o problema da filosofia no brasil

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O PROBLEMA DA FILOSOFIA NO BRASIL * Bento Prado Jr. I Falar sobre a filosofia no Brasil é tarefa particularmente embaraçosa. Poderíamos definir esta dificuldade em termos aristotélicos: como saber o que é uma coisa, se não sabermos ao certo se ela é? A esta dificuldade fundamental soma-se outra, mais geral, relativa ao próprio sentido da noção de filosofia nacional: não está, nesta noção, essencialmente, prejudicado o ideal de universidade inerente à filosofia? Certamente houve, e ainda há, historiadores preocupados em recortar a história do pensamento segundo as fronteiras dos “espíritos das nações”. A tarefa do historiador consistiria, dessa perspectiva, em ultrapassar a diversidade dos estilos e dos temas que separa aparentemente os pensadores e as gerações, em direção de uma “visão do mundo” mais ou menos constante. Não cabe aqui a discussão da pertinência desta perspectiva: indicamo-la para abandoná-la em seguida. O que nos interessa nela é apenas o contraponto para atribuir um sentimento mínimo e provisório à noção de filosofia nacional e situar corretamente a área da questão relativa à filosofia do Brasil. A ideia de filosofia nacional recobre habitualmente dois preconceitos nem sempre discerníveis: um preconceito psicologista e um preconceito historicista. A filosofia é aí pensada como a expressão de uma alma ou de um espírito cuja natureza permanece inalterada ao longo da História. É a identidade do espírito que garante a continuidade da História e que faz com que as várias filosofias pareçam suceder-se dentro de um mesmo tempo, como as frases sucessivas de um único discurso. A ênfase no eixo diacrônico e a tese da expressão estão intimamente entretecidas na raiz da ideia de filosofia nacional. Mas, na cumplicidade entre esses pressupostos, o que se perde é a autonomia da história da filosofia e a natureza do próprio discurso filosófico: a filosofia apenas exprime algo que a precede e não podemos distingui-la jamais da mera ideologia. Significa isto que todo estudo de uma cultura nacional seja necessariamente historicista e psicologista? Certamente não, e a prova disto pode ser encontrada na própria bibliografia relativa à história da cultura brasileira. Referindo-nos à Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido e, mais precisamente, aos conceitos que propõe em sua “Introdução”. O que nós ai encontramos é o esboço de uma compreensão da literatura brasileira – de sua história e de sua identidade - que se coloca para além das dificuldades do psicologismo e do historicismo. E isto só é possível através da distinção essencial que A. Candido aí estabelece entre a simples manifestação literária e a literatura propriamente dita. Nesta oposição, a noção de literatura significa algo a mais do que a simples coleção das obras ou das manifestações literárias: ela significa essencialmente um Sistema. Nem é, tampouco, a unidade da língua que confere sistematicidade a uma literatura. É como se a leitura se localizasse menos na língua que lhe serve de suporte, ou na soma das obras que constituem a sua matéria do que no espaço branco que as articula, separando-as. Há literatura e existe um tal sistema quando ler um autor significa interpretar a distância que o separa dos demais, Não é, assim, uma “alma nacional” que se exprime nesse sistema – é, ao contrário, nele que os indivíduos e os grupos interpretam e * Este texto foi publicado, em tradução italiana, em Aut-Aut, Rivista di Filosofia e Cultura, nº 109-110, Milão, 1969. Mais recentemente(numa conferência proferida no campus de Araraquara da UNESP, a qual não cheguei a dar forma literária final) tive oportunidade de nuançar muito meu comentário à obra do mestre João Cruz Costa. Hoje, sem dúvida, não mais poderia reconhecer-me no páthos “estruturalo-gauchista” de bom tom no ano de 1968, e minha crítica de então aparece-me hoje antes como um confirmação da acuidade do “golpe de vista” histórico de Cruz Costa, para usar a linguagem de Paulo Eduardo Arantes e para a qual eu era cego na ocasião. Se me permito publicar, tal e qual, o texto de 1968, sem acrescentar a indispensável revisão e autocrítica, é porque o mesmo Paulo Arantes acaba de publicar um ensaio (“Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60”) na revista Filosofia Política, nº 2, onde comenta tanto o meu texto da Aut-Aut como a reformulação posterior de minha atitude. As críticas de Paulo Arantes a meu primeiro texto, que endosso integralmente, dispensam, de minha parte, o prolongamento imediato da discussão.

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O Problema da Filosofia no Brasil

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  • O PROBLEMA DA FILOSOFIA NO BRASIL*

    Bento Prado Jr.

    I

    Falar sobre a filosofia no Brasil tarefa particularmente embaraosa. Poderamos definir esta dificuldade em termos aristotlicos: como saber o que uma coisa, se no sabermos ao certo se ela ? A esta dificuldade fundamental soma-se outra, mais geral, relativa ao prprio sentido da noo de filosofia nacional: no est, nesta noo, essencialmente, prejudicado o ideal de universidade inerente filosofia? Certamente houve, e ainda h, historiadores preocupados em recortar a histria do pensamento segundo as fronteiras dos espritos das naes. A tarefa do historiador consistiria, dessa perspectiva, em ultrapassar a diversidade dos estilos e dos temas que separa aparentemente os pensadores e as geraes, em direo de uma viso do mundo mais ou menos constante. No cabe aqui a discusso da pertinncia desta perspectiva: indicamo-la para abandon-la em seguida. O que nos interessa nela apenas o contraponto para atribuir um sentimento mnimo e provisrio noo de filosofia nacional e situar corretamente a rea da questo relativa filosofia do Brasil.

    A ideia de filosofia nacional recobre habitualmente dois preconceitos nem sempre discernveis: um preconceito psicologista e um preconceito historicista. A filosofia a pensada como a expresso de uma alma ou de um esprito cuja natureza permanece inalterada ao longo da Histria. a identidade do esprito que garante a continuidade da Histria e que faz com que as vrias filosofias paream suceder-se dentro de um mesmo tempo, como as frases sucessivas de um nico discurso. A nfase no eixo diacrnico e a tese da expresso esto intimamente entretecidas na raiz da ideia de filosofia nacional. Mas, na cumplicidade entre esses pressupostos, o que se perde a autonomia da histria da filosofia e a natureza do prprio discurso filosfico: a filosofia apenas exprime algo que a precede e no podemos distingui-la jamais da mera ideologia.

    Significa isto que todo estudo de uma cultura nacional seja necessariamente historicista e psicologista? Certamente no, e a prova disto pode ser encontrada na prpria bibliografia relativa histria da cultura brasileira. Referindo-nos Formao da Literatura Brasileira de Antonio Candido e, mais precisamente, aos conceitos que prope em sua Introduo. O que ns ai encontramos o esboo de uma compreenso da literatura brasileira de sua histria e de sua identidade - que se coloca para alm das dificuldades do psicologismo e do historicismo. E isto s possvel atravs da distino essencial que A. Candido a estabelece entre a simples manifestao literria e a literatura propriamente dita. Nesta oposio, a noo de literatura significa algo a mais do que a simples coleo das obras ou das manifestaes literrias: ela significa essencialmente um Sistema. Nem , tampouco, a unidade da lngua que confere sistematicidade a uma literatura. como se a leitura se localizasse menos na lngua que lhe serve de suporte, ou na soma das obras que constituem a sua matria do que no espao branco que as articula, separando-as. H literatura e existe um tal sistema quando ler um autor significa interpretar a distncia que o separa dos demais, No , assim, uma alma nacional que se exprime nesse sistema , ao contrrio, nele que os indivduos e os grupos interpretam e

    * Este texto foi publicado, em traduo italiana, em Aut-Aut, Rivista di Filosofia e Cultura, n 109-110, Milo, 1969. Mais recentemente(numa conferncia proferida no campus de Araraquara da UNESP, a qual no cheguei a dar forma literria final) tive oportunidade de nuanar muito meu comentrio obra do mestre Joo Cruz Costa. Hoje, sem dvida, no mais poderia reconhecer-me no pthos estruturalo-gauchista de bom tom no ano de 1968, e minha crtica de ento aparece-me hoje antes como um confirmao da acuidade do golpe de vista histrico de Cruz Costa, para usar a linguagem de Paulo Eduardo Arantes e para a qual eu era cego na ocasio. Se me permito publicar, tal e qual, o texto de 1968, sem acrescentar a indispensvel reviso e autocrtica, porque o mesmo Paulo Arantes acaba de publicar um ensaio (Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60) na revista Filosofia Poltica, n 2, onde comenta tanto o meu texto da Aut-Aut como a reformulao posterior de minha atitude. As crticas de Paulo Arantes a meu primeiro texto, que endosso integralmente, dispensam, de minha parte, o prolongamento imediato da discusso.

  • reinterpretam suas almas. Antipsicologista, esta perspectiva tambm anti-historicista: s no interior de um sistema sincrnico desse tipo que a histria assume sentido positivo e que a diacronia se torna inteligvel. s quando se estabelece um sistema desse tipo que possvel a :

    () formao da continuidade literria espcie de transmisso da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo1. essa distino ou esta atitude que permite, por exemplo, a A. Candido, ao contrrio da

    rotina dos manuais, datar a instaurao da literatura brasileira, a iniciar a sua histria real a partir de meados do sculo XVIII.

    Se nos voltarmos, com o mesmo esprito, da literatura para a filosofia brasileira, a nossa concluso ser diferente: o seu registro de nascimento ainda no foi lavrado. H obras, certo, e nenhuma escola filosfica, provavelmente, deixa de estar representada nas manifestaes filosficas de nosso pas. Sem diminuir o interesse dessas obras pois h notveis -, cabe assinalar que resenh-las no implicaria nenhuma informao para o leitor europeu; sem contar com o fato de que um panorama dessa ordem no caberia nos limites de um artigo. Aqui tambm se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo etc.: mas, quase sempre, o que se faz divulgao. Essas obras e esses trabalhos no se organizam no tempo prprio de uma tradio, nem se articulam no interior de um sistema prprio: de fora, sempre, que lhe vem a sua coeso. E por isso que um historiador das ideias no Brasil afirma que o pensador brasileiro, mantendo a sua postura de consumidor, conserva ainda os traos de Macunama, o curioso personagem do romance de Mrio de Andrade:

    Macunama trata de fartar-se de todas as comezainas, de todas as frutas. Fala de indumentria, mas veste-se pouco () canta todas as canes e dana todas as msicas. o herdeiro ladino mais ignorante de todas as culturas, todos os instintos.

    II

    incontestvel, assim, que no h no Brasil um conjunto de obras filosficas que componha um sistema ou uma tradio autnoma. Mas, justamente por isso, talvez possamos falar de uma experincia particular da filosofia no Brasil, que tem essa carncia como horizonte. Talvez, a maneira mais adequada de descrever a situao da filosofia do Brasil seja a de mostrar como os pensadores assumem essa carncia da cultura nacional e como interrogam, atravs dela, a possibilidade de sua prpria filosofia.

    Talvez pudssemos caracterizar inicialmente essa experincia como a experincia de uma temporalidade invertida: nela a reflexo precede a percepo, a filosofia precede a prpria filosofia. Aqui, a coruja de Minerva levanta voo ao amanhecer. Isto quer dizer que a conscincia do vazio cultural faz com que at mesmo o historiador das ideias tenha uma preocupao essencialmente prospectiva: o que ele busca no passado so os germes do que ele acredita que a filosofia deve ser no futuro. como se tentssemos, na inspeo de um passado no-filosfico, adivinhar os traos de uma filosofia que est por vir. Nessa busca do tempo perdido, h algo de pattico, algo como uma Nao procura do seu prprio esprito. Adiante, procuraremos mostrar o equvoco que acreditamos encontrar na raiz das tentativas desse tipo por ora, limitamo-nos a exp-las.

    Muitos so os estudos sobre a filosofia no Brasil e cada um traz consigo no s uma imagem diferente do que foi a histria de nosso pensamento, como tambm uma ideia diversa da natureza da prpria filosofia e das tarefas do filsofo num pas subdesenvolvido. Na impossibilidade de traar um mapa completo de todos os trabalhados dessa rea e conscientes da injustia de no lembrar outras tantas tentativas significativas, deter-nos-emos na considerao de duas obras tpicas: a de Joo

    1 Antonio Candido, Formao da Literatura Brasileira, So Paulo, Livraria Martins, vol. 1, p.18.

  • Cruz Costa e a de lvaro Vieira Pinto2. Embora os estilos sejam radicalmente opostos e recorram a mtodos diferentes, os dois autores colocam, em ltima instncia, como veremos, o mesmo problema: que a que deve ser a filosofia no Brasil? Um pouco da atmosfera, pelo menos, da filosofia em nosso pas poder ficar patente atravs da resenha desses ensaios:

    1. Nas obras de Joo Cruz Costa, o exame da filosofia brasileira feito sob o signo de historicismo, do qual no podem escapar, segundo ele, mesmo aqueles que o contestam. A caracterizao da natureza do pensamento brasileiro, o desenho de seu perfil atual, s possvel, nessa perspectiva, atravs da recuperao de sua origem. assim o legado colonial que serve de matriz primitiva para esse pensamento e a sua estrutura que governa nossa experincia e explica as contradies de nossa aventura intelectual. A histria do pensamento no Brasil passa ento a ser interpretada como a histria da domesticao de uma nova experincia pelas formas oferecidas pela cultura portuguesa.

    Mas qual a experincia da filosofia que a herana lusada prefigura ou propicia? Essa herana descrita, inicialmente, de maneira negativa e aparece, antes de mais nada, como obstculo filosofia. Pois exatamente no momento quem se inicia a colonizao do Brasil que os jesutas e a Contra Reforma fecham o pensamento portugus ao sopro de renovao que atravessa a Europa e que viria a instaurar o pensamento e a cincia moderna. o humanismo formalista e livresco dessa nova escolstica que domina e cristaliza a cultura da metrpole e que estende a sua hegemonia nova colnia.

    O humanismo artificial, que foi infligido a Portugal, impressionou com tal fora a sua inteligncia que alguns de seus traos se notam ainda na nossa: o formalismo em que esta ainda se debate, vem cremos dessa origem. A retrica, o gramaticismo, a erudio livresca so traos que herdamos da formao, dita humanista, derivada do sculo XVI portugus3. Transplantado para os trpicos, esses escolasticismo assume feio nova e o seu

    formalismo se torna tanto mais radical quanto se destaca sobre o fundo da nova paisagem. O desenraizamento e a alienao peculiares dessa atitude persistem, segundo Joo da Cruz Costa, at nas produes contemporneas, sob a forma do entusiasmo pelo jargo esotrico da ltima filosofia da moda. A j temos os traos fundamentais de uma espcie de psicossociologia do pensador brasileiro: na fascinao pela retrica da filosofia que ele esquece e esconde a sua condio real e com palavras que constri o seu palcio imaginrio. E a prpria cultura que deixa, assim, de ser instrumento de decifrao da experincia e de crtica, para tornar-se qualidade, marca de privilgio ou de distino de classe, para transformar-se em realidade camuflada. praticamente, apenas em meados do sculo XIX e, mais profundamente, depois da primeira guerra mundial que comea a ser usada, no apenas como campo de rverie do exilado no trpico, mas como forma de crtica da realidade brasileira. Essa mutao e, alis, contempornea do surgimento da preocupao com a realidade brasileira: segundo Joo Cruz Costa, o esprito livresco e formalista s comea a entrar em recesso quando a filosofia se volta para sua radicao histrica e o filsofo liga a sua tarefa terica aos destinos da Nao.

    Mas nem tudo, na herana colonial, formalismo e obstculo ao pensamento crtico. Mesmo a libertao do esprito livresco acha-se prefigurada na matriz do pensamento portugus. Reportando-se histria da cultura portuguesa, Joo Cruz Costa lembra o realismo e o pragmatismo

    2 Joo Cruz Costa, antigo professor de Filosofia da Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo: referimo-nos, neste artigo, particularmente a seu livro Contribuio Histria das Ideias no Brasil (O desenvolvimento da filosofia no Brasil), (So Paulo, Jos Olympio). lvaro Vieira Pinto, antigo professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi tambm responsvel pelo departamento de Filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros do Ministrio da Educao e Cultura; referimo-nos aqui especialmente o seu livro Conscincia e Realidade Nacional (ISEB, 1960).

    3 Joo Cruz Costa, Contribuio Histria das Ideias no Brasil, p.36.

  • como caractersticas que nem a pedagogia jesutica conseguiu apagar inteiramente:Desde muito cedo, pois, o pensamento portugus se apresentou marcado por uma finalidade prtica. Ele gravitar em torno de uma problemtica realista, de objeto preciso, limitado, concreto. O sentido do til, do imediato o que de preferncia a transparece. como dir o poeta Joo de Barros: o terrestre amor das realidades humanas, o profundo sentido realista da existncia. No fugiu a este sentido prtico da existncia o prprio jesuta4. este pragmatismo originrio que nos convida a mudar a estratgia da nossa leitura:

    preciso descascar as obras filosficas para ler o seu sentido verdadeiro. Por debaixo de sua linguagem universalizante e de sua aparente inteno terica preciso desenterrar a inteno prtica imediata e a referncia a uma situao histrica precisa. Mesmo quando a sua linguagem celeste, esse filosofia fala do slido mundo terreno: o que implica que a nica leitura possvel dessas obras a leitura ideolgica. o pragmatismo lusitano, que se perpetua na vocao essencialmente poltica e ideolgica, que Joo Cruz Costa rastreia ao longo da histria das ideias no Brasil.

    Como interpretar, dessa perspectiva, o sentido do xito do ecletismo na primeira metade do sculo XIX brasileiro? Joo Cruz Costa no-lo apresenta como a ideologia exigida pela circunstncia peculiar ao Segundo Imprio. Nos discursos do Frei Francisco de Mont'Alverne, no elogio de Cousin - que, segundo o verbosssimo frade , se levantou como um Deus, no meio do caos, e reconstruiu a filosofia, apresentando as verdades, de que o esprito humano esteve sempre de posse -, o que se estabelece e, na realidade, a justificao terica das necessidades polticas da classe dominante no perodo que vai da abdicao de Pedro I at a Maioridade de Pedro II. A paz filosfica instituda pelo ecletismo o fundamento da paz poltica desejada pelos moderados, cujos interesses esto expressos na frase de um poltico da poca: Nada de excessos. Queremos a Constituio, no queremos a revoluo.

    Da mesma maneira, quando na segunda metade do sculo XIX o surto do positivismo, do spencerismo e do evolucionismo, permite uma reviso global de todas as reas da cultura nacional, ele exprime a presena de uma nova conscincia poltica: essa renovao intelectual corresponde s primeiras tentativas da burguesia para assumir o comando econmico e poltico da nao. nos seguintes termos que Joo Cruz Costa caracteriza, por exemplo, o fundamento histrico da difuso do positivismo:

    Deste modo, na segunda metade do sculo XIX, ao mesmo tempo em que se acentuava o antagonismo econmico entre os tradicionais burgueses, proprietrios de terra que governavam o pas como se governassem suas fazendas -, e os representantes de nossos interesses, acentuava-se tambm a simpatia pelas ideias novas que as transformaes havidas desde os princpios do sculo haviam posto em circulao. A partir de 1870, esta nova burguesia assume papel de importncia sobretudo no setor intelectual. dessa burguesia, formada por militares, mdicos e engenheiros mais prximos das cincias positivas, graas ndole de suas profisses que ir surgir o movimento positivista no Brasil. Alguns dos que iro aderir ao movimento so homens desiludidos do ecletismo espiritualista que se ensinava entre ns e que se confundia com uma retrica palavrosa e intil () So homens que se voltam para a cincia e que nela creem encontrar resposta satisfatria e solues definitivas para todos os problemas. Em outros, ajunta-se ainda o antagonismo que se estabelecia entre as crenas religiosas tradicionais e as tendncias republicanas as quais haviam dado a sua adeso5.

    Se examinarmos globalmente a interpretao que Cruz Costa nos oferece da histria das ideias no Brasil, verificamos que ela comandada essencialmente por uma dialtica que ope 4 Joo Cruz Costa, op. cit., p. 438.5 Joo Cruz Costa, op. cit., p. 142-143.

  • formalismo a realismo, especulao a pragmatismo, transoceanismo a radiao da cultura nacional, metafsica a crtica social. Este sistema de oposies define, claro, no apenas o fio condutor da interpretao do passado, mas projeta tambm uma concepo da prpria filosofia, seu ideal e seu programa. Nesse programa, o trabalho filosfico deve passar necessariamente pela anlise crtica da realidade nacional e a reflexo no pode jamais abandonar o seu referente histrico, sob a pena de transformar-se em mero galimatias. Necessidade que se revela de maneira mais que evidente nas Amricas:

    A inteligncia nos pases americanos como escreve Alfonso Reyes no teve tempo de romper com os estmulos da ao, como aconteceu nos pases de velhas civilizaes, nos quais podem edificar-se torres de marfim e teorias extravagantes, segundo as quais o homem de pensamento que participe da vida de seu sculo tem que ser um clrigo traidor.Para ns, a filosofia autntica sempre esteve ligada ao. Tinha razo, pois, a nosso ver, Clvis Bevilcqua quando dizia que se algum dia pudermos alcanar mais significativa produo filosfica, ela no surgir dos cimos da metafsica6.

    No , assim, uma infelicidade que a inteligncia americana no tenha rompido com os estmulos da ao: o que Joo Cruz Costa aponta, atravs das palavras de Alfonso Reyes, que na juventude da civilizao americana podemos encontrar algo a mais do que uma simples imaturidade. O que ocorre aqui uma sbita inverso, no qual o simples negativo passa a positivo: o que era pensado como carncia e vazio cultural passa a ser pensado como liberdade diante do peso da tradio. A metafsica ruptura com os estmulos da ao ou esquecimento da origem , fruto de uma conscincia serva da tradio, dificilmente pode florescer no novo continente. Se para ns a filosofia autntica sempre esteve ligada ao, podemos estar seguros de que dificilmente cairemos nas iluses das teorias extravagantes que encerram o filsofo numa torre de marfim.

    Se acompanharmos, assim, o movimento de anlise de Joo Cruz Costa, na passagem da sua reconstruo da histria das ideias no Brasil ideia de filosofia que nos prope, verificamos que o pragmatismo herdado da cultura portuguesa vem finalmente transformar-se numa filosofia engage, que no quer esquecer a sua radicao na prxis.

    2. Embora num estilo inteiramente diverso, a obra de lvaro Vieira Pinto visa o mesmo problema. Aqui tambm a discusso da especificidade do pensamento brasileiro parte da considerao da radicao histrica da filosofia e de sua eficcia poltica. Aqui tambm encontramos a formulao de um projeto essencialmente prtico: a filosofia no Brasil no deve ser a mera reproduo da metafsica europeia, ela deve transformar-se numa forma autnoma de compreender e de dirigir o destino da nao. Mais do que isso, a condio de consumidor de cultura e de filosofia, que caracteriza o pensador brasileiro, a diretamente interpretada em termos polticos: o subdesenvolvimento econmico e a dependncia cultural se superpem e a filosofia europeia assume a fisionomia do imperialismo. Assim como o judeu ou o negro para Sartre, o pensador brasileiro deve, para lvaro Vieira Pinto, assumir a sua brasilidade para atingir a sua autenticidade, para passar da condio de objeto condio de sujeito autnomo, da alienao liberdade. Os laos que unem o pensamento nacional ao pensamento europeu so aqueles que definem a dialtica do Mestre e do Escravo.

    Como j se pode adivinhar, agora no mais nos encontramos diante da tentativa de caracterizar o pensamento brasileiro atravs do exame da histria das ideias. Aqui, se se pode falar de uma histria, encontramo-nos diante de uma histria pura, diante de uma espcie de Fenomenologia do Esprito. No se trata de descobrir o estilo de um pensamento atravs da anlise das obras em que se objetivou, mas de traar a dialtica que deve percorrer a conscincia no elemento de

    6 Joo Cruz Costa, op. cit., p. 442.

  • uma cultura dependente. No mais o historicismo que fornece a perspectiva de lvaro Vieira Pinto, mas um hegelianismo interpretado luz da filosofia contempornea, saturado de existencialismo e de marxismo.

    O hegelianismo transparece no projeto de examinar o problema da filosofia no Brasil luz de uma teoria da gnese da conscincia: do movimento que a conduz das trevas da passividade compreenso clara e dominao da totalidade. Conscincia e Totalidade, tais so as categorias a que recorre lvaro Vieira Pinto para descrever a odisseia do pensamento nacional, o itinerrio que o conduz de sua primitiva alienao autonomia a que comea a ter acesso. Como em Hegel, a conscincia apenas o lugar onde a substncia pode tornar-se transparente para si mesma, ela no exterior ao Ser ou ao Todo de que conscincia. Mas, aqui, a substncia a Nao que, na situao do subdesenvolvimento, permanece opaca a si mesma, incapaz de alar-se ao nvel do Saber; o tema real deste discurso o subdesenvolvimento especulativamente definido como inadequao entre o em-si e o para-si.

    Mas, nesta dialtica, na qual a noo de Ser foi substituda pela ideia de Nao, a tarefa da mediao no pode ser desempenhada pelo conceito. A mediao ou a reconciliao entre o em-si e o para-si, entre a verdade objetiva e a certeza subjetiva, entre a realidade nacional e a conscincia poltica que lhe corresponde, s pode ser desempenhada por uma ideologia, pela ideologia do desenvolvimento. Nesta ideologia, em que os interesses da nao com um todo vm luz, a prpria nao que realiza o seu destino e se encarna como universal concreto:

    Existencialmente, a nao sempre singular e concreta. Logo mera exigncia abstrata e sem sentido real, pedir ao filsofo que pense em geral, ou seja, de modo vlido indistintamente, a realidade histrica. No lhe dado conceber a realidade seno fundando-se no ponto do espao e na poca em que viva; por isso, perde todo senso a exigncia de universalidade abstrata, s se justifica a pretenso de universalidade concreta. Desde que a nao a qual perteno nica, pois para mim no h outra, por isso mesmo universal. o universal concreto7.

    Mas, atravs desta nova verso da ideia hegeliana de Universal Concreto ns deslizamos para fora do universo hegeliano: ela nos conduz para uma filosofia de tipo existencial, em que essencial a tese da finidade da conscincia. Pois se a nao universal porque para mim no h outra coisa, essa universalidade tambm para mim, isto , repousa da finidade da minha perspectiva. O que se pensa, aqui, portanto, sob o nome de universal concreto , em ltima instncia, a noo de situao, tal como definem os filsofos da existncia. A recusa da universalidade abstrata no significa aqui a substituio da perspectiva do Verstand, do entendimento separador pela Vernunft, razo totalizadora e absoluta, mas a substituio da perspectiva objetivista da explicao pela perspectiva da compreenso. O concreto no mais, tambm, o objeto do saber conceitual que percorreu a totalidade das mediaes, mas o objeto de uma experincia vivida: o concreto emigrou do campo do Logos para o domnio do Lebenswelt. O grande adversrio da ideologia do desenvolvimento seria aquilo que Merleau-Ponty chamava de la pense de survol e a tarefa do pensador, que promove essa ideologia, a de fazer o pensamento coincidir com o ponto-de-vista nacional:

    A conscincia ingnua (aquela que no coincide com o ponto-de-vista concreto e v a nao de fora) () no problematiza a realidade nacional, que lhe aparece como facilmente redutvel aos conceitos de que dispe, geralmente recebidos da maneira tradicional de julgar. A conscincia critica, porm, considera-se um desafio, a que cumpre responder, mas, e isto o que a caracteriza, para faz-lo, serve-se da lgica que induz da prpria realidade onde se oferece tal problema. Ora, essa lgica, como tivemos ocasio de indicar, no nem formal nem abstrata, antes a forma e a lei da reflexo

    7 lvaro Vieira Pinto, Conscincia e Realidade Nacional, vol. 2., p. 361.

  • que abrange e exprime o mundo a partir de um contexto histrico e social definido, mais concretamente ainda, de um ponto-de-vista nacional, aquele a que pertence o pensador8.

    Mas esse glissement das significaes, que nos conduz da dialtica hegeliana compreenso existencial, da objetividade do conceito subjetividade da conscincia, no o ltimo: a dialtica da conscincia, no o ltimo: a dialtica da conscincia finita vem finalmente superpor-se a uma dialtica materialista. Pois, a realidade de que se fala e que a conscincia nacional deve recuperar e interiorizar , finalmente, o processo da produo.. A liberdade a que essa conscincia pode ter acesso, ao eliminar a sua ingenuidade ou a sua alienao, a liberdade do planejamento de sua vida material. O filsofo no mais aqui o funcionrio da humanidade, que deve tornar possvel a tomada de conscincia radical do sentido da experincia humana em sua totalidade: ele o assessor de um governo desenvolvimentista. A tarefa do filsofo no outra seno a de destruir os obstculos ideolgicos que se opem ao desenvolvimento.

    Mas, nesta superposio de perspectivas filosficas diversas, a dimenso da existncia que acaba por ser privilegiada: pois a dialtica da realidade nacional tem sempre sua raiz num projeto, isto , numa dialtica da conscincia. No se busca aqui a dialtica que engloba ou dissolve as estruturas objetivas que comandam a existncia material, mas aquela dialtica interna atravs da qual a conscincia cr poder coincidir consigo mesma e, como Narciso diante de sua prpria imagem, recuperar o Mundo no silncio de sua intimidade. A constituio da filosofia nacional, mesmo estando ligada a uma tarefa essencialmente poltica, teria algo da ternura com que uma subjetividade complacente se descobre e se fascina pela sua incrvel identidade.

    III

    Como pensar estas duas maneiras de situar o problema da filosofia no Brasil e da ideia de filosofia que nos propem?

    1. No caso de lvaro Vieira Pinto, como vimos, a filosofia pensada simultaneamente como expresso e como crtica da realidade nacional. Mas justamente a simultaneidade desses dois traos que torna difcil esta ideia da filosofia. Pens-la como expresso significa dissolv-la sobre o fundo da pr-histria, recusar-lhe a autonomia da teoria. A filosofia nada mais , assim, do que uma formulao mais refinada daquilo que j est presente no nvel da experincia e no representa nenhuma ruptura radical em relao ao senso comum. lvaro Vieira Pinto descreve, verdade, a converso da atitude ingnua na conscincia crtica, e sabemos que a filosofia , para ele, essa converso. Mas a oposio a estabelecida mais de natureza tica ou existencial do que de ordem epistemolgica: trata-se antes de uma rejeio tal como a que se pode estabelecer entre a autenticidade e a inautenticidade, do que da relao que se estabelece entre cincia e percepo. O que essencial , que no se define o estatuto terico da filosofia e que no se pode distingui-la da ideologia. De resto, a indistino entre teoria e ideologia explicitamente assumida por lvaro Vieira Pinto. No se trata, apenas, de reconhecer que o discurso filosfico susceptvel de um uso ideolgico ou de que todo conceito, na medida em que mergulha na prtica social, se transforma em instrumento: trata-se de afirmar que a filosofia no deve aspirar a outro destino, que ela deve ser ideologia.

    Mas no se trata, apenas, de uma superposio que torna problemtica a concepo da filosofia: a prpria noo de ideologia se torna ambgua. Ela no mais significa a conscincia deformada ou interessada que os indivduos e os grupos podem ter da realidade social, em virtude de sua prpria posio no interior da sociedade: ela significa, tambm, uma forma de conscincia

    8 lvaro Vieira Pinto, op. cit., vol. 1, p. 214.

  • privilegiada, algo como uma subjetividade boa ou eficaz. No que no se possa falar de uma ideologia ou de uma forma de conscincia privilegiada basta pensarmos no caso do marxismo mas, no caso do marxismo, o privilgio justificado (ao menos essa sua pretenso) de maneira objetiva e cientfica, o que garante a distncia entre cincia e ideologia. a superposio entre a teoria marxista da ideologia e a psicologia existencialista da autenticidade que d forma a essa concepo peculiar de ideologia que encontramos na obra de lvaro Vieira Pinto. dessa superposio que derivam as dificuldades implcitas na sua definio e que envolve a combinao, em seu recesso, de voluntarismo e espontanesmo, impulso e operao, tendncia e programa. o que aparece, por exemplo, no simples projeto de construir uma ideologia: que se construa uma teoria, ou que se analise uma ideologia coisa compreensvel: mais bizarra parece ser a ideia de elaborar uma viso no-cientfica da realidade.

    Mas todas essas dificuldades derivam, em ltima anlise, do fato de que uma metafsica da conscincia que encontramos na obra de lvaro Vieira Pinto: uma filosofia que incapaz de distinguir entre a conscincia, pura e simples, e o conhecimento. A nfase no polo da conscincia A aparece com a funo de abandonar a metafsica objetivista eu empirismo que se denuncia, com justia, nas razes de certos trabalhos na rea das cincias humanas. Mas, como j observou um crtico agudo do livro de lvaro Vieira Pinto, o prprio ideal da objetividade e de racionalidade que se abandona quando se mergulha no perspectivismo protagrico que, desdenhando a universalidade meramente formal, s reconhece a substancialidade da verdade-para-a-conscincia-nacional.9

    Arrogando-se o direito de constituir uma lgica particular e apropriada a cada situao dada, no se recusa apenas a universalidade abstrata da lgica formal, a prpria ideia de universalidade que entrou em frias. Da inseparabilidade da teoria e da prtica, chega-se possibilidade de alterar as categorias segundo as exigncias da prtica atual, de adotar as categorias que nos convm... Marx, porm, no Protgoras. Quando induz suas prprias categorias a partir da anlise de uma formao socioeconmica dada, apresenta-as como universais. Se esta universalidade no tem mais o mesmo contedo que o da lgica formal, guarda ainda o mesmo sentido. Se agora se afirma que as categorias do pensamento universalista devem ser adaptadas a cada realidade nacional e a cada um de seus momentos, ento preciso dar exemplos desta adaptao; distinguir antes de tudo os conceitos heursticos das cincias humanas e os conceitos ideolgicos puros. Pois a palavra adaptao ter sentido diferente quando se tratar: a) da teoria aristotlica do juzo; b) do teorema de Fermat ou do princpio de Carnot; c) da teoria marxista do valor ; d) da intuio bergsoniana. Cabe ao leitor decidir em que casos a adaptao absurda, fecunda ou intil. Na ausncia destas distines, a conscincia crtica arrisca-se a cair no subjetivismo10.

    Mas no apenas O conhecimento racional e a teoria anlise cientfica ou crtica filosfica que perde seu estatuto ou sua especificidade no interior deste subjetivismo. O mesmo, poderamos dizer, ocorre com a prtica poltica, embora esta filosofia tenha essencialmente a preocupao de fundament-la. Pois, se a conscincia autntica uma conscincia nacional, se a nao um universal concreto, a essncia da poltica emigra para o espao que separa as naes, nas suas relaes de dependncia ou de contestao: esses organismos desconhecem toda contradio interna. Toda crise interna s poder ser entendida como a interiorizao da relao de subordinao que a nao suporta em relao ao exterior e uma ideia como a de classe social no pode receber significao poltica essencial. Assim como reduzir o conhecimento mera tomada de conscincia, esta metafsica reduz a poltica tcnica do desenvolvimento.

    9 Referimo-nos ao ensaio crtico de Grard Lebrun: A 'Realidade Nacional' e seus equvocos, de que nos utilizamos largamente neste artigo.

    10 Grard Lebrun, A 'Realidade Nacional' e seus equvocos, Revista Brasiliense, n 44, p.49.

  • 2. Na obra de Joo Cruz Costa no encontramos a exposio de uma metafsica assim discutvel e sim uma minuciosa histria das ideias. Mas nem por isso essa histria deixa de implicar uma sria de pressupostos de natureza filosfica. E precisamente a natureza dessa filosofia implcita do historicismo a que j aludimos que deve ser analisada e discutida.

    O pressuposto bsico desta exegese do pensamento brasileiro o da permanncia, atravs do tempo, de um mesmo horizonte a histria que descreve e, em ltima instncia, a histria de uma mesma experincia, interpretada por uma mesma conscincia. As mudanas que aponta se inscrevem sobre o fundo unitrio de um mesmo processo ou de um mesmo progresso. por isso que podemos reconhecer nessa histria embora sua matria seja antes a ideologia do que a cincia a marca de Lon Brunschvicg, que foi seu mestre. Mas justamente o carter unitrio que se acredita descobrir na histria da Razo ou da Conscincia que susceptvel de discusso: e que seria oportuno contrapor, ao modelo de Brunschvicg, aquele proposto nas anlises da histria do pensamento feitas por G. Canguilhem. Pois nessas anlises que a ideia de progresso ou de enriquecimento substituda pela ideia de descontinuidade e transformao. a que se percebe que:

    L'histoire des ides ou des sciences ne doit plus tre le relev des innovations, mais l'analyse descriptive des diffrentes transformations effectues11.

    Mas qual a necessidade de substituir uma perspectiva pela outra? O que que nos impede de manter a perspectiva de uma histria linear das ideias ou das cincias? O que se perde, dessas perspectiva, a heterogeneidade dos campos epistemolgicos nos quais gravitam os diversos discursos e onde eles vo buscar as suas regras de formao. Sem a descrio desse horizonte, no possvel sequer a interpretao ideolgica. Tomemos um exemplo concreto: o conselheiro de D. Joo VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, polgrafo portugus que permaneceu no Brasil de 1809 a 1821, e que no Rio de Janeiro pontifica sobre filosofia, desde a Teoria do Discurso at a Cosmologia. Falando da introduo no Brasil, por volta dos ltimos anos do sculo XVIII, de compndios como o de Antnio Genovesi, Joo Cruz Costa nos diz que esse manual:

    () vai influenciar em certo momento o prprio Silvestre Pinheiro Ferreira, que no se dava muito bem com o tenebroso barbarismo dos herclitos da Alemanha nem com a fantasmagoria dos eclticos de Frana () Ctico em relao aos sistemas de filosofia, inimigo declarado deles, Genovesi estava talhado a servir ao trao fundamental do esprito do pensamento portugus, voltado para a prtica, para uma concepo muito terrena do sentido da filosofia12.

    Ser o pragmatismo lusitano que est na raiz desta recusa do tenebroso barbarismo dos herclitos da Alemanha e da fantasmagoria dos eclticos de Frana? Ser a psicologia nacional que impede a Silvestre Pinheiro compreender as aulas de Fichte e de Schelling a que assiste na Alemanha? Com efeito, com humor que caracteriza a filosofia desses discpulos de Kant:

    Nem um s encontramos que no dissesse que ele s entendia Kant. Por este modo, o em que todos concordavam que ningum o entendia13.

    possvel, ao menos, formular uma outra hiptese14: no o pensador portugus que no compreende o idealismo alemo, e sim o pensador ilustrado; no o filsofo pragmtico que recusa esse barbarismo, o pensador que no abandonou o campo da epistme clssica (no sentido

    11 Michel Foucault, Rponse une question, Esprit, n 5, mai 1968, p. 857.12 Joo Cruz Crosta, op. cit., p. 73.13 Joo Cruz Crosta, op. cit., p. 70.14 a hiptese formulada na tese de doutoramento, indita, de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva: Metodologia da

    Histria do Pensamento, (Anlise Concreta: o pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira). Nesta tese, a autora mostra a solidariedade essencial que une o pensamento de Silvestre Pinheiro rede do pensamento clssico.

  • que Foucault atribui palavra), que no sabe e no pode movimentar-se no campo aberto pela modernidade. Com efeito, mostrou-se como, na obra de Silvestre Pinheiro, a Gramtica Geral, a Histria Natural, a Anlise das Riquezas, a Teoria dos Sinais, enfim, guardam a figura que lhes havia dado o pensamento clssico. Se deslocssemos Condillac de seu tempo eu fizssemos assistir aulas de Schelling, no poderia ele tambm pensar no tenebroso barbarismo dos Herclitos da Alemanha?

    Mais difcil ainda nos parece interpretar a situao atual do pensamento no Brasil, suas perplexidades e suas contradies, sobre o fundo da matriz fundamental do legado colonial. Certamente no somos capazes de explicitar o horizonte da contemporaneidade como possvel fazer para um pensamento passado, e menos ainda de circunscrever, com preciso, os seus pontos crticos. De tudo que se afirmar a esse respeito, poderemos dizer com Foucault?

    Bien sr, ce ne sont pas l des affirmations, tout au plus des questions auxquelles, il n'est pas possible de rpondre; il faut les laisser em suspens l o eles se posent em sachant seulement que la possibilit de les poser ouvre sans doute sur une pense future15.

    Mas o que podemos dizer que o legado colonial, ou a psicologia do pensador do pas subdesenvolvido, no mais determinante do que a coero exercida sobre seu pensamento pela positividade que visa, pelos conceitos de que lana mo e pelas exigncias prprias do discurso que desdobra. So esses elementos que aparecem como regra de suas opes e limite de seu discurso, so essas estruturas que, contemporneas, probem ou libertam uma proposio, que fazem a partilha ente o que deve ser dito eu que deve ser calado. certo que ele pode e deve pensar seu pas e sua histria mas nesse caso o pas e a histria sero um objeto, como outros, e no uma estrutura transcendental ou um a priori subjetivo. Pensar de outra maneira tornar novamente impossvel a distino entre experincia e cincia, entre ideologia e filosofia, esquecer as exigncias mais essenciais da prpria filosofia.

    IV

    Indicamos, no incio deste artigo, como a ideia de filosofia nacional pode recobrir uma concepo bastante discutvel da Histria da Filosofia, fundada num psicologismo e num historicismo dogmticos, e, em ltima instncia, numa metafsica da conscincia. Mas, quando a ideia de filosofia nacional deixa de ser um instrumento nas mos do historiador para transformar-se num ideal ou num programa do prprio filsofo, as dificuldades se multiplicam ao infinito. Esse programa s pode encontrar as suas justificativas fora da filosofia, na ideologia do nacionalismo. De um nacionalismo que no se entende como etapa, que se detm na preocupao com a autonomia, que no suspeita que a autonomia nacional pode exigir mudanas mais radicais, que acredita que ela pode ser promovida atravs de uma harmoniosa aliana entre as classes: de um nacionalismo, enfim, que parece ter sido desqualificado na histria mais recente dos pases latino-americanos, em benefcio de uma teoria e de uma prtica mais radicais.

    Talvez a expectativa de uma filosofia brasileira esteja, de fato, essencialmente associada a essa perspectiva poltica, cuja inconsistncia veio luz com o golpe militar de 1 de Abril de 1964. Talvez seja por essa razo, ainda, que a preocupao com a filosofia brasileira ou com a sua histria seja to rara ente as mais jovens geraes de estudiosos de filosofia, os nossos alunos que, h sete anos, alimentados pela literatura do Instituto Superior de Estudos Brasileiros do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, exigiam cursos sobre lgica brasileira, leem hoje preferencialmente Marx e Heidegger, Althusser e Foucault e protestam menos ou de maneira diferente contra o carter tcnico dos cursos que recebem. Se isto for verdade, a atmosfera que procuramos descrever nestas pginas j no ser to atual. Mas as atmosferas s se tornam visveis e descritveis quando j no so vividas sem distncia e iniciam o seu eclipse.

    15 Michel Foucault, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, p. 192.

  • (O presente texto est publicado em PRADO JNIOR, Bento. Alguns Ensaios: Filosofia, Literatura e Psicanlise. 2 ed. So Paulo, Paz e Terra, 200, p. 153-171.)