o processo de criação de uma coleção de moda a partir do estudo do mito do sebastianismo
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Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística
Edição Temática: Cultura e Comportamento
Vol. 4 no 1 – Abril de 2014, São Paulo: Centro Universitário Senac
ISSN 2179-474X
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O processo de criação de uma coleção de moda a partir do estudo
do mito do Sebastianismo
The creation process of a fashion collection from the study of the myth of Sebastianism
Giovanna Costa Gaba, Pedro Paulo Oliveira Andrade, Adriana Martinez, Eloize Navalon
Universidade Anhembi Morumbi
Escola de Arte, Arquitetura, Design e Moda - Bacharelado em Design de Moda
{gabagiovanna, pedroandrade.peu}@gmail.com, [email protected],
Resumo. O presente artigo é decorrente do TCC desenvolvido em design de moda, o
qual teve como objetivo realizar um projeto de produtos de moda. Os estudos partiram
do tema Sebastianismo, percorrendo sua vinda ao Brasil e como ele se enraizou em
regiões sertanejas, especificamente, no episódio da Pedra do Reino. A análise dessas
ocorrências orientou a definição do conceito de criação “Desejos Encobertos”. Com base
nesse conceito foi materializada a coleção de dezesseis looks orientados para um
público-alvo feminino.
Palavras-chave: design de moda, Sebastianismo, Pedra do Reino, desejos encobertos.
Abstract. The present article is originated from the Course Conclusion Project developed
in fashion design, which aimed to realize a fashion products project. The studies were
based on the theme Sebastianism, covering its coming to Brazil and how it took root in
backcountry regions, specifically on the Pedra do Reino episode. The analysis of these
occurences guided the definition of the criation concept "Undercovered Desires". Based
on the concept were materialized a sixteen looks collection directed towards a female
target market.
Key words: fashion design, Sebastianism, Kingdom Stone, hidden desires.
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1. Introdução
Este artigo registra o processo de criação de uma coleção de moda a partir da pesquisa e
análise de um acontecimento esquecido e pouco divulgado da história nacional. A
intenção é criar um design de moda através do estudo de manifestações culturais
regionais e o posterior compartilhamento desse conhecimento para, dessa forma,
contribuir com o resgate da cultura brasileira.
Sua realização se deu por meio da metodologia interdisciplinar, que consiste no
cruzamento de diversas áreas do saber. O projeto é também uma constatação de que o
design não se limita ao simples dar forma ao objeto. De acordo com Couto (1999), o
design é ação de interação entre o designer, o usuário, o desejo, a forma e a cultura de
cada indivíduo. Tal ação explicita o caráter interdisciplinar do design, o qual se trata de
uma atividade formada a partir da interação, interlocução e parceria. Por isso, não é
possível limitar-se em torno de conceitos, teorias ou autores exclusivos. A natureza
interdisciplinar do design necessita que diversas áreas de conhecimento convirjam para
ampliar seus limites e assim atender as necessidades de um projeto de forma eficiente.
Quando iniciado, requisitou-se a escolha de um eixo temático para o desenvolvimento do
restante do projeto na busca por criar um design brasileiro autêntico entendeu-se que
uma atitude coerente é utilizar como referência para criação a cultura nacional. Portanto,
o eixo temático escolhido para esse projeto é O Design de Moda e a Cultura Brasileira.
Tal eixo possibilitou conduzir a pesquisa por referências encontradas nas abordagens
antropológicas, sociológicas e históricas que compõem a primeira parte deste artigo, na
qual se realizou um estudo embasado na formação do mito do Sebastianismo e como ele
chega ao Brasil se enraizando no Sertão nordestino, onde ganha características locais e
culmina num episódio pouco conhecido: Pedra do Reino. Já nesse momento, os
conhecimentos adquiridos foram cruzados para o conceito de criação ser embasado a
seguir.
A etapa seguinte é relativa ao desenvolvimento dos produtos de moda - a coleção. Nela,
interpretações subjetivas do conceito de criação foram unidas às informações técnicas,
resultando nos elementos formais projetuais da coleção e todos os estudos que a
permeiam juntamente com a pesquisa de público-alvo.
2. Pesquisa referencial teórica
A criação de um mito: o Sebastianismo
O mito não tem a função de separar o homem do mundo, tampouco se situa fora do real,
conforme afirma Gusdorf (1980). A consciência mítica tem a função de integrar o homem
a seu universo e é uma forma de estabelecimento do real. Desse modo, o Sebastianismo
é um mito que ultrapassou fronteiras e séculos, tornando o fantástico em justificativa da
realidade desde sua origem.
Segundo Godoy (2009), no início do século XVI Portugal vivia uma crise política externa
e interna. O infante dom João, nascido em 1537, tinha saúde muito frágil, o que levou o
rei dom João III, preocupado com a perpetuação de sua linhagem hereditária, a arranjar
o casamento às pressas de seu filho, aos 14 anos de idade, com dona Joana, filha de
Carlos V, imperador da Espanha.
Hermann (1998) assegura que os laços matrimoniais entre as realezas portuguesa e
espanhola e a debilitada saúde do infante dom João resultaram em um período de
apreensão nacional em torno do destino de Portugal. Portanto, fazia-se urgente a
geração de um herdeiro de dom João, criança que, antes mesmo de nascer, recebeu o
título de O Desejado.
Em 20 de janeiro de 1554, dia de São Sebastião, nasceu O Desejado, que foi batizado
com o nome do santo em sua homenagem. Dom João morrera vinte dias antes devido a
uma crise de diabetes. Dona Joana, pouco tempo depois do nascimento da criança,
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voltou definitivamente para Castela, deixando o bebê em Portugal aos cuidados e
interesses da corte.
Hermann (1998) explica que dom Sebastião representava a garantia da independência
portuguesa e o fim de um período de apreensão. Além disso, a corte viu nele a
possibilidade da retomada de um projeto de conquista de territórios e da expansão do
cristianismo iniciado pela dinastia de Avis, que havia sido abandonado por dom João III a
contragosto popular.
Godoy (2009) esclarece que, influenciado pelos valores de sua formação e preocupado
com os avanços territoriais promovidos pelo líder islâmico Muley Malik no norte da
África, dom Sebastião, em 1578, com grande apoio popular, decidiu fazer uma
empreitada contra os mouros no Marrocos, em 4 de agosto do mesmo ano, aconteceu a
batalha de Alcácer-Quibir. Lelli (2010) cita que com um exército mal equipado, número
de soldados inferior ao adversário e um comando inexperiente, Portugal foi derrotado,
tendo metade de suas tropas feita prisioneira e a outra parte morta. Junto dessa última,
estava dom Sebastião, cujo corpo nunca foi encontrado.
Com a derrota, Portugal mergulhou em uma atmosfera de desalento. Uma nação em luto
com a perda de familiares – naquele momento governada por Castela, presa a uma crise
socioeconômica e sem expectativa de reerguer-se – tornou-se o cenário ideal para o
surgimento de um misticismo que dominou o inconsciente coletivo: o Sebastianismo. Tal
mito é considerado por Lelli (2010) como um messianismo judaico-cristão
aportuguesado, em que a figura de dom Sebastião é confundida com a do messias que
regressará para redimir seu povo.
[...] o povo passou a acreditar que o “Desejado” havia sido
destemido e heroico, defendendo os interesses de Portugal e do
cristianismo; acreditava-se ainda que ele não havia morrido e,
portanto, retornaria para retomar o poder e salvar a pátria. O mito
se estabelece a partir destas interpretações oriundas do desejo
que acaba, por assim dizer, subvertendo o real. (LELLI, 2010, p.
195)
Conforme Godoy (2009) explica, essa crença foi intensificada por dom João de Castro,
um nobre português que lutava pela independência de seu país. Ele era um grande
defensor da crença do retorno de dom Sebastião. Ao encontrar uma justificativa para
sua crença em um discurso de caráter profético escrito por Gonçalo Annes Bandarra –
grande conhecedor da Bíblia e muito respeitado entre os judeus e cristãos de sua região,
Trancoso –, dom João de Castro o interpretou de maneira utópica e o publicou, criando o
que, mais tarde, seria a “bíblia do Sebastianismo”.
Hermann (1998) afirma que, em seus escritos, Bandarra enalteceu o cristianismo e
desqualificou o islamismo. Além disso, o estudioso garantia que se aproximava o tempo
em que um “Rei Encoberto”, figura lendária bastante difundida na Península desde a
Idade Média, voltaria para restaurar o reino cristão. O autor ainda profetizou
acontecimentos futuros, relacionando-os com os fatos recentemente ocorridos em seu
presente. Assim, atribuiu à sua composição maior concretude e proximidade no tempo-
espaço do profeta.
A obra de Bandarra não especificava quem seria esse “Rei Encoberto”, nem quando ou
onde ele retornaria. Godoy (2007) explica que a associação com dom Sebastião é
resultado da interpretação de dom João de Castro, que conferiu, dessa forma, potência
messiânica a’O Desejado, agora também Encoberto. Segundo a nova leitura, este
voltaria e implantaria em todo o mundo o Quinto Império Universal Cristão. Ao difundir
sua interpretação das Trovas do Bandarra, Castro contribuiu para a potencialização do
Sebastianismo e sua consequente propagação, atualização e perpetuação por gerações e
territórios com a finalidade de suprir as necessidades de grupos que ensaiariam a volta
d’O Encoberto, independentemente da nação em que se originou.
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Um mito viajante: o Sebastianismo no Brasil
Dentre os hábitos e conhecimentos introduzidos pela cultura portuguesa na colonização
do Brasil, os lusitanos trouxeram na bagagem a crença sebástica, que posteriormente
também foi absorvida pelo povo brasileiro.
Hermann (1998) narra que a Santa Inquisição da Igreja Católica julgou como hereges
alguns portugueses adeptos do Sebastianismo, que, como punição, foram degredados
para o território brasileiro. Nele, tais hereges puderam disseminar mais facilmente sua
crença devido à vasta dimensão territorial e à fraca vigilância da Igreja e do Estado
nesse assunto.
É curioso observar que, em um primeiro momento, o Sebastianismo chega ao Brasil
como heresia, contra os preceitos da Igreja Católica. Paradoxalmente, tempos depois,
um membro oficial dessa mesma Igreja viria a se tornar o principal disseminador do
Sebastianismo no país.
A primeira citação documentada de dom Sebastião no Brasil foi em 1634, pelo padre
Antonio Vieira, 56 anos após o desaparecimento d’O Desejado: “Vieira tinha 26 anos, em
1634, quando pronunciou este sermão, numa igreja em Acupe, na Bahia, no dia do
Santo homenageado” (GODOY, 2007, p. 24).
O padre construiu uma oração de fé em dom Sebastião, afirmando sua crença no retorno
d’O Encoberto, propagando, ao longo do sermão, a identidade mítica de dom Sebastião,
adotada pelos portugueses na esperança do retorno do rei, e agora santo.
Godoy (2007) aponta que em meados do século 18, após a disseminação da crença
sebástica pelo jesuíta, um fato aconteceria no Brasil, enraizando ainda mais a fé em dom
Sebastião pelos seguidores do padre: surgiram profecias sebastianistas mestiças, as
quais se distanciaram cada vez mais do viés nacionalista português e se fundiram às
características próprias da cultura brasileira, fincando raízes no sertão nordestino.
No sertão, a crença sebastianista sofreu adaptações relacionadas aos interesses
intrínsecos daqueles que viviam na região e tornou-se consolo de todos aqueles que
desejam a felicidade afastada da desigualdade e do infortúnio:
Ligadas à riqueza e à ascensão social, estão presentes ainda, nos
desejos das comunidades sertanejas, questões raciais e de
imortalidade. Além de ser preconizado que o pobre será rico com o
retorno de Dom Sebastião e seu exército, também há a promessa
de que o ‘preto se tonará branco e velhos ficarão jovens’.
(GODOY, 2007, p. 91)
Hermann (1998) explica que, devido à vasta extensão de terra e ao analfabetismo que
atingia grande parte da população, tais promessas de um “Rei Encoberto” propagavam-
se principalmente pela prática oral dos beatos. Isso contribuiu para o caráter mutável do
mito sebastianista, que ganhou aspectos regionais, fortalecendo ainda mais o
Sebastianismo como cultura nordestina. Uma crença direcionada para o sertão e
compartilhada pelos sertanejos.
Dessas derivações do Sebastianismo sertanejo, periodicamente surgiram anunciadores
da chegada d’O Encoberto, conseguindo reunir multidões pelo fanatismo religioso e
convencendo-os a jejuar, rezar e até mesmo flagelar-se com a finalidade de desobstruir
a volta do rei desaparecido, que traria consigo melhores condições de vida. As melhorias
prometidas variavam a depender do anunciador.
Por vezes, esse messianismo fanático tomou proporções trágicas, O fanatismo religioso
sertanejo somado à crença sebastianista resultou em um misticismo militante, violento e
com predisposição para o sacrifício em massa. Tal fato, que, apesar de haver começado
de uma maneira que Godoy (2007, p. 124) classifica como “início aparentemente
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ingênuo [...], desencadeou o mais desvairado acontecimento envolvendo a figura de
dom Sebastião no sertão nordestino”: o episódio da Pedra Bonita.
A Pedra do Reino
O principal registro sobre o episódio da Pedra do Reino data de 1875, 37 anos depois do
ocorrido, e é de autoria de Antônio Áttico de Souza Leite, na época membro do Instituto
Archeológico e Geográfico da Província de Pernambuco e natural da região onde ocorreu
a tragédia. Tal relato1 serve de referência para a maioria das obras e análises sobre o
assunto, inclusive para a presente.
Leite (1898) relata que o caso de Pedra Bonita teve início em 1836, quando um
mameluco, João Antônio, morador da comarca de Flores, no sertão pernambucano,
começou a abordar os habitantes da região munido de duas pedrinhas, as quais ele dizia
serem preciosas. João Antônio afirmava que as havia conseguido graças a dom
Sebastião, que o conduzia todos os dias a seu reino escondido, por encantamento,
próximo à casa dele. Ali, havia um lago que ocultava uma mina encantada, onde o
mameluco conseguira as tais pedrinhas. Perto do lago, via-se um complexo rochoso em
que se destacavam duas grandes pedras, cada uma com mais de 30 metros de altura, as
quais encobriam as torres da catedral do reino de dom Sebastião. O rei ainda teria
indicado a João Antônio que o desencanto e a revelação de seu reino estariam próximos
e, junto deles, seu retorno.
Para convencer a população local da veracidade do que dizia, João Antônio levava
consigo, além das duas pedrinhas, um folheto antigo que continha os fundamentos da
crença sebastianista. Nele, narrava-se o desaparecimento do rei dom Sebastião na
batalha de Alcácer-Quibir, além de sua esperada e certa ressurreição.
Fora isso, o visionário possuía a pretensão de se casar com Maria, uma jovem da região,
cuja mão sempre lhe fora negada. Para consegui-la, João utilizou um trecho do folheto
sebastianista em que se podia ler: “Quando João se casasse com Maria / Aquelle reino se
desencantaria...” (LEITE, 1898, p. 221).
Conseguindo elle, graças à ignorância da população, e à bem
conhecida tendência que o espírito humano teve em todas as
épocas para abraçar o maravilhoso e phantastico, não só poder
realizar o seu casamento com uma interessante rapariga de nome
Maria, que sempre lhe fôra negada, como mesmo obter por
empréstimo de muitos fazendeiros do lugar, cuja lista seria longo
referir, bois, cavallos, e dinheiro em porção não pequena, com a
honrosa condição de restituir-lhes em muitos dobros, logo que se
operasse o pretenso desencantamento do mysterioso reino.
(LEITE, 1898, p. 221)
Esse fato demonstra a perspicácia do falso profeta, que, como afirma Godoy (2007),
conhecendo o nível de esclarecimento de cada um de seus ouvintes, apropriou-se de
uma narrativa de convencimento daqueles que desejavam sair da miséria ou almejavam
ter ainda mais riquezas e soube utilizar da fé alheia para benefício próprio.
Com a ajuda de seus familiares, o discurso do visionário espalhou-se pela comarca de
Flores. Moradores de sítios vizinhos e trabalhadores sazonais começaram a aderir à
crença e a abandonar os latifúndios onde trabalhavam para unirem-se ao apostolado de
João Antônio e visitar o complexo rochoso “encantado” que dá nome à região, Pedra
Bonita. Com a popularidade, João Antônio passou de profeta a rei de Pedra Bonita, cargo
1 Memória sobre Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de Pernambuco, por
Antônio Áttico de Souza Leite, é um relato raro por não ter sido reeditado ou publicado desde 1898. Por essa razão, conserva o português da época.
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provisório enquanto dom Sebastião não despertava (GODOY, 2007). É nesse momento
que nota-se que, apesar de João Antônio ser perspicaz e capcioso, as pessoas já
estavam inclinadas a acreditar em palavras que lhes soassem bem e lhes trouxessem
esperança e em uma solução plausível para enriquecerem e progredirem de maneira
fácil e eficaz.
Souza Neto (2004) afirma que toda essa agitação chamou a atenção das autoridades
locais, tanto por provocar o esvaziamento da mão de obra na região quanto por
disseminar uma seita pagã, não católica. Para tentar findar a situação, acionaram o
padre Francisco José Correia, figura bastante respeitada, responsável por apaziguar os
ânimos da população em época de disputas políticas na região.
Após retratar-se ao padre e assumir publicamente sua farsa, João Antônio retirou-se
definitivamente da região. O que deveria ser o fim desse movimento sebastianista
possibilitou o início de um sebastianismo fanático e sangrento. Ao sair da cidade, João
Antônio deixou um sucessor em seu trono: João Ferreira tornou-se o segundo rei de
Pedra Bonita.
De acordo com Godoy (2007), o novo monarca foi o responsável por intensificar a crença
na região. Carismático, ele ganhou muita popularidade e conseguiu aumentar o número
de seus seguidores, os quais o chamavam de “sua santidade el-rei” e beijavam-lhe os
pés. Uma das medidas do novo rei foi estabelecer no complexo rochoso de Pedra Bonita
sua corte e os cenários de rituais de desencantamento. João Ferreira, num processo de
sacralização do espaço geográfico, definiu cada ambiente de seu reino por entre as
pedras. Esse processo de ressignificação do espaço natural cria uma atmosfera mística
no local, reforçando o mito, como atesta a análise de Godoy (2007, p. 133):
O modo de interagir no espaço, a maneira de ver, sentir e entrar
em ressonância com o espaço, efetivando-o em um regime de
signos que transformaram o local em uma espacialidade
específica, traz com essa ação, percepções e afetos diversos. [...]
A relação de homem e espaço, a depender de como se dá essa
interatividade, pode modificar também o tratamento dos mitos,
costumes e modos sociais e culturais etc.
Outra mudança ocorrida no novo reinado foram as condições para o desencantamento
de dom Sebastião. Enquanto seu antecessor se utilizava de um discurso sebastianista
aparentemente ingênuo, em que um casamento já possibilitaria o desencanto, João
Ferreira insufla a população com uma mensagem potencialmente perigosa:
Sempre que o rei João Ferreira pregava dizia: [...] que aquelle
reino era de muitas glórias e riquezas, mas, como tudo que era
encantando só se desencantava com sangue, era necessário
banhar-se as pedras e regar-se todo o campo vizinho com sangue
dos velhos, dos moços, das crianças e de irracionais; que isso,
além de necessário para Dom Sebastião poder vir logo trazer as
riquezas, era vantajoso para as pessoas que se prestavam a
soccorre-lo assim; porque, si eram pretas, voltavam alvas como a
lua, immortaes, ricas e poderosas; e si eram velhas vinham moças
e da mesma forma ricas, poderosas e immortaes com todos os
seus. (LEITE, 1898, p. 229)
Assim, ele congregou uma população que passou a viver no reino de Pedra Bonita em
uma dinâmica diária composta de rezas e cantorias e modo de viver sem preocupação
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com vestimentas ou higiene. Era uma rotina de celebrações e devoção à figura de dom
Sebastião, como afirma o depoimento de uma testemunha do episódio:
Em verdade encontrei muita gente ao pé da Pedra Bonita, e vi,
não os thesouros, mas o tal rei com uma grande corôa na cabeça,
trepado numa ponta da pedra, pregando, cantando e saltando
muito alegre. Quando findou a sua prática, o povo deu muitos
vivas a Dom Sebastião, batendo palmas [...] e seguimos todos
tocando, cantando e batendo palmas, para a Casa Santa [...]. Alí,
todos beberam um líquido dado pelo rei o qual chamavam vinho
encantado e fomos fumar em cachimbos para vermos as riquezas.
(LEITE, 1898, p. 228)
Tal vinho sagrado, como afirma Godoy (2007), era uma bebida alucinógena feita de
manacá e jurema, plantas locais com propriedades opiáceas. João Ferreira ministrava o
preparo aos seguidores em seus rituais para que, em estado de transe, pudessem entrar
em contato com o reino d’O Desejado. Tal ação potencializou o fanatismo dos fiéis, o que
levou ao início dos sacrifícios, momento descrito por uma testemunha:
Iam assim passando-se os tempos até que no dia 14 deste (Oh!
que dia infeliz e horroroso...) o rei, depois que deu muito vinho a
todos, declarou: “Que Dom Sebastião estava muito desgostoso e
triste com seu povo...”
“E por que?” Perguntaram os homens aflictos e as mulheres todas
muito chorosas...”
“Porque são incrédulos!... porque são fracos!... porque são
falsos... e finalmente porque o perseguem, não regando o campo
encantado e não lavando as duas torres da cathedral do seu reino
com o sangue necessário para quebrar de uma vez este cruel
encantamento [...]”
Ah! meu amo e senhores o que seguiu depois disso é horrível!
(LEITE, 1898, p. 230)
Esse pronunciamento de João Ferreira, o Execrável, culminou, no dia 14 de maio de
1838, em uma série de sacrifícios que durou três dias e dizimou quase toda a população
local: 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães morreram em meio a um delírio
coletivo em prol do retorno de dom Sebastião. Apesar de a maioria dos sacrifícios serem
voluntários, as pessoas eram coisificadas a ponto de constituírem uma grande massa
fornecedora de sangue, tinta para a Pedra. As pessoas entregavam à morte suas vidas e
as de seus filhos para que ocorresse o desencanto, feitas cegas pela esperança.
De acordo com a análise de Godoy (2007, p. 136), “as ações ritualísticas no espaço nos
mostram que esta é a vontade maior dos membros das comunidades: a fome da
imortalidade”. Isso revela que as pessoas, ao se voluntariarem ao sacrifício, não o
encaravam somente como o fim de uma vida difícil no sertão, mas que era uma forma
de alcançar mais rápido a vida justa que elas tanto almejavam e que dom Sebastião
tornaria possível – era a valorização da vida pela morte.
Quem se recusava ao sacrifício era tido como infiel. Godoy (2007) explica que a
comunidade fanática dali entendia tal recusa como uma quebra na continuidade do ritual
do desencanto, o que poderia impedir a vinda do rei dom Sebastião e suas vantagens.
Logo, fazia-se necessário buscar e capturar aqueles que se negavam à morte por falta
de fé.
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Com os passar dos dias, os corpos amontoavam-se à medida que as pedras se cobriam
de sangue, em uma matança comandada pelo rei João Ferreira, que demonstrava cada
vez mais sede de sangue, não dando sinais que indicassem o fim dos sacrifícios. Aqui,
nota-se uma crescente insensibilidade em relação à presença de cadáveres por parte dos
sedentos de sangue. A renúncia do próprio corpo realizada por aqueles que se
sacrificaram revela uma confusão e fusão do limite entre os mundos físico e espiritual –
tudo visando à conclusão do desencantamento.
De acordo com Leite (1898), apenas no dia 17 de maio chegaria ao fim o reinado
comandado por João Ferreira, já que Pedro Antônio, irmão do primeiro rei, João Antônio,
indignado ao assistir o sacrifício de suas duas irmãs, apresentou motivos convincentes
para abominar e terminar o massacre.
Pedro Antônio anunciou que dom Sebastião lhe aparecera em uma visão dizendo-lhe que
só faltava o sangue do segundo rei para o desencantamento ser concluído, e os sedentos
de sangue, em busca de prosperidade, adotaram a alegação como verdadeira e o
executaram, em seguida, conforme Souza Neto (2004, p. 137), bradaram em uníssono:
“Viva el-Rei dom Sebastião! Viva nosso irmão Pedro Antônio!”.
A morte do segundo rei resultou na coroação de Pedro Antônio como terceiro monarca
de Pedra Bonita e na consequente isenção da sequência de sacrifícios.
Enquanto ocorria a transição entre o segundo e o terceiro reinado, em outro ambiente
era arquitetado o fim do episódio de Pedra Bonita. Isso devido a uma denúncia que
chegou ao conhecimento do major Manuel Pereira da Silva, quando este recebeu em sua
fazenda a visita de José Gomes, seu vaqueiro desaparecido. Souza Neto (2004) afirma
que, José Gomes, após conseguir fugir da cena dos arredores das Pedras, declarou que
os sebastianistas reunidos ali eram orientados por João Ferreira a começar os sacrifícios
a partir do dia 14 de maio.
Foi no momento do primeiro sacrifício que José Gomes conseguiu fugir em meio à
agitação. O fato de ele necessitar fugir, e não simplesmente ir embora, indica o poder e
o domínio do rei sobre seus súditos, pois, a princípio, todos estavam ali porque queriam,
mas não era permitido a ninguém se desvincular da matança, sob a premissa de não
interromper o ritual. Assim, conclui-se que era preciso debandar-se escondido.
No dia seguinte ao da denúncia, partiu rumo à Pedra Bonita um grupo armado de mais
de 26 homens, liderados pelo major e guiados pelo delator, José Gomes. O afastamento
dos citados em relação à Pedra do Reino facilita a interpretação deles para
consequências drásticas, por isso chocam-se com a notícia e a situação e buscam
mudança do destino dessa população envolta no sacrifício coletivo.
Após um dia de caminhada, durante o percurso da caravana e ainda distante de Pedra
Bonita, a jornada prossegue em seu desfecho:
No momento, porém, em que os dous irmãos Cypriano e
Alexandre Pereira e os poucos soldados, que os seguiam de perto,
se aproximavam das capoeiras, e se dirigiam a aquelles
umbuzeiros, acharam-se face á face com Pedro Antônio [...]
acompanhado de um séquito numeroso de mulheres, meninos, e
de homens [...] armados de facões e cacetes. (LEITE, 1898 p.
234)
Tal encontro era inesperado para ambos os grupos, principalmente para a tropa de
Manuel, já que se encontrava ainda distante da região de Pedra Bonita. Souza Neto
(2004) explica que o rei Pedro Antônio e seus seguidores também distavam das Pedras
porque “a fedentina dos cadáveres insepultos tornava inabitável aquele lugar”. Com o
ocasional encontro entre os dois grupos, o combate foi inevitável.
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O confronto resultou na morte de Pedro Antônio e 16 de seus seguidores, além de cinco
homens de Manuel Pereira, incluindo seus dois irmãos. Foi o fim do movimento
sebastianista de Pedra Bonita. A batalha derrubou as últimas gotas de sangue dos que
acreditavam com fé no derramamento de sangue para uma evolução cotidiana, bem
como derrubou aqueles que foram impedir que tal matança se prolongasse.
Ao analisar o episódio sob a óptica dos fanáticos, observa-se que, para salvarem a
própria vida da miséria, eles estavam dispostos a sacrificá-la, junto à de seus filhos e
netos, aguardando a imortalidade próspera, intento frustrado por causa do inesperado
desfecho, o que gerou uma angústia prorrogada. Apesar de a temática ser obscura e até
mesmo parecer irreal, a crença e a fé sebástica guiaram a mente e os desejos desses
indivíduos (tal guia presente desde a origem portuguesa), que, apoiados em uma
esperança eterna, alcançaram a abnegação de corpos justificada pelo desejo de uma
realidade venturosa. O esperado e inconcluso fim justificaria os meios.
3. Projeto de produto
Painel semântico da pesquisa
Figura 1: Painel semântico
O painel semântico foi construído com base na pesquisa teórica. É composto de forma a
delinear o trajeto – a viagem no tempo-espaço – do mito sebastianista, ilustrando desde
a origem em Portugal e a vinda para o Brasil até, finalmente, chegar ao município de
Flores do Pajeú, em Pernambuco, onde se deu o episódio de Pedra Bonita.
Este painel auxiliou no entendimento da mutação que o mito sofreu durante sua
trajetória devido às mudanças geográficas e sociais que o Sebastianismo atravessou.
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Após montar a narrativa com imagens e desenhos, foram escritas no painel as
impressões referentes a cada parte dessa trajetória, sempre tentando entender as
causas que permitiram a propagação, a mutação e a permanência do mito. Assim,
analisaram-se tais causas e foram cruzadas as informações em busca de um fator
comum que permeasse todo o percurso e que possibilitou a existência do Sebastianismo.
Ao encontrar esse fator, também foi definido o conceito de criação: Desejos Encobertos.
Conceito de criação: Desejos Encobertos
O mito se estabelece a partir destas interpretações oriundas do
desejo que acaba, por assim dizer, subvertendo o real. (LELLI,
2010, p. 195)
Em toda a trajetória do mito sebastianista analisada na pesquisa teórica, observam-se os
desejos encobertos como o elemento que proporciona a criação, a potencialização, a
mutação e a permanência do Sebastianismo.
Depois de entender a força desse mito, percebe-se como os desejos individuais,
encobertos por discursos aparentemente coerentes, aproveitam-se dos desejos coletivos
para alcançar outros objetivos. É esse desejo coletivo que transforma a realidade das
pessoas e as direciona para um processo criativo de reestruturação da sociedade,
almejando um reinado e a ressignificação de um espaço geográfico, no qual um
amontoado de pedras passou a ser um reino encantado.
O desejo de mudar de vida levou dezenas de seres a sacrificarem a si mesmos e a seus
familiares. A morte era vista não como algo negativo ou um fim, e sim como um
prolongamento desta vida para outra. Salvação, redenção – a maneira de alcançar mais
rápido a realidade ambicionada.
Uma análise geral da pesquisa teórica permite constatar que o mito do Sebastianismo,
mesmo atravessando as mudanças de tempo-espaço, manteve seu núcleo inicial, a
matriz de que um rei voltaria para redimir seu povo. A ele, acrescentaram-se nuances
derivadas da interpretação de pessoas que possuíam desejos de melhoria encobertos por
uma realidade insatisfatória e que, assim, adotaram o fantástico como nova realidade.
Entende-se que o termo “desejo” simboliza as expectativas e os sonhos, enquanto a
palavra “encoberto” mostra uma realidade que, ao mesmo tempo em que omite/oprime
o “desejo”, também o cria e o alimenta, ou seja, é inerente ao desejo a consequência de
ser encoberto. São os desejos encobertos que impulsionam esse povo a sonhar, pensar,
criar, existir e justificar sua existência, a ponto de redefinir o limite entre a vida e a
morte. Passou o tempo, mudou-se o espaço e se ressignificou um mito que nasceu e se
alimentou de desejos encobertos.
Público-alvo
No início da pesquisa foram delimitadas algumas características demográficas e
geográficas para ter um ponto de partida antes da saída de campo.
O público foi identificado no segmento feminino, cuja faixa etária transita entre os 30 e
50 anos, residente em metrópoles e com fácil acesso a eventos culturais, como a cidade
de São Paulo. Seu interesse é por temas e ambientes que proporcionam uma experiência
artística. Delineado o perfil, era necessário ir a campo para aprofundar as informações
acerca das usuárias: suas características, seus valores, seus hábitos sociais e,
consequentemente, seus hábitos de consumo.
Após a observação sem interação, foram pontuados alguns fatores que se repetem nesse
público. Quando não frequentam sozinhas esses lugares de lazer, as usuárias estão
acompanhadas de apenas outra pessoa, compartilhando a experiência de maneira mais
intimista, ou estão em museus e livrarias para agregar conhecimento, e não apenas para
a socialização. Também possuem aspectos de moda similares: optam por peças de roupa
que não deixam o corpo muito à mostra, e prezam pela funcionalidade antes da
aparência.
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Após a análise da observação, o método de questionário foi aplicado, e 35 mulheres
foram entrevistadas. Além de questões para conhecer os interesses do grupo, buscou-se
entender quais são as ambições dessa mulher e seus medos a fim de compreender o
universo em que ela se encontra. Somam-se, ainda, informações sobre o cotidiano –
como meio de transporte e hobbies – e fatores de consumo – marcas e critérios em
relação ao vestuário.
Durante as entrevistas, foram abordados temas que não estavam presentes no
questionário, como quais eram suas referências artísticas (e o porquê) e até mesmo
quais as necessidades de produtos e serviços que ainda não foram supridas. Desse
modo, ultrapassou-se a expectativa de informações coletadas, o que ampliou a bagagem
de conhecimento sobre o público.
Para registrar cada entrevista, foi utilizado um gravador de áudio com o intuito de criar
maior dinamismo durante o questionário com a usuária, o qual seria menor se fosse
anotada cada resposta.
Outro tipo de entrevista foi utilizado que possibilitou maior compreensão sobre os
desejos e valores da usuária. Seguindo esse tipo, ao encontrar uma mulher que se
encaixava no perfil do público-alvo, marcava-se um encontro em dia e local de
preferência dela. Nesse encontro, era desenvolvida uma conversa informal, sem utilizar o
método de questionário – seguia-se um roteiro mental com temas a serem conversados,
como sustentabilidade, moda, arte, lazer e trabalho, entre outros. Assim, foi possível
obter informações mais completas e espontâneas sobre o que essas mulheres pensam e
sentem e por quais assuntos elas de fato se interessam.
Depois de realizar doze encontros as informações obtidas passaram a se repetir, sinal de
que os autores poderiam parar de aplicar esse método e iniciar a fase de cruzar e
analisar as características percebidas para, enfim, traçar o perfil de usuária.
Ao analisar o material coletado, notou-se a forte relação e o interesse do público-alvo em
cultura. Muitas delas trabalham diretamente com arte e design e áreas afins. Estão
sempre buscando aumentar sua bagagem cultural e para alcançar isso utilizam também
seu momento de lazer.
Esse grupo declara-se não tão politizado quanto gostaria de ser, apesar de ter alguma
noção do assunto. Em contrapartida, esse público-alvo tem alta participação em projetos
sustentáveis, e não apenas conhecimento sobre o assunto sem engajamento: participam
de um ou mais projetos que visam à qualidade ambiental e social. Por esse motivo,
essas mulheres não possuem o hábito de consumo desenfreado – prezam por detalhes,
bom acabamento e qualidade de poucas e boas roupas, que, de preferência, não estejam
ligadas a nenhuma brand. Preferem investir em trabalhos autorais nos quais percebam
inovação nas peças a gastar o mesmo valor em marcas estrangeiras. Pagam pelo design
e pela particularidade, e não pelo status.
A maioria das mulheres entrevistadas mostrou-se interessada em ampliar seu
conhecimento. E é dessa maneira que elas se posicionam em relação ao presente
projeto: demonstram muito interesse e sentem-se instigadas para conseguir mais
informações sobre o mesmo. Dessa forma, nota-se que essas usuárias estão
inerentemente relacionadas à arte e que seus maiores investimentos são em cultura.
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Estudo de formas
Partindo do conceito Desejos Encobertos, buscou-se interpretá-lo e representá-lo
graficamente. De acordo com a análise realizada, o desejo encoberto inicia-se em um
fato, uma base – dela, a vontade vai se criando e expandindo até tomar forma própria e
se constituir como desejo.
Essa definição conduziu à figura do trapézio, de cuja base menor saem duas arestas
num movimento diagonal de expansão até concluírem em uma base maior. Entende-se
que devido a tal definição um triangulo invertido também seria uma forma de
representar, porém para este projeto, como forma de facilitar o entendimento optou-se
por usar o termo trapézio, representando o desejo.
Figura 2: Estudo de formas – representação do conceito de Desejos Encobertos
Ao aprofundar a análise na intenção de ampliar o estudo de formas, foram interpretados
os desejos encobertos coletivos, os quais estão constantemente presentes na pesquisa
referencial. Assim, entende-se que o desejo coletivo é formado por desejos semelhantes,
comuns a uma comunidade. Logo, na representação gráfica (Figura 3), um trapézio é
composto por outros trapézios menores de formas iguais, ilustrando, desse modo, os
desejos comuns a um grupo de pessoas que se encobrem e se resumem em um único
desejo coletivo.
Figura 3: Estudo de formas – representação dos desejos encobertos coletivos
Ao interpretar os desejos encobertos individuais, concluiu-se que eles possuem variações
de pessoa para pessoa. Logo, na representação gráfica (Figura 4), cada trapézio que
simboliza o desejo individual encoberto tem variações de formas e dimensões. Ao
contrário dos desejos coletivos, nos desejos individuais, a representação gráfica é
composta por diversos tipos de trapézio, utilizada no design de superfície que será
explicado mais a frente.
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Figura 4: Estudo de formas – representação dos desejos encobertos individuais
Estudo de silhuetas
Ao se aplicar o estudo de formas ao estudo de silhuetas, a silhueta da coleção foi
definida com base na manipulação do trapézio, figura que simboliza o conceito Desejos
Encobertos. Utilizou-se o desenho-base de um corpo humano e se realizou um exercício
de dispor, sobre ele, trapézios de diferentes formatos e em posições variadas com o
intuito de ilustrar uma silhueta formada por desejos-trapézios.
Figura 5: Estudo de silhuetas
Como esses desejos precisariam estar encobertos, as silhuetas alcançadas devem ser
escondidas, envolvidas, encobertas. Considerando que é inerente ao desejo a condição
de ser encoberto, percebeu-se que a camada que encobrirá a silhueta também deve
somar-se a ela formando uma só, solução alcançada por meio de moulage .
Para a composição das silhuetas através da disposição dos trapézios, houve um estudo
envolvendo proporção, linhas e equilíbrio nos looks da coleção. Em sua maioria a cintura
é delineada e a linha do quadril também é marcada alongando a parte do ventre da
mulher, e devido à cintura ser alta, cria-se a ilusão de que as pernas são mais longas. A
coleção possui peças volumosas que se distanciam do corpo, como forma de equilibrar o
volume e não engordar a mulher, esses volumes amplos foram compensados por outros
menores, mais próximos ao corpo, como, por exemplo, em peças que vistas de costas
são amplas e não se vê a forma do corpo da mulher, contudo, quando vistas de frente
são justas ao corpo, como se um volume maior encobrisse um menor. Em outros casos a
compensação ocorreu em peças superiores mais amplas com peças inferiores mais
justas, delineando o quadril e marcando a silhueta até a altura do joelho quando, a partir
daí, a peça ganha volume outra vez, ou seja, numa mesma silhueta alternaram-se
grandes volumes com outros menores para, dessa forma, valorizar as formas do corpo
da mulher.
O estudo de disposição de um trapézio sobre o corpo levou a definições de decote.
Dispondo um trapézio sobre o tórax com sua base menor logo abaixo do pescoço indicou
o uso do decote canoa na coleção.
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Design Têxtil
Para desenvolver o design de têxtil, com base no conceito Desejos Encobertos, foi
empregada uma parte do estudo de formas: experimentaram-se variações e
deformações das formas de mais de um trapézio, representando os desejos encobertos
individuais que variam de acordo com cada ser humano.
Dessa maneira, chegou-se a uma padronagem aplicada ao design têxtil, composto por
recortes de tecidos com formas derivadas do estudo descrito, que, quando costurados,
geram um todo, como desejos encobertos que se somam e criam uma nova realidade.
Lançou-se mão de uma solução sustentável para compor o design de têxtil ao escolher,
como matéria-prima, as sobras de tecidos resultantes da confecção das peças da
coleção-teste deste projeto, desenvolvida para avaliação prévia na metade do ano de
2013. Para unificar essas sobras, empregou-se a técnica de patchwork, a qual
possibilitou minimizar o descarte da produção com melhor aproveitamento do tecido. Os
moldes são pequenos e de fácil encaixe e se estipulou que não era necessário respeitar o
fio da trama do tecido para realizar a montagem, afinal, é pelo encontro de lados
diversos da trama que se criou a textura da composição.
Com o objetivo de manter uma postura sustentável, para realizar esta etapa do projeto
solicitou-se o trabalho de corte e costura à Cooperativa de Costureiras de Osasco. Ao
optar por esse tipo de sistema, incentiva-se um modelo de economia solidária, que visa
à sustentabilidade e o desenvolvimento econômico e social de seus integrantes e
consequentemente da comunidade em que estão inseridos. Como tais costureiras são
profissionais habituadas a trabalhar com peças de montagem simples e em grande
quantidade, como sacolas e camisetas promocionais, sentiu-se a necessidade de
capacitá-las para esse serviço que é mais minucioso. Assim, elaborou-se uma
metodologia de montagem para facilitar o trabalho e garantir um bom resultado.
Com base na técnica de patchwork chamada foundation, adaptou-se e desenvolveu-se
um procedimento específico para o presente projeto, que facilita a montagem e deixa a
costura mais exata. Assim, um gabarito foi criado para cada patchwork de forma que os
encaixes dos moldes formassem várias linhas principais no gabarito. Dessa forma,
estabeleceu-se uma ordem de costura que visou, primeiro, formar essas linhas principais
para, depois, serem costuradas umas nas outras. Para a costura ficar exata, costuraram-
se os recortes dos tecidos sobre o gabarito de papel, o qual, ao fim da montagem, foi
rasgado para se soltar do tecido.
Figura 6: Painel de montagem do patchwork na Cooperativa de Costureiras de Osasco
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Estudo de moulage
Na intenção de representar os Desejos Encobertos, compreendeu-se que o mesmo fator
(a realidade) gerador do desejo também o encobre. Dessa forma, no estudo de moulage
o mesmo tecido que parte de uma base para formar uma peça também deve encobri-la,
ocasionando assim voltas no tecido, representando que é inerente ao desejo a condição
de ser encoberto.
O estudo de moulage foi dividido em três fases. Na primeira, utilizaram-se um busto e
tecido – experimentaram-se as possibilidades de voltas que o pano poderia dar em volta
do busto. Isso serviu como um estudo prévio para facilitar a criação de peças cujos
tecidos dessem voltas e encobrissem outras.
Na segunda fase de moulage, depois de desenhar cada croqui, voltava-se para o busto
com o propósito de estudar e verificar se o raciocínio de construção da peça estava
correto e se aquele croqui era possível de ser confeccionado.
Na terceira fase, já com os croquis definidos, foi elaborado o raciocínio de construção
das peças. Para isso, desenvolveram-se moulages e modelagens em miniaturas para
uma boneca, resolvendo e validando os raciocínios de construção, o que possibilitou a
confecção dos itens em escala real.
Figuras 7: Estudo de moulage – fase 3
Materiais
Pensando mais uma vez em sustentabilidade, para a escolha de materiais, optou-se por
utilizar rolos de tecidos remanescentes e retalhos de coleções passadas fora de
fabricação, que estavam parados nos estoques das empresas. Entretanto, ao trabalhar
com produtos de ponta de estoque, por vezes os tecidos disponíveis não possuíam a
composição, o caimento ou a gramatura esperada.
Como forma de solucionar esse problema, buscou-se o conceito de criação para chegar a
uma solução. O raciocínio de Desejos Encobertos, aliado à pesquisa de técnicas para
alterar a gramatura do tecido, levou à técnica de dublagem, em que um tecido é colado
em outro de modo que um encobre o outro resultando num só material – assim como é
inerente ao desejo, para existir, a condição de ser encoberto. Dessa maneira,
alcançaram-se diferentes composições, caimentos e gramaturas.
Como citado anteriormente, ao empregar itens de ponta de estoque e restos de rolos de
tecidos, os produtos disponíveis para a compra possuíam diversos tipos de composição,
portanto na coleção há diversos tipos de tecidos, o que, ao se pensar no conceito de
criação, é uma representação dos desejos individuais que variam de pessoa para pessoa,
assim como a composição dos tecidos varia de tecido para tecido.
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Cartela de cores
A matiz segue a lógica de expressão do conceito. Assim, com base em estudos prévios
de teoria das cores, entendeu-se que os tons primários não se adequariam à proposta,
já que, essencialmente, não há, de fato, nenhuma cor encoberta ou cores que se
encobriram.
Portanto, o caminho seguido para o estudo da cartela foi o das secundárias e terciárias,
que se alinham à lógica desenvolvida: entende-se que cores primárias são encobertas
por outras, também primárias, para resultar as secundárias e, por sua vez, primárias
encobertas por secundárias geram terciárias.
Os estudos foram efetuados com base em pressupostos da estrela cromática de
Johannes Itten (Figura 8), criada em 1921 e “símbolo de sua didática da cor em
Bauhaus” (BARROS, 2009, p. 103). Dessa maneira, tendo em vista as cores primárias –
magenta, azul e amarelo –, os intervalos entre elas se dão pelas secundárias e
terciárias, das quais elegeram-se as cores para a cartela. A escolha exata dos tons
utilizados na coleção – que mostram a passagem entre vinhos, roxos, azuis, verdes e
marrons - está atrelada à questão sustentável supracitada, ao utilizar tecidos de ponta
de estoque, dentre as opções disponíveis, elegeram-se materiais com cores “encobertas”
presentes na estrela de Itten.
Figura 8: Estrela cromática de Johannes Itten
Outro aspecto relevante a se observar na estrela de Itten é o seu centro: o branco
configura o acúmulo da dessaturação de todas as cores. Aliado às cores secundárias e
terciárias frias, finaliza a cartela de cores aplicada (Figura 9).
Figura 9: Cartela de cores
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Coleção
A coleção procede de um desejo particular dos criadores, de compartilhar o
conhecimento sobre o Sebastianismo e do episódio da Pedra do Reino. A maneira em
como traduzir a história para uma coleção de moda foi encontrada a partir da análise da
pesquisa e na busca por um conceito de criação que representasse o elemento que
proporcionou e esteve presente em toda a trajetória desse mito: os Desejos Encobertos.
A partir daí, o conceito norteou todas as escolhas durante o processo de criação. A
coleção nasceu do estudo de silhuetas descrito anteriormente, de maneira que as peças
respeitassem ao máximo as possibilidades derivadas da forma do trapézio, do desejo.
Assim, o desenvolvimento das modelagens ocorreu com base na variação, na
sobreposição, na interferência e no encobrimento de trapézios. As formas alçadas foram
adaptadas ao corpo feminino, com a intenção de que o produto final se adequasse ao
público-alvo.
A reflexão de que é inerente ao desejo a condição de ser encoberto, levou a escolha do
uso de sobreposições que se relacionam e se complementam, de forma que, algumas
vezes, uma peça encobre outra e, outras vezes, uma de suas partes encobre outra,
gerando voltas no tecido e reforçando a sensação de encobrimento. Essa observação
também influenciou no uso de tecidos dublados, em que um é encoberto por outro
através do processo de colagem, resultando num só material.
Ademais, a coleção traz o patchwork como experimentação de design têxtil.
Representando a soma de desejos individuais, essa técnica aparece em parte da coleção
e é parcialmente encoberta por outra peça sobreposta para também reforçar o conceito.
A cor foi distribuída na coleção com a intenção de representar a passagem de tons
secundários e terciários, entendidos como encobertos do ciclo cromático, indo do vinho e
roxo ao azul, e do azul ao verde: uma maneira subjetiva de simbolizar cores como
desejos diferentes e individuais que se encobrem, formando outras. Os tons terrosos
foram utilizados em partes internas das roupas. Já o branco está presente em toda a
coleção denotando os desejos coletivos, comuns a todos.
O resultado é uma coleção de dezesseis looks, decorrentes de um exercício de aplicar o
conceito de criação de modo que a aparência final das peças remetesse, sutil e
subjetivamente, ao misticismo e à luta, tão recorrentes na pesquisa teórica referencial.
Tal exercício, pautado somente nas sensações obtidas durante a análise das
manifestações sebastianistas, e com a intenção de comunicar esse estudo por meio da
moda.
Figura 10: Coleção Completa Ilustrada
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Figura 11: Coleção Ilustrada
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Figura 12: Coleção Ilustrada
4. Considerações Finais
Desde o início desse projeto, os autores, como designers brasileiros, constataram a
importância da valorização das raízes nacionais, que seria tratada por meio do resgate
de um assunto pouco conhecido da cultura popular. A partir daí, as pesquisas foram
iniciadas e o ponto de partida do estudo escolhido foi o Sebatianismo e sua manifestação
no episódio sertanejo da Pedra do Reino.
O primeiro grande desafio foi coletar material bibliográfico sobre o fato histórico
pernambucano pouco estudado e difundido. Contudo, foi solucionado pelo acesso a um
documento raro de autoria de Antônio Áttico de Souza Leite, editado pela última vez no
século XIX. Dessa forma, o projeto ganhou viés de resgate histórico e cultural que,
posteriormente, seria compartilhado por meio da moda.
Até esse momento, o processo foi solucionado, mas outro desafio foi estabelecido: como
definir um conceito de criação que regeria toda a criação? Após estudos e brain
stormings sobre o material teórico, percebeu-se que o conceito, na verdade, já se
encontrava presente em toda a pesquisa: extraiu-se Desejos Encobertos, que eram as
expectativas de salvação veladas dos povos portugueses e sertanejos nordestinos.
A metodologia de construção do projeto, a partir de suas etapas, desde pesquisa de
público-alvo até a coleção, permitiu que os autores comunicassem um conceito e o
aplicassem de maneira contundente. No processo de construção da coleção atingiram-se
propostas ecologicamente e socialmente sustentáveis, através do uso de sobras de rolos
de tecidos e da utilização do serviço de cooperativas de costureiras e sua capacitação
para confecção do patchwork.
Sendo assim, a proposta do projeto alcançou resultados que vão além da simples criação
de vestíveis. É uma maneira de, através do design de moda, não se deixar esquecer a
história de um povo, que também pertence a todos os brasileiros.
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Referências
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SOUZA NETO, Belarmino de. Flores do Pajeú: história e tradições. Biblioteca
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PIRES, Antonio Machado. Dom Sebastião e o Encoberto: Estudo e Antologia. Lisboa:
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