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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 5231 O PATRIMÔNIO CULTURAL RURAL: A VIVÊNCIA DOS MORADORES DO DISTRITO RURAL DE GUARAGI PONTA GROSSA PARANÁ FABELIS MANFRON PRETTO 1 LEONEL BRIZOLLA MONASTIRSKY 2 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar reflexões sobre o patrimônio cultural rural do distrito de Guaragi, no município de Ponta Grossa - PR, fazendo apontamentos para a identificação de elementos simbólicos representativos levantados a partir da experiência dos sujeitos que (re)produzem e vivenciam esse conjunto patrimonial que trata, sobretudo, do modo de vida, dos saberes, conhecimentos e manifestações culturais típicas do campo, que modelam a paisagem rural, estruturam a identidade do sujeito que vive no campo e balizam suas ações cotidianas. Palavras-chave: Patrimônio Cultural Rural; Fenomenologia; Vivências. Abstract: This study aims to present reflections on the rural cultural heritage in rural district Guaragi, in the county of Ponta Grossa-PR, making point for the identification of representative symbolic elements raised from the experience of the subjects that reproduces, produces and experiences this patrimonial set that deals primarily with the way of life, knowledge and cultural expressions typical of the field, modeling the countryside, structure the identity of the subject who lives in the countryside and guide their daily actions. Key-words: Rural Cultural Heritage; Phenomenology; Experiences. 1 Introdução Este trabalho apresenta reflexões acerca do patrimônio cultural rural a partir dos atores sociais que vivenciam o espaço do distrito de Guaragi, em Ponta Grossa (PR). Com base nas vivências dos moradores permanentes e dos moradores de veraneio, buscou-se identificar e compreender sobre o patrimônio cultural rural. Na atualidade, observa-se um novo contexto nas relações entre campo e cidade, rural e urbano, com novas dinâmicas e configurações entre esses espaços. As modificações intensas e dinâmicas nas relações sociais e na relação dos sujeitos 1 - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail de contato: [email protected] 2 - Professor adjunto do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail de contato: [email protected]

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

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O PATRIMÔNIO CULTURAL RURAL: A VIVÊNCIA DOS MORADORES DO DISTRITO RURAL DE GUARAGI – PONTA GROSSA – PARANÁ

FABELIS MANFRON PRETTO 1

LEONEL BRIZOLLA MONASTIRSKY 2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar reflexões sobre o patrimônio cultural rural do distrito de Guaragi, no município de Ponta Grossa - PR, fazendo apontamentos para a identificação de elementos simbólicos representativos levantados a partir da experiência dos sujeitos que (re)produzem e vivenciam esse conjunto patrimonial que trata, sobretudo, do modo de vida, dos saberes, conhecimentos e manifestações culturais típicas do campo, que modelam a paisagem rural, estruturam a identidade do sujeito que vive no campo e balizam suas ações cotidianas. Palavras-chave: Patrimônio Cultural Rural; Fenomenologia; Vivências. Abstract: This study aims to present reflections on the rural cultural heritage in rural district Guaragi, in the county of Ponta Grossa-PR, making point for the identification of representative symbolic elements raised from the experience of the subjects that reproduces, produces and experiences this patrimonial set that deals primarily with the way of life, knowledge and cultural expressions typical of the field, modeling the countryside, structure the identity of the subject who lives in the countryside and guide their daily actions. Key-words: Rural Cultural Heritage; Phenomenology; Experiences.

1 – Introdução

Este trabalho apresenta reflexões acerca do patrimônio cultural rural a partir

dos atores sociais que vivenciam o espaço do distrito de Guaragi, em Ponta Grossa

(PR). Com base nas vivências dos moradores permanentes e dos moradores de

veraneio, buscou-se identificar e compreender sobre o patrimônio cultural rural.

Na atualidade, observa-se um novo contexto nas relações entre campo e

cidade, rural e urbano, com novas dinâmicas e configurações entre esses espaços.

As modificações intensas e dinâmicas nas relações sociais e na relação dos sujeitos

1 - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta

Grossa. E-mail de contato: [email protected] 2 - Professor adjunto do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia

da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail de contato: [email protected]

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com o espaço modificam também as condutas e formas de agir. As experiências no

espaço são resultado e parte do processo de construção do mundo social, de onde

procedem os significados e símbolos da cultura de um grupo.

Para melhor compreender como o mundo é percebido pelo indivíduo, a

perspectiva fenomenológica pode respaldar a análise dos fenômenos e de acordo

com Tuan (1983) dessa maneira haveria uma aproximação dessa com a apreensão

do conceito de cultura.

De acordo com Demo (1989) as ciências sociais por muito tempo

apresentaram certa preferência pelas pesquisas sobre o material, considerado mais

importante, enquanto escopo de pesquisa, sem considerar necessidades humanas

subjetivas. Dessa maneira, a fenomenologia ajuda a responder muitas questões

ligadas às relações que os sujeitos estabelecem com o espaço, pois remete a

compreender os elementos que dão sentido à vida do ser humano com base na

experiência do sujeito e na relação com o seu espaço de vivência.

Com base no que foi observado a partir das vivências dos moradores do

distrito de Guaragi, percebeu-se que a sua cultura é moldada num conjunto de

interações entre passado e presente, e as identidades são adaptadas a essa nova

realidade da relação campo e cidade, rural e urbano. Para aqueles que vivenciam

cotidianamente as experiências ao modo de vida rural, o patrimônio cultural rural

pode estar tão integrado às suas vidas, que se tornam parte do cotidiano.

Já os moradores urbanos reconhecem e buscam vivenciar experiências

relacionadas a esse conjunto patrimonial e também preservá-lo. Sendo assim, o

patrimônio cultural rural existe na experiência cotidiana dos que o (re)produzem e

daqueles que buscam vivenciá-lo, sendo expressão de identidades diversas, que se

encontram na essência e na vivência rural.

2 – Discussões teóricas

O espaço é multidimensional, construído e compreendido por meio de um

amalgama de variáveis, que perpassam o campo da economia, política, cultura,

questões sociais e tantas outras, constantemente modificadas com as

transformações da sociedade. Os traços culturais de um grupo permitem perceber a

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relação das pessoas com o meio e no espaço geográfico. Dessa maneira, permite

compreender os sentimentos desenvolvidos no espaço de vivência e no contexto de

(re)produção sociocultural.

De acordo com Claval (2007) a cultura de um grupo é resultado dos saberes,

técnicas, valores e conhecimentos comunicados entre gerações e está

constantemente sendo inovada pela incorporação de elementos externos a ela ou

pela própria dinâmica interna da sociedade. De tal modo, ao avaliar os traços

culturais (re)produzidos no cotidiano, é possível entender a relação com o meio

habitado, com outros indivíduos e as transformações que se estabelecem por

diferentes motivações.

O processo de globalização abrange diversos meios e contextos – político,

econômico, social, cultural – incentivando transformações que sobrevêm em todos

os espaços, cada qual com uma lógica diferente e amplitudes diferentes (HALL,

2006). Esse mesmo processo estimulou um movimento por modernização e,

paradoxalmente, estimulou as mobilizações pela salvaguarda do patrimônio cultural,

na tentativa de resguardar os vínculos dos indivíduos com o passado e suster as

bases identitárias de um grupo social.

Embora exista o impulso pela mudança e pela modernização, ocorre à

negação a esse processo que impulsiona a manutenção das especificidades de

cada lugar, ocasionadas pelo conjunto de condições que decorrem apenas naquele

local como tradições, hábitos, histórias, e logo o patrimônio cultural resultante da

união desses elementos particulares de cada espaço.

A globalização influenciou no processo de reestruturação das relações entre

campo e cidade. O campo desempenha na contemporaneidade novas atividades, à

medida que está recebendo novas funções e novos atores sociais. Entre esses

distintos espaços geográficos - campo e cidade - ocorre uma relação dialética

caracterizada por momentos de complementariedade e outros de dicotomia.

O rural e o urbano, as representações sociais desses espaços, podem ser

reelaboradas e passar por modificações no tempo e no espaço, condicionadas pelo

universo simbólico que se apresenta e, portanto constantemente se transformam,

influenciados pela crescente fluidez – material e simbólica. (CARNEIRO, 1998).

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De acordo com Wanderley (2001) apesar das mudanças, o rural manteve

especificidades sociais, ecológicas e culturais ao longo da história, que caracterizam

inclusive a maneira pela qual os sujeitos se inserem na sociedade. Para essa autora,

o modo de vida rural é um jeito pelo qual o sujeito que vive no campo vê o mundo e

vive o mundo; o modo de vida rural são lentes de uma identidade rural que

configuram o modo de viver e ser no campo e de interagir com outros espaços.

Os moradores de Guaragi tem contato com os centros urbanos motivados,

sobretudo pela dependência de bens de consumo e serviços não encontrados no

distrito. Todavia, o processo de aproximação com a cidade e o modo de vida urbano

não cunham o desapego ao modo de vida rural ou ao campo, mas tem reforçado os

sentimentos de apego ao local e ao campo. Ao ter contato com os problemas

urbanos (violência, desemprego, poluição, estresse entre outros) os residentes do

campo reforçam a afeição pelo contexto rural, onde esses problemas ainda não

ocorrem de maneira tão frequente ou intensa.

Os traços culturais e elementos simbólicos relativos ao modo de vida rural

são preservados, porque esse conjunto cultural faz parte da memória social do

grupo e estruturam a identidade dos moradores. O conjunto de elementos

conservados presentes no cotidiano e na memória dos moradores do campo pode

ser considerado patrimônio cultural.

A memória pode ser caracterizada pela sua mutabilidade, mas há traços na

memória coletiva e individual que se mantem imutáveis (POLLACK, 1992). Os

moradores do campo conservam um conjunto de princípios norteadores que se

materializam no dia-a-dia, nas relações sociais, na maneira de realizar os trabalhos,

e atividades diárias. Essas características culturais sofrem modificações, mas tem

sobrevivido a dinâmica histórica da sociedade.

A preservação dos patrimônios tem como escopo resguardar a história da

sociedade. No entanto, a discussão sobre patrimônio transcorre entre jogos de

poderes políticos, econômicos, ideológicos e culturais e frequentemente apenas

parte da memória social é guardada, existindo uma desigualdade em favor dos

patrimônios urbanos quanto a estudos e ações das diversas escalas de poder.

O patrimônio cultural rural reúne além do conjunto de registros materiais e

imateriais provenientes das práticas diárias e os costumes, às formas de produção

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estabelecidas na área rural (TOGNON, 2002). A existência de elementos simbólicos

relacionados à vida cotidiana dos habitantes rurais tem recebido valorização pela

moda crescente do consumo do espaço rural e do modo de vida do campo. O

reconhecimento e valorização das características rurais permite ao indivíduo que

vive no/do campo sentir sua participação efetiva na vida da sociedade.

3 - Metodologia

Para a elaboração desse trabalho foi realizada revisão bibliográfica sobre

conceitos referentes à pesquisa, considerando, sobretudo discussões sobre campo

e cidade, rural e urbano, cultura, memória e patrimônio cultural. Pela compilação

desses conceitos, buscou-se elucidar o patrimônio cultural rural, no contexto atual de

Guaragi, utilizando esse distrito rural para a análise de caso.

Buscou-se compreender a ideia de patrimônio cultural rural a partir do sujeito

(re)produtor desse patrimônio. Para isso, foram escolhidos dois grupos sociais

distintos: os moradores permanentes (aqueles que têm residência fixa no campo) e

os moradores de veraneio (as pessoas que têm residência fixa na cidade, mas são

donos de casa no campo, onde passam fins de semana, feriados e férias). A escolha

desses dois grupos foi motivada pela completude nas respostas que ocorre quanto à

percepção do que são os patrimônios culturais rurais, para aqueles que o vivenciam

cotidianamente e para aqueles que buscam vivenciá-lo sempre que possível.

Para compreender aspectos da vida dos moradores, foram realizadas 11

entrevistas com o auxílio de questionários semiestruturados com perguntas

qualitativas e quantitativas para as famílias de moradores permanentes e com 10

famílias de veraneio. As questões buscavam contemplar a vivência, experiências,

hábitos, tradições e costumes.

Para apreender a realidade apresentada pelos moradores, optou-se pela

fenomenologia como metodologia de coleta e análise dos dados. De acordo com

Pereira (2010) pela ótica da fenomenologia é pela realidade percebida por meio da

subjetividade e pelas experiências vividas em determinado espaço que esse é

considerado. O espaço de vivência é estabelecido e percebido pelos indivíduos nas

práticas sociais, que também impregnam o espaço de significados, valores e

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sentimentos. A fenomenologia possibilita considerações que auxiliam na construção

de um saber onde a humanidade do sujeito pesquisado é recuperada e o saber é

construído a partir da realidade das pessoas.

4 - Resultados O município de Ponta Grossa possui cinco distritos: o distrito sede,

Piriquitos, Itaiacóca, Uvaia e Guaragi. O distrito de Guaragi é localizado a 32 km da

zona urbana de Ponta Grossa. Possui população de 2936 habitantes, sendo desses

1241 moradores da vila e 1695 moradores da área rural. (IBGE – Censo 2010).

No dia-a-dia os moradores de Guaragi congregam bens e serviços

modernos ao cotidiano para facilitar o trabalho, acrescentar à renda familiar e

melhorar a qualidade de vida. Contudo as novas ideias e comportamentos não

substituem aquelas transmitidas pelas gerações do passado: valores, religiosidade,

conhecimentos sobre a natureza. A paisagem do campo, a cultura e o modo de vida

passam por constantes modificações, recebem novas formas e equipamentos, mas

a essência é preservada.

Os moradores permanentes entrevistados, falam que o acesso a

determinados bens de consumo, a facilidade de acesso à prestação de serviços

específicos (sobretudo os relacionados com saúde e educação), a possibilidade de

renda maior e segura (já que independe de condições climáticas, por exemplo), são

fatores atrativos nos centros urbanos. Ressaltam a importância e a preferência pelo

contexto rural – tranquilidade, contato com a natureza, maior sensação de

segurança, sensação de tempo mais lento, flexibilidade de tipos e horários de

trabalho, boa qualidade de alimentação e saúde mental, a boa relação com os

vizinhos, entre outras – e destacam que buscam manter essas características tão

apreciadas no local onde vivem. Já os moradores de veraneio, buscam nas

segundas residências tudo aquilo que é parte do cotidiano rural e também procuram

vivenciar novas experiências, ressaltando que durante a permanência no distrito,

prezam por respeitar a dinâmica local.

De acordo com Tuan (2012) o ser humano está sempre buscando o

ambiente ideal e por isso diversas ciências se voltam a compreensão das

preferências das pessoas, utilizando a grande quantidade de dados estatísticos para

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fundamentar a produção do saber. Contudo, ainda há carência em compreender a

amplitude emocional e a intensidade das novas relações de apropriação do espaço

pelos sujeitos, influenciados pelas novas configurações advindas com o contexto

histórico-geográfico.

O que bem representa o espaço de (re)produção da cultura do campo é a

paisagem, construída na relação subjetiva e objetiva do sujeito com o seu entorno.

Assim, é possível compreender que há uma relação inseparável entre os

patrimônios culturais rurais imateriais e materiais: um comporta os saberes, as

ideias, os sentimentos que se refletem nas práticas, nas edificações e utensílios e

coexistem na paisagem e no cotidiano dos moradores do campo.

É comum encontrar em Guaragi edificações que remetem a produção

agropecuária. Existe a presença das edificações pré-moldadas em alvenaria,

utilizadas como estábulos e espaço para guardar equipamentos agrícolas, mas é

comum encontrar o paiol de madeira, edificado segundo arquitetura transmitida

pelas gerações anteriores, onde são armazenados alimentos para o gado,

equipamentos de trabalho e utensílios em geral.

Quanto à produção agropecuária, a população do distrito procura associar

os novos tratamentos aprendidos nos diversos meios de comunicação disponíveis

no distrito – televisão, rádio, internet - e os tratamentos indicados por profissionais

que atendem as propriedades aos saberes aprendidos pela experiência no trabalho,

aqueles transmitidos pelos mais velhos e construídos na observação da natureza.

Para os moradores do distrito é muito importante saber reconhecer os

indícios da natureza, das mudanças climáticas, as previsões sobre o clima futuro,

porque há dependência estreita entre suas atividades e a renda da família às

condições climáticas. Observações da natureza e a sua aplicação prática são

comuns. Um exemplo desse conhecimento é o de que segundo os moradores

entrevistados quando as formigas e pássaros estão mais agitados e quando as

galinhas retiram certo tipo de óleo das glândulas uropigianas e, com o bico

depositam esse óleo nas penas, é „sinal‟ de que a chuva se aproxima; a direção dos

ventos indica se a chuva será calma ou ocorrerá uma tempestade. Esses detalhes

são observados com atenção e já trazem cautela em relação ao clima. Essa

sabedoria é passada de pai para filho. No entanto se percebe falta de interesse dos

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mais jovens nesses conhecimentos, pois preferem acompanhar a previsão do tempo

realizada pelos institutos de meteorologia baseados em dados e análises técnicas.

Épocas de plantio e colheita também são correlacionadas com as fases da

lua e estações do ano, conhecimento esse transmitido entre gerações e testados

empiricamente no cotidiano dos moradores. Para cada cultivo, seja da horta, pomar

ou lavoura, há uma época do ano propícia para poda, plantio e colheita.

No espaço rural, há grande riqueza no que trata das relações sociais

características desse espaço e da relação do indivíduo com o meio. Mesmo com a

aproximação com o espaço e modo de vida urbano e a carga de elementos

simbólicos característicos do espaço urbano, as especificidades rurais são

preservadas junto à memória coletiva e individual e pela conservação de um

conjunto de significados peculiares desse espaço, como é possível verificar no

distrito de Guaragi, quanto às práticas diárias referentes aos meios e maneiras de

trabalho em contato próximo à natureza e nas relações sociais que ainda prezam

por valores de amizade, manutenção de promessas, relações de compadrio.

É comum que os moradores troquem visitas. Se encontrem nas residências

para tomar chimarrão e conversar sobre diversos assuntos, que abrangem desde a

política nacional, até questões locais. “Também é comum a troca de visitas –

sobretudo entre os praticantes do catolicismo - para „levar a capelinha”, ou seja, a

imagem de um santo de devoção da comunidade religiosa que passa de casa em

casa, onde são feitas orações.

As festividades no espaço rural preservam outra característica típica do

campo, a religiosidade. A maioria dos moradores entrevistados se diz católicos

praticantes. No distrito são realizadas muitas festas religiosas em homenagem aos

santos padroeiros de cada localidade, com fogueiras em homenagem a São João,

São Pedro e São Paulo, festas dominicais e bailes.

Para as celebrações tradicionais como no dia 12 de outubro quando se

comemora Nossa Senhora Aparecida, ou no dia 29 de junho dia de São Pedro e São

Paulo, é tradicional a montagem de andores de madeira, onde são acomodadas as

imagens dos santos padroeiros durante a procissão, que percorre um curto trajeto

ao redor da igreja, enquanto são entoados hinos e orações. A devoção pelos santos

é expressa nas orações fervorosas e nas preces feitas em frente aos ícones de fé.

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É comum o uso de métodos curativos espirituais. Segundo os entrevistados

já não existem muitas pessoas que pratiquem esse tipo de „cura‟. Muitas pessoas

disseram não acreditar nos tratamentos com métodos de curandeirismo como as

„costureiras de rendiduras‟ e benzimentos, mas nas entrelinhas de sua fala, contam

que procuram curadores para tratar suas enfermidades, sobretudo para crianças. A

restrição em relatar abertamente a crença no curandeirismo pode ser atribuída a

religiosidade local, voltada a valores tradicionais católicos.

Outro conhecimento preservado e transmitido entre as gerações segundo os

entrevistados trata da utilização de chás medicinais. De maneira geral quem

transmite os conhecimentos sobre quais tipos de chá preparar para cada moléstia

são as mães e avós, algum familiar próximo, ou pessoa mais idosa. Esse

conhecimento também é adquirido na convivência com outras pessoas, na prática,

ou é considerado tradição.

Essas trocas de informações, conhecimentos, costumes e tradições entre as

gerações enriquecem a cultura local, desenvolvem a criatividade das pessoas e

garantem que valores e conhecimentos não sejam perdidos. De acordo com

Hauresko (2012) a manutenção desses vínculos ocorre porque eles ainda

apresentam importância no cotidiano dos moradores do campo. No contexto geral,

são saberes, técnicas, hábitos, que apresentam sentido prático na vivência dos

sujeitos, são representativos na reprodução social e econômica das famílias e da

comunidade e por isso são preservados.

Esses saberes - como a ordenha, o trato com os animais, a relação com a

natureza, a análise das mudanças climáticas, a maneira como ocorrem as relações

sociais – contemplam conhecimentos e práticas ligadas às atividades de trabalho e

lazer e são formados na observação da natureza e do universo, no dia-a-dia, nas

atividades cotidianas dos moradores de Guaragi. Muitos desses conhecimentos são

tão significativos e representativos do espaço rural que são reproduzidos em

espaços voltadas para o turismo rural onde o intuito é oferecer ao visitante a

experiência do contato e vivência da „realidade‟ rural.

Drska (2002) fala da importância da preservação da memória nas práticas

cotidianas como na maneira de falar, na culinária, nas relações entre os sujeitos, nas

crenças e ritos, nas festas e outras manifestações populares e na forma de ver o

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mundo, pois é a partir daí que o sujeito constrói e estabelece sua identificação com o

espaço onde vive e com o grupo social ao qual pertence.

Na paisagem característica do campo, nas ações cotidianas, nas histórias,

memórias, modos de fazer e ver a realidade que se estabelecem os laços de

identificação com o modo de vida rural. Os elementos simbólicos representativos de

vida urbana que chegam ao campo são incorporados, rejeitados ou readaptados ao

modo de vida, pois como cidadãos ativos, os moradores do campo têm direito ao

acesso a bens que lhes tragam melhorias na qualidade de vida, no entanto,

preservam as características bucólicas que são expressas nos hábitos, costumes,

cotidiano, relações sociais e nas formas de apropriação do espaço.

Mediante o que foi apresentado pelos moradores do distrito de Guaragi

entende-se que os elementos escolhidos para representar a história dos indivíduos

que vivem no campo são aqueles reconhecidos e apontados pelos sujeitos que o

vivenciam nas suas experiências cotidianas e que pela sua importância são

preservados mesmo com as mudanças que ocorrem na configuração do espaço

rural.

5 – Conclusões

Frente à análise da realidade abordada nesse trabalho, percebeu-se que o

modo de vida rural não está baseado apenas na relação de produção agropecuária,

mas também na amalgama de traços culturais referentes ao vínculo dos habitantes

com a paisagem rural, com a terra, às relações de amizade e confiança com os

demais membros da comunidade. Esse conjunto que contempla o ambiente e as

práticas sociais formam a memória social desse grupo numa história conjunta.

A fenomenologia propicia a compreensão de que para os sujeitos sociais

que vivenciam o espaço rural, suas experiências são únicas e inerentes a esse

espaço geográfico, ao passo que resultam da soma da paisagem mais as atividades

e hábitos cotidianos, que formam um contexto característico do campo.

No tempo e espaço, o modo de vida tipicamente rural tornou-se expressão

cultural desses sujeitos. A relação com o campo, com as outras pessoas, com outros

modos de vida, formou e revela a identidade cultural rural, que é expressa na

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organização social desse grupo. Na manifestação, desenvolvimento e manutenção

da sua identidade, os sujeitos rurais patrimonializam seu modo de vida. Mesmo

quando ocorre a aproximação com o modo de vida urbano e há um embate entre a

necessidade de renovação ou a conservação, o modo de viver rural pode passar por

um processo de (res)significação, mas mantem sua essência.

A paisagem, as formas edificadas, os equipamentos e outros conjuntos de

elementos materiais podem ser considerado patrimônio cultural do campo e existem

porque há no viver rural um jeito peculiar de ser no dia-a-dia, na rotina, no contexto

que ambienta a vida no/do campo, na tranquilidade, no tempo que dá a sensação de

transcorrer de maneira mais lenta, na liberdade de horários, no contato com cheiros

e sons naturais, nos alimentos que liberam todo o sabor quando cozidos lentamente

no fogão à lenha e nos saberes do plantio, colheita e preparo dos alimentos nos

pomares e hortas, na ordenha manual do leite que será transformado em doce

artesanal.

Esses elementos simbólicos característicos do espaço rural não são apenas

memória. Resultado das experiências diárias, na relação com o espaço, com os

outros sujeitos. É o que modela a vida no campo e o estruturante para relacionar-se

com outros espaços e sujeitos. É cotidiano dos moradores do campo, seu modo de

vida, seu patrimônio cultural.

6 - Referências

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 11, p. 53-75, out. 1998. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/index.php?cA=db&aI=120&vT=da&vA=281>. Acesso em: 18 jan. 2013.

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CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2007.

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HAURESKO, Cecilia. Lugares e Tradições: As comunidades faxinalenses de Anta Gorda e Taquari dos Ribeiros. Guarapuava: UNICENTRO, 2012.

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