formuladas em parte pelas

diferentes preferências estéticas e ligadas por capacidades físicas individuais. No

entanto, é possível identificar determinados tipos de digitações e movimentos que

ajudam a alcançar resultados musicais específicos. Os bons violonistas são

conscientes das suas opções e eles escolhem as que melhor se acomodam às suas

habilidades e interpretações. (KOONCE, 1997) 50

Logo, a digitação está ligada às decisões interpretativas. A partir do momento em que

se opta por um determinado tipo de sonoridade, por uma articulação específica, por um

tratamento pré-estabelecido dos elementos musicais, o processo de digitação se torna, aliado a

outras decisões, um fator determinante no resultado final da preparação de uma obra. Isto quer

dizer que, no violão, independente de qual seja o resultado musical almejado, haverá uma

interferência da digitação.

49

No siempre será posible elegir inequívocamente, pero el mismo ejercicio de intentarlo tiene un enorme valor

didáctico, y nos hará darnos cuenta hasta qué punto una digitación puede determinar una interpretación con más

riqueza y exactitud que varios miles de palabras. Además, estoy firmemente convencido de que estas

digitaciones son mejorables, y de que esa mejora puede ser realizada por cada lector, al menos desde su propio

punto de vista. Y en el fondo, para cada uno de nosotros no puede haber otro punto de vista que el propio.

(FERNANDEZ, 2000, p. 50) 50

Within any given piece of music there are many fingering possibilities, and seldom do any two players

completely agree on all the best ones to use. This is because the interpretation and performance of music is

largely subjective, formulated in part by individual aesthetic preferences and bound by individual physical

capabilities. Nevertheless, it is possible to identify specific types of fingerings and movements that help achieve

specific musical results. Good players are aware of their options and they choose the types which best

accommodate their abilities and desired interpretations. (KOONCE, 1997)

54

No presente trabalho, considerando os critérios cumpridos em cada caso e as exceções,

podemos concluir que se deve considerar não um modelo restrito de digitação, mas sim, um

que possamos aliar os fatores que o permeiam, desde as nossas condições técnicas e

mecânicas até a mais convicta decisão interpretativa.

As idéias aqui apresentadas não são uma novidade no âmbito analítico e tampouco

representam um modelo de como o violonista deve construir suas digitações. O que se

propõe, no entanto, é que a digitação seja o resultado de uma decisão que esteja acima do

propósito técnico do instrumento, visto que este pode incorrer no ato de confrontar técnica e

música, e não aliá-los. “Os detalhes de digitação e sua aplicação são tão sutis que podem levar

a caminhos equivocados quando não se tem uma consciência plena, uma estrutura

instrumental que ampare e permita um trabalho inteligente e ao mesmo tempo eficaz”.

(CARLEVARO, 1979, p. 155) 51

Para finalizar, esperamos que este trabalho contribua de alguma forma para futuras

pesquisas e possa proporcionar uma maior compreensão dos procedimentos envolvidos na

digitação para violão, demonstrando ao violonista, seja ele estudante ou profissional, o

significado da prática de reflexão na digitação de uma obra.

51

Los detalles de digitación y su aplicación son tan sutiles que pueden llevar a caminos equivocados cuando no

se tiene una consciencia plena, una estructura instrumental que ampare y permita un trabajo inteligente a la vez

que eficaz. (CARLEVARO, 1979, p. 155)

55

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59

ANEXOS

60

ANEXO 1

Ciaccona BWV 1004 de Johann Sebastian Bach

Manuscrito

66

APÊNDICES

67

APÊNDICE A

Ciaccona BWV 1004 de Johann Sebastian Bach

Transcrição para violão

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Transcrição e digitação:Alisson Alípio (2009)

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

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CiacconaBWV 1004

Transcrição e digitação:Alisson Alípio (2009)

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

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APÊNDICE C

Ciaccona BWV 1004 de Johann Sebastian Bach

DVD com a interpretação ao violão