o problema

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O Problema Ao rodar a chave na fechadura rodou todo o enquadra- mento do corredor e viu-se de cabeça para baixo juntamente com a mobília. Lá em cima ficava, agora, o pavimento em madeira e em baixo o belo estuque do tecto do corredor. Esbronéquio pasmou diante do insólito. Imobilizou-se instintivamente no fim da volta da chave, não fosse qualquer outro gesto imprudente provocar um desastre naquele estranho equilíbrio de coisas. Deixando apenas a órbita das grandes angulares atestar as linhas daquela surpreendente realidade. Ao fim de meia dúzia de segundos, sem meditação suficiente que fundamentasse o gesto, decidiu rodar a chave no sentido inverso, como quem recua perante o perigo. E o espaço voltou, à razão da velocidade com que rodava a chave, às regras a que sempre se havia habituado: o chão era mesmo chão e o tecto era mesmo tecto. Mas do lado de fora do sítio onde queria entrar. Em suma, entre si e as coisas que ia buscar estava aquela porta e aquela chave. Afastou-se da porta com um passo atrás e tentou perceber outra coisa naquele objecto que não a porta. Mas a sua percepção garantia-lhe que estava mesmo diante de uma porta. A chave era a sua. Tinha-a retirado do bolso e enfiado na fechadura e rodado automaticamente, depois de confirmar o número 21 por cima da porta. Na outra mão segurava um damasco grande, todo trincado em torno do caroço em mais

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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  • O Problema

    Ao rodar a chave na fechadura rodou todo o enquadra-mento do corredor e viu-se de cabea para baixo juntamente com a moblia. L em cima ficava, agora, o pavimento em madeira e em baixo o belo estuque do tecto do corredor. Esbronquio pasmou diante do inslito. Imobilizou-se instintivamente no fim da volta da chave, no fosse qualquer outro gesto imprudente provocar um desastre naquele estranho equilbrio de coisas. Deixando apenas a rbita das grandes angulares atestar as linhas daquela surpreendente realidade. Ao fim de meia dzia de segundos, sem meditao suficiente que fundamentasse o gesto, decidiu rodar a chave no sentido inverso, como quem recua perante o perigo. E o espao voltou, razo da velocidade com que rodava a chave, s regras a que sempre se havia habituado: o cho era mesmo cho e o tecto era mesmo tecto. Mas do lado de fora do stio onde queria entrar. Em suma, entre si e as coisas que ia buscar estava aquela porta e aquela chave.

    Afastou-se da porta com um passo atrs e tentou perceber outra coisa naquele objecto que no a porta. Mas a sua percepo garantia-lhe que estava mesmo diante de uma porta. A chave era a sua. Tinha-a retirado do bolso e enfiado na fechadura e rodado automaticamente, depois de confirmar o nmero 21 por cima da porta. Na outra mo segurava um damasco grande, todo trincado em torno do caroo em mais

  • O Perigo na Ponta da Esferogrfica

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    de metade. At ao instante em que enfiou a chave na fechadura, trazia um daqueles pensamentos idiotas e inconsequentes que no momento presente, depois do estranho fenmeno e do passo atrs, ainda se infiltrava no discorrer da anlise do dito fenmeno e que se resumia ao seguinte: qual seria a razo ltima para o damasco, ou qualquer outra fruta com caroo, ter aquele volume comestvel volta do caroo? E estava em vias de se convencer que a natureza no planeara que as rvores o produzissem com a inteno de sustentar espcies animais, mas como alimento para o prprio caroo logo que este tombasse terra. Esbronquio era dado especulao mesmo em situaes absurdas.

    Olhou em redor, buscando algum com quem pudesse lanar as bases de um raciocnio razovel e capaz de explicar aquela mania da porta, mas naquele momento estava sozinho no corredor. Por isso a curiosidade mamfera ditou que experimentasse outra vez, enfiou de novo a chave e rodoua muito devagarinho. Instantaneamente, a carpete vermelhona no taco envernizado, as paredes de cor prola, os quadros com cenas clssicas, os lustres e o belo estuque rodaram acompanhando o movimento da chave. Esbronquio no rodava. Tudo o resto rodava, mas ele no; era como se ele fosse o eixo central da rodagem do mundo. Ao parar o movimento da chave, o corredor parava de se inverter, e se invertia o sentido da chave tambm o movimento do corredor era invertido.

    Como havia ele de entrar no quarto se para abrir a porta o mundo seguia as voltas da chave na fechadura?

    As opes comeavam a esgotarse. E se tentasse abrir a porta ao fim de uma volta inteira da chave? Olhou para um lado e para o outro procura de algum que o ajudasse a evitar o risco, mas continuava a no aparecer ningum. Ser que tambm encontraria, do outro lado, o quarto invertido como o corredor?

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    Voltou, ento, a rodar a chave e, desta vez, pareceulhe sentir um ligeiro enjoo. Quando a chave chegou ao fim da sua volta, ele aplicou uma suavidade de gesto na maaneta para amparar qualquer desastre que pudesse advir da porta aberta. Empurroua devagar e mal havia criado um ngulo de trinta graus verificou que tambm o quarto estava invertido, o que o deixou espantado, irritado e espevitado ao mesmo tempo. Espreitou e reconheceu os seus haveres l dentro, as calas em cima da cama ou seria debaixo? , a agenda e a esferogrfica preferida na mesinha de cabeceira e ainda podia notar a ponta de uma sapatilha, l em cima, debaixo da cama. Fora a inverso do espao, tudo parecia normal: nenhum monstro, nenhum ser estranho, nenhum delinquente ou serial-killer vista. Mas o ngulo de viso ainda era muito curto. Decidiu que era um risco seguro abrir ainda mais a porta. E flo.

    O candeeiro da mesinha de cabeceira foi o primeiro objecto a cair desamparado. Logo fechou a porta abruptamente, de sobressalto, e pareceulhe que outro objecto cara, j que se ouviu um segundo estrondo.

    Voltou a dar um passo atrs, sentindo que fervilhava de irritao. No aparecia ningum e a porta parecia continuar a ser mesmo uma porta. A porta do quarto nmero 21. Suspirou fundo e voltou a rodar a chave na fechadura. Que mais poderia fazer se queria mesmo l entrar? Flo com cautela como se o cuidado pudesse impedir o mundo de rodar fora da graa da normalidade; e talvez tenha sido esse cuidado a gerar a diferena, pois agora agora era o seu corpo que acompanhava o rodar da chave e no o cenrio. A perspectiva que tinha da rotao era a mesma, mas o enjoo era muito maior, pelo que s podia ser o seu corpo a servir de fuso num mundo esttico. Largou a chave imediatamente. Sofreu um instantneo abalo de desnimo que o prostrou, como um arrepio, mas eralhe impossvel deixarse vencer por uma msera porta que o impedia de chegar onde queria

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    chegar. Desatou aos pontaps e murros porta como que a convencla a obedecer s regras do costume. Fezlhe uma cara de maldade viril entre dois punhos cerrados e preparados para desancla at s aparas. Mas depois foi sacudido pelo bom senso. Arrumou os punhos. Teria de haver modo mais habilidoso para l entrar. Discorreu. E o raciocnio conduziuo de novo chave, que agora estava no seu bolso.

    Impaciente, Esbronquio espetou de novo a chave na greta da fechadura e preparouse para rodar. Concentrouse. Sentiuse como um heresiarca promissor que descobre uma soluo inimaginvel para os ortodoxos depois de discernir meticulosamente todas as consideraes envolvidas naquele estranho caso. E, confiante, voltou a insistir na chave. Mas nessa altura a chave j no queria rodar, como se a fechadura tivesse ficado subitamente perra. Homessa! Sentiu uma imediata injeco de fria no crebro. A deslavada da porta agora no o queria deixar entrar! Agarrouse chave com todas as suas foras e contrarioulhe a teimosia. Depois de repetida e fogosa presso na fundura da chave conseguiu algum abandono e anuncia. Debruado sobre o problema com todo o seu volume de musculatura, tinha as pernas abertas e fincadas no pavimento como um guindaste, e mordia a lngua do esforo portentoso aquando do grunhido primplosivo. No estertor teutnico que se seguiu a fechadura cedeu, finalmente.

    Quando tentou empurrar a porta, s a mo restava na maaneta. O brao tombara. As pernas haviamse desgarrado como pilares torcidos; o torso haviase fragmentado em vrios pedaos metericos que embatiam arbitrariamente no soalho ou no estuque; ao passo que a cabea saltitava na carpete vermelhona num movimento regular e incompatvel com o movimento dos meteoros. Esbronquio podia, no entanto, ver, se bem que de modo desfocado, que a mo se esforava por rodar a maaneta, tentando cumprir o desgnio do grande crebro.