o sebastianismo ― história sumária

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O sebastianismo é um assunto mais discutido queestudado.

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Biblioteca BreveSRIE HISTRIA

O SEBASTIANISMO HISTRIA SUMRIA

COMISSO CONSULTIVA JOS V. DE PINA MARTINS Prof. da Universidade de Lisboa JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e Cientista HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto JUSTINO MENDES DE ALMEIDA Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de Lisboa DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

JOS VAN DEN BESSELAAR

O SEBASTIANISMO HISTRIA SUMRIA

MINISTRIO DA EDUCAO E CULTURA

TtuloO Sebastianismo Histria Sumria

___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 110 ___________________________________________ 1. edio 1987 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes

Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________

Tiragem5000 exemplares ___________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira ___________________________________________ Orientao grfica Lus Correia ___________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________

Composio e impresso Oficinas Grficas da Minerva do Comrciode Veiga & Antunes, Lda. Trav. da Oliveira Estrela, 10 Lisboa

Junho 1987

NDICE

Prefcio .............................................................................. 8 I NATUREZA E RAZES HISTRICAS DO SEBASTIANISMO ............................................ 10 1. Natureza do messianismo ............................... 11 2. O messianismo cristo .................................... 12 3. Joaquim de Fiore e o Joaquimismo................. 14 4. Portugal, um solo fecundo .............................. 21 II AS PROFECIAS E OS CARTAPCIOS DOS SEBASTIANISTAS ........................................... 26 1. A profecia e a sua exegese .............................. 26 2. Os cartapcios................................................. 30 3. As profecias bblicas....................................... 32 4. As profecias no cannicas............................. 35 III AS TROVAS DO BANDARRA ........................ 43 1. A vida do Bandarra ......................................... 43 2. As duas primeiras edies das trovas.............. 46 3. A estrutura e o contedo das trovas ................ 47 4. Apreciao ...................................................... 56

IV D. SEBASTIO E OS INCIOS DO SEBASTIANISMO ............................................ 59 1. D. Sebastio e os Pseudo-Sebasties............... 60 2. Uma exploso de nacionalismo ...................... 63 3. Reabilitao de D. Sebastio........................... 66 4. D. Joo de Castro ............................................ 71 V A RESTAURAAO E O JOANISMO............... 78 1. Manuel Bocarro .............................................. 79 2. Bandarra, o profeta da Restaurao ................ 81 3. Trs tratados joanistas..................................... 85 VI SEBASTIANISTAS VERSUS JOANISTAS..... 92 1. A teimosia dos sebastianistas.......................... 93 2. A famosa carta de Vieira .............................. 102 3. Vieira apoiado e contestado 97 ...................... 108 4. O eplogo de Vieira....................................... 120 VII ABSOLUTISMO E DESPOTISMO................. 122 1. A Ilha Encoberta ........................................... 122 2. Novas profecias do Bandarra ........................ 126 3. O Encoberto poder ser D. Afonso Henriques .................................................... 135 4. A perseguio pombalina.............................. 137 VIII AS LTIMAS CONVULSES........................ 140 1. A figura abominvel de Napoleo ................ 142 2. Alguns papis sebsticos no reinado de D. Maria I ............................................... 144 3. Um ataque injurioso aos sebastianistas......... 153 4. As edies oitocentistas do Bandarra............ 156 NOTAS .......................................................................... 163 BIBLIOGRAFIA ............................................................ 170

SIGLAS

Os trechos citados no presente trabalho sero indicados da seguinte maneira:ALM. Prod. Restaurao de Portugal, de G. de Almeida (4 tomos) AZEV. Seb. A Evoluo do Sebastianismo, de J. Lcio de Azevedo Cd. AC manuscrito da Bibl. da Academia das Cincias de Lisboa Cd. BN manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa Cd. BP manuscrito da Bibl. Pblica Municipal do Porto Cd. TT manuscrito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, de Lisboa VIEIRA Antepr. Livro Anteprimeiro da Histria do Futuro, ed. J. van den Besselaar VIEIRA Cartas ed. J.-L. de Azevedo (3 volumes) VIEIRA Ob. Esc. Obras Escolhidas, ed. A. Srgio e H. Cidade (12 tomos) VIEIRA Repr. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio, ed. H. Cidade (2 volumes)

Indicaes bibliogrficas mais detalhadas encontramse no final deste trabalho

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PREFCIO

O sebastianismo um assunto mais discutido que estudado. Em vez de atacar ou defender, o presente livro pretende apresentar, com toda a serenidade, os factos bsicos do movimento messinico, que um captulo to importante da histria de Portugal. Intentei integrlo na histria do messianismo europeu, sem jamais perder de vista as feies particulares de que se revestiu na terra lusitana. Mas, por falta de estudos preliminares, no pude focar, quanto desejava, alguns episdios do movimento, falta que senti, sobretudo, ao descrever a sua fase inicial, que um terreno ainda quase inexplorado. O que constitui a histria do sebastianismo no tanto um encadeamento de guerras, revolues e batalhas, como uma srie de escritos propagandsticos e polmicos, originados pelas circunstncias variveis das diversas pocas. Dando-lhes o devido valor, empenheime em oferecer ao leitor uma grande quantidade de textos sebsticos, muitos dos quais so inditos e outros de difcil acesso ao pblico em geral. Estes textos

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permitem-lhe conhecer o fenmeno por dentro, dispensando qualquer comentrio. Espero que este trabalho possa encontrar algum interesse em leitores no especializados e que contribua para incentivar os historiadores a ampliar e aprofundar as suas pesquisas no campo do sebastianismo. Nijmegen (Holanda), Julho de 1986

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I / NATUREZA E RAZES HISTRICAS DO SEBASTIANISMO

O sebastianismo uma espcie de messianismo. Na acepo secularizada de hoje, a palavra messianismo designa geralmente a cega f das massas populares num lder poltico, julgado capaz de acabar com os abusos existentes e de inaugurar uma nova era de bem-estar geral. Seria um anacronismo se interpretssemos o sebastianismo dos sculos passados neste sentido. Sem dvida, aos sebastianistas no faltavam nem a f obstinada na vinda de um imperador carismtico, nem a esperana inabalvel no estabelecimento de uma nova ordem poltica e social. Mas essa f e essa esperana estavam, para eles, integradas numa viso nitidamente religiosa da histria. O tipo de messianismo a que pertence o sebastianismo portugus prprio de uma sociedade ainda no secularizada, digamos (embora o termo se preste a malentendidos) uma sociedade sacral. Nela, todas as reas da vida individual e colectiva parecem directa e constantemente permeveis actuao do mundo sobrenatural. Tal messianismo inconcebvel sem uma f religiosa, professada pela grande maioria da sociedade. No estritamente necessrio que a religio10

seja judaica ou crist. A etnologia moderna mostrou que existem tambm movimentos messinicos fora do mbito da Bblia.

1. Natureza do messianismo O messianismo prprio de uma sociedade sacral a crena mais ou menos generalizada na vinda de um Deus ou de um Enviado de Deus, que salvar o seu povo oprimido. O verbo salvar tem aqui dois sentidos. No sentido negativo, quer dizer que o Messias ou Salvador livrar o seu povo de opressores externos e internos. No sentido positivo, significa que Ele lhe trar a salvao, isto , a sade, a paz, a prosperidade e a felicidade. A salvao por que se anseia no se situa no alm-tmulo, mas neste mundo: o messianismo uma esperana histrica. O povo oprimido pode ser uma nao inteira, ou uma determinada classe da sociedade: existe no s um messianismo nacional, como tambm um messianismo social. Aquele foi, quase sem excepo, o caso do sebastianismo portugus, ao passo que este marcou os movimentos messinicos que no sculo XIX ocorreram no Brasil. O povo (ou a classe social) que nutre esperanas messinicas tem, por via de regra, a ideia de ser um povo eleito ou privilegiado pelo Cu. Esta pode lev-lo a uma atitude etnocntrica, e at megalmana e agressiva. Mas pode ser tambm que o messianismo nacional ou social evolucione para um certo ecumenismo: o povo eleito, embora reivindique para si um lugar privilegiado, julga-se detentor de uma

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mensagem universal e de uma misso histrica vlidas para todos os povos. E, finalmente, o messianismo um fenmeno tanto apropriado a fomentar a inrcia e a inactividade dos indivduos, como a estimular-lhes iniciativas particulares e actos de herosmo. A esperada interveno do Cu pode paralisar-lhes a actividade, mas pode tambm incentiv-los a preparar o solo terrestre para a irrupo de Deus na histria.

2. O messianismo cristo O termo Messias notoriamente de origem bblica. a forma helenizada de uma palavra hebraica que significa Ungido e tem por equivalente, na lngua grega, a palavra Cristo. No Velho Testamento, o vocbulo Messias quase sempre designativo de reis e sacerdotes, categorias de pessoas que no antigo Israel costumavam ser ungidas. Desde o sculo I a. C., a palavra passou a indicar tambm o Salvador, desde muito tempo prometido ao povo eleito. Os cristos viram essa promessa cumprida na pessoa de Jesus de Nazar, que reunia em si as qualidades de rei e sacerdote: Jesus Cristo. Mas no s o termo Messias deriva da Bblia: tambm os numerosos movimentos messinicos que marcaram a histria da cristandade europeia tm origem nitidamente bblica. Todos os messianistas da Europa baseavam as suas esperanas em textos bblicos, interpretando-os luz das suas aspiraes e completando-os com outros textos profticos. As razes bblicas do messianismo ocidental so inegveis, no12

havendo ningum que as ponha em dvida. As esperanas messinicas tanto dos judeus, como dos cristos estavam ancoradas nos livros sagrados. Que o messianismo ainda exista entre os judeus no de estranhar. O que poderamos estranhar a subsistncia de esperanas messinicas entre os cristos, para os quais a salvao efectuada por Jesus Cristo facto nico e definitivo. Acontece, porm, que tambm no Novo Testamento encontramos alguns textos que parecem legitimar certo messianismo cristo, sobretudo, no Apocalipse de So Joo, o ltimo dos livros cannicos da Bblia. Este livro (cap. 20, 1-6) fala num perodo de mil anos em que Satans ficar amarrado, e Cristo reinar com os que no adoraram a Besta. Terminado este perodo, Satans ser solto, e com a ajuda de Gog e Magog seduzir as naes at acabar por ser devorado pelo fogo. Depois se seguir o Juzo Final. A interpretao literal deste texto deu origem, j nos primeiros sculos da era crist, seita dos milenaristas ou quiliastas. Estes aguardavam a inaugurao do Reino de Cristo na Terra, o qual, por diversos motivos, tendiam a situar num futuro muito prximo. Apesar de muito suspeito s autoridades eclesisticas, o messianismo conseguiu manter-se vivo, assumindo feies diferentes de acordo com a situao religiosa, poltica e social dos perodos sucessivos. E ainda hoje existe (p. ex., os adventistas). Uma das formas com que apareceu foi o de um milenarismo mitigado. Os mil anos j no eram interpretados no sentido literal, mas simblico, passando a indicar um perodo de longa durao. E coisa mais importante o Reino de Cristo havia de ser exercido indirectamente por um rei cristo. Esta ideia foi adoptada pelo joaquimismo,13

movimento proftico que surgiu na Itlia no decurso do sculo XIII e no tardou a espalhar-se pela Europa inteira. Era uma vasta corrente de reforma, tanto da vida eclesistica e moral, como da organizao poltica e social. Demorou a atingir Portugal, mas uma vez radicada na terra lusitana, encontrou a um solo fecundo para vicejar. O sebastianismo , por assim dizer, a sua fruta serdia e, sem dvida, uma das mais notveis.

3. Joaquim de Fiore e o Joaquimismo Dado que nem sempre se faz a devida distino entre a doutrina genuna de Joaquim de Fiore e o joaquimismo posterior, parece-me oportuno dar aqui alguns esclarecimentos preliminares a esse respeito. Joaquim de Fiore (c. 1135-1202), abade de um convento cisterciense na Calbria, dividia a histria em trs fases sucessivas, ou, para falarmos na terminologia do autor, em trs estado (status): o do Pai, o do Filho e o do Esprito Santo. O estado do Pai iniciou-se com Ado, comeou a frutificar em Abrao e terminou com Zacarias, o pai de So Joo Baptista. Caracteriza-se pela imposio rigorosa de mandamentos exteriores, qual corresponde, da parte dos homens, o temor. O estado do Filho iniciou-se com Osias, rei de Jud (sculo VII a. C.), comeou a frutificar com Jesus e dever terminar por volta de 1260. Caracteriza-se pela humildade do Verbo Encarnado, qual corresponde, da parte dos homens, a obedincia confiante a leis ainda no completamente interiorizadas. O estado do Esprito Santo iniciou-se com So Bento, comear a frutificar por volta de 1260, e dever terminar com a consumao14

dos sculos. Caracteriza-se pelo amor e pela liberdade espiritual e as leis j no so impostas nem propostas, mas livremente aceites, amadas e vividas. Como se v, no se trata de uma sucesso de trs estados rigorosamente demarcados, mas de trs estados parcialmente coincidentes. O desenvolvimento da histria , em ltima anlise, a obra de um nico Deus Trino. Baseando-se nas listas genealgicas da Bblia e dando a cada gerao a durao de trinta anos, Joaquim conta, entre a primeira e a segunda frutificao, 42 geraes, isto , 42 30 =1260 anos. Igual nmero de anos dever decorrer entre a segunda e a terceira frutificao. Desta maneira, o abade julgava-se capaz de predizer para o ano de 1260 a grande transfigurao da Igreja e da cristandade. Cada um dos trs estados compe-se de sete idades, analogamente aos seis dias da Criao seguidos do sbado, e aos sete sigilos sucessivamente abertos pelo Cordeiro do Apocalipse. A estrutura interna de cada uma das sete idades apresenta uma grande semelhana com a da idade que lhe corresponde no estado anterior ou posterior. A cada personagem e a cada facto ocorrente no estado do Pai correspondem, nos dois estados seguintes, outra personagem e outro facto que representam o mesmo tipo. A histria repete-se, dentro de certo esquema cronolgico, cada vez num plano superior. A repetio no idntica, como a imaginavam alguns pensadores da Antiguidade, mas tipolgica. A figura de So Bento no idntica do profeta Elias, mas a obra do abade de Monte Cassino repete, num plano superior, a do ermito do Monte Carmelo. uma repetio e, ao mesmo tempo, uma15

superao. Investigar essas analogias ou concrdias , para Joaquim de Fiore, a grande incumbncia do exegeta. Quem, munido desta chave, conseguir entrar na tipologia da Escritura Sagrada ser tambm capaz de entender o profundo significado da histria moderna. Tal , com a preterio de inmeros detalhes (e problemas), a doutrina de Joaquim de Fiore. A sua concepo da histria marca uma censura no pensamento medieval, que at ento, neste particular, fora determinado sobretudo por Santo Agostinho. Joaquim admite dois fins histricos: um situado alm da histria (a eterna bem-aventurana), e outro situado dentro do tempo histrico (o estado do Esprito Santo). Assim a Histria vem a adquirir uma importncia que nunca teve na Idade Mdia, a qual lhe concedia um valor apenas instrumental, isto , valorizava o tempo histrico na medida em que nele se situam as decises dos indivduos humanos sobre o seu destino definitivo mas essas decises so os resultados imprevisveis da misteriosa interaco da graa divina e do livre arbtrio humano. Partindo de especulaes teolgicas, o abade calabrs introduziu a ideia do progresso histrico, ideia que, com o tempo, se foi desligando do seu contexto original e, uma vez completamente secularizada, acabou por se dirigir contra a Revelao crist. Semelhantes processos de secularizao so bastante comuns na histria do mundo ocidental. Outra inovao de Joaquim consiste no seu mtodo de apontar as concrdias, o qual torna a Histria predizvel, pelo menos, nas linhas gerais. Ele mesmo no se tinha por profeta, mas por simples exegeta procura do sentido espiritual da Bblia. O papel de profeta, porm, que o mestre declinara para si,16

assumiram-no sem escrpulos os seus adeptos, que no hesitaram em forjar profecias, como havemos de ver nas pginas seguintes. Com todo o esprito inovador, Joaquim era autor bem circunspecto: no se queria afastar abertamente da teologia tradicional, invocando a cada passo a autoridade dos Padres, sobretudo, a de Santo Agostinho, que tinha ideias muito diferentes. Fazia distines e subdistines, por vezes, bastante subtis; costumavam atenuar uma afirmao ousada com outra incua; e esta, no raro, chega a contradizer aquela. Tudo isso torna extremamente difcil a interpretao unvoca da sua doutrina, que tanto apresenta textos de uma ortodoxia insuspeitada, como passos que, no campo da teologia, se aproximam de um certo tritesmo e, no terreno da Histria, de um certo relativismo. Os seus discpulos j no tinham aquela circunspeco. O que o mestre no quisera (ou no ousara) dizer afirmavam eles sem reserva compondo livros profticos que atribuam a Joaquim. Levado pelo seu zelo de reformar a vida eclesistica do tempo, Joaquim criticara certos abusos, mas sempre com muito respeito. Alguns dos seus adeptos no hesitaram em injuriar a hierarquia eclesistica, acusando-a de carnal e mundana. E tambm no deixavam de politizar o pensamento do mestre. O que, para ele, fora uma verdade a ser completada e vivida interiormente foi-se transformando, para os seguidores, numa tese militante, que tinha as suas complicaes no s com a religio e a tica mas igualmente com a vida poltica e social. Joaquim predissera que o terceiro estado, previsto para o ano de 1260, havia de ser inaugurado por dois homens espirituais e contemplativos, aos quais,17

ajudados por um novo gnero de apstolo, caberia a tarefa de regenerar, internamente, a cristandade, converter os hereges, judeus e pagos. O que ele esperava era, muito provavelmente, uma reforma radical da vida crist pela Ordem de Cister. Aconteceu, porm, que pouco tempo depois da morte do abade foram fundadas as duas ordens mendicantes: a de So Francisco e a de So Domingos, duas instituies que reflectiam o facto de que a sociedade europeia estava a sair da fase feudal para entrar na fase burguesa e urbana. Ora, num comentrio sobre o profeta Jeremias, escrito cerca de 1240 e falsamente atribudo a Joaquim, esses dois homens espirituais eram identificados com os fundadores das duas novas ordens. Como a figura fulgurante de So Francisco impressionasse os contemporneos muito mais do que a de So Domingos, o papel predominante para inaugurar a nova era ficou reservado aos franciscanos e, entre eles, de modo especial, aos spirituali. Os spirituali pregavam o ideal da pobreza radical. Ligando menos importncia vida comunitria do que os conventuais, que preferiam dedicar-se cura das almas em obedincia s autoridades eclesisticas, percorriam as cidades e as aldeias, onde exerciam os trabalhos e servios mais humildes ou viviam de esmolas, dando assim um exemplo concreto de humildade crist. A oposio entre os dois grupos, que j existia na vida do fundador, foi-se exacerbando depois da sua morte (1226), agravando-se pela circunstncia de que os spirituali (que, mais tarde, passaram a ser chamados fraticelli), encontravam na Igreja institucional pouca compreenso. Eles professavam a sua f no advento de uma Igreja18

espiritual, livre dos vnculos pesados deste mundo. Um dos primeiros porta-vozes deste movimento reformador e, por vezes, rebelde foi o frade menor Geraldo de Borgo San Donnino, que, num livro introdutrio ao Evangelho Eterno (c. 1255) anunciava a iminente ab-rogao dos dois Testamentos. No novo estado, a nica norma a dirigir a vida crist seria o Evangelho Eterno, depositado nas obras de Joaquim. Seguiram-se condenaes e perseguies, mas no conseguiram estas emudecer a voz dos revoltados, que continuaram a agitar a sociedade medieval durante vrios decnios. A revolta contra a ordem estabelecida abrangia todos os sectores da vida pblica e, como no podia deixar de ser numa sociedade sacral, tinha razes profundamente religiosas. Muitos cristos medievais e, entre eles, os mais sinceros viam-se colocados diante de um problema que lhes parecia insolvel. Como explicar que a Europa, depois de doze sculos de Evangelho professado, levasse uma vida to pouco evanglica? Os prncipes s empenhados em defender os seus interesses dinsticos, os ricos s ansiosos por aumentar a sua fortuna, os pobres constantemente explorados e oprimidos, e a Igreja, fundada por Cristo, transformada numa instituio mundana. Sofrendo com a antinomia entre o sublime ideal e a triste realidade, muitos pensavam que s uma interveno do Cu poderia suprimi-la, interveno, alis, que lhes parecia prometida por diversas profecias antigas e modernas. Os vaticnios, que sempre tinham surgido nos lances crticos da cristandade, comearam a brotar, como nunca antes, no fim da Idade Mdia. Quase todos eles estavam redigidos numa linguagem propositadamente enigmtica, s compreensvel aos iniciados. Ameaavam19

calamidades que estavam prestes a cair sobre prelados, prncipes, ricos e exploradores, mas mostravam tambm grandes esperanas. Havia de vir um papa (Pastor Anglico), que, secundado por um grande monarca cristo (Rei justo e piedoso), conseguiria transfigurar a sociedade crist. A vida do Pastor Anglico seria um modelo de humildade, pobreza, e abnegao, em contraste flagrante com a vida principesca que levavam muitos papas da poca. O papel do Rei justo e piedoso, muitas vezes imaginado como Imperador Mundial, seria o de acabar com o poder dos Turcos e o de estabelecer um reino de paz e justia na terra. De acordo com as preferncias pessoais dos profetas, que no raro mostravam esprito muito faccioso, o papel de Imperador poderia caber a um Francs, Ingls ou Alemo. Igualmente de acordo com as predileces pessoais, o movimento reformador e proftico podia revestir-se das formas mais variadas: espiritualismo, milenarismo, anarquismo, comunismo, nacionalismo, etc. mas todas essas correntes prometiam um futuro melhor, garantido por Deus. Algumas dessas profecias eram atribudas a Joaquim, como, por exemplo, os comentrios sobre Isaas e Jeremias, as glosas sobre o Orculo Anglico 1 e uma parte dos Vaticnios sobre os Papas 2. Outras eram postas na boca de uma das Sibilas (Eritreia, Smia, etc.) e na de Merlino, o famoso mgico da saga celta. Vrios destes vaticnios, no raro, entraram bastante deformados nas profecias sebsticas. Ser escusado dizermos que o joaquimismo de data posterior pouco ou nada tem a ver com a doutrina autntica de Joaquim de Fiore, embora cumpra reconhecer que este criou um clima propcio para20

nascerem esperanas histricas e profecias apocalpticas. Deixando aqui de lado o seu aspecto estritamente religioso, podemos dizer que o joaquimismo do fim da Idade Mdia a esperana na vinda de um grande Reformador, que h-de livrar a cristandade de inimigos internos e externos e estabelecer um reino universal de paz e justia. Este joaquimismo no tardou a entrar na Pennsula Ibrica, sobretudo no Reino de Arago, o qual, devido sua situao geogrfica, estava muito exposto s influncias do mundo mediterrnico. Atingiu tambm Portugal, no havendo dvida que os frades menoritas e, mais tarde, os monges de So Jernimo foram transmissores importantes da nova mentalidade. J nos anos crticos de 1383 a 1385 existia um forte messianismo em Portugal, do qual o sermo de Frei Pedro, transmitido por Ferno Lopes 3, a expresso mais manifesta. Uma vez arraigado nas terras de Espanha, o joaquimismo sofreu diversas influncias regionais e, passando por vrias etapas ainda no devidamente estudadas, acabou por traduzir-se, na parte final do sculo XV em profecias rimadas (coplas, trovas, etc.), cujo impacto foi decisivo para Bandarra, o grande profeta de quase todos os messianistas portugueses.

4. Portugal, um solo fecundo Acima ficou dito que a terra lusitana era solo fecundo para o vicejar do joaquimismo. A afirmao pede alguns esclarecimentos mais pormenorizados. Passo a d-los, no no sentido de causas determinantes (as coisas poderiam ter corrido de maneira bem21

diferente), mas no de factores que, a posteriori, nos tornam compreensvel a intensidade do fenmeno em Portugal, bem como a sua longa durao. Em primeiro lugar, Portugal continuava a ser uma sociedade sacral, em que todos os sectores da vida estavam impregnados de religiosidade, ao passo que diversos outros povos da Europa, sobretudo os do Norte, se iam secularizando sob a influncia do humanismo e do protestantismo. Desde a segunda metade do sculo XVI o pas j no participava na evoluo cultural e intelectual europeia e teimava em ficar encerrado num mundo encantado. O racionalismo, que estava a criar uma Europa diferente, no afectava profundamente a conscincia portuguesa. Na filosofia e na teologia predominava o epigonismo escolstico, sem o esprito inovador dos grandes mestres que fundaram a escola. Na historiografia no se tomava conhecimento das novas ideias descobertas pela crtica histrica. Nas Universidades, as cincias experimentais eram pouco estudadas e pouco estimadas. E assim poderamos continuar a enumerao dos atrasos culturais. Em muitos pontos, existia ainda em Portugal uma sociedade maciamente sacral, que se tornava cada vez mais anacrnica. Ela , sem dvida, uma condio prvia de todo e qualquer messianismo, mas no explica a larga difuso e a longa durao do fenmeno. Basta olharmos para Espanha, onde, no mesmo perodo, existia uma situao muito semelhante, mas onde o messianismo nunca chegou a ter a mesma importncia. A segunda razo poderia consistir no famoso substrato celta etnia a que se atribuem o amor do longnquo, o sonho do ideal impossvel de realizar e a22

volpia de fantasiar. A tese celtista, formulada no fim do sculo passado por Oliveira Martins e depois sustentada por diversos historiadores da cultura portuguesa, parece relacionar-se com a figura do rei gals Artur, o prottipo do mtico D. Sebastio. Com efeito, muito plausvel que a ndole sonhadora e fantasista do substrato celta tenha criado, entre os Portugueses, uma certa predisposio para embeber-se nas esperanas messinicas. Parece que, assim como o carcter sacral da sociedade portuguesa possibilitou o grande xito do sebastianismo, assim o substrato celta o favoreceu. Mas tambm este no suficiente para explicar o fenmeno na sua totalidade. No devemos esquecer que o povo portugus, durante a sua longa e rica histria, deu provas abundantes de um grande realismo e que as suas faculdades imaginativas se poderiam ter revelado de maneira bem diferente. A terceira razo, que me parece mais decisiva, relaciona-se com a histria do povo portugus. Esta uma histria de grandes esperanas cruelmente frustradas. No fim da Idade Mdia, Portugal tinha o orgulho de ser um pas pioneiro e at imaginava ser um povo eleito. Pouco depois de entrar nos tempos modernos, viu-se humilhado e impotente. A frustrao de grandes esperanas histricas costuma exacerbar o nimo dos povos em que esto lanados os germes do messianismo. Quanto maiores as atribulaes externas e internas, mais fortes se tornam as esperanas num futuro glorioso, nutridas pela recordao de um passado glorioso. Prova-o a histria de Israel. Portugal o pas mais antigo da Europa. J em meados do sculo XIII possua as fronteiras que ainda hoje em dia mantm. Assim, tinha vantagem sobre as23

outras naes europeias em unir poltica, lingustica e culturalmente a populao do territrio nacional. Parecia predestinado a ficar absorvido pelo poder crescente de Castela, seguindo o destino de tantos outros reinos da Pennsula. Apesar de todas as tentativas que de dentro e de fora se fizeram neste sentido, o pas conseguiu manter a sua independncia. A guerra de 1383 a 1385, alm de selar a autonomia nacional, foi tambm uma revoluo social e poltica, que modernizou as estruturas do pas. Na obra de Ferno Lopes vemos expresso o jbilo pela grande realizao, que lhe parece iniciar a stima e ltima idade da Histria humana 4. Encontramos nela diversos passos que, se o no proclamam abertamente, ao menos insinuam que o povo portugus o povo eleito dos tempos modernos. No reinado de D. Joo I deu-se a tomada de Ceuta, a primeira fortaleza conquistada aos infiis fora do continente europeu. Neste clima de euforia nacional nasceu a lenda de que Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques no campo de Ourique, lenda que ilustra o lugar privilegiado de Portugal entre todas as naes crists e que, mais tarde, ampliada com elementos nitidamente messianistas, acabou por constituir um dogma fundamental do credo lusitano. conquista de Ceuta se seguiram as espantosas viagens martimas, que, no fim do sculo XV, foram coroadas com o descobrimento do caminho martimo para a ndia e do Brasil, e com a construo de um grande Imprio colonial no Oriente e no Ocidente. Eram motivos sobejos para que a pequena casa lusitana se fosse embriagando de tantas realizaes e chegasse a adjudicar-se uma misso universal. verdade que, nessa mesma poca dos Descobrimentos, tambm se ouviram24

muitas queixas sobre a perda dos valores tradicionais , consequncia inevitvel de grandes e rpidas transformaes sociais. Mas tudo nos leva a crer que tambm os pessimistas no deixavam de acreditar na misso histrica do pas. A este perodo de ufanismo ps termo a aventura de D. Sebastio, que teve por consequncia a perda da independncia. Mas a humilhao no tardou a reavivar o messianismo do povo portugus, que no queria abandonar o seu antigo sonho e cantava as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os coraes mais fortes 5. Deu-se o milagre da Restaurao em 1640, que a muitos parecia iniciar a era das grandes felicidades. Mas, passados alguns anos, a recuperao da autonomia nacional deu provas de no ser o incio do Imprio Mundial: Portugal perdera uma grande parte das suas colnias, e teve de contentar-se com um papel muito modesto na cena poltica europeia. A frustrao continuava a existir e, com ela, as esperanas messinicas, que adquiriram novas foras sobretudo no reinado de D. Joo V e na poca das invases francesas. Relat-las e coment-las ser o assunto deste livro.

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II / AS PROFECIAS E OS CARTAPCIOS DOS SEBASTIANISTAS

Antes de entrar na relao dos factos principais da histria do sebastianismo, julgo valer a pena deter-me por algum tempo nas profecias, que constituam o baluarte da seita. O que nos interessa sobretudo saber como elas se originaram numa sociedade sacral, qual foi a sua funo e sob que forma entraram nas coleces sebsticas, a que Antnio Vieira, com certo desdm, chama cartapcios.

1. A profecia e a sua exegese Assim como os nossos conhecimentos do passado se baseiam em documentos histricos, assim as esperanas messinicas se fundam em profecias. Mas existe uma diferena fundamental: ao passo que o documento histrico apenas a base dos nossos conhecimentos do passado, a profecia a base e, ao mesmo tempo, o produto das esperanas messinicas. Estas, na fase inicial da sua existncia, so vagas e subjectivas, necessitando de uma autoridade reconhecida que lhes26

possa dar o devido crdito. A profecia torna concreto o que nelas era vago e indefinido, abonando o que nelas poderia parecer ilusrio com o prestgio de um santo ou qualquer outro varo ilustre. Ao homem moderno, embora cada vez mais inclinado a acreditar em horscopos, dias aziagos e outros agouros, custa acreditar em profecias. que ele vive num mundo fechado, em que ainda h lugar para a actuao misteriosa de um Destino imanente, mas cada vez menos para o governo de um Deus pessoal, o Senhor transcendente da Histria, o qual nela se revelou e no deixa de revelar-se. Ora, a profecia uma tentativa para penetrar nos mistrios da Divina Providncia. Ela d um sentido divinamente garantido ao processo histrico e, por conseguinte, actividade colectiva de uma dada sociedade. A profecia filha de sociedades que vivem da f num Deus que remunera as virtudes e castiga os pecados j neste mundo; nasce e cresce em pocas ainda no reguladas por pesquisas metdicas da Natureza, nem pelas suas aplicaes tcnicas. Em tais perodos a contemplao da causa final prevalece sobre a investigao das causas eficientes. Mas cumpre repararmos que a crena num Poder superior a todas as foras da Natureza no chega a eliminar a Razo. Deus revelou os seus desgnios histricos pela boca de profetas, e o intelecto humano pode perscrut-los e, at certo ponto, compreend-los. Fides quaerens intellectum. A profecia tem, por definio, um ncleo irredutvel pura racionalidade. Digamos embora o termo seja dos mais ambguos que tem um ncleo mtico. Mas o mito um motor poderoso de processo histrico. Leva uma grande vantagem sobre as construes puramente27

racionais, porque afecta o homem na sua totalidade, no se dirigindo apenas ao seu intelecto, mas tocando-lhe o corao, incentivando-lhe a imaginao e motivando-lhe a vontade. A quem acredita nela, a profecia d uma viso do futuro, convidando o homem a colaborar com os desgnios divinos. Na sociedade moderna cientfica e tecnolgica a profecia j no funciona, faltando-lhe para tal as condies indispensveis. Vem a ser substituda por anlises cientficas e processos tcnicos, que invadem quase todos os terrenos da cultura hodierna e, dentro dos seus limites, funcionam com grande perfeio. Mas a cincia e a tcnica tm os seus limites fatais: ambas so incapazes de dar sentido vida dos indivduos e das colectividades. Examinando de perto as ideologias modernas, que a muitos parecem objectivas e definitivas, descobrimos nelas tambm elementos mticos. Estes mostram muitas vezes ter mais fora existencial e maior poder conquistador do que os componentes meramente racionais. Intellectus supponens fidem. Vimos no captulo anterior que desde os primeiros sculos da era crist se forjaram profecias sobre o rumo do processo histrico, mas que elas nunca pulularam tanto entre os cristos como no fim da Idade Mdia. Em Portugal, o profetismo teve o seu apogeu mais tarde, nos sculos XVI, XVII e XVIII. Os forjadores de profecias costumavam p-las na boca de uma pessoa ilustre, j h muito tempo defunta. Este mtodo tinha duas vantagens. Em primeiro lugar, a antiguidade do vaticnio conferia-lhe certa dignidade. Em segundo lugar, este mtodo possibilitava aos autores iniciar os seus orculos com o prenncio de28

acontecimentos j sucedidos na poca da redaco. E a verdade das profecias j cumpridas devia garantir a das profecias ainda por cumprir. A profecia propriamente dita continha geralmente, alm de admoestao e imprecaes, material de propaganda a favor de uma corrente religiosa, combinado com qualquer movimento poltico ou social. Aos modernos causa espanto o facto de que esses produtos fantasistas brotavam sem escrpulos da mente de pessoas que decerto se consideravam a si mesmas como honradas e honestas e como tais eram consideradas por outros. Hoje, estamos espontaneamente inclinados a condenar tais falsificaes. Mas no sejamos demasiadamente severos com aquela gente. Diz um crtico francs: Pour des esprits peu forms lobservation, attribuant ce qui est une importance bien moindre qu ce qui doit tre, introduire dans les archives le document qui y manque malheuresement, nest pas mentir, cest au contraire rtabilir une vrit suprieures 6. Fosse isso como fosse, quase todas as profecias eram redigidas numa linguagem obscura e enigmtica, prestando-se a mais de uma interpretao. E, assim como os documentos histricos do lugar a uma constante discusso entre os estudiosos do passado sobre a sua correcta interpretao, assim as profecias criavam uma classe de exegetas que disputavam entre si o seu verdadeiro significado. Havia inmeras disputas entre pessoas unidas na sua f nas profecias, mas muito desunidas na sua interpretao. Os combatentes mostravam, por vezes, algum talento em discernir o ponto fraco da argumentao dos seus adversrios, mas falhavam redondamente em provar, de maneira convincente, a sua prpria opinio. Essas discusses29

fazem-nos pensar nos debates parlamentares entre conservadores e progressistas, que no convencem ningum, a no ser quem j esteja convencido. Assim a luta continuava indecisa, sem vencedores finais nem derrotados definitivos. Os combatentes gostavam de assumir ares de eruditos, mas a erudio que exibiam mal resiste a um exame crtico, porque toda ela estava baseada em premissas ilusrias. Acontece, porm, que tambm as iluses fazem parte da Histria, chegando a ser, por vezes, motrizes mais pujantes do que as lucubraes de ordem puramente intelectual. Por mais eruditos e, em alguns casos, inteligentes que fossem os polemistas, quase nenhum deles levantava o problema que ao homem moderno parece fundamental: a autenticidade das profecias alegadas. Faltava-lhes a menor noo da crtica histrica, que na poca do Renascimento nascera na Itlia e, nos sculos XVI e XVII, estava a ser aperfeioada nas Universidades da Holanda e nas abadias e academias da Frana. O facto ilustra bem o isolamento cultural em que Portugal se encontrava.

2. Os cartapcios Os sebastianistas que se prezavam de certo grau de cultura e erudio empenhavam-se em coleccionar profecias. Estas coleces, geralmente feitas sem nenhum critrio cientfico, eram para eles o arsenal donde tiravam as armas para defender e propagar as suas opinies e para combater as dos incrdulos e dissidentes.

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Muitos desses cartapcios chegaram aos nossos dias, alguns feitos por copistas ignorantes e cheios dos erros mais crassos, outros organizados com certo esmero e mtodo. Dois deles merecem uma meno especial: o Jardim Ameno 7 e o Catlogo das Profecias 8. Ambos primam por uma grande variedade de matria proftica, e, comparados com outros cartapcios, do a impresso de transmitir um texto coerente e dentro dos seus limites fidedigno. Deles me servirei amplamente na transcrio dos textos sebsticos que pretendo reproduzir no presente trabalho. Deixo de transcrever o ttulo completo do Jardim Ameno, por ser muito longo. A transcrio chegaria a ocupar quase meia pgina. O cartapcio, tal como chegou at ns, deve ter por base uma compilao de profecias, organizada por um certo Pedreanes de Alvelos e dedicada por ele a D. Sebastio no dia 20 de Abril de 1636. Mas o copista ampliou a coleco, enriquecendo-a de algumas aluses aclamao de D. Joo IV. Como se l na folha 126r do cdice, concluiuse o traslado no dia 1 de Janeiro de 1650, em Goa, o que no impediu o compilador de lhe acrescentar ainda alguns textos, entre eles, o do Juramento de D. Afonso Henriques. O livro que, muito provavelmente, j desde o incio estava em poder dos jesutas chegou s mos de Henrique de Carvalho, confessor do rei D. Joo V, que em 1741 o deu de presente ao colgio da Companhia de Gouveia. A foi sequestrado na poca de Pombal como livro malicioso e pernicioso 9. Felizmente, escapou ao holocausto que Pombal mandou fazer de tantos livros sebsticos. O cartapcio transmite quase todas as profecias bsicas da seita, se no sem defeitos, ao menos, de maneira satisfatria.31

O Catlogo das Profecias tem uma histria menos complicada. Foi organizado em 1809 por pessoa que nos desconhecida. uma coleco riqussima, que abrange mais de 475 pginas; mas, infelizmente, a qualidade dos textos transcritos muito desigual, e tambm encontramos nela algumas repeties 10. Este cdice para ns de grande importncia, porque, alm de transmitir quase todas as profecias bsicas do sebastianismo, tambm conserva muito material que data da poca de Napoleo.

3. As profecias bblicas Em nenhum cartapcio encontramos profecias bblicas, apesar de serem as mais fundamentais de todas. Citam-nas com grande regularidade os tratadistas, mas os organizadores de compilaes passam-nas em silncio, sem dvida porque elas se subentendem tacitamente e so consideradas de conhecimento geral. Os tratadistas alegam frequentemente alguns textos dos profetas Isaas e Ezequiel, que se referem paz e harmonia universal do reino messinico, tema por eles, geralmente, combinado com a restaurao de Israel. Mais importante, porm, so os textos apocalpticos da Bblia. O gnero apocalptico, que floresceu entre 200 a. C e 200 d. C., descreve em sonhos ou vises o combate decisivo entre Israel e os seus inimigos nos tempos derradeiros, e o triunfo final do povo de Deus. A descrio faz-se por meio de figuras simblicas (Leo, guia, Drago, etc.), cujo significado vem a ser explicado, ou pelo prprio profeta, ou por um Anjo, ou por Deus. Entre esses sonhos cumpre salientarmos os32

do profeta Daniel (cap. 2 e 7), referentes aos quatro grandes Imprios que no Prximo Oriente se sucederam e que a exegese tradicional identificava, respectivamente, com o dos Assrios, o dos Persas e Medos, o dos Gregos (Alexandre Magno) e o dos Romanos. O primeiro sonho representava os quatro Imprios sucessivos na figura de uma esttua enorme, cuja cabea era de ouro, o peito e os braos de prata, o ventre e as coxas de cobre, e as pernas de ferro, sendo de ferro tambm uma parte dos ps, mas de barro outra parte. Desprendendo-se, de repente, duma montanha, uma pedra feriu e despedaou a esttua, crescendo at se transformar numa grande montanha, que acabou por encher a terra inteira. Esta pedra deu, em Portugal, origem ao Quinto Imprio, e Fifth Monarchy entre os metodistas da Inglaterra. Eis o comentrio de Vieira: Aquela pedra [], que derrubou a esttua e desfez em p e cinza todo o preo e dureza de seus metais, significa um novo e Quino Imprio, que o Deus do Cu h-de levantar no Mundo nos ltimos tempos dos outros quatro. Este Imprio os h-de desfazer e aniquilar a todos, e ele s h-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domnio ou poder estranho, sem haver de conquistado ou destrudo, como sucedeu [] aos demais 11. Comentando o segundo sonho de Daniel, o jesuta interpreta-o no mesmo sentido 12. Merece tambm ateno especial o chamado Livro IV de Esdras, opsculo apcrifo, redigido no fim do sculo I d. C. por um judeu piedoso e falsamente atribudo a Esdras, o organizador da comunidade33

religiosa dos judeus depois do cativeiro de Babilnia (sc. V a. C.). Este livro, apesar de no cannico, gozava tambm entre os cristos de grande prestgio, a ponto de ficar includo na edio da Vulgata Latina, guisa de apndice. Nele se encontram algumas vises apocalpticas (cap. 11-13). Uma delas fala de um Leo (o Messias), que por termo ao reino injusto de uma guia monstruosa (o Imprio Romano) e estabelecer um imprio de justia at ao Juzo Final. Escusado ser dizermos que os sebastianistas viam no Leo e figura do Encoberto. Outra viso de Esdras fala nas dez tribos deportadas pelos Assrios no fim do sculo VIII a. C. Ao contrrio das duas tribos que, mais tarde, seriam transportadas para a Babilnia, estas nunca conseguiram repatriar-se: encerradas por altas montanhas e rios caudalosos, vivem longe das outras naes. Mas no fim dos sculos ho-de aparecer milagrosamente para se incorporar no Reino do Messias. O tema das tribos perdidas, imaginadas como prestes a submeter-se Lei de Cristo e ajudar o Imperador Mundial, devia ser caro a Bandarra e a Vieira. No Novo Testamento lemos diversos textos relativos ao Anticristo, s perseguies dos ltimos tempos e ao Segundo Advento de Cristo. Os passos mais importantes ocorrem nos Evangelhos, nas Epstolas de So Paulo e, sobretudo, no Apocalipse. De acordo com a exegese tradicional, este livro descrevia por meio de figuras simblicas (as sete trombetas, os sete selos, os sete anjos, etc.) a histria da Igreja uma histria cheia de calamidades, s quais se havia de seguir o reino milenar de Cristo na terra e, depois de um breve intervalo dominado por Satans, o Juzo Final.

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4. As profecias no cannicas Das inmeras profecias no cannicas ocorrentes nos cartapcios dos sebastianistas podemos dar aqui apenas uma pequena seleco. Em primeiro lugar, so frequentemente citados os orculos sibilinos, geralmente em forma de coplas castelhanas. Esses orculos no tm nada a ver com os vaticnios gregos que o Baixo Imprio nos transmitiu e parece que so de origem ibrica. Devem ter sido forjados no fim da Idade Mdia, mas os pormenores da sua origem so-me desconhecidos. Existe tambm um orculo sibilino, redigido em linguagem solta e citado em Latim ou em Portugus. Segundo ele, Cassandra, a filha de Pramo, rei de Tria, teria predito, juntamente com Santo Isidoro (bien tonns de se trouver ensemble!), o seguinte: Um rei novo, nos ltimos tempos, na Espanha Maior, duas vezes dado por piedade do Cu, nascendo pstumo, reinar por uma mulher, cujo nome comear em I e acabar em L. E o dito rei vir das partes orientais. Reinar na sua mocidade, e alimpar a Espanha dos vcios imundos, e o que no queimar o fogo, devastar a espada. Reinar sobre a Casa de Agar [= Sarracenos], conquistar Jerusalm, fixar a imagem do Crucificado sobre o Santo Sepulcro, e ser o maior de todos os monarcas 13.

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Esta profecia, citada em diversas formas de acordo com as preferncias dos tratadistas, contm elementos que parecem talhados para a pessoa de D. Sebastio: duas vezes dado, nascendo pstumo, reinando na sua mocidade, vindo das partes orientais e destruidor dos Sarracenos. Mas Antnio Vieira, que no reconhecia a autenticidade das palavras nascendo pstumo, aplicoua, em 1659, a D. Joo IV 14 e, mais tarde, a um filho de D. Pedro II 15. A Santo Isidoro, o famoso arcebispo de Sevilha e grande organizador da Igreja visigtica, se atribuam muitas profecias, que, no fim do sculo XV, foram postas em verso pelo cartuxo castelhano Pedro de Frias, uma fonte avidamente explorada pelos sebastianistas. Alm de ter profetizado que o Encoberto seria duas vezes dado, o arcebispo teria predito tambm que ele traria em seu nome letra de hierro. Segundo os sebastianistas, a letra de ferro era o S, inicial do vocbulo latino servus, que os Romanos costumavam imprimir com um cunho de ferro nos rostos dos escravos. Obviamente, o profeta tinha em mente o nome de D. Sebastio. Santo Isidoro no foi o nico eclasistico a fornecer profecias causa sebstica. Do apstolo So Tom se acharam em Meliapor profecias que resumiam, em estilo bblico, a derrota de D. Sebastio, o domnio filipino e o triunfo final da nao lusitana. De So Metdio, bispo de Olimpo, que morreu mrtir sob Diocleciano, citavase um texto proftico, segundo o qual um Rei, tido por morto e intil, havia de despertar como de sono de vinho. A frase no de So Metdio, mas ocorre num tratado apocalptico, redigido por um monge srio no fim do sculo VII. So Bernardo, que o patriotismo36

portugus promovera a parente de D. Afonso Henriques, teria escrito a este que ao seu Reino nunca faltariam reis naturais, salvo se pela gravidade de culpas Deus o castigasse por algum tempo. So Francisco de Assis, numa visita (completamente fantasiada) a Portugal, teria prometido a D. Urraca, esposa de D. Afonso II, que o Reino de Portugal nunca seria unido ao Reino de Castela. Se os santos estrangeiros mostravam tanto interesse pelos destinos de Portugal, no de admirar que os santos nacionais se esforassem por exced-los. Muito popular, sobretudo na poca da Restaurao, era uma profecia de So Frei Gil, um dos primeiros dominicanos de Portugal (m. ca. 1265). Traduzida para o Portugus, a parte essencial da sua profecia deste teor: Portugal, por parte de seus reis, gemer por muito tempo e padecer de muitas maneiras. Mas Deus te ser propcio e, no esperadamente, sers remido por um no Esperado. A frica ser submetida. O Imprio Otomano desmoronar-se-. A Igreja ser coroada com mrtires. Bizncio ser destrudo. A Casa de Deus ser recuperada. Tudo ser transformado. [] Reviver a Idade do Ouro. Por toda a parte reinar a Paz. Bemaventurados os que virem isto 16. Como o no Esperado tanto podia ser D. Joo IV como D. Sebastio, a profecia agradava aos dois partidos. O que no admitia dvida era que o redentor de Portugal seria Imperador da Monarquia Mundial. Outro santo portugus, dotado de esprito proftico, foi o Beato Amadeu, fundador de um ramo austero dos frades menores da Itlia (sculo XV) e autor de um37

comentrio sobre o Apocalipse (ainda indito). Jaz sepultado em Milo, com um livro fechado na mo: Sucessos do Reino de Portugal: o livro se abrir a seu tempo. O caso no podia deixar de dar origem a muitas especulaes. Em meados do sculo XVI vivia em Lisboa um sapateiro santo, chamado Simo Gomes, a quem se atribuam profecias sobre a catstrofe de Alccer-Quibir, o domnio filipino e a recuperao da independncia nacional. O Padre Jos de Anchieta, de origem castelhana, mas integrado na causa nacional como apstolo do Brasil, no dia fatal de 4 de Agosto de 1578 teria dito ao capito Miguel de Azevedo que D. Sebastio perdera a batalha, mas no morrera e que, ao cabo de muitos anos, novamente tomaria posse do seu Reino. Na galeria dos profetas nacionais figura tambm, desde o final do sculo XVII, o Padre Antnio Vieira. Este, embora no gozasse de fama de santo, como os j referidos vares, teria prenunciado o terramoto de Lisboa na dcima seguinte: Depois de passarem mil, e setecentos voarem, dois cinco viro que acabem aquela obra em porfil. Um arroto no subtil do mais pesado elemento causar grande lamento com seu arrojo iracundo. Dar memria ao Mundo e Lsia, por muito tempo 17.

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Em meio a tantas vozes masculinas, era inevitvel que tambm o sexo frgil se fizesse ouvir. Diferentemente dos homens, as mulheres no proferiam profecias, mas recebiam vises ou revelaes, coisas julgadas mais conformes modstia feminina. Entre as mulheres favorecidas pelo Cu mencionamos aqui a Madre Leocdia da Conceio, no Porto, e a freira Leonor Ros, em Belm. Tambm eram alegadas vises da grande mstica castelhana, Santa Teresa de vila. Havia ainda profetas leigos, que, alm do mais, no eram santos nem letrados. O mais clebre entre todos eles Bandarra, a quem ser consagrado um captulo especial neste livro. Outro profeta leigo um certo Simo Nunes, de quem praticamente nada sabemos seno que foi ourives em Braga. Dele possumos umas profecias rimadas, que, como era de esperar de um ourives, tm a pretenso a certo requinte tcnico. Nem faltam nos cartapcios dos sebastianistas os vaticnios de Nostradamus, embora quase irreconhecivelmente deturpados. Ao que parece, os compiladores eram muito pouco versados na lngua francesa, tendo das Centuries s conhecimentos de segunda mo, que eram incapazes de verificar na fonte. Alguns deles deviam-no ter por autor castelhano, porque o costumavam citar na lngua do pas vizinho. O resultado desta confuso deplorvel e, por vezes, cmico. Onde o mdico-astrlogo de Salon diz: Gand et Bruxelles marcheront contre Anvers, 18 alguns cartapcios apresentam esta traduo 19: Gentes de Bruxelas marcharo contra Andaluzes. E as profecias joaquimistas? A resposta pode ser breve. Do prprio abade no ocorre nenhum texto nem39

nos cartapcios, nem nos tratados dos sebastianistas. Joaquim de Fiore era um ilustre desconhecido, inclusive para os dois corifus do messianismo seiscentista: Dom Joo de Castro e o Padre Antnio Vieira. Ambos falam com muito respeito no venervel Abade, mas confundem as obras autnticas e apcrifas (coisa bastante comum no sculo XVII, tambm fora de Portugal) e ignoram por completo a doutrina dos trs estados e o mtodo exegtico das concrdias. Joo de Castro d mostras de conhecer bem a literatura do joaquimismo posterior, sobretudo nos seus escritos inditos, mas tambm ele no faz a devida distino entre a doutrina do mestre e a dos seus adeptos. Antnio Vieira gaba-se diversas vezes de possuir um livro joaquimista a que dava o nome de Rusticano 20 e que foi publicado em Veneza no ano de 1516, mas tambm este livro no passa de uma compilao de profecias tardias e, apesar de tantas vezes referido por Vieira, pouco lhe influenciou o pensamento. H trs profecias da escola joaquimista que se encontram em muitos cartapcios portugueses e foram frequentemente comentados pelos tratadistas. A primeira a frase: cujus nomen quinque apicibus scriptum est, isto : cujo nome se escreve com cinco pices. Foi tirada de uma profecia atribuda Sibila Eritreia, mas, na realidade, data dos meados do sculo XIII, e, no seu contexto original, o passo aplicava-se pessoa do Imperador Isaac Angelos de Bizncio (m. 1204). Os sebastianistas ortodoxos, interpretando (erradamente) a palavra pice no sentido de slaba, viam na profecia uma clara aluso ao nome de D. Sebastio, cujo nome em Latim se compe de cinco slabas: Se-bas-ti-a-nus. Mas Vieira, que em dada altura40

defendia a tese de ser D. Joo IV o Encoberto, explicava o termo pice como pontinho que se pe sobre o i 21 e via a profecia cumprida na grafia ioannes iiii. A segunda profecia o opsculo apcrifo Vaticnios sobre os Papas, uma parte do qual data da primeira dcada do sculo XIV, e outra de cerca de 1355. Apesar de muito heterogneas, as duas partes aparecem unidas desde o fim do sculo XIV. Fragmentos destas profecias entraram no Jardim Ameno 22, e o texto integral, com a traduo portuguesa, no Catlogo das Profecias 23. E, finalmente, muitas vezes citada uma frase tirada do chamado Orculo Anglico, composto no fim do sculo XIII. Este orculo teria sido oferecido por um anjo a So Cirilo, um dos primeiros padres-gerais o Carmo, que enviou o texto obscuro ao abade Joaquim, com o pedido de o esclarecer com algumas glosas. Em diversos cartapcios a frase em questo apresenta a forma seguinte: No tempo de 1554 nascer o Sol, e estar eclipsado e escondido por algum tempo, e ser lastimado com o aguilho de desprezo numa pequena cova de trs ou quatro repartimentos, cercado de grandes grades. Guard-lo-o escorpies, e depois senhorear o Mundo 24. O texto um arranjo feito de alguns grupos de palavras que se acham espalhadas pelos captulos I e II do Orculo Anglico e se referem luta por Npoles entre a Casa de Anjou e a de Hohenstaufen. O arranjo mostra como os sebastianistas pouco se incomodavam com a origem e o contexto das suas profecias: perfilhavam-nas e modificavam-nas (por exemplo: no tempo de 54 [ =41

1254] mudaram em: no tempo de 1554), apropriandoas sua causa. Mas temos razes para acreditar que eles no foram os primeiros violentadores de textos profticos. Quem estiver a par deste gnero literrio deve saber que essas deturpaes j tinham sido praticadas em outros pases da Europa, muito tempo antes de nascer o sebastianismo.

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III / AS TROVAS DO BANDARRA

1. A vida do Bandarra Quase tudo o que se sabe seguramente da vida de Gonalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Tefilo Braga na segunda metade do sculo passado 25. Deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, onde viveu toda a sua vida, exercendo o ofcio de sapateiro. Antes da publicao do seu processo, julgava-se que Bandarra foi sempre pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declarao ao Tribunal lemos que fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria sua conscincia, que no dizer outra cousa. Tambm se julgava que o sapateiro no sabia ler nem escrever, mas que costumava ditar as suas profecias ao Padre Gabriel Joo, o qual seria seu amanuense, tal como o fora Baruch do profeta Jeremias. Hoje sabe-se que ele no era analfabeto. Mantinha correspondncia com vrias pessoas do Reino, entre as quais se contavam figuras de destaque, tal como o Doutor Francisco Mendes, mdico do Cardeal-Infante D. Afonso. Lia e relia a Brvia em linguagem ( = a Bblia em vernculo) sem dvida um43

texto escrito mo, que tomara emprestado a um certo Joo Gomes de Gio e guardara uns oito anos em casa. Dotado de memria fidelssima, sabia de cor longos trechos da Escritura Sagrada, sobretudo dos livros profticos. Quando, depois de restituir o livro ao seu dono, j no se lembrava de um texto bblico, recorria ao Dr. lvaro Cardoso ou ao clrigo Bartolomeu Rodrigues, que tinham uma Bblia latina e com ela lhe refrescavam a memria. Assim chegou a ser um orculo em assuntos bblicos, sobretudo entre os cristos-novos, que eram muito numerosos na Beira. O sapateiro devia ter tambm grandes conhecimentos das profecias atribudas a Santo Isidoro, atravs das Coplas do cartuxo castelhano Pedro de Frias e outros versejadores espanhis, entre eles, o frade bento Juan de Rocacelsa, monge de Monserrate. Estas coplas convenceram-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Imprio Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial. muito provvel que Bandarra tivesse chegado ideia de compor as suas trovas tomando por exemplo as coplas do pas vizinho, tanto mais que estas designavam muitas vezes o futuro Imperador como Infante de Portugal. O sapateiro era sem dvida, um homem extraordinrio, que aliava memria fabulosa uma grande faculdade assimiladora e o talento de fazer versos em estilo popular. As suas profecias rimadas, muito mais bblicas e, igualmente, mais patriticas que as dos seus modelos castelhanos, difundiram-se rapidamente pelo pas, no tardando a encontrar leitores at na capital do Reino. Os cristos-novos, que j antes o tinham consultado como uma espcie de rabi, passaram agora a vener-lo como um profeta solidrio com eles nas suas esperanas44

messinicas. Sabemos que, por duas vezes, Bandarra se deteve algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente de nao. O alvoroo que a causava no podia deixar de despertar as suspeitas da Inquisio recm-estabelecida. O poeta foi preso na sua terra e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu vrias testemunhas e, a 3 de Outubro de 1541, imps-lhe um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procisso do auto-de-f no dia 23 do mesmo ms. Pela sentena se pode ver que Bandarra no era acusado de judasmo, nem sequer era pessoa suspeita como cristo-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroo entre os cristo-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico. Alm disso, era intolervel que um homem sem letras se arvorasse em intrprete dos livros sagrados. A lio que a Mesa lhe queria incutir era simplesmente esta: Sapateiro, no vs alm do calado!. A Mesa ordenou ainda que qualquer pessoa que tivesse em seu poder as trovas do dito Bandarra as apresentasse ao Santo Ofcio dentro de certo prazo. A partir de 1541 no se soube mais nada do sapateiro de Trancoso. Segundo uma opinio muito divulgada teria falecido por volta de 1550. Mas, como j observou Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, a data da sua morte deve ser posterior a 1556, porque a 23 de Maro deste ano foi confirmado na dignidade episcopal da diocese da Guarda D. Joo de Portugal, a quem Bandarra enviou um exemplar das suas Trovas com uma dedicatria elogiosa em versos. Se aceitarmos a dedicatria como autntica e creio no haver motivos para lhe pr em dvida a autenticidade , devemos concluir que o profeta, uns quinze anos45

depois da solene abjurao das suas trovas, no foro ntimo ainda acreditava nelas, e que o bispo da Guarda, homem brioso e at disposto a provocar as autoridades, se dignou aceit-las.

2. As duas primeiras edies das trovas Bandarra morreu, mas no lhe morreram as trovas. Alis, lemos nos autos do processo que j na vida do autor se enchera a terra das ditas trovas. Parece que a condenao das profecias rimadas lhes aumentava a popularidade. Os meninos da Beira aprendiam a ler pelos seus toscos versos 26, que exprimiam com tanta felicidade as secretas aspiraes de muita gente portuguesa, agradando ao povo inculto e atraindo a curiosidade de diversos intelectuais, embora estes se sentissem um pouco embaraados em manifestar abertamente o seu interesse por uma poesia to pouco limada. Tiravam-se cpias, com os inevitveis erros e deformaes do texto original; o prprio carcter popular das trovas contribua para haver pouco cuidado em traslad-las com correco. A primeira edio (parcial) saiu em 1603 em Paris 27, devendo-se ao zelo patritico de D. Joo de Castro. Uns quarenta anos depois saiu em Nantes a primeira edio completa, sob o patrocnio do Conde da Vidigueira, ento Embaixador de D. Joo IV em Paris 28. Os dois editores queixam-se da m qualidade das cpias que tinham ao seu dispor. As divergncias entre as duas edies so numerosas e, s vezes, desconcertantes, agravando-se a situao ainda pela circunstncia de que o texto publicado em46

1603 tem tendncia nitidamente sebastianista, ao passo que o de 1644 apresenta uma interpretao declaradamente joanista das trovas. A reconstruo da obra original empresa precria, ou antes, fadada ao malogro, salvo em poucos casos especiais. No posso entrar aqui na exposio desses problemas muito tcnicos. S quero dizer que, no presente trabalho, me sirvo da edio de Nantes, no s porque ela ficou sendo a base de todas as edies posteriores, mas tambm porque, com todas as suas deficincias (algumas das quais sero apontadas neste captulo), tm certa lgica e coerncia interna, alm de que transmite o texto completo 29.

3. A estrutura e o contedo das trovas A coleco de trovas do vate de Trancoso vem precedida da j referida Dedicatria (rimada) a D. Joo de Portugal. Compe-se de 16 quadras (no numeradas), em que Bandarra, no sem graa, compara as suas profecias com os produtos do seu ofcio de sapateiro. Aqui se seguem trs estrofes (11-13): Minha obra mui segura, porque a mais de correa. Se a algum parece fea, no entende de custura. Eu fao obra dura, e no ando pola rama. Conheo bem a courama que convm criatura.47

Sei medir e sei talhar, sem que vos assim parea. Tudo tenho na cabea, se o eu quiser usar. A estes versos, que no revelam nenhum complexo de inferioridade, se segue um conjunto de 16 quadras (estas numeradas), que o editor rubricou com a epgrafe: Sente Bandarra as maldades do mundo, e particularmente as de Portugal. E quais so as maldades sentidas pelo profeta? O clero usa de simonia, os juzes so venais, os fidalgos ostentam ttulos comprados, as autoridades no tm a coragem de agir e reagir, e as mulheres so frvolas e levianas. Em seguida, vem a matria proftica propriamente dita. Reparte-se entre 143 trovas (17 a 159), que apresentam uma grande variedade de extenso. Quase metade delas (67 das 143) constituda por quadras de estrutura rimtica muito regular (A B B A). A estrutura das demais muito variada. Ao lado de duas parelhas (27 e 61) e um terceto (84), encontramos diversas quintilhas, sextilhas e oitavas. Na parte central do opsculo ocorrem vrias estrofes muito longas: algumas delas tm dez, onze ou doze versos, e a trova 99 chega a ter dezassete versos. Quanto mais longas as estrofes, mais irregular se torna o esquema rimtico. Mas pareceme muito provvel que diversas destas estrofes longas formassem, originariamente, duas ou at trs trovas. As 143 trovas constituem, na edio de Nantes, trs Sonhos, de extenso muito desigual: o primeiro abrange 77 estrofes (17 a 93), o segundo 15 estrofes (94 a 108), e o terceiro 51 estrofes (109 a 159). A disposio dos trs48

Sonhos, tal como foi feita pelo editor de Nantes, muito discutvel. Assim creio que o Sonho Primeiro s comea com a estrofe 82. As trovas que antecedem esta estrofe constituem uma espcie de poema pastoril. O presente trabalho, porm, no lugar indicado para tratar dos numerosos problemas levantados pela tripartio. Basta, portanto, o que j foi dito. O editor de Nantes inicia o Sonho Primeiro com estas duas trovas (17-18): Vejo, vejo, direi vejo, agora que estou sonhando, semente del-Rei Fernando fazer um grande despejo. E seguir com gro desejo, e deixar a sua vinha, e dizer. Esta casa minha, agora que c me vejo! As duas trovas deram lugar aos comentrios mais diversos. O Encoberto conquistar a Casa Santa de Jerusalm, seja ele D. Sebastio (como pensa D. Joo de Castro), seja D. Joo IV (como diz Vieira em 1659): ambos so sementes do Rei Fernando o Catlico. Mas em 1665, o mesmo Vieira interpretar despejo no sentido de desvergonha: Filipe II, descendente do Rei Catlico, teve a desvergonha de se assenhorear ilegitimamente de Portugal. Estes exemplos bastam para ilustrar como o texto do Bandarra se prestava a inmeras interpretaes, como, alis, era o caso de todos os textos profticos.

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Descrevem-se depois, sem muita conexo com o que precede, os cuidados e tormentos do Pastor-Mor (= o Papa), que, vendo perseguidas as suas ovelhas pelos lobos (= os Turcos), alerta os seus pegureiros (= os prncipes catlicos), cada um dos quais vem a ser apresentado ao leitor com um nome pastoril. O Encoberto, neste episdio, designado pelo nome de Fernando. Afugentados os lobos, organiza-se um baile campestre, precedido de um vivo dilogo entre os pastores. Por ordem do Pastor-Mor, Fernando o mestre da dana, cabendo-lhe a honra de danar com Constana, rapariga que, segundo Vieira, simboliza a cidade de Constantinopla tomada pelos cristos. O episdio buclico tem alguns passos obscuros, que aqui podemos deixar de lado. As profecias tornam-se mais claras a partir da trova 58, onde o autor comea a exaltar as excelncias de Portugal: os seus reis, o seu nome (Portugal o nico pas que tem nome masculino!), a sua bandeira, e o seu Imprio (68-71): Forte nome Portugal, um nome to excelente. rei do Cabo Poente, sobre todos principal. No se acha vosso igual. Rei de tal merecimento no se acha, segundo sento, do Poente ao Oriental. Portugal nome inteiro, nome de macho, se queres. Os outros reinos, mulheres,50

como ferro, sem aceiro [] Portugal tem a bandeira com cinco Quinas no meio [] Este tem tanta nobreza, qual eu nunca vi em rei. Este guarda bem a lei da justia e da grandeza. Senhorea Sua Alteza todos os portos e viagens, porque rei das passagens do mar e sua riqueza. Este nobre rei ser eleito Imperador pelos prncipes de Europa, no por ddivas nem presentes, e conquistar a frica. Tambm o Caaba, o santurio de Meca, coberto de precioso brocado, h-de entregar-se ao vencedor lusitano, com grande dano do poder muulmano (trova 77): A Lua dar gro baixa, segundo o que se v nela, e os que tm lei com ela, porque se acaba a taixa. Abrir-se- aquela caixa, que at agora foi cerrada; entregar-se- forada, envolta em sua faixa. Em seguida, o Encoberto tomar a Terra de Promisso, e voltar a Lisboa num cortejo verdadeiramente triunfal (trova 81):51

Entrar com dous pendes, entre os Porcos sededos, com fortes braos e escudos de seus nobres infanes Ao que parece, ser em Lisboa que o procuraro dois judeus: Fraim e Do, representantes das tribos perdidas de Israel. Pedem-lhe que os introduza ao Pastor-Mor, oferecendo-lhe dinheiro. Responde-lhe Fernando ( = o Encoberto), na trova 84: Entrai, judeus, se quereis! Bem podeis falar com ele, que l dentro o achareis. Quem o monarca portugus que, na opinio de Bandarra, est predestinado a fazer estas grandes faanhas? Tudo indica que D. Joo III, em cujo reinado escreveu as trovas, ou talvez seu filho, o Prncipe D. Joo, pai de D. Sebastio. Assim o d a entender na trova 93: As armas e o pendo e o guio foram dadas por memria 30 da vitria a um Rei, santo varo. Sucedeu a el-Rei Joo em possesso o Calvrio por bandeira. Lev-lo- por cimeira, alimpar a carreira de toda a terra do Co.52

O calvrio, que caber a D. Joo, obviamente o braso com as Quinas que Cristo, no campo de Ourique, mandou adoptar por D. Afonso Henriques. O Sonho Segundo compe-se de 15 trovas, quase todas elas bastante longas, e no tem subdivises. Nele, o profeta reenceta a tese do Sonho anterior, por vezes, em termos muito semelhantes. Mas, ao passo que ali o autor salientava a empresa africana, parece que tem aqui sobretudo em vista a derrota dos Turcos no Levante e a aliana do Encoberto com o Papa. O Sonho termina com esta trova (108): Muitos podem responder e dizer. Com que prova o sapateiro fazer isto verdadeiro, ou como isto pode ser? Logo quero responder, sem me deter. Se lerdes as profecias de Daniel e Jeremias, por Esdras o podeis ver. O Sonho Terceiro abrange 45 trovas, que so, na grande maioria, quadras. Divide-se em duas seces. Na primeira, Bandarra descreve o aparecimento das dez tribos de Israel, assunto j abordado no Sonho Primeiro. No fim da Idade Mdia, houve quem imaginasse esses judeus como horrveis brbaros e canibais, aliados monstruosos do Anticristo; outros, como gente purificada pelo longo exlio, inocente no deicdio dos seus irmos palestinianos, e disposta a reconhecer Jesus Cristo como o verdadeiro Messias. Bandarra, o amigo53

dos cristos-novos, opta pela segunda verso, vendo nas tribos regressadas os colaboradores do Encoberto. Note-se bem: Bandarra era amigo dos cristos-novos, mas no descendente do povo hebreu. Ele mesmo descreve que, entre os numerosos judeus que via passar, se achava um velho honrado que se dirigiu a ele perguntando-lhe se era porventura judeu. A sua resposta foi negativa (trovas 118-119): Dize-me: Tu s de Agar, ou como falas Cananeu? Ou s porventura Hebreu dos que ns vimos buscar? Tudo o que me pergunteis (respondi assim, dormente) Senhor, no sou dessa gente, nem conheo esses tais. E o profeta narra que, depois de acordado, foi ver as escrituras, onde achou o seu sonho profetizado (trovas 127-128): Em Esdras o vi pintado, e tambm vi Isaas, que nos mostra nestes dias sair o povo cerrado. O qual logo fui buscar, e Gog, Magog em Ezequiel 31, as Domas 32 de Daniel comecei de as olhar 33.

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com certo orgulho que o sapateiro ostenta os seus conhecimentos da Bblia, que no so to superficiais como muitas vezes se pensa. E com os textos alegados quer provar tambm a sua ortodoxia. A segunda seco em rigor, j no faz parte do Sonho Terceiro, mas d, como a rubrica inserida pelo editor de 1644 indica, as respostas do Bandarra a algumas perguntas que se lhe fizeram, e da resposta delas se conhece quais foram. Eu, por mim, devo confessar que muitas vezes no consigo compreender as perguntas pelas respostas, e que o sentido de diversas trovas desta parte final me escapa. Pelo que percebo, creio que nelas alternam vises de futuras felicidades e catstrofes com aluses ao tempo em que as profecias se ho-de cumprir. Transcrevo aqui duas quadras (156-157) que exaltam a harmonia universal de Quinto Imprio. Todos tero um amor, gentios como pagos, os judeus sero cristos, sem jamais haver error. Serviro um s Senhor, Jesus Cristo que nomeo, todos crero que j veo o Ungido Salvador. Nesta bela profisso de f h duas coisas que merecem um breve comentrio. Primeiro, Bandarra, como muitos dos seus contemporneos, faz uma ntida distino entre gentios (= idlatras) e pagos (= muulmanos). Segundo, ele chamava a Jesus

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Ungido, sabendo que o Novo Testamento assim o designa (Cristo). E os hereges? Na quadra citada, Bandarra no os inclui, mas em outras trovas (por ex., 19 e 76) fala nos Arrianos (= Arianos), palavra com que indica os [Gregos] cismticos. Eis o texto das duas trovas: A cerca dos Grecianos corr-los-o os latinos. Sero contrrios os signos a todos os Arrianos. Uma porta se abrir num dos reinos africanos, contrria aos Arrianos, que nunca se cerrar [] Parece que Bandarra no se preocupava com os protestantes ou huguenotes 34. Provavelmente, mal sabia da sua existncia.

4. Apreciao Tal , em linhas gerais e com a preterio de inmeros pormenores e numerosos problemas, o contedo das trovas do Bandarra. O sentido fundamental das suas profecias no enigmtico. Portugal dar ao Mundo o grande Encoberto, que h-de desbaratar os exrcitos dos Turcos na frica, na Terra Santa na sia-Menor. Ele ser coroado Imperador e inaugurar, juntamente com o Papa, a Monarquia Universal, em que todos os povos e todas as culturas se56

submetero Lei de Cristo. Os traos essenciais desta viso escatolgica so os do joaquimismo posterior. Impe-se uma comparao entre as Trovas do Bandarra e as Centuries do seu contemporneo Nostradamus. Os versos do sapateiro so um modelo de clareza, confrontados com os do mdico-astrolgico de Salon. Os passos obscuros das Trovas esclarecem-se (pelo menos, em princpio) para quem tenha pacincia de estudar a tradio proftica na Pennsula um campo de investigao que est por desbravar ainda. Outros passos so obscuros, porque apresentam corruptelas, que em diversos casos so susceptveis de emendas filolgicas. H relativamente poucos passos que j no admitem uma soluo adequada ou razovel. As Centuries esto redigidas num Francs (propositadamente?) desajeitado, cuja compreenso vem a ser dificultada pelo facto de que o autor complicar a sua linguagem com o emprego de elementos hebraicos, gregos e latinos, e com numerosas aluses eruditas ao movimento dos astros, a particularidades geogrficas, polticas e histricas. Nostradamus um autor sofisticado, empenhado em propor enigmas aos seus leitores; Bandarra escritor de versos toscos, mas simples e, geralmente, compreensveis. Outra diferena entre os dois profetas parece-me mais importante ainda. As Centuries constituem uma longa srie de vaticnios isolados e, por via de regra, nefastos, sem que nelas se consiga descobrir uma mensagem central: no mostram nenhuma perspectiva no terreno da religio, da sociedade ou da poltica, nem so capazes de incentivar uma actividade colectiva; s excitam a curiosidade de indivduos inclinados ao hermetismo. Bandarra, porm, como qualquer outro profeta respeitvel, tem uma57

mensagem que abre novos horizontes ao povo portugus. Os portugueses no tm nenhum motivo para se sentir inferiorizados com o seu profeta de Trancoso. Ele merece um estudo srio e no o desdm com que alguns autores racionalistas o costumam tratar.

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IV / D. SEBASTIO E OS INCIOS DO SEBASTIANISMO

Bandarra dedicou as trovas em 1556, ou pouco tempo depois, ao bispo da Guarda, quando D. Joo III, que era presumivelmente o heri da grande empresa profetizada, j contava 55 anos. No seu longo reinado, este no realizara nenhuma das faanhas prometidas. Em vez de conquistar a frica, abandonara algumas praas africanas. No era de esperar que este rei, na sua idade avanada e com tais precedentes, chegasse a fundar o Imprio Mundial. Contudo, o sapateiro no modificou os versos em que se lia o nome do monarca. Contava com um milagre do Cu? Ou dava pouca importncia identidade do Encoberto, desde que ele fosse Rei de Portugal e semente de D. Fernando? Ou transferia o Imprio de D. Joo III para o seu neto, o recm-nascido D. Sebastio, sem se incomodar com as incoerncias que podiam resultar desta nova opo? Ignoramos quais fossem as suas esperanas concretas na hora em que enviou uma cpia das suas trovas ao novo bispo. Mas no se exclui a hiptese de que Bandarra, compartilhando com os seus compatriotas o entusiasmo pelo nascimento do Desejado, acrescentasse s suas trovas uma quadra sebastianista, que, naturalmente,59

falta na edio joanista de 1644, mas ocorre em diversos manuscritos 35: Um rei novo nascer, que novo nome h-de ter; de terra em terra andar. Muita gente lhe h-de morrer. Com efeito, havia de lhe morrer muita gente, no dos infiis, mas dos seus prprios vassalos. Assim como o seu nascimento (1554) parecia garantir a sobrevivncia de Portugal como pas independente, assim a sua aventura marroquina havia de arruin-lo, abrindo a porta ao domnio castelhano.

1. D. Sebastio e os Pseudo-Sebasties Uma figura estranha e trgica, esse D. Sebastio! Atrofiado na sua vida afectiva (o que talvez se explique pela falta de ternura maternal na sua meninice), treinavase, desde cedo, em exerccios fsicos (era ptimo cavaleiro e bom caador) e ascticos (era piedoso e casto). Destitudo de qualquer realismo, andava alheio s grandes necessidades da nao, como tambm ao esprito da poca em que a Europa acabava de entrar. Extraviado, vivia na Idade Mdia, e sonhava com actos de bravura cavaleiresca e com louros militares, sobrestimando as suas foras. No se lhe pode negar certa grandeza e certo idealismo, mas essas boas qualidades eram comprometidas por grande dose de teimosia, fanatismo e egocentrismo.

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So conhecidas as consequncias da ambio desproporcionada do jovem monarca. A 4 de Agosto de 1578, o seu exrcito foi destrudo nos campos de Alccer-Quibir. D. Sebastio deixou a a vida, com 8000 dos seus homens, e uns 15 000 caram nas mos dos Mouros. Foi provavelmente a maior catstrofe da histria de Portugal. Milhares de mortos, outros milhares de cativos cujo resgate imps sacrifcios pesados nao; e o pior de tudo a coroa sem herdeiro. Depois de um breve interregno de D. Henrique, o pas, oscilando entre a revolta e a submisso, cedeu finalmente, tanto ao suborno como s ameaas militares de Castela, prometendo obedincia a Filipe II (1581). Seria uma unio pessoal, e Portugal ficaria no gozo dos seus privilgios. Durante algum tempo, o pas parecia conformado com o inevitvel. Mas, salvo alguns aristocratas, prelados e altos funcionrios, poucos estavam contentes com a situao. O povo, apoiado por uma grande parte dos frades e do baixo clero, tinha saudades da independncia nacional. Mas era verdade que D. Sebastio morrera? Ningum o vira morrer. verdade que os Mouros entregaram o corpo do rei defunto a Filipe II e que este o faz sepultar no Mosteiro dos Jernimos (1582). Mas muitos tinham as suas dvidas acerca da identidade do corpo, e viam-nas confirmadas pelas palavras do epitfio: si vera est fama Surgiram quatro aventureiros, que se diziam ser D. Sebastio: dois em Portugal e dois fora do pas. O primeiro foi o rei de Penamacor, que foi preso, exposto no pelourinho e condenado s gals (1584). O segundo foi o ermito da Ericeira, que apareceu no61

ano seguinte e foi executado em Lisboa. O terceiro foi um antigo soldado castelhano, Gabriel de Espinosa, que se estabelecera em Madrigal (Castela) onde, num convento, vivia D. Ana, filha ilegtima de D. Juan de ustria. Ela tinha um confessor portugus, o agostinho Frei Miguel dos Santos, que a convenceu de que o antigo soldado, agora pasteleiro, era D. Sebastio. A intriga foi descoberta: Gabriel de Espinosa e o monge foram executados (1595) e a princesa foi transferida para um mosteiro em vila, onde a esperava uma rigorosa vida claustral. O quarto e o mais clebre foi o calabrs Marco Tlio Catizzone, que apareceu em Veneza (1598), onde foi visitado por diversos Portugueses, entre outros por D. Joo de Castro, que o homenageou como seu soberano. Depois de muitas aventuras, o impostor foi executado em San Lcar (1603). Dos quatro Pseudo-Sebasties, cuja histria aqui s tocmos de leve 36, apenas o Calabrs se integra na histria do sebastianismo, porque, devido sobretudo imaginao exaltada de D. Joo de Castro, foi identificado com o Encoberto das profecias nacionais, o que no consta dos trs outros. O pasteleiro de Madrigal no passou de marioneta nas mos de Frei Miguel dos Santos, que, muito provavelmente, se queria servir dele para suscitar uma revolta em Portugal a favor de D. Antnio, o Prior do Crato. Os dois outros agiram por conta prpria, mas a boa acolhida que esses aventureiros receberam de muitos populares prova que o povo tinha saudades de um rei nacional.

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2. Uma exploso de nacionalismo O mal-estar causado pela perda da independncia no se restringia apenas s camadas humildes da populao. Passados os primeiros anos de entorpecimento quase geral, tambm as outras classes da sociedade comeavam a julgar o domnio estrangeiro um jugo insuportvel. Uma grande parte da nao sentia-se ferida no seu orgulho patritico, que durante vrias geraes se nutrira com esperanas messinicas. A unio com Castela era uma humilhao comparvel que, outrora, o povo eleito sofrera na Babilnia. Assim como os judeus exilados se tinham consolado e confortado com as glrias do passado e as maiores glrias prometidas para o futuro, assim fazia tambm o povo eleito dos tempos modernos. Um patriotismo epidmico apoderava-se da sociedade portuguesa, que no deixou de se manifestar tambm nas letras nacionais 37. Poetas, historiadores, pregadores, ensastas e gramticos rivalizavam entre si em exaltar o bom clima e a ptima situao geogrfica do pas, a boa ndole e os bons costumes dos seus habitantes, as virtudes da sua lngua e os primores das suas letras, a antiguidade e o brilho da sua histria. Se Espanha ocupava um lugar excelente entre todas as naes europeias, dentro de Espanha o supremo grau de excelncia cabia a Portugal 38. Destas manifestaes de patriotismo quero dar aqui dois exemplos, que me parecem bem relacionados com o assunto do presente trabalho: o Juramento de D. Afonso Henriques, e o Stado Astrolgico de Bocarro. O Juramento um documento forjado no cartrio de Alcobaa, e representa a fase definitiva da longa evoluo que percorreu a Lenda de Ourique. Foi63

publicado, pela primeira vez, nos Dilogos de Vria Histria (1597) de Pedro de Mariz e, a seguir, em inmeros livros, antes e depois da Restaurao. O documento descreve pormenorizadamente o encontro de D. Afonso Henriques com um ermito no campo de Ourique, que lhe assegura, por parte de Deus, a vitria sobre os Mouros com estas palavras: Senhor, estai de bom nimo! Vencereis, vencereis, e no sereis vencido. Sois amado de Deus, porque ps sobre vs e sobre vossa descendncia os olhos da misericrdia at a dcima sexta gerao, na qual se atenuar a mesma descendncia, mas nela atenuada tornar a pr os olhos 39. Este texto suscitou, nos anos que se seguiram Aclamao, uma polmica acirrada entre os sebastianistas e os joanistas. Cada uma das duas faces fazia clculos complicados e, no raro arbitrrios para provar que a dcima sexta gerao no podia ser outra seno D. Sebastio, ou D. Joo IV. No dia seguinte, que era a vspera da batalha decisiva com os Mouros, apareceu o prprio Cristo a D. Afonso Henriques, revelando-lhe a grande misso histrica de Portugal: Eu sou o fundador e destruidor dos Reinos e Imprios, e quero em ti e em teus descendentes fundar um Imprio para Mim, pelo qual meu Nome seja levado s Naes estranhas.40

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Estas palavras foram inmeras vezes alegadas, mas, por serem muito claras, no chegaram a dividir os espritos. O Stado Astrolgico (1624) de Manuel Bocarro Francs constitui a primeira parte da sua Anacephaleosis da Monarchia Lusitana. O opsculo compe-se de 131 oitavas, de nenhum valor literrio, mas cheias de um patriotismo ventilado com muita retrica e muita erudio. A elas se seguem anotaes feitas pelo prprio autor. Fundando-se em dados astrolgicos e profecias antigas, Bocarro julga saber que o papel de estabelecer o Imprio Mundial est reservado a um monarca de Portugal e no hesita em dedicar a sua obra a Filipe IV de Castela, porque a ele cabe a honra de governar a terra lusitana. O autor diz, no Prefcio: E no primeiro Anacephaleosis (que intitulo Stado Astrolgico e dedico a Sua Magestade, como o Senhor desta Monarquia) mostro arqueologicamente [sic] como em Portugal h-de ser a ltima e mais poderosa Monarquia do Mundo 41. Bocarro expe as suas esperanas, de maneira mais explcita, na sua anotao oitava 84: Vaticnio antigo, que refere Comestor, que um Prncipe de Espanha, que tiver o nome de ferro, h-de ser destruio dos Agarenos. Isto interpretaram alguns por el-Rei D. Fernando o Catlico, mas eles dizem que correspondeu (visto no compreender a tal significao) que no era aquele, mas que o havia de ser seu herdeiro. [] O que confiamos em Deus que far em nossos tempos seu descendente Felipe. 4265

E, na anotao oitava 99, comentando uma profecia de So Metdio, que diz que um grande Rei despertar do sono: O que espero em Deus que h-de agora verificar em Felipe o Terceiro de Portugal, que, imaginando os inimigos que est quase morto, se excitar do sono, para vencer o Mundo 43. No h motivos para pormos em dvida a sinceridade com que Bocarro professa a sua f no papel messinico do povo portugus, mas devemos admitir que ele foi pouco sincero em atribuir o papel de Messias a um rei castelhano, que se tornara rei de Portugal devido a uma contingncia histrica, lastimada pelo prprio autor. Prova-o uma publicao posterior de Bocarro, como havemos de ver no captulo seguinte.

3. Reabilitao de D. Sebastio Neste clima de nacionalismo extremado deu-se uma coisa notvel. D. Sebastio, que durante a sua vida nunca fora uma figura muito popular, foi aos poucos reabilitado, apesar de ser o grande responsvel pela perda da independncia. No s reabilitado, mas at mitificado. Durante a sua vida no conseguira realizar o seu grande sonho de se ver coroado Imperador da frica. Depois da sua morte, a imaginao do povo metamorfoseou-o no Monarca mtico de um Imprio no menos mtico.

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Era, sem dvida, inegvel que o ltimo representante da Casa de Avis fora altivo e teimoso (em no querer casar-se, por exemplo), e que fora imprudente em levar a nao portuguesa s terras de Marrocos. Considerando-se bem as coisas, no entanto, no faltava certa grandeza sua aventura africana. Ele era um heri para quem s contava a honra da cristandade e no motivos de ordem mesquinhamente utilitarista: un chevalier sans peur et sans reproche. A uma grande fora fsica, aliava a sobriedade, a castidade, a piedade e a ascese , virtudes que quadravam perfeitamente com o retrato do Encoberto. Com efeito, D. Sebastio era o Encoberto: encobrindo a sua identidade, andava pelos desertos, visitava os lugares santos ou vivia numa ilha misteriosa, donde havia de sair um dia, purificado pelo sofrimento e pela penitncia. Assim foi nascendo a imagem de um D. Sebastio idealizado, pelo que podia tanto ser o heri de um romance de cavalaria, como a figura de uma hagiografia. J nos primeiros dias da sua vida, D. Sebastio viera acompanhado de casos espantosos e milagrosos: Nasceu o serenssimo Prncipe D. Sebastio de muito gloriosa memria este ano de 1554 em 20 de Janeiro meia-noite, e depois de nascido e deitado em um bero, acompanhado dos senhores daquela monarquia e Casa del-Rei seu Av, subitamente se viu uma cobra enroscada ao p do bero em que jazia o Prncipe. Visto isso, acudiram alguns dos que na casa estavam, e o primeiro foi um moo da cmara, natural de Torres Vedras, e matando a cobra com um pau, a lanou da janela abaixo, e com ir morta se no pde nunca achar em todo o terreiro do Pao, fazendo-se67

depois deligncias por ela. Visto o caso, se mandou chamar um astrlogo, o qual, olhando o Menino, disse. Valha-me Deus, que por este Menino se h-de revolver o mundo todo! 44 Quanto s suas foras fsicas, comunica-nos um autor setecentista, baseando-se em dados do sculo anterior: No temporal, era este Rei mui grande homem de cavalos, em todo o exerccio de cavalaria, e tanto que excedia nela a todos de seu tempo, assim na destreza e arte com que se punha a cavalo, como na cincia com que o governava. Na caa era fragueiro, mas no matador em seu exerccio; gostava muito de altanaria, por ser mui prpria de prncipes; porm a das feras lhe agradava mais, pela semelhana que tinha com a guerra; montava porcos e veados lana com admirvel destreza e ligeireza. Tinha tanta fora que fazia gemer um cavalo, se o queria apertar. Cortava de um golpe duas tochas de quatro pavios. Ainda sendo de pouca idade, levantava com uma mo dous e trs homens juntos 45 Outro sebastianista exalta-lhe as virtudes crists: a sua obedincia ao Papa, a sua castidade que sempre guardou na flor da sua idade, entre as licenas do poder, o seu zelo em assistir missa todos os dias, confessar-se cada semana e em rezar o divino ofcio. Em prova da sua justia e misericrdia, aduz este caso: Corria, em uma quinta-feira de Endoenas noite, as igrejas com a devoo que costumam os Reis de Portugal, quando se lhe ps diante de seus olhos uma68

mulher e lhe disse: Senhor, pela morte e paixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja memria celebramos hoje, lhe peo a Vossa Alteza me solte meu marido, que est condenado s gals, por ser culpado em uma morte! Via-se o Rei por uma parte apertado pela paixo de Cristo, de que era devotssimo, e pela outra, obrigado da observncia da justia, e no sabia o que fizesse. Resolveu-se a deferir e demorar o despacho para depois da festa. Instou a mulher, descobrindo-se (que era igualmente moa e formosa) e lhe disse: Senhor, peo a Vossa Alteza que considere o perigo que corre de honestidade esta cara, com extrema pobreza, ausente de seu marido, nesta idade e, o que mais, morando em Lisboa. Respondeu-lhe o Rei: Tendes muita razo, e mandou logo que da primeira casa lhe trouxessem pena e tinta, e luz de uma vela, que os meninos costumam pr nos sepulcros que fazem pelas portas, mandou que naquela mesma hora e noite se soltasse o marido e se entregasse logo sua mulher; e ao outro dia mandou chamar as partes ofendidas e as comps generosamente de sua fazenda 46. O Padre Antnio de Vasconcelos resume em 1621 as sublimes qualidades de D. Sebastio numa frase latina, cuja traduo portuguesa poderia ser esta: Este foi (digo-o francamente) de todos os reis j enxergados pelo Sol de longe o melhor, o mais piedoso, o mais justo, o mais querido e, moral e fisicamente, o mais excelente que o Cu mostrou Terra, mas, infelizmente, s por pouco tempo 47.

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Quanto derrota do jovem monarca nos campos africanos, os sebastianistas viam-na profetizada num texto atribudo a Frei Afonso Cavaleiro, mas provavelmente forjado na poca dos Filipes: Passar frica duas vezes: na primeira far guerra de zombaria; na segunda, a temeridade por mau conselho, e se perder; mas ir a terceira, e destruir a seita de Mafoma 48. Os encmios que os sebastianistas dirigiam com tanta profuso ao seu Heri idolatrado no era do agrado de todos os Portugueses. Um deles, que es