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123 O “PODER PARALELODA IMPRENSA: UMA CONTRIBUIÇÃO SEMÂNTICO-DISCURSIVA PARA ANÁLISES DE AGENDA SETTING Wedencley ALVES 1 INTRODUÇÃO As análises da mídia geralmente são marcadas por uma preocupação com o conteúdo das veiculações, o que incorre necessariamente em áreas que tomam a linguagem como transparente aos fatos. Com a proeminência das disciplinas sócio- históricas, conseguiu-se hoje fundamentar uma boa coletânea de instrumentos críticos para a avaliação dos meios de comunicação e suas mensagens, chegando alguns inclusive a penetrar no próprio meio profissional jornalístico, geralmente resistente às avaliações da Academia. Entre as teorias sociais que hoje são reconhecidas como relativamente eficientes está a hipótese da agenda setting: a capacidade que a mídia tem, não de manipular a opinião pública, como outrora pensaram as teorias mais simplistas, mas de estabelecer uma agenda, uma pauta do que deve ou não ser relevante para a sociedade. A teoria do “estabelecimento da agenda social”, se quisermos defini-la por uma tradução aproximada, tem a vantagem de trazer a compreensão de como alguns assuntos, embora nem sempre na direção que a maior parte dos meios de comunicação deseja, passam a se tornar tão freqüentes nas discussões populares ou acadêmicos, enquanto outros literalmente “saem de moda”. Ao mesmo tempo, explica, o que é complementado pela tese da espiral do silêncio, como alguns destes assuntos são “proscritos” da memória presente da sociedade. A questão, no entanto, é que a agenda setting não consegue explicar como algumas tentativas da mídia de gerar uma pauta nem sempre dão certo, ou como outras agendas se formam, mesmo que a princípio ignoradas pelos meios. A explicação canônica é que o estabelecimento da agenda precisa, como num efeito pedra no lago, 1 Doutor em Lingüística (Unicamp). Membro do Grupo de Estudos em Análise do Discurso, GADI, de Franca.

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in: RODRIGUES, M. e ALVES, W.(org) Discurso e sentido: questões em torno da midia do ensino e da história". São Paulo: Claraluz, 2007

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O “PODER PARALELO” DA IMPRENSA:UMA CONTRIBUIÇÃO SEMÂNTICO-DISCURSIVA PARA ANÁLISES

DE AGENDA SETTING

Wedencley ALVES1

INTRODUÇÃO

As análises da mídia geralmente são marcadas por uma preocupação com o conteúdo das veiculações, o que incorre necessariamente em áreas que tomam a linguagem como transparente aos fatos. Com a proeminência das disciplinas sócio-históricas, conseguiu-se hoje fundamentar uma boa coletânea de instrumentos críticos para a avaliação dos meios de comunicação e suas mensagens, chegando alguns inclusive a penetrar no próprio meio profissional jornalístico, geralmente resistente às avaliações da Academia.

Entre as teorias sociais que hoje são reconhecidas como relativamente eficientes está a hipótese da agenda setting: a capacidade que a mídia tem, não de manipular a opinião pública, como outrora pensaram as teorias mais simplistas, mas de estabelecer uma agenda, uma pauta do que deve ou não ser relevante para a sociedade. A teoria do “estabelecimento da agenda social”, se quisermos defini-la por uma tradução aproximada, tem a vantagem de trazer a compreensão de como alguns assuntos, embora nem sempre na direção que a maior parte dos meios de comunicação deseja, passam a se tornar tão freqüentes nas discussões populares ou acadêmicos, enquanto outros literalmente “saem de moda”. Ao mesmo tempo, explica, o que é complementado pela tese da espiral do silêncio, como alguns destes assuntos são “proscritos” da memória presente da sociedade.

A questão, no entanto, é que a agenda setting não consegue explicar como algumas tentativas da mídia de gerar uma pauta nem sempre dão certo, ou como outras agendas se formam, mesmo que a princípio ignoradas pelos meios. A explicação canônica é que o estabelecimento da agenda precisa, como num efeito pedra no lago,

1 Doutor em Lingüística (Unicamp). Membro do Grupo de Estudos em Análise do Discurso, GADI, de Franca.

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de capacidade de difusão e recepção por outros meios, o que só se dá se houver receptividade mercadológica ou uma predisposição ideológica naquele momento da história da sociedade.

Cabe essa explicação, mas não resolve o fato de que não percebendo a opacidade da linguagem, estaremos discutindo notícias como se fossem fatos ou espelhos destes. Além disso, mesmo que se introduza uma variante conceitual através da chamada angulação – isto é, a tese segundo a qual não são os fatos os estabelecidos pela agenda das mídias, mas os ângulos que lhe interessam – ainda é muito precária a compreensão dos mecanismos de estabelecimentos dos sentidos dominantes em relação aos acontecimentos históricos, visto que a questão é que a agenda, boa parte das vezes, falha.

A agenda pode ser estabelecida, mas o jogo das interpretações volta e meia é perdido inelutavelmente, apesar do aparato quase insuperável hoje de potencialização das vozes sociais de que contam os meios de comunicação.

Acredito que este déficit teórico da parte da agenda setting só seja coberto se for superarada a visão informacional que ainda predomina nas teorias sociais aplicadas ao jornalismo. Em outras palavras, acredito que somente uma atenção maior à opacidade da linguagem, operada pelas teorias materialistas da linguagem, é que se poderá resolver os imbróglios de interpretação postos diante do analista que venha se predispor a compreender como os meios de comunicação podem ser bem sucedidos ou não no estabelecimento da agenda.

Propriamente, o presente artigo se dispõe a propor uma hipótese semântico-discursiva da agenda setting, ou propriamente, uma redefinição da teoria da agenda setting de acordo com uma teoria materialista da linguagem, a partir da contribuição da semântica histórica da enunciação e da Análise do Discurso. Nestas páginas, iremos analisar especificamente o caso da designação “poder paralelo”, que ganhou força em toda a mídia e na sociedade brasileira, e particularmente carioca, no ano de 2002, pouco antes das eleições presidenciais que levaram o presidente Luis Ignácio Lula da Silva à Presidência da República.

A AGENDA SEMÂNTICA

Ao estabelecer um diálogo crítico entre teorias da

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linguagem e a teoria da agenda setting, teremos que estabelecer antes uma consideração ainda que breve sobre esta hipótese de trabalho, relacionando-a ao nosso objeto de análise, a designação “poder paralelo”, que seria tratado naquele modelo teórico como a “cobertura sobre o poder paralelo”.

Como afirma Wolf (2001, p.144), a agenda setting parte da hipótese de que os mass media, descrevendo e precisando a realidade exterior, apresentam ao público uma lista daquilo sobre que é necessário ter uma opinião e discutir. O pressuposto maior é que a compreensão que as pessoas têm de grande parte da realidade social lhes é fornecida, por empréstimo, pelos mass media. O que está em jogo é uma “continuidade em nível cognitivo, entre as distorções que se geram nas fases produtivas da informação e os critérios de relevância, de organização dos conhecimentos, que os consumidores dessa informação absorvem e de que se apropriam” (p. 146).

Ainda segundo Wolf, a hipótese da agenda setting toma como postulado um impacto direto – mesmo que não imediato – sobre os destinatários, que se configura segundo dois níveis: a. “a ordem do dia” dos temas, assuntos e problemas presentes na agenda dos mass media; b. a hierarquia de importância e de prioridade segundo a qual esses elementos estão dispostos na “ordem do dia”.

Em formulações mais avançadas desta tese, alguns autores chegam a defender que a os mass media são eficazes na construção da imagem da realidade que o sujeito vem estruturando. Neste quadro, sempre segundo Wolf, a formação da agenda do público vem a ser o resultado de algo muito mais complexo do que a “mera” estruturação de uma ordem do dia de temas e problemas por parte dos mass media, visto que envolve a constituição de um quadro de referências e as necessidades, crenças e expectativas que influenciam aquilo que o destinatário retira de uma situação comunicativa. Ou seja, a questão é posta sob uma ordem cognitiva.

Vamos exemplificar, portanto, esta hipótese com a escala evolutiva da cobertura sobre o poder paralelo, que a nosso ver pode ser tratada como a história de uma designação.

A partir do acervo eletrônico disponibilizado pelo Globo em sua página da internet, temos acesso aos arquivos de 1994 até o momento de busca. Com base nesse material, podemos desenvolver

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um histórico da designação “poder paralelo”, escolhido porque acreditamos que tenha marcado um momento de intenso debate na sociedade carioca sobre a violência e a criminalidade. De alguma forma, o tema do “poder paralelo” foi uma agenda que deu certo: próximo ao final de 2002, ganhou diversas manchetes em outros jornais, e outras mídias, e ocupou boa parte do tempo de conversas de rua no Rio de Janeiro e, por certo, em todo o país. Mas é curiosa a ascensão desta designação ao longo dos últimos dez anos de arquivo do jornal pesquisado. Vejamos alguns números que podem esclarecer o que estamos dizendo.

Em 1997, a designação em questão apareceu dez vezes em todo o ano, mas só duas relacionadas ao tráfico de drogas. Em 98, ela oscilaria para 21 aparições, em todo o jornal, contando reportagens, editoriais, colunas e cartas de leitores, sendo que 11 relacionadas ao tráfico de drogas. Em 1999 e 2000, foram oscilações fortes, no primeiro ano indo a 38, e no segundo a 26, com sete remissões ao tráfico de drogas.

Em 2001, cai surpreendentemente para oito, o que mostra que não há uma relação direta entre a utilização da expressão e a escalada da violência, que é ascendente nesse momento. Em 2002, são 658 aparições, a grande maioria relaciona ao tráfico de drogas. Depois há um declínio acentuado: 117 em 2003; 25, em 2004, 29 em 2005, e 38 até outubro de 2006 (quando se encerra nosso acompanhamento), apesar dos sucessivos ataques do PCC em São Paulo.

Num primeiro momento, pode-se atribuir a grande freqüência do termo “poder paralelo” no jornal O Globo em 2002, à morte de Tim Lopes, em abril daquele ano – talvez o caso mais impactante de uma agressão à imprensa, sabendo ser ele um dos principais jornalistas daquele periódico. Entre os dias de primeiro de janeiro a 03 de junho, dia da morte, encontramos 12 ocorrências. Há um grande salto, durante o mês de junho, quando já se sabia da tragédia: a expressão apareceria 119 vezes. No mês seguinte, cairia para 64. Em agosto, menos, 45, o que apontaria uma tendência de queda pelo tempo da tragédia. Mas não, em setembro, foram constatadas 233 ocorrências, já definitivamente assumidas pelas cartas dos leitores, o que mostra que a designação já se estabeleceria como acontecimento semântico junto ao cotidiano.

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De novo, para surpreender-nos: em outubro, teríamos 148 ocorrências para poder paralelo. Em novembro, sem qualquer sinal de declínio na criminalidade, 28; em dezembro, por fim, nove ocorrências, e em todo o ano de 2003, 117, menos que em um só mês, o de junho do ano anterior. Evidentemente, o acontecimento histórico que motiva a maior utilização desta designação não é a morte de Tim Lopes, mas principalmente as eleições presidenciais e de governo do estado daquele ano. O Globo utiliza-se da expressão principalmente no mês que antecede as eleições, e no mês seguinte, antes do segundo turno.

O que O Globo travou foi evidentemente uma guerra semântica em período eleitoral, o que de alguma forma é ignorado pela agenda setting, quando mostra ainda uma relação termo a termo entre linguagem e fato. Não é que um fato se tornou mais notório. Mas que uma designação se tornou mais corrente, o que nos leva a tentar compreender mais amiúde o percurso enunciativo desta expressão em O Globo. Para isso, no entanto, precisamos trabalhar os conceitos que nos ajudarão a analisar este percurso.

DELINEAMENTOS TEÓRICOS

O percurso semântico desta designação só poderá ser compreendido no quadro teórico de uma semântica que trata a questão da significação “ao mesmo tempo como lingüística, histórica e relativa ao sujeito que enuncia” (GUIMARÃES, 2002a). Em outras palavras, ao contrário das abordagens que tratam o sistema – as antigas semânticas estruturais, por exemplo, ou a semântica lógica – de forma determinante, é preciso compreender de que lugares sociais falam os locutores, qual a historicidade “do dizer” analisado em relação a uma memória de sentidos e os aspectos próprios à língua em que o locutor se faz sujeito.

Isto não quer dizer que, saindo da estrutura, se deságüe num determinismo de contexto. Justamente, porque o interdiscurso é levado em consideração. Conceito comum à semântica histórica e à Análise de Discurso, de linha francesa, o interdiscurso é o conjunto de todos os discursos disponíveis ou não para um sujeito, na maioria das vezes agindo silenciosamente em seu dizer, mas que compõe a memória a partir da qual é possível se fazer sentido. Ou seja,

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um dizer não se relaciona ao “fora”, de forma dêitica, como uma denotação – uma notação que aponta para a realidade, refletindo-a ou a indicando. O acontecimento de sua aparição se relaciona tanto a uma memória que o torna possível, quanto às regularidades – que são acontecimentos historicamente cristalizados – da língua2.

Com isso, parte dos problemas relacionados aos problemas filosóficos que marcaram a semântica ao longo do século XX torna-se fora de questão. Um deles diz respeito aos problemas postos pela filosofia analítica sobre as expressões enganadoras. Ainda que seja uma crítica às reminiscências da metafísica, quando Ryle (1975) reconhece em enunciados como “O rei da França não é Poincaré” o exemplo de um equívoco de pensamento3, ele está querendo mostrar que é possível ater-se a uma justeza entre pensamento e linguagem, e linguagem e mundo.

A filosofia analítica, que busca superar as proposições da sintaxe lógica do círculo de Viena e seu isomorfismo linguagem-mundo, ao pôr em jogo as questões propriamente lingüísticas – ou seja, ao pôr em jogo a certa autonomia da língua e suas regularidades, e a capacidade de jogo dos interlocutores – transfere para o lingüístico o correspondentismo próprio da vertente filosófica teórica anterior4. Trazendo para nosso objeto de análise é como se a frase-em-“o”5 quase referencial “o poder paralelo está se impondo” não fosse válida, por simplesmente não haver propriamente um poder paralelo, mas algo como um poder transversal, oblíquo etc, devido às conhecidas relações cruzadas entre autoridades e criminalidade.

Independentemente se há ou não na realidade um “poder paralelo”, isto não impede que a sociedade o discuta, ou se constitua uma memória e uma futuridade (GUIMARÃES, 2002b), pela qual a sociedade se desloca e faz sentido. O marco da fundação de uma memória fica claro quando na própria academia começa-se

2 Há aqui uma referência explícita a Deleuze, quando mostra que não deveria haver diferença entre estrutura e acontecimento, visto que a estrutura nada mais é do que o acontecimento cristalizado pela história. Ver Lógica do Sentido.3 Posto que em si mesmo não é verdadeiro nem falso, visto que “não há rei da França” (p. 21). 4 Apesar dos deslocamentos, ainda trabalha dentro do paradigma filosófico da verdade como correspondência. Acerca dos dois grandes paradigmas filosóficos sobre a verdade, correspondentista e coerentista, ver Haak (1983).5 “Frase-em-o” é um dos objetos analisados por Ryle, que o classifica como “quase referencial”.

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a discutir “a origem do poder paralelo”, que geralmente remete à aproximação, durante a ditadura, entre presos políticos, provenientes da classe média, e presos comuns, devido à alocação conjunta em penitenciárias (cf. LEEDS, 2003).

A designação “poder paralelo” vem então suplantar “crime organizado”, que há até pouco tempo “mapeava” semanticamente a criminalidade carioca. O primeiro acentua a noção de falência do estado como único detentor do direito à força e o segundo, a semelhança com as grandes sociedades criminosas como a máfia siciliana e os cartéis do narcotráfico. Em outras palavras, nestes dois processos enunciativos, se estabelecem comparações distintas, cujo trabalho sobre a memória e a partir desta mobiliza e faz entrar em cena diferentes referências históricas: a máfia e os cartéis do tráfico, num caso, o Estado, no outro. Com isso, o que tem a ver com a fundação de uma futuridade, as discussões deslocam-se para a fragilidade do Estado, e o debate social se implementa em discutir meios de seu fortalecimento, geralmente do aumento de sua força militar e repressora.

Por não levar em consideração as designações como acontecimentos enunciativos, a discussão se faz, por um lado, sobre o objeto, como se fora um referente, e não objeto de discurso ou, por outro, sobre a adequação da nomeação. A discussão presa ao conteúdo e à transparência da linguagem resulta em aporias graves, portanto.

As discussões propriamente sociais acerca da mídia não estão muito longe daquele patamar ocupado pelas filosofias analíticas. Embora, no segundo caso supracitado, as preocupações sejam legítimas sobre a complexidade da tessitura que envolve os diversos agentes sociais, numa realidade muita mais heterogênea do que a designação “poder paralelo” permite perceber, é fato que o acontecimento enunciativo desta nomeação produz efeitos reais – e não abrir mão desta consideração semântica para debruçar-se sobre a “realidade ou circunstância” da nomeação acaba por deixar escapar aspectos importantes na avaliação da cobertura da mídia.

Ou seja, atentar-se para a materialidade da linguagem é prevenir-se contra a metáfora do véu, sob o qual esconder-se-ia a verdade. Como vemos nesta passagem de Zaluar:

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Apenas nos últimos anos a investigação policial e dos promotores e procuradores do estado permitiu começar a levantar o véu que encobria a crucial participação de políticos, empresários e negociantes em diversos esquemas de lavagem do dinheiro, fruto da corrupção ou de negócios escusos, o véu que afirmava a correlação entre pobreza e criminalidade, sem tornar complexos os processo de interconexão das várias atividades ilegais de personagens com diferentes origens sociais (ZALUAR, 2004, p.15).

Mas, numa compreensão distinta dessa supracitada, podemos dizer que “poder paralelo” faz significar a relação causal entre pobreza e criminalidade, ausência de estado e comportamento social das favelas, e assim opera, não como engodo, ou véu a ser levantado, mas como realidade significada – o contínuo processo enunciativo que produz sentidos e condições de compreensão da realidade vivida. Isto nos faz perceber que há uma temporalidade própria do acontecimento de linguagem que não necessariamente se confunde com a temporalidade do acontecimento histórico, embora desta extraia sua própria historicidade.

O que deve ser levado em conta é a forma como os sujeitos significam – e se fazem significar – na língua. Mais precisamente, como afirma Guimarães:

Dois elementos são decisivos para a conceituação deste acontecimento de linguagem: a língua e o sujeito que se constitui pelo funcionamento da língua na qual enuncia-se algo. Por outro lado, um terceiro elemento decisivo, de meu ponto de vista, na constituição do acontecimento, é sua temporalidade. Um quarto elemento ainda é o real a que o dizer se expõe ao falar dele. Não se trata aqui do contexto, da situação, tal como pensada na pragmática, por exemplo. Trata-se de uma materialidade histórica do real. Ou seja, não se enuncia enquanto ser físico, nem meramente no mundo físico. Enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico (2002 b, p.11).

Nesse sentido, vale lembrar que a designação “poder paralelo”, associada ao tráfico, também se filia à memória de uma sucessão de modelos explicativos da criminalidade que têm origem na cena acadêmica, a começar pelas abordagens biológicas do final do século XIX, e a assunção das raças degeneradas.

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A partir do século XIX a hipótese poligenista transformava-se em uma alternativa plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e sobretudo diante da contestação ao dogma monogenista da Igreja. Partiam esses autores da crença na existência de vários centros de criação, que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais observadas. A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimento de uma interpretação biológica na análise dos comportamentos humanos, que passam a ser crescentemente encarados como resultados imediatos de leis biológicas e naturais... Ainda seguindo esse modelo determinista, ganha impulso uma nova hipótese que se detinha na observação da “natureza biológica do comportamento criminoso”. Era a antropologia criminal, cujo principal expoente – Cesare Lombroso – argumentava ser a criminalidade um fenômeno físico e hereditário (SCHWARCZ, 2001, p.49).

Mais à frente, no século XX, temos pelo menos mais três modelos explicativos sobre a criminalidade. Duarte (2005) relaciona estes três modelos que se sucedem na academia com ressonâncias fortes tanto na imprensa de cada época, quanto no cotidiano. O primeiro funcionou até os anos 50, quando a tradição jurídica dominava a abordagem da criminalidade urbana – tendo o Estado como o centro da questão. Depois, passa a vigorar os argumentos sociológicos, e desta vez é a cidade que passa a ser enfocada como o centro da vida coletiva. “Ela se torna um objeto de investigação regulado por uma agência específica, a Universidade, e pelo código disciplinar próprio às ciências sociais”.

Este enfoque se acentua nos anos 60, quando a sociologia impõe-se de vez como lugar do conhecimento sobre a cidade.

Nos primeiros anos de ditadura militar, a crítica aberta ao regime construía argumentos que relacionavam o aumento da violência urbana a causas sociais. A criminalidade urbana servia de motivo para que o pensamento crítico discutisse a falência do Estado autoritário, a deterioração das práticas civis, a crise de valores e toda a agenda pública democrática (DUARTE, 2005, p.59).

No final dos anos 80, a discussão se dirige ao enfraquecimento da autoridade do Estado: junto à opinião pública – em grande parte, construída pela circulação dos novos paradigmas na imprensa – “a

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preocupação com as causas sociais da violência começa a ceder lugar aos temas do aparelhamento da força policial, do aperfeiçoamento da máquina judiciária e do fim da impunidade” (idem, ibidem).

Duarte trabalha com uma outra ordem teórica, o que o leva a discutir os modelos de explicação e sua propriedade para a discussão da criminalidade. No nosso caso, interessa-nos o fato de que esses “modelos” operam por diferentes lances sobre a memória, ao se instituírem diferentemente no interdiscurso, na memória discursiva de uma sociedade, estabelecendo novas relações enunciativas entre sujeito e linguagem, dentro da cena acadêmica. O que importa, especificamente, é que a designação “poder paralelo” tem uma historicidade que remete à memória destes modelos, ao mesmo tempo em que representa um acontecimento que redefine a própria configuração daquela memória.

Nessa proposta de se considerar a linguagem do ponto de vista da sua materialidade, a discussão pode superar uma tradição semântica de discussão de adequação da linguagem ao referente, ao mesmo tempo em que se põe como um instrumento valioso para compreender o modo como se dão a enunciação e a designação na mídia, sem apelar para qualquer forma de cognitivismo – e a centralidade do sujeito que aí decorre. Daí compreendermos, numa referência à hipótese da agenda setting, essa abordagem como a tentativa de apreender a agenda semântico-discursiva dos meios de comunicação.

ANÁLISE: O ESTABELECIMENTO DE UMA AGENDA SEMÂNTICA

Os enunciados envolvendo a designação “poder paralelo”, numa referência ao tráfico de drogas, não são tão novos. Já em junho de 1997, ela é usada numa notícia publicada O Globo. Antes é preciso compreender a diferença entre notícia e reportagem, dois produtos que guardam diferenças dentro do que se convencionou chamar gênero informativo do jornalismo.

Geralmente, a reportagem tende à cobertura temática, enquanto a notícia é um produto da urgência, da instantaneidade. No próprio dizer dos profissionais das redações, a notícia tem uma relação “factual” com o objeto de cobertura; trata-se de um relato, na tradição jornalística, compreendido como “objetivo”, e que não permite grandes elaborações narrativas como acontece na reportagem, que

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também se caracteriza por ser mais “autoral”. Numa analogia, a notícia seria uma foto, e a reportagem um quadro, referências que fazem evidentemente menção ao desejo de transparência comum a todo discurso, mas que se acentua fortemente no jornalismo, de inspiração americana, praticado no pós-guerra no Brasil.

Com isso, estes dois produtos jornalísticos sustentam relações enunciativas levemente distintas dentro da cena jornalística: na primeira, há uma tentativa de se estabelecer um enunciador-universal, fora da história (Guimarães, 2002 b, 29), fora do fato de que quem enuncia é afetado por uma historicidade do dizer, aquele que se expressa por enunciados axiomáticos, válidos para todos os mundos possíveis6; enquanto na reportagem, comumente, evidencia-se a autoria, a figura do enunciador podendo ser a individual, quando o locutor põe-se no jogo, como nos chamados depoimentos, ou reportagens participativas.

No caso imediatamente abaixo o enunciado (em negrito) mostra que a negação polêmica aponta para lugares de insinuação, de uma “constatação” que começa a circular, ainda sem foros de verdade. Curiosamente, a negação é restritiva a “neste governo” e não a “poder paralelo”. Por isso, ao observar o enunciado abaixo:

...há dois dias, nenhum policial subiu os morros. O assessor parlamentar da Secretaria de Segurança, coronel Miltom Correa da Costa, rebate as acusações: - Neste governo o tráfico jamais será poder paralelo. Ontem, policiais do 6º BPM subiram os morros, apreenderam 21 pedras de crack, dois rifles e prenderam Alexandre Francisco de Paula, de 20 anos, acusado de ser do bando de Café...(Primeiro Caderno. Notícia. 17/06/97)

é possível, a seguinte construção:

“Neste governo, o tráfico jamais será poder paralelo”, como em outros governos.

Esta análise das tessituras do dizer é necessária porque na

6 Utilizamos aqui a definição do “necessário” como “válido em todos os mundos possíveis”, numa remissão à semântica lógica (modal) de Kripke quando trata dos designadores rígidos. Mas aqui esta utilização é revista como efeito de sentido. Cf. KRIPKE, Naming and Necessity, 1982

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as expressões lingüísticas significam no enunciado pela relação que têm com o acontecimento em que funcionam. Portanto, não se trata de extrair da expressão um significado próprio, mas entendê-la no arranjo mais global da enunciação presente e sua relação com outras enunciações a que remetem responsivamente. Desta forma é o acontecimento do dizer que nos interessa e que nos informa sobre os sentidos da linguagem e, para isso, o lugar de observação deve ser a textualidade em que ele se dá:

... considerar o processo no qual uma forma constitui o sentido de um enunciado é considerar em que esta forma funciona num enunciado, enquanto enunciado de um texto. Ou seja, não há como considerar que uma forma funciona em um enunciado, sem considerar que ela funciona num texto, e em que medida ela é constitutiva do sentido do texto (GUIMARÃES, 2002 b, p.07).

Ainda em 1997, a designação “poder paralelo” reaparece no mesmo jornal, mas desta feita numa reportagem que, como dissemos, é mais temática.

TEMA EM DISCUSSÃO: CRISE NA POLÍCIA

É exatamente por esse motivo que as polícias militares se constituem em verdadeiro poder paralelo aos dos governos dos estados, impondo a eles a sua vontade. Em São Paulo, diante de idéias dadas a público pelo governador Mário Covas, para que se pudesse rever o sistema vigente...(Primeiro Caderno: Reportagem, 18/07/1997)

A primeira característica da reportagem – que não trate de um grande acontecimento, momento em que ela guardaria a semelhança com a notícia pela factualidade – é partir de uma proposição do corpo editorial. São temas postos em discussão e, portanto, temas que circulam na instituição como uma possibilidade a ser ou não confirmada. Ao contrário, no entanto, das hipóteses científicas, que devem ser testadas, as hipóteses jornalísticas são quase elevadas ao nível do pressuposto.

Na expressão em negrito, observamos um enunciado que revela a preocupação com o “poder paralelo” das polícias militares, o que mostra que ainda não há um efeito de “cola” entre o qualificativo e o “tráfico de drogas”. É possível à expressão transitar

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por diferentes objetos do discurso. Conjugado com a possibilidade de o enunciado apontar para um pressuposto editorial, pelos motivos acima comentados, fica claro que não há uma primazia na relação “tráfico” e “poder paralelo”, podendo esta expressão aparecer para designar a relação entre agentes de segurança – policiais ou não – e uma oficialidade qualquer. O que se confirma no próximo trecho analisado:

RESIDÊNCIAS DESPROTEGIDAS NO RECREIO

O comandante do Núcleo do 31º BPM (Barra), tenente-coronel Mauro Teixeira, diz que é contrário à iniciativa. Para ele, está sendo criado um poder paralelo na região: - Coibir a violência é tarefa do Estado. Não faremos qualquer parceria com a organização desse projeto que fere a Constituição. O diretor de segurança da Acir... (Caderno de bairros: Barra, 02/11/2000)

...em que o “poder paralelo” é “o” dos agentes e não daqueles que desafiam a região, possivelmente traficantes e outros marginais. Esta fluidez de sentido, ora atribuindo – negativamente – o poder paralelo ao tráfico, ora à polícia, ora a agentes particulares de segu-rança mostra que ainda não se constitui ainda propriamente o acon-tecimento enunciativo da designação a que nos reportamos, e que trará mudanças significativas na memória discursiva da cidade.

Estamos aqui, portanto, num momento em que não se deu ainda a constituição histórica do sentido analisado da designação “poder paralelo” rigidamente associada ao tráfico de drogas. A consideração desses exemplos, no entanto, faz-se necessária porque se trata da pré-história de um acontecimento enunciativo, e que nos dará suporte comparativo para observar o deslizamento da expressão lingüística que, no momento, designa “agentes sociais em geral” para no futuro designar apenas um deles – o tráfico – até a sua fixação, o seu efeito de cola, quando se estabelece o efeito de transparência ou evidência.

A questão, no entanto, é se “poder paralelo” já se configura como uma expressão dentro do espaço semântico da segurança e da criminalidade. A resposta é “ainda não”. Como faz ver o trecho abaixo:

LIMITES DA LUTA

...Ao cidadão prejudicado sobraram apenas as atitudes do

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coronel da PM quebrando os vidros dos carros para desobstruir o trânsito. Os taxistas viraram um poder paralelo que manda no trânsito com suas próprias leis e precisam ser rapidamente recolocados na sua posição de concessionários de um serviço público, sujeitos a leis como qualquer cidadão (Primeiro Caderno. Reportagem, 28/11/2000)

.

O mesmo se aplicando ao trecho abaixo:

GRUPO NA ABIN TEM PODER PARALELO

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está rachada. De um lado, um grupo ligado aos militares, afinado com o general; de outro, remanescentes do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), que têm um poder paralelo na Abin e estão fora de controle. Esse segundo grupo divulgou a informação de que Carlos Alberto Del Menezzi estava na lista dos torturadores do regime militar...(Primeiro Caderno. Reportagem. 17/12/2000)

Uma segunda questão é se há uma configuração lei versus poder paralelo, ou seja, se, de alguma maneira, é no universo jurídico como referência, que se encontra a expressão em estudo. A resposta também é negativa. A expressão lingüística “transita” pelo jornal mesmo referente a cenas enunciativas da política, da disputada dos poderes adminstrativos:

FH ESTICA O TEMPO

...proteger o ungido (ainda mais se estiver no Ministério) quanto para retardar ao máximo a temporada do cafezinho frio no Planalto. O presidente, que não é bobo, sabe que criará um tremendo foco de poder paralelo no governo assim que pronunciar o nome do candidato, seja ele José Serra, Tasso Jereissati ou mesmo, quem sabe, Pedro Malan. (Primeiro Caderno. Coluna de política13/08/2001).

Prestemos uma atenção especial para o texto acima, um texto de opinião. São os analistas, locutores privilegiados dentro do jornal, porque carregam para si a autoridade do expert. A palavra do analista é antes a palavra de uma autoridade conferida pelo jornal, e que não precisa se ater às quase rigorosas regras de textualização, de formalização. Ao analista é permitido um grau maior de metaforizações. O analista é um lugar social dentro da profissão jornalística que confere uma diferenciação de sentido em

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relação àquela própria da reportagem e da notícia, ainda que escrito pelo mesmo sujeito-empírico. Não se trata, portanto, de um nome ou outro, que é substituível, mas de dois lugares sociais distintos, o analista e o repórter, o que vai trazer repercussões sobre os sentidos do dizer. Com isso, trabalha-se fora de uma centralidade do sujeito (idem, p. 11), mas preservando o fato de que não podemos ignorar nem os aspectos lingüísticos, nem os sujeitos, enquanto posições e lugares, nem a historicidade.

No trecho acima o “poder paralelo” não está associado a uma questão “legal”, mas às relações políticas entre agentes. Evidentemente, a diferença a que nos referimos entre o processo enunciativo operado pelo analista ou pelo repórter vem do fato de que na relação com os “dizeres institucionalizados” é o analista quem tem menos constrangimentos. Daí que é possível que essa expressão, associada a um grupo político, não apareça em outros momentos dentro do jornal estudado.

Outro lugar social a ser considerado no conjunto de escritos de um jornal é o do leitor comum, sabendo sempre que ao leitor (locutor) é dado o direito de escrever para a seção de cartas, mas não o de editar ou selecionar o que se escreve. Nesse caso, o jornal é claramente um co-locutor. Ainda que o jornal confronte posições, é ele quem está em última instância fazendo o gerenciamento das opiniões, operando deslocamentos no espaço da seção – o que interfere evidentemente na constituição de sentidos – ou estabelecendo cotas opinativas para cada posição-sujeito. Mais que isso, estas posições se referem em último grau a posições ideológicas dos falantes, que só se constituem como falantes por se posicionarem numa filiação qualquer dentro do interdiscurso. Na carta abaixo, a expressão “poder paralelo” volta ao aparecer associada a criminosos – é o jornal identificando no texto das opiniões de cidadãos comuns um potencial enunciativo ao qual se filia por identidade.

PRISÃO NEGOCIADA

Nossa situação é pior, em número de mortes, diante dessa guerrilha urbana que acua e humilha o povo. Assistimos diariamente, indefesos, ao fogo cruzado dessas quadrilhas, que impõem seu poder paralelo, com violência e demonstração de força. Só as Forças Armadas podem nos salvar. Vamos atacá-los! Ou então, que o Governo solicite à ONU tropas estrangeiras para

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nossa segurança...(Opinião. Primeiro Caderno. 12/12/2000).

CONTRADIÇÃO, PARADOXO E NONSENSE

O jornal trabalha com operadores de distanciamento, às vezes muito sutis. Expressões lingüísticas como na “opinião dele”, “segundo”, “de acordo” guardam diferenças semânticas não tão estruturais – o que realmente não acontece – mas, quase sempre, dentro do processo enunciativo.

RECURSOS FEDERAIS CONTRA A VIOLÊNCIA

(vão ser investidos) até 2003 – afirmou José Alberto Cunha. Os técnicos acreditam que a miséria e a crise social são responsáveis pelo crescimento da violência. Na opinião dele, a miséria disseminada criou um poder paralelo exercido pelos criminosos “que impuseram um domínio territorial armado”. Como solução, diz o relatório, é necessário um salto na qualidade de vida nas comunidades pobres (Primeiro Caderno. Reportagem. 19/05/2001)

Todos aqueles operadores marcam distância entre a palavra do jornal e do entrevistado, embora nem sempre isso seja um marcador de distâncias entre enunciadores. O caso acima é muito indicativo disso. A marcação gráfica do dizer como não sendo do jornal (as aspas), ainda mais antecedido por um operador geralmente vocativo de alteridade do dizer, evidencia diferenças de locução. Com um pouco mais de cuidado, no entanto, percebemos que as aspas aparecem na expressão explicativa, lugar de manifestação do pré-construído numa seqüência sintagmática. Da mesma forma, há a autoridade atribuída por serem técnicos federais.

Vamos analisar este trecho, confrontando-o com duas possibilidades enunciativas:

Na opinião dele, a miséria disseminada criou um poder paralelo exercido pelos criminosos “que impuseram um domínio territorial armado”. Não, não é verdade que impuseram um domínio territorial armado.

A expressão não nega o poder paralelo. Pode ser um domínio

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que age difusamente nas instâncias do poder, por meio, por exemplo, de compra de autoridades.

Na opinião dele, a miséria disseminada criou um poder paralelo exercido pelos criminosos “que impuseram um domínio territorial armado”. Não, não é verdade que a miséria criou um poder paralelo.

A expressão nega o todo, visto que neste caso seria incongruente a retificação: “não há poder paralelo, mas há um domínio territorial armado”.

Mas curiosamente, pelo não dito, a negação reafirma a relação entre poder e “domínio armado”. O que exporia a negação a uma fragilidade pelo curso dos acontecimentos históricos, e pelo próprio percurso da memória discursiva que vai se constituindo na historicidade urbana do Rio de Janeiro.

Aqui em 2001, é talvez o primeiro momento em que o jornal se posiciona como um enunciador dentro de uma configuração semântica da associação necessária entre “tráfico de drogas” e “poder paralelo”, numa relação ainda não duplamente implicativa. O que já demonstra um deslocamento definitivo para que mais tarde tenhamos uma estabilização de sentido. Mas cabe uma questão: ou podemos afirmar que cada deslocamento desse é um acontecimento em si mesmo, ou que, ao olhar do semanticista, é necessário um conjunto de deslocamentos para que se instaure realmente “a diferença na sua própria ordem”, que é como Guimarães define o acontecimento enunciativo. Ou mais precisamente:

A temporalidade do acontecimento constitui o seu presente e um depois que abre o lugar dos sentidos, e um passado que não é lembrança ou recordação pessoal de fatos anteriores. O passado é, no acontecimento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalização, tal como a latência de futuro. É nesta medida que o acontecimento é diferença na sua própria ordem: o acontecimento é sempre uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade de tempos, sem a qual não há sentido, não há acontecimento de linguagem, não há enunciação (idem, p.12).

Se tomarmos cada deslocamento, talvez ainda não tenhamos a instauração de uma nova temporalidade. Parece realmente que o acontecimento se dá na medida em que alguns percursos do dizer já foram feitos, que alguns deslizamentos ainda que tênues na memória preparem o momento da diferença, da ruptura com um

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mesmo. É lógico que isso pode vir com um acontecimento histórico que desorganize as certezas, mexa com a estabilidade dos sentidos, como possivelmente o fora os ataques de 2006 do Primeiro Comando da Capital na grande São Paulo.

Mas nem sempre é o acontecimento histórico que provoca o acontecimento enunciativo. Percebe-se que os deslocamentos, ainda pequenos, processados até agora, no jornal, não estão na mesma escala de progressão dos acontecimentos históricos. E mesmo quando se der mais à frente um grande acontecimento histórico – a morte do jornalista Tim Lopes – um acontecimento relevante para a historicidade da memória jornalística, não é isso que marcará a fixação definitiva do “sentido à coisa”, numa relação designativa de evidência.

Como dissemos, já há no jornal O Globo, por meio de 2001, uma relação semântica implicativa entre tráfico de drogas a poder paralelo. Isso fica mais evidenciado com a notícia abaixo, que quase sai de uma relação argumentativa de indefinição “um poder paralelo”, como no exemplo acima, para outra de definição “o poder paralelo do tráfico”, ao mesmo tempo em que sai de um contexto enunciativo de hipótese, que ainda marca a textualidade anterior, para de um objeto de relato:

TRAFICANTES MANDAM FECHAR LOJAS E ESCOLAS EM BAIRRO DE NOVA IGUAÇU

No Dia Nacional de Combate às Drogas, 11.228 moradores do bairro Quilômetro 32, em Nova Iguaçu, que engloba as localidades de Prados Verdes e São Francisco de Paula, sentiram na pele o poder paralelo do tráfico. A morte de um bandido, apontado pela polícia como braço-direito de Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém, provocou ontem o fechamento de seis escolas, umas delas...(Primeiro Caderno. Notícia. 27/06/2001)

É preciso levar em consideração, como já alertamos, que, na notícia, o efeito de transparência se torna ainda mais acentuado. Na mesma operação analítica aplicada acima, o resultado seria o nonsense:

“O poder paralelo ...provocou o fechamento de seis escolas...” Não, não houve fechamento de seis escolas, que não nega “poder paralelo”

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“O poder paralelo ...provocou o fechamento de seis escolas...” Não, não foi o poder paralelo......quem foi? Os moradores, os justiceiros, etc.

“O poder paralelo ...provocou o fechamento de seis escolas...” Não, não foi o poder paralelo...quem foi? Foram traficantes.

Em que a primeira é possível, a segunda é improvável, e a terceira impossível, se já não vier acompanhada de uma explicação como: “foram traficantes, e eles não são um poder paralelo”.

Ora, aqui o nonsense e a “necessidade de justificativa” reforçam a afirmação de que a memória é atualizada no momento da enunciação, mas dentro de um espaço político. A associação inevitável se fez, já se constituiu no interdiscurso, o que explica o efeito de nonsense no último enunciado-exemplo, e a conseqüente “necessidade de justificativa”, que vem justamente como uma operação para “apaziguar” aquele efeito, incômodo numa cena enunciativa qualquer.

O que se tenta dizer aqui é que tanto o nonsense quanto a necessidade de justificativa só são possíveis de serem caracterizados como tal, dentro de uma historicidade de dizer determinada. Pode-se fazer a objeção de que não se trata tanto de uma historicidade do dizer, mas “de condições reais de vida daquele morador”. Respondendo a isso, repetimos a afirmação de que os sujeitos empíricos existem enquanto posicionados no e atravessados pelo simbólico. É uma relação sempre interpretativa com o mundo, e essa interpretação só é possível quando “se faz sentido”.

O efeito de nonsense ocorre justamente quando “algo não é admissível de fazer sentido” e não “algo não é admissível de existir”. As relações mágicas, as hipóteses e conjecturas, as projeções têm uma relação com o existente, mas não necessariamente “fazem referência ao existente”. Daí que o nonsense é mais típico dos paradoxos lógicos, do que dos mundos fantásticos.

Mesmo o paradoxo lógico, no entanto, denuncia uma contradição argumentativa, que é ocultada por aparecer como uma proposição universal: se o mentiroso, que sempre mente, diz que sempre mente, ele estaria dizendo a verdade; mas só porque o enunciado parte de uma verdade enunciada por um locutor

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universal: a de que o “mentiroso sempre mente”, ou parte de um blefe: “x diz que sempre mente”, quando não seria verdadeiro. A solução de Russell para os paradoxos ao recorrer à distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem é ainda primária porque oculta o comentarista, um enunciador-segundo que faz a afirmação capital de que há um sempre-mentiroso em jogo. Mas Russell não pode introduzir o sujeito nas relações lógicas. A lógica trabalha com posições de universalidade, o “em si” mesmo do enunciado.

O ato epistemológico de introduzir o sujeito, e ver nos paradoxos lógicos não apenas paradoxos, mas contradições argumentativas, ainda deverá ser complementado com um segundo passo: o da introdução da historicidade, que determina as condições da orientação argumentativa. Ou seja, em última instância, o que vem funcionar dentro da enunciação também é a temporalidade, que não pode ser vista, no entanto, como externa ao acontecimento enunciativo. Ou como afirma Guimarães:

O sujeito não fala no presente, no tempo, embora o locutor o represente assim, pois só é sujeito enquanto afetado pelo interdiscurso, memória de sentidos, estruturada pelo esquecimento, que faz a língua funcionar. Falar é estar nesta memória, portanto não é estar no tempo (dimensão empírica) (p. 16).

OS LOCUTORES ASSUMEM SUAS POSIÇÕES

Continuemos um pouco ainda com Guimarães, quando mostra que o político é “caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos”.

No jogo dos sentidos, há a reafirmação de uma divisão do real, e a constante luta pela tomada da palavra, “por mais que esta lhe seja negada”. Recentemente, começou a circular a expressão “comunidade” no lugar de “favelas”. Quase sempre associada à pobreza, a favela nunca deixou de se autodenominar “favela”. Fazia parte da sua memória resistir, nas conversas, nas músicas, nos atos políticos, mostrando que morro/favela tinha o seu lado, diria, romântico7. A força do tráfico armado se estabelece nos anos 80, e

7 O papel da poética do samba aqui é fundamental para essa visão romantizada.

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passa à hegemonia – em relação aos banqueiros de bicho – no início da década passada.

Ou seja, nesta década já temos a configuração semântica morro-favela-pobreza-crime. Mas ainda assim só um acontecimento enunciativo marcaria a mudança de auto-designação: o aparecimento da associação entre tráfico-poder paralelo, o que fundaria necessariamente – no real – uma relação simbólica que aprofundava o “poder” oficial do asfalto e o “poder paralelo” dos morros e favelas. Ou seja, estaria marcada a cisão simbólica entre dois poderes em guerra. Não haveria mais como fugir da configuração morro-favela-pobreza-tráfico-poder paralelo, o que arrastava de roldão o próprio alto reconhecimento do favelado, sujeito atravessado por essa cisão simbólica, essa divisão política dos sentidos.

A favela – espaço residencial – não é necessariamente mal localizada; a “pobreza” não é “pecado”; o “tráfico” é “coisa de traficante”, mas estar sob a “jurisdição do poder paralelo” jogava aquele morador contra toda a cidade.

A hipótese de nosso trabalho é claramente de que a designação “comunidade”, mais do que um ritual pragmático do politicamente correto, só ganhou força e foi reconhecido pelos próprios moradores das favelas, como potencialmente auto-designativo, na medida em que “favela” – e “favelado” – estabeleceu um sentido de evidência com “narcotráfico” e “poder paralelo”. Porque há ainda uma relação social entre usuários, na maioria provenientes da classe média, e os “meninos do tráfico”; da mesma forma que há relação de serviços entre os favelados e moradores do asfalto. Mas o confronto de poderes estabeleceria a ilegalidade definitiva do “ser favelado”.

A “comunidade”, como auto-designação, reintroduziria o morador numa relação semântica com o jurídico, numa redivisão do político, em que ficariam acentuados os sentidos de convivência e sociabilidade. Não que “a oficialidade do asfalto” não reassuma o domínio da palavra: nas imobiliárias, os imóveis mais valorizados são aqueles que pertencem à zona neutra enquanto os menos, aqueles que dão vista para a comunidade. O mesmo processo de depreciação semântica começa a atingir a designação “comunidade”, que tem, no entanto, uma reserva simbólica ainda forte, visto que não está necessariamente vinculada ao tráfico de drogas – o nome é genérico o suficiente, por enquanto – e nem a relações conflituosas com os

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moradores de bairros.Mas o morador da comunidade que toma a palavra posiciona-

se como um enunciador, na maioria das vezes, minoritário junto aos grandes jornais, visto que as posições enunciativas tornam-se visíveis por locutores-tipo, como o político, a autoridade, o artista, o intelectual. É o que acontece nos quatro próximos exemplos, em que é bastante notável o processo de constituição do efeito de transparência: poder paralelo da tráfico de drogas. O que significa, em outras palavras, a definição de um designata único:

JORGE ROBERTO: FIM DA VIOLÊNCIA É TAREFA HISTÓRICA

O herói do menino humilde de 10 anos que era o jogador de futebol passou a ser o traficante e isso é difícil de combater - disse. Jorge Roberto acredita na existência de um poder paralelo e que os recentes atentados à Secretaria de Direitos Humanos e à prefeitura e o assassinato do jornalista Tim Lopes são prova disso. (Primeiro Caderno. Entrevista: Jorge Roberto Silveira, candidato a governador, 11/07/2002)

CRIME: UM OBJETIVO EM SI MESMO

...comparando comunidades de igual nível social, mas com taxas de violência diferenciada, e verificando os índices de evasão escolar e de desemprego. A duplicidade de Estado, ou seja, o dito poder paralelo, sublinhado de forma tão aberta e clara pelo senhor presidente do Poder Judiciário estadual, dá-se exatamente no sistema de Justiça e Segurança. Esse sistema é conceitualmente uno...(Primeiro Caderno. Opinião. César Maia, 04/07/2002)

PARA FORMAR BANDIDOS

...o M prateado, de Mussolini, preso ao peito sobre as tiras brancas cruzadas. E mais tarde, mãe, tive que ver minhas filhas estudando moral e cívica. Vivemos hoje, nesta cidade, a presença de um poder paralelo. Por que não haveria esse poder de querer fortalecer-se e perpetrar-se através da educação de suas crianças e jovens? A escolarização é a nossa maneira de educar. (Primeiro Caderno. Opinião. Marina Colassanti, 30/07/2002)

(SEM TÍTULO)

gostaria de lembrar que da mesma forma que quem não gosta de política está condenado a ser governado por quem gosta,

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quem não dá respaldo, voz e autoridade à sua polícia vai ser governado pelo tal poder paralelo. E uma última lembrança: tem gente que nasceu na favela, viveu nela, perdeu filhos nela e não é nem cineasta, nem traficante: é governadora do Estado do Rio de Janeiro. (Primeiro Caderno. Opinião. Cartas. Marina Magessi, ?/?/2002).

O primeiro dos exemplos acima relatados está sob a formação A concorda (acredita na existência já afirmada) que p., numa relação epistêmica entre o locutor e o dito. O segundo exemplo pode ser formalizado como B aufere que p., numa relação de comentário; na seguinte, C diz que p.,é reafirmativa, e D prevê que p., projetiva. São diferenças enunciativas com o enunciado de base.

A relação mais universal não o é tão curiosamente a da escritora, visto que não se coloca no lugar social da autoridade, ao contrário dos outros. Ela fala a “palavra” dos comuns; embora em verdade seja o locutor privilegiado desta posição enunciativa. O artista é muitas vezes mobilizado por uma posição ideológica qualquer, justamente porque carrega essa duplicidade: ele é representativo de uma coletividade, de um dito “senso comum”, ao mesmo tempo em que tem uma visibilidade expandida, que retroalimenta aquele mesmo senso.

O locutor-artista, portanto, num jornal, serve muitas vezes à posição enunciativa ocupada pelo próprio jornal ou veículo qualquer, embora isso não possa ser atribuído necessariamente a uma estratégia retórica, visto que entram em jogo outros fatores como o atravessamento de outras posições no próprio jornal e no próprio personagem convidado.

Essa dispersão, no entanto, que é geralmente apagada conscientemente ou não em nome da coerência de sentido, seja de um autor individual, seja de um autor institucional, como é o próprio veículo, em alguns momentos aparece, principalmente, ao longo de um tempo, quando há um inevitável deslizamento de posições na história, ou da submissão do sentido a um tipo de enunciação como a do humor, que opera sobre a ambigüidade. Vejamos o caso a seguir:

PODER (COM PH) PARALELO

Ao contrário do meu cheque especial, a ousadia dos

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traficantes cariocas não tem limites. É cada vez maior o poder paralelo na cidade. Os chefões do narcotráfico estão controlando a vida de todo mundo. Outro dia mesmo, eu, Agamenon Mendes Pedreira, tive que pedir licença ao traficante que controla a minha área para que Isaura, a minha patroa, servisse a sua já tradicional...(Segundo Caderno. Humor. Agamenon Mendes de Almeida).

O humor introduz a percepção do absurdo no próprio ato designativo. Reafirma e, ao mesmo tempo, faz rir do que afirma. Se a designação aspira à verdade de um objeto designado, isto é, a sua localização no real, o humor mostra pelo riso o quanto pode não ser séria esta própria designação. Aqui a brincadeira fonética poder/phoder põe em circulação sentidos não autorizados pelas seções sérias do jornal, até porque compromete justamente a monossemia, qualidade imprescindível para estabelecimento da transparência.

Enquanto autoridades, políticos, policiais, escritores como locutores-tipo assumem suas posições enunciativas junto à do jornal, o locutor-humorista revela possíveis posições outras, que geralmente são apagadas para que se funde a coerência do dizer. Mas o locutor-humorista pertence a um espaço enunciativo dentro do jornal bem delimitado tanto gráfica quanto editorialmente. Não há risco de se verem contaminadas as outras seções, que seguem reafirmando o sentido. Ao humorista permite-se a desobediência ao consenso, aos jornalistas, nem tanto.

No jornal, o espaço e a cena são muitas vezes marcados graficamente. Como nas vinhetas, nem sempre um indicador, mas a “instrução de como interpretar” (p. 13). É o que finalmente se estabelece no exemplo abaixo, momento culminante do acontecimento enunciativo estudado por nós:

PODER PARALELO: ASSOCIAÇÕES COMUNITÁRIAS SÃO VIGIADAS DE PERTO PELAS QUADRILHAS E SOFREM INTIMIDAÇÕES 08/09/2002.

A vinheta “poder paralelo” marcaria que ali naquele espaço do jornal se falaria de tráfico de drogas. E não de outro objeto qualquer. Estava dada a relação de transparência entre designador e designado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que estudamos nesse estudo foi o percurso da constituição de um sentido único, imediato, transparente, evidente entre tráfico de drogas e “poder paralelo”. Mostramos que essa escalada para a fixação do termo associado ao objeto não depende necessariamente de uma escala do real. A escala é argumentativa em relação a uma exterioridade representada pelo interdiscurso, e não pela realidade histórica. Evidentemente, pode-se questionar se este percurso não se deu por uma estratégia retórica dos jornais, desencadeada com a proximidade das eleições.

É bem plausível que seja correta a afirmação acima, como já havíamos afirmado nos itens iniciais. Mas o fato de autoridades e leitores, que representam a sociedade em geral, terem entrado nessa relação de evidência é que se constitui como o acontecimento enunciativo em si mesmo. Em outras palavras: a agenda setting pode e deve ser analisada enquanto questão semântico-discursiva.

Os jornais e demais veículos de comunicação tentam por vezes estabelecer “vinhetas” para certos acontecimentos jornalísticos. A Folha de São Paulo sempre chamou o caso que levou ao impeachment do presidente Collor de “collorgate”, mas isso não se estabeleceu como uma designação comum, embora pudesse ser reconhecida por leitores mesmo de outros jornais.

O caso “poder paralelo” é típico. Na memória discursiva da cidade, por muito tempo, houve o tal poder paralelo “em realidade”. E mesmo hoje a designação está inevitavelmente ligada ao tráfico de drogas. O que houve foi uma partição política de um antes e depois. Mas este antes e depois não têm a ver tanto com o rumo dos fatos, mas de um acontecimento designativo.

No pragmatismo, poder-se-ia falar de condições de felicidade. Mas a questão não demanda somente de condições preestabelecidas, como a autoridade do dizente. Nesse caso, estamos diante do acontecimento, no sentido próprio que os franceses dão ao termo événement: há um quê de estrutura – de pré-condições instituídas, reconhecíveis – mas também de acaso, de jogo dos sentidos, de dinâmica das enunciações. Há a memória e há o ato enunciativo, aquela sempre recuperando e retraduzindo este, mas este sempre

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deslocando aquela. Podemos dizer que o “poder paralelo” finalmente se deu. Fez-se agenda pública. Mas como um acontecimento do dizer, semanticamente analisável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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