o patrimônio ambiental urbano de são luiz do paraitinga e as políticas públicas de preservação

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1 DANILO CELSO PEREIRA O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO SÃO PAULO 2012 Desenho a bico de pena de Lygia Fong (2008)

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Trabalho de Graduação Individual apresentado ao Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo em 01 de fevereiro de 2012 para a obtenção do título de Bacharel em Geografia.

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Page 1: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

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DANILO CELSO PEREIRA

O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

SÃO PAULO

2012

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O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

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DANILO CELSO PEREIRA

O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

Trabalho de Graduação Individual apresentado

ao Departamento de Geografia da

Universidade de São Paulo como requisito à

obtenção do título de Bacharel em Geografia.

Orientadora: Profª Drª Simone Scifoni

SÃO PAULO

2012

Page 4: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação
Page 5: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

PEREIRA, D. C. O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as

políticas públicas de preservação. Trabalho de Graduação Individual apresentado ao

Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Bacharel em Geografia, aprovado pela

seguinte Banca Examinadora:

__________________________________

Profª Drª Simone Scifoni

DG/FFLCH/USP

Orientadora

__________________________________

Profª Drª Isabel Aparecida Pinto Alvarez

DG/FFLCH/USP

__________________________________

Profª Drª Flávia Brito do Nascimento

IPHAN/SP

São Paulo, _____ de __________________ de 2012

Page 6: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

Dedico este trabalho a todos os luizenses, em

especial aos que tiveram suas casas invadidas

pelas águas do Rio Paraitinga no primeiro dia

de janeiro de 2010, sobretudo aos familiares

de João Roberto dos Santos, vítima do

desastre.

Page 7: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

AGRADECIMENTOS

Hoje eu vou pedir desculpas pelo que eu não disse

eu até desculpo o que você falou

eu quero ver meu coração no seu sorriso

e no olho da tarde a primeira luz.

Oswaldo Montenegro

A primeira pessoa a quem devo agradecer pela concretização dessa etapa é, sem dúvida, a

minha mãe Fátima, tanto pelo apoio irrestrito quanto pelas palavras de incentivo, sobretudo

pelo que parece mais simples, mas que é o mais importante: por ter sido minha Mãe e ter

desempenhado com maestria todas as funções que essa palavra carrega. Mãe, te amo muito!

Ao meu pai Pedro, agradeço por me ensinar a valorizar as coisas simples da vida e pelas

noites em claro que passou ao meu lado em alguns momentos difíceis. E, sem dúvida, um

agradecimento muito especial aos meus segundos pais, os meus avós Brás e Vicentina por me

apoiarem no início dessa caminhada. Amo muito vocês.

Page 8: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

Vivendo, se aprende;

mas o que se aprende, mais

é só a fazer outras maiores perguntas.

Guimarães Rosa

Agradeço à minha orientadora, professora Simone Scifoni, por nortear a minha pesquisa.

Nunca poderia imaginar que ao entrar naquela sala, onde ela ministrava sua primeira

disciplina no Departamento de Geografia da USP, comentar onde eu havia nascido e ter

ouvido “Há... aquele lugar lindo!”, eu estaria começando a redefinir o meu percurso

acadêmico, coisas da vida. Obrigado Simone, pessoa admirável pela trajetória profissional

dedicada ao patrimônio cultural e por desempenhar com amor a função de professora, além de

ser uma pessoa que encanta pela simplicidade.

Obrigado Sueli Herculiani, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, por todo incentivo,

pelas orientações, por me mostrar a riqueza do patrimônio cultural imaterial das comunidades

tradicionais paulistas. Fui colocado como estagiário de uma pessoa sensível às questões

culturais em um instituto voltado, sobretudo, a preservação da natureza, agradeço ao destino

por isso.

Page 9: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

Precisa-se de um amigo

para se parar de chorar.

Para não se viver

debruçado no passado

em busca de memórias perdidas.

Precisa-se de um amigo

que diga que vale a pena viver,

não porque a vida é bela,

mas porque já se tem um amigo.

Vinícius de Morais

Agradeço profundamente a todos meus amigos da turma de 2006, em especial à Carolina,

Anaclara, Hilda, Cintia e ao Luan, pessoas que fizeram dessa caminhada algo muito mais

gostoso e divertido. Agradeço às duas primeiras pessoas que eu conheci no Departamento de

Geografia e que, assim como eu, estavam perdidas pelos corredores da FFLCH e se tornaram

importantes e constantes companhias nesses seis anos de São Paulo, Deborah e Renata. Um

agradecimento especial também a um sujeito que, como eu, se orgulha de suas origens, de

quem tenho lembranças desde a época da FUVEST, como poderia imaginar que aquele

concorrente na minha sala da ETEP em São José dos Campos viria a se tornar um dos meus

melhores amigos, obrigado Douglas.

Gostaria de agradecer à pessoas especiais que, apesar de não serem da minha turma, estiveram

presentes em importantes momentos desses últimos anos, Claudia, Tais, Janaina, Andressa,

Talita e Glayce.

Page 10: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

Se as coisas são inatingíveis... ora!

Não é motivo para não querê-las.

Que tristes os caminhos, se não fora

A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana

Agradeço:

Aos funcionários de Seção de Documentação do CONDEPHAAT, por me auxiliarem nas

pesquisas documentais.

Aos técnicos da Superintendência do IPHAN em São Paulo, em especial a arquiteta Liliane

Vieira, pelo trabalho desenvolvido em São Luiz e pela colaboração nessa pesquisa.

À Natália Moradei, Diretora de Obras da PMSLP, pelas conversas e informações que tanto

enriqueceram este trabalho.

Aos meus professores do curso de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, a quem devo a minha formação acadêmica, responsáveis pelos pensamentos que

irão nortear a minha atuação profissional daqui para frente.

À todos os meus professores do ensino fundamental e médio de São Luiz do Paraitinga,

profissionais que me ensinaram a valorizar os estudos e começaram a estimular o meu espírito

crítico, em especial à Profª Fátima Prado Santos, então Diretora da E. E. Monsenhor Ignácio

Gióia, por todo o incentivo.

Page 11: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

O sorriso esconde a lágrima

O coração apertado

Mas o luizense tem força

Traz a raça do passado

Acompanhando o tempo devagar

Mas não parado

Queremos agradecer

Um a um quem ajudou

Venham nos dar as mãos

Que muita coisa restou

A cultura está viva

Essa a água não levou

Tocar um dedinho de prosa

O jeito de ser caipira

Saborear comida caseira

Um feijão com cambuquira

A simpatia de um povo

Essa a enchente não tira

Isso que aconteceu

É a força da natureza

Tudo vai pegar seu rumo

Você pode ter certeza

Nossa cidade encantada

Ainda tem muita beleza.

Ditão Virgílio

Page 12: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as políticas públicas de

preservação

The Urban Ambient Heritage of São Luiz do Paraitinga and the public politics of

preservation

Resumo:

Este trabalho trata das políticas de preservação do patrimônio histórico no Brasil, com

enfoque no caso paulista. Temos a finalidade de abordar as contradições da gestão

patrimonial nas duas esferas (federal e estadual) e suas consequentes ações divergentes em

relação à produção do espaço. Através da análise da expansão urbana de São Luiz do

Paraitinga, destacamos as características do urbanismo ilustrado que fizeram desse conjunto

um exemplar paradigmático no sul e no sudeste do Brasil, o que justificou o seu

reconhecimento como Patrimônio Cultural Nacional pelo IPHAN em 2010, ressaltando que o

mesmo é acautelado pelo CONDEPHAAT desde 1982, sendo o seu maior conjunto urbano

tombado. Procuramos entender de que maneira o reconhecimento desse sítio como patrimônio

reflete um processo de evolução das políticas de cultura em São Paulo e no Brasil, e de que

maneiras esses órgãos se comportam em um momento de crise como o atual, quando esse

patrimônio é vítima do pior desastre em área protegida por seu valor cultural da história do

Brasil.

Palavras-chave: Patrimônio ambiental urbano, políticas públicas de preservação, gestão

patrimonial, São Luiz do Paraitinga.

Abstract:

This work deals with the policies of heritage historic preservation in Brazil, focusing on the

case of São Paulo. We have the purpose of addressing the contradictions of wealth

management in the two spheres (federal and state) and its consequent actions divergent in

relation to production of space. Through the analysis of the urban sprawl of Sao Luiz do

Paraitinga, we highlight the characteristics of the urbanism illustrated that made this a single

example in southern and southeastern Brazil, which justified its recognition as a National

Cultural Heritage by IPHAN in 2010, noting that the same is safeguarded by CONDEPHAAT

since 1982, its greater urban center tumbled. We seek to understand how the recognition of

this heritage reflects a process of evolution of political culture in São Paulo and Brazil, and

the ways in which these agencies government behave in a time of crisis like the present, when

this historic center is victim of worst disaster in an area protected for its cultural value of

Brazil's history.

Key-words: Urban ambient heritage, politics of preservation, heritage management, São Luiz

do Paraitinga.

Page 13: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Bens acautelados pelo Estado em São Luiz do Paraitinga....................................... 41

Mapa 2: Antigos Caminhos de São Paulo.............................................................................. 48

Mapa 3: Evolução urbana do núcleo bicentenário de São Luiz do Paraitinga – SP.............. 54

Mapa 4: Imóveis atingidos pela inundação de 2010.............................................................. 60

Mapa 5: Conjuntos Urbanos tombados pelo IPHAN por Unidade da Federação até 2009... 65

Mapa 6: Bens tombados pelo IPHAN por Unidade da Federação até 2009.......................... 67

Mapa 7: Evolução da representatividade do patrimônio entre 1967 e 2009 por Unidade da

Federação............................................................................................................................... 67

Mapa 8: Bens tombados pelo CONDEPHAAT em São Luiz do Paraitinga.......................... 79

Mapa 9: Perímetro tombado pelo IPHAN em São Luiz do Paraitinga.................................. 88

Mapa 10: Recuperação dos imóveis do Centro Histórico (2010/2011)................................. 101

Page 14: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Divisão Geral do Patrimônio Cultural.................................................................... 29

Figura 2: Plantas prévias........................................................................................................ 36

Figura 3: Imagem aérea do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, em 2009................. 37

Figura 4: Igreja do Rosário dos Homens Pretos e a Rua do Carvalho, em 2009................... 38

Figura 5: Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2009......................................................................... 39

Figura 6: Praça Dr. Oswaldo Cruz em, 2009......................................................................... 39

Figura 7: Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, em 1884....................................................... 50

Figura 8: Igreja do Rosário dos Homens Pretos, em 1906, ainda em feições coloniais........ 51

Figura 9: Capela das Mercês, em 1981.................................................................................. 51

Figura 10: Vista do centro histórico, em 1886 e em 2011..................................................... 55

Figura 11: Desabamento da Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa, em 2010......................... 59

Figura 12: Centro histórico, em 1978..................................................................................... 76

Figura 13: Centro histórico, em 2007..................................................................................... 76

Figura 14: Falso histórico na Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2011.......................................... 77

Figura 15: Nossa Senhora das Mercês, após restauração....................................................... 93

Figura 16: Nossa Senhora das Mercês, antes da restauração................................................. 93

Figura 17: Igreja Matriz, após as obras de salvamento.......................................................... 94

Figura 18: Igreja Matriz, antes das obras de salvamento....................................................... 94

Figura 19: Asilo de São Vicente, após reforma..................................................................... 96

Figura 20: Asilo de São Vicente, antes da reforma................................................................ 96

Figura 21: Capela das Mercês, depois da recomposição........................................................ 103

Figura 22: Altar da Capela das Mercês, depois da recomposição.......................................... 103

Figura 23: Capela das Mercês, com destaque para o púlpito remanescente.......................... 104

Figura 24: Capela das Mercês, com destaque para a taipa remanescente.............................. 104

Gráfico 1: Produção cafeeira nos municípios do Vale do Paraíba......................................... 44

Gráfico 2: Evolução da população de São Luiz do Paraitinga............................................... 52

Gráfico 3: Responsáveis pelos projetos arquitetônicos......................................................... 99

Gráfico 4: Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados............. 100

Quadro 1: Bens tombados em 2009 e em 1967...................................................................... 66

Quadro 2: Grau de Proteção dos imóveis tombados pelo CONDEPHAAT ......................... 78

Quadro 3: Obras do IPHAN na recuperação de São Luiz do Paraitinga................................ 97

Page 15: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AMI São Luiz Associação dos Amigos para a Reconstrução e Preservação do Patrimônio

Histórico e Cultural de São Luiz do Paraitinga

BNDS Banco Nacional para o Desenvolvimento Social

CNRC Centro Nacional de Referências Culturais

CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e

Turístico

FNPM Fundação Nacional Pró-Memória

FUPAM Fundação para a Pesquisa Ambiental

IES Instituto Elpídio dos Santos

INRC Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPT Instituto de Pesquisas Tecnológicas

MinC Ministério da Cultura

PMSLP Prefeitura Municipal de São Luiz do Paraitinga

PNPI Plano Nacional de Patrimônio Imaterial

PPSH Plano de Preservação de Sítios Históricos

SEC Secretaria de Estado da Cultura

SPHAN Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

TGR Termo Geral de Referências

UPPH Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico

Page 16: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 17

1. GEOGRAFIA E PATRIMÔNIO: QUESTÕES TEÓRICAS................................... 22

2. O URBANISMO PORTUGUÊS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

BRASILEIRO .................................................................................................................. 33

2.1. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio do café?............................................ 42

3. SÃO LUIZ DO PARAITINGA: UM ESPAÇO CONCEBIDO/APROPRIADO

COMO LUGAR DA VIDA.............................................................................................. 46

3.1. Da várzea do Rio Paraitinga à Imperial Cidade.............................................. 48

3.2. De Imperial Cidade a último reduto caipira paulista.................................... 56

3.3. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio cultural brasileiro em risco ............. 58

4. UMA GEOGRAFIA DESIGUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL

BRASILEIRO .................................................................................................................. 61

5. O CONDEPHAAT E A PRODUÇÃO DE UM ESPAÇO URBANO

ESQUIZOFRÊNICO ....................................................................................................... 70

6. O IPHAN E O SALVAMENTO DE UM PATRIMÔNIO CULTURAL

NACIONAL ...................................................................................................................... 82

6.1. O IPHAN como protagonista de um processo de recuperação ...................... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 107

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 111

ANEXOS ........................................................................................................................... 117

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INTRODUÇÃO

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“Sim, lê-se a cidade porque ela se escreve, porque ela foi escrita. Entretanto, não

basta examinar esse texto sem recorrer ao contexto. Escrever sobre essa linguagem,

elaborar a metalinguagem da cidade não é conhecer a cidade e o urbano. O contexto,

aquilo que está sobre o texto a ser decifrado (a vida quotidiana, as relações

imediatas, o inconsciente do „urbano‟, aquilo que não se diz mais e que se escreve

menos ainda, aquilo que se esconde nos espaços habitados – a vida sexual e familiar

– e que não se manifesta mais nos tetê-a-tête), aquilo que está acima do texto urbano

(as instituições, as ideologias), isso não pode ser esquecido na decifração. Um livro

não basta. Que seja lido e relido, muito bem. Que se chegue à sua leitura crítica,

melhor ainda.” (LEFEBVRE, 1969: 56)

Com a globalização as grandes cidades passaram a desempenhar um papel de

protagonismo nos processos sociais, econômicos e políticos de fato, além do cultural no

imaginário das pessoas. Acredita-se que são apenas esses aglomerados urbanos, sobretudo as

metrópoles, que nos possibilitam uma vida culturalmente intensa, pois são nesses espaços que

se tem acesso aos grandes espetáculos que circulam as grandes cidades do mundo todo, é

onde se pode contemplar edifícios projetados pelos mais renomados arquitetos internacionais,

porém, são esses bens culturais que nos representam? É essa cultura massificada que nos

confere identidade?

Essa identidade é construída por pequenas coisas do cotidiano, por expressões

culturais que, apesar de não serem hegemônicas, deixaram registradas na paisagem elementos

de diferentes temporalidades, e através de uma analise mais apurada sobre esses elementos

podemos entender como o espaço geográfico foi produzido.

Esses elementos também estão presentes nas grandes cidades, mas são nas pequenas

cidades de assentamento mais antigo e que permanecem mais ligadas às práticas tradicionais,

em especial os costumes religiosos, que notamos uma maior valorização dos elementos que na

atualidade denominamos de patrimônio cultural. Isso se deve, segundo Francisco (2008), não

apenas pela sobrevivência dos bairros rurais e sua interação com as cidades no interior, mas é

resultado da permanência de uma cultura citadina eminentemente caipira1, onde a identidade

tradicional é mais forte.

Esses elementos que nos conferem identidade são tutelados pelo Estado, ficando a

cargo deste garantir a sua salvaguarda através dos seus órgãos de preservação do patrimônio

cultural, na esfera federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN) e na do estado de São Paulo pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,

Artístico, Arqueológico e Turístico (CONDEPHAAT). É justamente a relação entre estes

1 Do mesmo modo que em Antonio Candido (1987), caipira aqui é entendido como o homem que surgir da miscigenação do

índio e do europeu, com estilo de vida simples e forte ligação com a terra. Nesse sentido, incluímos os caiçaras a esse grupo,

admitindo que a sua relação com o mar lhe traz especificidades.

Page 19: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

19

órgãos e a população que se configura como o principal tema do presente trabalho, o que

denominamos de relação entre a “ordem distante” e a “ordem próxima” respectivamente,

categorias de análise do espaço do filósofo Henri Lefebvre (1994).

Porém, esses órgãos em muitos momentos buscaram forjar uma identidade que

representassem toda a população, seja uma identidade nacional, no caso do IPHAN, ou

paulista, no caso do CONDEPHAAT. Contudo, segundo Carlos (1996), a identidade só se

estabelece com o lugar, são nesses espaços que a vida cotidiana acontece, na escala do espaço

vivido como aquela onde se dão a reprodução da vida e as relações sociais que fundam um

vínculo entre os lugares e os objetos materiais.

Dentre esses objetos materiais temos as edificações que foram o principal foco das

políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. A busca em forjar uma suposta

identidade nacional fez com que se buscassem nos estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de

Janeiros os bens que identificavam a cultura nacional, em detrimento de outros estados como

São Paulo, que possui em seu território cidades antigas, fundadas no auge do açúcar e do café,

ou ainda mais antigas que se remetem ao tropeirismo e que guardam testemunhos tão

significativos quanto os estados privilegiados. Essa distribuição desigual de bens tombados

por unidade da federação também é um dos temas abordados neste trabalho, denominamos

aqui de geografia desigual do patrimônio nacional.

Dentre esses municípios antigos fundados durante o tropeirismo destaca-se São Luiz

do Paraitinga. Para Marins (apud Bocchini, 2010), esse município somente encontra paralelos

em localidades como Pirenópolis (GO) ou Olinda (PE) no que diz respeito à clara

convergência entre o patrimônio material e imaterial, configurando-se este como uma

verdadeira relíquia paulista.

Além disso, o autor ainda destaca que a maioria das cidades paulistas antigas possue

grandes sobrados neoclássicos, porém, nenhuma no Estado com um conjunto do século XIX

tão significativo como em São Luiz do Paraitinga, o que torna esse lugar privilegiado para o

estudo patrimonial em São Paulo. Esses fatos fizeram com que esse centro histórico fosse

escolhido como estudo de caso da presente pesquisa.

Sendo assim, este trabalho pretende abordar as políticas de preservação do patrimônio

cultural no Brasil, com enfoque no caso paulista. Temos a finalidade de abordar as

contradições da gestão patrimonial nas duas esferas, federal e estadual, e suas consequentes

ações divergentes em relação à produção do espaço através da análise da expansão urbana de

São Luiz do Paraitinga, reconhecida como patrimônio paulista em 1982 pelo CONDEPHAAT

e como patrimônio nacional pelo IPHAN em 2010, configurando-se como o maior conjunto

Page 20: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

20

urbano tombado em São Paulo. Procuramos entender de que maneira o reconhecimento desse

centro histórico como patrimônio reflete um processo de evolução das políticas de cultura em

São Paulo e no Brasil, e de que maneira esses órgãos se comportam em um momento de crise

como o atual, quando esse patrimônio é vítima do pior desastre em área protegida pelo seu

valor cultural da história do Brasil, destacando sempre o papel da população local como um

dos protagonistas desse processo.

Para que esse objetivo seja contemplado, a presente pesquisa foi estruturada em três

grandes eixos: o primeiro conta com o capítulo 1, intitulado “Geografia e Patrimônio:

questões teóricas”, onde pretendemos conceituar espaço geográfico, cidade, centro histórico e

lugar num primeiro momento, para depois nos debruçarmos sobre as questões do patrimônio,

em especial ao patrimônio ambiental urbano do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses. Em

seguida, no segundo eixo temos os capítulos “O urbanismo português como patrimônio

cultual brasileiro” e “São Luiz do Paraitinga, um espaço concebido/apropriado como lugar da

vida”, onde analisaremos as características do patrimônio ambiental urbano de São Luiz do

Paraitinga, “um legado único, em termos de processo de povoamento „pombalino‟” (IPHAN,

2011: 34), enfocando que este, mesmo caracterizando-se como um espaço concebido, é hoje

um espaço vivido por excelência. Para isso, buscamos analisar as características do urbanismo

português, normativas essas impostas a esse espaço já antes de sua fundação, e de que

maneira esse espaço ordenado é apropriado como suporte de memória da população local.

Para tal, foi necessário buscar na história, desde o período colonial, quando se tinha uma

política de ocupação da capitania de São Paulo, as fases econômicas que possibilitaram a

consolidação desse conjunto urbano, seja o apogeu, seja a decadência econômica. Foi

necessário também um olhar especial à inundação de 2010 que impôs de maneira drástica a

esse espaço e a essa comunidade novas dinâmicas. Por fim, no último eixo temos os capítulos

“Uma Geografia desigual do patrimônio cultural brasileiro”, “O CONDEPHAAT e a

produção de um espaço urbano esquizofrênico” e “O IPHAN e o salvamento de um

patrimônio cultural brasileiro”, onde destacaremos o processo de evolução das políticas de

preservação no Brasil, a distribuição desigual de bens tombados entre os estados da federação

e a atuação dos órgãos de patrimônio sobre o espaço urbano acautelado em São Luiz do

Paraitinga, atuação que muitas vezes ocorre de maneira contraditória, o que fica registrado na

paisagem urbana em questão. Daremos também, nesses capítulos, especial ênfase aos desafios

impostos a esses órgãos na recuperação desse patrimônio nacional após a grande inundação

em 2010, que resultou no arruinamento total de alguns dos seus principais sustentáculos

materiais de identidade coletiva local. Isso exigiu que um novo protagonista assumisse a

Page 21: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

21

gestão desse patrimônio, o IPHAN, que entendeu ser a recuperação desses bens elemento de

coesão dessa população, passando a compartilhar com esse as responsabilidades da

reconstituição desse patrimônio, garantindo assim a sua salvaguarda.

Na atualidade a discussão desse tema torna-se relevante socialmente, uma vez que as

políticas de proteção do patrimônio no Brasil estão cada vez mais ligadas as práticas sociais e

as memórias coletivas. Para Scifoni (2006), a identificação dos valores do bem a ser

preservado leva em conta as relações dos grupos com o lugar, as práticas socioespaciais. Essa

autora salienta ainda que é na escala do local que os conflitos da esfera do patrimônio se

afloram, na medida que eles expõem a luta entre a busca da apropriação social do espaço

geográfico, a intervenção ordenadora do Estado e os interesses do capital, configurando-se

assim o universo da cultura como um campo de lutas, conflitos e tensões políticas.

No contexto da ciência geográfica questões referentes ao patrimônio se justificam,

pois, segundo Milton Santos (1997), os testemunhos do passado, resultantes da acumulação

desigual dos tempos ficam marcados na paisagem, revelando um dinamismo evolutivo através

dos tempos (diacrônico), resultante do processo espacial. Os objetos são expressos pelas

formas, embora fixas, se reportam aos diferentes extratos sociais. A forma é o aspecto visível,

refere-se a uma maneira ordenada de organização do presente e, mesmo tentando ignorar seu

passado, este continua descrito em suas formas.

Page 22: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

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1. GEOGRAFIA E PATRIMÔNIO

QUESTÕES TEÓRICAS

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A materialização do processo histórico de produção do espaço geográfico é dada

pela concretização das relações sociais produtora dos lugares, tornando-se possível

de ser visto, percebido, sentido e vivido (LEFEBVRE, 1974:37).

Como essa pesquisa pretende tratar das políticas de preservação do patrimônio cultural

no Brasil, com enfoque no caso paulista, através do estudo de caso de São Luiz do Paraitinga,

ou seja, políticas e normativas que atuam sobre o espaço geográfico, é justo que iniciemos

com este capítulo que pretende explicitar as bases teóricas que sustentam essa pesquisa por

esse conceito.

Qualquer experiência social não se faz fora do espaço, uma vez que o homem, ao

ocupar e agir sobre a natureza, produz o espaço onde deixa registrado a sua história. Esse

espaço socialmente construído, no decorrer do tempo, se constitui no espaço geográfico.

Porém, espaço geográfico não é algo assim tão fácil de conceitualizar devido às

discordâncias teóricas a esse respeito. Dessa maneira, já iniciamos este capítulo com um

grande desafio: escolher uma linha teórica metodológica de espaço geográfico que norteará

toda essa pesquisa.

Em Carlos (1996), o espaço geográfico é social, produto do processo de trabalho geral

da sociedade em cada momento histórico. Assim, as parcelas do espaço socialmente e

historicamente produzidas se apresentam enquanto trabalho materializado e acumulado a

partir de sucessivas gerações e, nesse caso específico, o espaço como um todo tem valor e se

reproduz a partir de seus usos sempre diferenciados, condizentes com as singularidades de

cada lugar. A autora ressalta que o processo de produzir/reproduzir é também um ato de

apropriação, nesse contexto o sentido do espaço produzido é aquele marcado por modos de

produção e, consequentemente, de apropriação.

Também em Lefebvre (1976), o espaço é empreendido como produção da sociedade,

fruto da reprodução das relações em sua totalidade. Para esse autor, o espaço é socialmente

produzido, apropriado e transformado.

Dentro dessa análise de espaço social, Lefebvre (1974) propõe uma dupla perspectiva

de apreciação do espaço: o espaço concebido e o espaço vivido. O espaço concebido

corresponde aos discursos e as práticas de como conceber e representar o espaço, ou seja, toda

a normativa que interfere no processo de produção do espaço urbano. Para Lefebvre (1974),

são os fatores ideológicos que orientam as ações humanas, estão ligados aos modos de

produção, à ordem para lá dos conhecimentos, dos signos, dos códigos.

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24

O espaço concebido em São Luiz do Paraitinga corresponde às normativas rígidas

estabelecidas pelo urbanismo ilustrado quando da sua fundação, assim como às impostas

pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural na atualidade.

O espaço vivido corresponde às imagens, sensações, opiniões, aos símbolos e signos

criados com a vivência do lugar. Para Lefebvre (1974), o espaço vivido apresenta os símbolos

complexos, ligando-se ao lado clandestino e subterrâneo da vida, mas também a arte, que se

corrompe eventualmente e é definida não como um código espacial, mas como um código dos

espaços de representação.

O espaço vivido possui importante relevância neste estudo de caso, pois nos permite

analisar uma das principais peculiaridades do espaço em São Luiz do Paraitinga: um espaço

intensamente vivido pela população local, lugar das mais diversas manifestações culturais,

espaço de ver e ser visto.

O espaço é constantemente concebido e vivido pelos homens em virtude dos seus

sistemas de pensamento e de suas necessidades. Dessa maneira, essas categorias se mostram

extremamente relevantes para se analisar o espaço geográfico, um contínuo resultado das

relações socioespaciais, relações estas que são econômicas, políticas e simbólico-culturais.

Como ressalta Lefebvre (1991), a força motriz destas relações são sempre as ações humanas e

suas práticas espaciais.

Contudo, como nossa análise não se dará sobre todo o espaço geográfico, nem sobre

todo o município de São Luiz do Paraitinga, e sim ao seu espaço urbano, não desconsiderando

as relações desse lugar com o global, cabe aqui conceituar cidade.

Esta surgiu antes do capitalismo, para Lefebvre (1991) houve a cidade oriental ligada

ao modo de vida asiática, a cidade arcaica ligada à posse de escravos e a cidade medieval

baseada nas relações feudais. Porém, esse autor ressalta que foi na Idade Média, na transição

do feudalismo para o capitalismo na Europa, que o processo de integração do mercado e da

mercadoria é efetivado à cidade.

Para esse autor, a cidade não é apenas um conjunto denso de edificações onde as

pessoas habitam e trabalham, é muito mais. Trata-se de um assentamento humano, onde o

modo de vida urbano que corresponde ao conjunto de práticas espaciais que promovem o

predomínio da cidade sobre o campo, onde predomina o consumo e a circulação de fluxo de

pessoas, mercadorias, capital e informações, configurando a cidade como o local do consumo.

Para Lefebvre (1991), enquanto uma construção humana, a cidade é produto social, uma

materialização das práticas sociais que se acumulam no decorrer da história a partir da relação

sociedade natureza. A cidade configura-se também como o local da gestão do território, como

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25

sede do poder econômico, político e religioso, onde a cultura desempenha o papel crucial na

produção do espaço urbano.

Lefebvre (1991), ao discutir os fenômenos do urbano, lança mão de uma dialética que

é muito cara a esta pesquisa: a relação entre a “ordem próxima” e a “ordem distante”. Aqui, o

autor irá afirmar que a cidade passará a mudar quando a sociedade mudar, ressaltando que não

se trata de uma mudança apenas em escala global, mas ressaltando a escala do local, onde a

ordem próxima corresponderia aos habitantes dessa cidade, os responsáveis por constituí-la

em espaço vivido, e pela ordem distante representada pelas instituições, como o Estado e a

Igreja, ou seja, os responsáveis pelo espaço concebido. O autor destaca que esta ordem

distante se institui num nível superior, dotada de poderes, e se impõe ao nível próximo, ela

impõe sua lógica, sua racionalidade sobre as práticas sociais no espaço vivido.

Para esse autor a cidade tem uma história, ou melhor, o grupo que compõe essa cidade

tem uma história. Os habitantes agem sobre a cidade com o fim de promover e generalizar o

valor de troca, porém, em muitos casos a cidade é, para seus habitantes, muito mais que valor

de troca, é valor de uso.

Contudo, como essa pesquisa não pretende debruçar-se sobre toda a cidade, mas sim

sobre uma parcela desta, o denominado centro histórico, este precisa ser conceituado. Antes

disto, porém, é necessário entender como esta parte da cidade é eleita pelo Estado, sendo que

essa eleição se dá por meio de um instrumento jurídico denominado tombamento.

Apesar de não ser o único instrumento de preservação e acautelamento pelos órgãos de

preservação, tanto no âmbito federal, quanto no estadual e municipal, o tombamento é o mais

utilizado, constituindo-se na prática mais significativa da política de preservação no Brasil.

Segundo Fonseca (1997), possibilita ao Estado delimitar um universo simbólico específico,

além de intervir no estatuto da propriedade e no uso do espaço físico. Essa autora salienta

ainda que essa prática causa interferências na vida social, mesmo o tombamento não se

constituindo na desapropriação do imóvel, implica na restrição do seu uso.

A palavra tombar significa inventariar, arrolar ou inscrever um bem no “Livro de

Tombo”, recaindo sobre o Estado a tutela dos bens considerados de interesse público, “quer

por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor

arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (Decreto-lei n° 25, de 30 nov. 1937).

Fonseca (1997) salienta que sobre esse bem tombado incidem duas modalidades de

propriedade: a propriedade do bem, alienável, determinado pelo seu valor econômico,

portanto da pessoa jurídica, e a propriedade dos valores culturais nela identificados que,

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através do tombamento, passa a ser alheio ao proprietário do bem, passa a ser de propriedade

pública, ou seja, da sociedade sob tutela do Estado.

Entendido qual o instrumento jurídico que elege parte da cidade como de relevância

cultural, o chamado centro histórico, vamos agora defini-lo.

Para Fonseca (1997), a concepção de centro histórico, como é entendido pelos órgãos

de preservação, traz como principal ideia a de conjunto, ou seja, da relação entre o meio

geográfico, natural, e os grupos humanos que ocupam aquele espaço e nele deixaram

registrados sua história. A autora salienta ainda que, nessa perspectiva, a história das cidades

não se resume mais a história de sua arquitetura, mas abrange todas as adaptações feitas pelo

trabalho humano sobre o espaço.

Talvez aqui também seja interessante discutir no que se constitui o centro da cidade.

Para Castells (2000), o centro urbano designa-se tanto como um local geográfico quanto um

conteúdo social, ou seja, assim como a cidade, são produtos que exprimem as forças sociais

em ação e a estrutura da sua dinâmica interna. Para esse autor, o centro da cidade pode ser

dividido em três categorias: o centro simbólico e integrador, onde temos o resultado da

organização da sociedade em relação aos valores expressos no espaço, permitindo a

coordenação das atividades urbanas e a identificação simbólicas dessas atividades; o centro de

trocas, que engloba atividades econômicas, políticas e administrativas; e o centro lúdico, que

valoriza o consumo, em especial os vinculados à atividades de lazer. O autor enfatiza que

nenhuma dessas três categorias existe por si, mas sim enquanto resultado de um processo

social de organização do espaço social.

É importante destacar que o centro é aquilo que se encontra no “meio”, mas não

necessariamente está no centro geográfico ou ocupa o sítio histórico onde a cidade se

originou. Em suma, a distinção espacial e funcional entre os dois tipos de centralidade, a

urbana e a histórica, varia conforme se alteram as práticas espaciais e a funcionalidade da

cidade. Para Spósito (1991), o centro é o oposto de convergência/divergência, o local para

onde todos se deslocam para alguma atividade.

Em São Luiz do Paraitinga, o que se os órgãos de preservação denominam hoje como

centro histórico corresponde ao que antigamente era a própria cidade, o espaço concebido

rigorosamente pelas normativas do urbanismo ilustrado e que hoje se constitui também como

espaço vivido, tanto por poder ser definido como centro simbólico, de trocas e lúdico, a partir

das categorias de Castells (2000), como por se constituir em um lugar das mais diversas

manifestações culturais imateriais e por ser o lugar da vida, apropriado pela população local, o

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27

que se constitui, para Fonseca (1997), como o conjunto, ou seja, da relação entre o meio

geográfico, natural, e os grupos humanos.

Aqui cabe ressaltar que, ao definirmos o centro histórico como objeto de estudo, não

estamos delimitando os espaços não históricos da cidade, pois entendemos que toda a cidade é

histórica por si só. Corroboramos com a ideia de que qualquer tentativa de se criar um recorte

e denominá-lo de centro histórico é arbitrária, pois implica em uma escolha com critérios

vigentes em um determinado momento da história. O juízo para delimitar a área de estudo é a

de definir o espaço geográfico que está sob jurisdição dos órgãos de patrimônio, considerado

por estes como o que concentra edifícios relevantes culturalmente na cidade.

Por fim, contemplados os conceitos de espaço geográfico, cidade e centro histórico,

ressaltando o papel premente da sociedade em seu engendramento, mostra-se mais que

oportuno discutir o conceito de lugar, conceito este que expressa de maneira clara e objetiva a

posição adotada para se interpretar o empírico nesta pesquisa. Para Carlos (1996), é no lugar

que se desenvolve a vida em todas as suas dimensões, a prática do cotidiano, o espaço vivido

e a dialética da “ordem distante” e a “ordem próxima” de Lefebvre (1991).

É o conceito do lugar que permite analisar o espaço como resultante de uma história

particular que se realiza, segundo Carlos (1996), em função da cultura/tradição/língua/hábitos

que lhes são próprios. Na cidade produz-se e reproduz-se o plano da vida e do indivíduo, e a

relação que este mantém com os espaços habitados se exprime diariamente como se usa,

sente, pensa, apropria e vive o lugar através do corpo.

Para Carlos (1996), o lugar é a porção do espaço apropriado para a vida através dos

passos de seus moradores pelas ruas e praças e, nesse sentido, ressalta a autora, não seria

nunca na metrópole que essa relação se daria, mas sim nas pequenas vilas ou cidades

vividas/conhecidas/reconhecidas em todos os cantos.

Sendo assim, podemos concluir que a produção do espaço se dá no plano do cotidiano

e aparece nas formas de apropriação de um determinado lugar, num momento específico,

revelando-se pelo uso como produto da divisão social e técnica do trabalho que produz uma

morfologia espacial fragmentada e hierarquizada (CARLOS, 1996).

O lugar nos traz ainda questões como identidade, é no lugar que se guarda o

significado e as dimensões do movimento da história, passível de ser apreendida pela

memória decorrente da acumulação dos tempos, marcados, remarcados e nomeados. Natureza

transformada pela pratica social, acumulando cultura que se insere em um espaço e tempo

(CARLOS, 1996).

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Porém, ao discorrer sobre o lugar, não podemos ignorar a relação deste com o

mundial. Carlos (1996) salienta que o lugar se produz na articulação contraditória entre o

mundial que se anuncia e as especificidades do lugar, então este se apresenta como o ponto de

articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta.

É nessa articulação que a ordem próxima não deveria se anular com a enunciação do mundial,

pois, nesse caso, o lugar abre perspectiva para pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, a

apropriação do espaço.

Sendo assim, entendendo o espaço vivido de São Luiz do Paraitinga enquanto lugar

com o qual a população local, a ordem próxima, estabelece identidade e, ao mesmo tempo,

este é reconhecido como centro histórico pelos órgãos de preservação, a ordem distante,

podemos concluir que a identidade se estabelece com os bens reconhecidos pelo Estado como

patrimônio cultural. Nesse sentido, mostra-se necessário discorrer a respeito dos conceitos

referentes a esta temática.

Para Choay (2000), o patrimônio tem sua origem ligada às estruturas familiares,

econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo,

requalificada por diversos adjetivos como genético, natural ou histórico que fizeram dele um

conceito "nômade". Essa autora entende o patrimônio histórico como expressão de um bem

destinado ao usufruto de uma comunidade, constituído pela acumulação contínua de uma

diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum.

A Constituição Federal do Brasil de 1988 define o patrimônio cultural brasileiro nos

seguintes termos:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referencias à identidade, à ação, à

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às

manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico;

(Brasil, 1988: art. 216)

Portanto, o conceito de patrimônio cultural na atualidade corresponde ao conjunto de

bens culturais de valor reconhecido por um determinado grupo. Os bens culturais são todos os

artefatos, construções, obras de arte produzida artesanal ou industrialmente pela humanidade,

Page 29: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

29

ou que mesmo não sendo produzida por esta, estejam ligados às práticas sociais e à memória

coletiva como a natureza.

Figura 1: Divisão Geral do Patrimônio Cultural. Adaptação: Danilo Pereira (2012)

O patrimônio pode ser classificado como um bem tangível, bem intangível ou bem

natural, o primeiro correspondendo ao patrimônio material, podendo ser móveis, como

objetos arqueológicos, artes plásticas, artesanato, mobiliário, ferramentas e documentos, ou

imóveis, como arquitetura civil, militar, religiosa ou funerária, sítios históricos. Já os bens

intangíveis correspondem ao patrimônio imaterial, mesmo estes também tendo uma

sustentação material, tem seu valor reconhecido pela tradição, como o conhecimento técnico,

o saber fazer envolvido nas comidas típicas, danças populares, costumes, mitos, lendas, entre

outros. Para muitos pode soar estranho a inclusão do termo “natureza” à categoria de

patrimônio cultural, porém, o patrimônio natural surge de uma derivação do patrimônio

cultural e, para Scifoni (2006), o patrimônio natural esta ligado às práticas sociais e a

memória coletiva, um patrimônio que faz parte da vida humana e não se opõe a ela,

legitimando-se a partir da discussão de valor afetivo e social determinado pelos grupos e não

no discurso técnico advindo da ciência ecológica. Nessa categoria se incluem os parques,

praças e sítios arqueológicos.

Em São Luiz do Paraitinga, o patrimônio cultural preservado abrange todas essas

categorias, ou seja, tanto os bens tangíveis móveis e imóveis, quanto os bens intangíveis e

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30

naturais. Apesar de toda essa riqueza, o presente trabalho pretende debruçar-se sobre a

questão do patrimônio ambiental urbano.

Adotaremos o conceito de patrimônio ambiental urbano de Ulpiano Bezerra de

Meneses (1979), que o entende como “um sistema de objetos socialmente apropriados,

percebidos como capazes de alimentar representações do ambiente urbano”. Portanto, são

materialidades, socialmente produzidas, que não possuem significação por si, mas na medida

em que se integram a certa formação espacial e se baseiam em representações urbanas. Para

esse autor o significado de patrimônio cultural não se resume a apenas uma listagem de

objetos eleitos por técnicos, mas se define como contexto social.

Em São Luiz do Paraitinga esta noção se refere aos bens culturais tangíveis e imóveis

tombados nesse centro histórico, que são as edificações, o traçado urbano, o rio e as

montanhas da sua área envoltória. Entretanto, reconhecemos ser impossível fazer essa análise

sem, em alguns momentos, resgatar questões da cultura caipira, visto que consideramos esse

espaço geográfico também como espaço vivido (LEFEBVRE, 1974), e essa cultura caipira é a

responsável pela constituição desse patrimônio.

Podemos considerar que a análise do patrimônio cultural torna se muito mais

complexa quando tratamos de um conjunto urbano em comparação à um bem isolado.

Conforme Meneses (1996), é bom ter presente que a cidade deve ser entendida segundo três

dimensões solidariamente imbricadas, cada uma dependendo profundamente das demais, em

relação simbiótica: a cidade é artefato, é campo de forças e é imagem. Enquanto artefato, a

cidade é “coisa complexa”, produto da prática social e historicamente produzida. Os artefatos

são, invariavelmente, produto e vetor de “campo de forças nas suas configurações dominantes

e nas práticas que ela pressupõe”. Assim, podemos considerar que os “artefatos”

correspondem, através das “imagens”, aos elementos característicos da época da sua criação,

porém, o autor salienta que a “imagem” não pode ser tomada como uma “mera carcaça”, mas

como produto social de uma época.

As imagens presentes hoje no conjunto histórico tombado em São Luiz do Paraitinga

foram sendo construídas ao longo do tempo e incidem diretamente sobre a identidade cultural

e espacial do lugar, constituindo-se como um suporte de memória:

“A memória é seletiva e também pode ser induzida e forjada. O culto ao passado

social formalizado é instituído como modelo de valores que representam o oposto da história, pois tentam abolir ou exorcizar o tempo, que tudo muda. As tradições não

se constituem por obra da natureza, mas por ação humana, e como tais podem ser

manipuladas.” (MENESES, 1984: 20)

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Todas as ações humanas ocorrem no espaço geográfico, historicamente determinado

pela produção social, onde cada transformação ocorrida ao longo do tempo implica em

concepções diferenciadas, vividas de maneiras diversas. Nesse sentido, o patrimônio

ambiental urbano é apenas parte desse espaço geográfico, podendo ser considerado como a

expressão concreta de cada momento histórico do desenvolvimento de uma sociedade. A

materialidade de um tempo que passa por constantes reelaborações até a atualidade, não

podendo ser aprisionada em uma cápsula atemporal, ela é o resultado da dinâmica entre

espaço, história, sociedade e modo de produção.

Para Meneses (1979), o patrimônio ambiental urbano é um produto da cultura que

somente pode ser entendido no seu contexto de produção, isto é, na medida em que são

produtos de cultura, que vem a ser aqueles procedimentos por intermédio dos quais o homem

organiza a sua prática social, nisso incluída a manipulação de uma linguagem simbólica.

Consideramos aqui o patrimônio ambiental urbano como parte integrante do espaço

geográfico, é o passado em constante transformação no presente, constituído pelo espaço

concebido, além da dimensão social que a compõe, o espaço vivido.

A discussão de patrimônio leva hoje à discussão de valor e, nesse sentido, Meneses

(1999) aborda o valor cultural segundo quatro variantes: valor cognitivo, como o associado ao

conhecimento; o valor formal, que permite a construção do universo do sentido; o valor

afetivo, que corresponde as suas cargas simbólicas; e, por fim, o seu valor pragmático, que

corresponde ao seu valor de uso.

As discussões acerca do valor de uso nos levam também às questões de valor de troca

discutidas por Karl Marx, David Harvey e Henri Lefebvre. Pra Marx (2008), o valor de uso

serve diretamente a sobrevivência, visto que este se corresponde ao processo de consumo do

mesmo. Para ele, a criação do valor de troca reside no processo social de aplicação de

trabalho socialmente necessário aos objetos da natureza para criar mercadorias apropriadas

para o consumo do homem.

Para Harvey (1980), essa relação dialética entre o valor de uso e o valor de troca

redefine constantemente a dinâmica da utilização do solo, sendo este, portanto, fundamental

para se entender a construção de novas abordagens espaciais e econômicas acerca desta

problemática. Nesse sentido, Lefebvre (1991) utiliza a expressão valor de uso e valor de troca

para abordar a questão do uso do solo no urbano. Para esse autor, “cidade e realidade urbana

dependem do valor de uso”. A cidade, como produto desse processo, torna-se mercadoria. O

uso do solo urbano não se dará sem conflitos, na medida em que os interesses do capital e da

sociedade são contraditórios.

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Sendo assim, o patrimônio é o resultado das ações que foram realizadas no passado e

que estão marcadas nas formas espaciais do presente, estudar o patrimônio é entender o hoje,

é refletir sobre o uso, a apropriação social desse espaço geográfico.

O patrimônio ambiental urbano somente terá seu conteúdo revelado a partir das suas

funções sociais atribuídas pelo desenvolvimento do processo histórico, dos modos de

produção e pela sua representação simbólica. Dessa maneira, para entender o que constitui o

patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga em todas as suas dimensões,

recorremos à análise do processo de produção do espaço geográfico, à dupla conceitual de

Lefebvre (1971), o concebido e o vivido, para analisarmos como ocorreu a estruturação

espacial luizense, averiguando os fatores e as normativas que conferiram mudanças ou

reforçaram as especificidades desse espaço, que hoje se sobressai como espaço vivido, espaço

da vida, de ver e ser visto.

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2. O URBANISMO PORTUGUÊS COMO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO

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É possível visualizar na cartografia atual de várias cidades brasileiras, de Norte a

Sul, a quadrícula caracterizando a área antiga, central, expressão do plano prévio

com que foram implantadas no século XVIII, seja, por exemplo, em Itapetininga,

Atibaia e Piracicaba, em São Paulo, seja em Mazagão – AP ou Bragança – PA. Mas

é raro, no país, que o plano “iluminista”, “racional”, setecentista, seja dominante no

conjunto urbano atual, como em São Luiz do Paraitinga. Nesse sentido, São Luiz do

Paraitinga é um legado único, em termos de processo de povoamento “pombalino”

como um todo. (IPHAN, 2011: 34)

Este capítulo tem como objetivo discutir as relações entre o espaço concebido e o

vivido (Lefebvre, 1974), ou seja, as normativas impostas a São Luiz do Paraitinga e as formas

de apropriação dessas pela população local, levando-se em conta a ordem distante e a ordem

próxima (Lefebvre, 1991) na organização do espaço geográfico dessa cidade, ou seja, o papel

do Estado na concepção desse espaço e como a população de apropria deste como lugar

(Carlos, 1996) da vida.

Cidade iluminista ou urbanismo ilustrado são maneiras de se referir aos núcleos

urbanos fundados em todo o Brasil e em Portugal durante o governo do Marques de Pombal,

núcleos submetidos a um plano previamente desenhado. Nesse sentido, uma fundação só pode

ser vinculada ao urbanismo ilustrado se estiver situada no contexto do urbanismo pombalino,

assim como ao tradicional urbanismo português. O conceito de “cidade iluminista” é utilizado

desde 1982 pelo historiador português José Eduardo Horta Correia em relação à Vila Real de

Santo Antônio, planejada e construída por ordem do Marques de Pombal, contemporânea à

São Luiz do Paraitinga (IPHAN, 2010).

Desde a Grécia que a ideia física de cidade comporta dois aspectos de que, até hoje,

somos herdeiros: cidade como o lugar da ordem social e política, é o espaço vivido, além de

se constituir como lugar da representação e do exercício do poder. Já o outro aspecto se

reporta a cidade como polo hierárquico da organização do território, centro a partir de onde se

estabelece o controle do território.

As cidades de origem portuguesa têm características morfológicas específicas, para

Teixeira (1999), essas características a diferenciam das cidades de outras culturas. Dentre

esses aspectos, destaca-se o seu desenvolvimento através de sucessivos processos de

adaptação e de síntese, ressaltando a escolha da localidade, das formas, das lógicas de

localização dos principais edifícios, no traçado das vias estruturantes, na localização das

praças e o seu papel na organização do espaço urbano.

Portugal, ao entrar no Século das Luzes, se beneficia de uma vasta tradição

urbanística, o que ficou explícito durante a profunda reforma urbana da cidade de Lisboa,

após o terremoto de 1755, que previa a articulação entre duas praças remanescentes e a praça

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que passaria a abrigar o Paço e o Rossio, além de atribuir à arquitetura uma função de

normatização urbana (CORREIA, 1985).

A arquitetura e o urbanismo pombalino foram marcados por valores como a

uniformidade, a ordem, a sobriedade e padronização, totalmente inserida numa conjuntura

ideológica filiada ao iluminismo reformador, que procurava o fortalecimento do poder do rei

através da intervenção em vários setores da vida, entre eles da vida urbana (CORREIA, 1985).

Vila Real de Santo Antonio é um expoente representante de espaço concebido pelo

urbanismo ilustrado em Portugal. A vila surge às margens do Rio Guadiana, que marca a

fronteira com a Espanha. Correia (1985) salienta que esta foi fundada sobre um rígido plano

geométrico que utiliza os mesmos parâmetros formais na totalidade da vila, onde os

conhecimentos gerados na experiência de Lisboa são aplicados de forma racional, com o

objetivo de reafirmar o poder do Estado português face ao Estado espanhol. Por isso, este se

constitui um exemplo de cidade perfeita do Iluminismo, pois a sua construção é fundamentada

pela necessidade de reafirmação do poder real que se pretende “iluminista” e “perfeito”.

Nesse contexto, no que se refere ao Brasil, tivemos a fundação de núcleos organizados

que passavam a consolidar a presença do Estado e o povoamento de regiões no norte e o

nordeste, em particular no Grão-Pará e no Maranhão entre 1751 e 1759, quando os

administradores coloniais passam a governar sob um prisma da razão política, impondo sua

autoridade em nome de um “bem-estar da sociedade” a ser alcançado pela instrução e

civilização (IPHAN, 2010).

Os responsáveis pela administração das vastas províncias da América portuguesa,

onde se instalavam grandes tensões com a Espanha relativas ao estabelecimento das

fronteiras, fez com que, no sul do Brasil, se elegesse São Paulo como a única capitania com

capacidade efetiva de apoiar as ações da Coroa portuguesa. Nesse sentido, o Governador e

Capitão-General da Capitania de São Paulo, D. Luís Antônio Mourão, o Morgado de Mateus,

passa a criar novos núcleos de povoação para consolidar e incrementar a trama de caminhos

que garantia a circulação mercantil e de tropas militares, além de possibilitar a ocupação do

território.

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Em São Paulo, diferentemente do ocorrido em outras partes do Brasil, as fundações

surgiram articuladas a um plano territorial cujas orientações possuíam um claro víeis

fisiocrático, visando o controle da população e o domínio do território (IPHAN, 2010).

São Luiz do Paraitinga, criado nesse contexto histórico, acabou florescendo. A ligação

da região entre São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o litoral, concentrado no porto de

Paraty o principal destino nas manufaturas, portanto sob jurisdição do Rio de Janeiro, foi aos

poucos derivando para o porto de Ubatuba, tornando a passagem por São Luiz praticamente

obrigatória.

A construção de núcleos urbanos “regulares” resulta de uma estratégia política e

territorial de afirmação do poder do Estado, ou seja, uma imposição da ordem distante sobre a

ordem próxima (Lefebvre, 1991). O local escolhido, uma várzea do Rio Paraitinga entre os

morros da Serra do Mar (Anexo I), reunia as condições ideais para a fundação do

povoamento, porém, com o crescimento desse aglomerado, a várzea se torna pequena e o

Figura 2: Plantas prévias: 1 - Bragança no Pará (1753); 2 - Porto Covo em Portugal (1794); 3 - São Luiz do Paraitinga em São Paulo (1759). Fonte: IPHAN (2010), organizado por Danilo Pereira.

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traçado urbano regular é obrigado a se adaptar ao relevo acidentado do entorno da várzea do

rio.

Os elementos estruturantes da malha urbana de São Luiz do Paraitinga tiveram o Rio

Paraitinga como principal eixo de organização e remontam da fundação do núcleo, 1773.

Estes compõem um plano traçado em forma de tabuleiro, com regularidade geométrica,

porém, é importante ressaltar que essa concepção de espaço não se restringiu apenas aos

planos, mas também aos imóveis, que deveriam seguir os princípios da uniformidade e

regularidade para se obter a harmonia do conjunto. Como ressalta o IPHAN (2010), se

buscava a “formosura” da vila.

Nessa conjuntura de normatização urbana, destaca-se a Praça da Matriz como grande

eixo viário principal, um retângulo que se estende desde as margens do rio até o sopé do

morro, dando origem a outras quadras paralelas a ela (Figura 3). É importante ressaltar que

essas quadras foram demarcadas com mourões mesmo antes de sua ocupação, o que reforça o

caráter planejado do presente núcleo urbano.

Nesse traçado geométrico e antigo restam numerosos exemplares da arquitetura

tradicional, construídos em taipa de pilão e pau a pique2. Dentre estes, se destacam dois

2 Talvez nesse momento seja relevante descrever sucintamente as duas principais técnicas que dominaram as construções

paulistas até o século XIX, a taipa de pilão e o pau a pique. A primeira constituía em socar terra com pilão de madeira em

grandes formas retangulares chamadas taipais, e, após a secagem da primeira camada se sobrepunha a ela a mesma forma

para a execução da próxima camada colada a primeira e assim sucessivamente até se completar a parede. Essa técnica

construtiva, uma marca registrada dos paulistas, também pode ser verificada em outras localidades como em Minas Gerais,

Goiás, Mato Grosso e Paraná, e isso se deve a dispersão decorrente do bandeirismo e do tropeirismo. Já o pau a pique se

constitui em um entrecruzamento de paus amarrados ou presos a uma estrutura mais firme que servia de alicerce, e este era

preenchido com barro que, posteriormente era alisado com a mão. Essa técnica, mais frágil em comparação a taipa de pilão,

foi a mais usada nas construções populares.

Figura 3: Imagem área do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, em 2009. Fonte: PMSLP.

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38

conjuntos pela homogeneidade arquitetônica e por serem os principais remanescentes dos

princípios da regularidade, simetria e uniformidade que se impuseram pela ordem distante

desde a fundação desse núcleo. O primeiro é a Rua do Carvalho, com suas pequenas casas de

“meia” e “morada inteira” destinadas à população mais pobre. É importante ressaltar que esse

conjunto de casas se alinha a lateral da Igreja do Rosário dos Homens Pretos (Figura 4), santa

cultuada pelos escravos. O segundo é a Praça da Matriz (Praça Dr. Oswaldo Cruz), com suas

construções em sobrados, com fachadas corridas, onde se instalou a elite local (Figuras 5 e 6).

Datadas de 1830 e 1840, as pequenas moradias da Rua do Carvalho são notáveis pela

sua extensão, homogeneidade e antiguidade. É o mais extenso conjunto de casas térreas de

feição tradicional existentes no estado de São Paulo (IPHAN, 2010).

Assim como na praça central, houve nessa rua a preocupação em se manter as

cumeeiras no mesmo nível, buscando regularidade e simetria, com fachadas térreas corridas,

predominando ora as moradias de um lanço, de porta e janela, ora as de dois lanços, com três

vãos na fachada, porta e duas janelas (IPHAN, 2010).

Mesmo com o intuito de privar essa população mais pobre de residir na área mais

valorizada da cidade (a praça), não foi possível privá-la de vivenciar esse espaço, devido às

dimensões desse núcleo urbano, Sendo assim, a Praça da Matriz, desde a época de sua

fundação, até os dias de hoje, se constitui com um espaço da vida por excelência.

Figura 4: Igreja do Rosário dos Homens Pretos e a Rua do Carvalho, em 2009. Fonte: PMSLP.

Page 39: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

39

Figura 5: Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2009. Fonte: PMSLP.

Figura 6: Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2009: Fonte: PMSLP.

Page 40: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

40

Quanto a essa praça em São Luiz do Paraitinga, vale destacar que as cidades

tradicionais de origem portuguesa apresentam grande diversidade de espaços públicos abertos

que podem ser designados como praças. Estas podem ter diferentes funções e origem,

distintas localidades na malha urbana, estarem associadas a diferentes edifícios com

dimensões diversas, sua forma pode ser regular ou irregular. Seja qual for a sua origem, as

praças desempenham sempre um papel importante na estruturação da cidade.

A partir do século XV as praças passam a desempenhar um papel fundamental, estas

ganharam destaque na estrutura funcional da cidade. As praças se tornaram os locais mais

nobres desses núcleos, passando a se localizar ali as funções e as edificações mais

importantes, sendo o espaço para o exercício da vida urbana, lugar de ver e ser visto, o espaço

do vivido. A praça vai tornando-se cada vez mais regular, mais inserida na lógica formal dos

planos geométricos, e vai assumir um papel cada vez mais importante na estruturação da

cidade, atingindo seu apogeu no Iluminismo setecentista, quando essa passa a assumir a

função de geradora da malha urbana.

Segundo Teixeira (2006), ao longo da história urbana brasileira, a praça vai adquirindo

uma importância cada vez maior e isso se dá pela crescente busca pela regularização dos

traçados, expressão da proeminência da racionalidade da cultura urbana europeia e brasileira.

Em São Luiz do Paraitinga a praça exerce um papel importante na estruturação do

espaço urbano devido a sua importância funcional e simbólica. É o lugar de encontro, da

troca, de convivência e da sociabilidade da comunidade, condensando ali funções políticas,

econômicas e sociais, funções essas que historicamente desempenhou e que conduziu a

estruturação da cidade, o lugar por excelência onde o espaço concebido foi apropriado como

espaço vivido.

Teixeira (2006) salienta que, em muitos casos, a exploração das relações entre o

traçado urbano e a arquitetura deu origem a abertura de praças associadas a edificações

singulares, como é o caso em São Luiz do Paraitinga. Para o IPHAN (2010), em nenhuma das

praças das antigas cidades paulistas restou um conjunto tão significativo de sobrados,

ressaltando a homogeneidade e a importância desse conjunto geminado composto por

sobrados em arquitetura neoclássica que nos reportam a um período entre 1858 e 1870.

No século XVIII, praças como essa, quadradas ou retangulares, centradas na malha

urbanas e tendo um claro papel de elemento gerador do traçado tornam-se o modelo

dominante, sendo pensadas como o centro da cidade, em termos simbólicos, funcionais e

formais.

Page 41: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

41

Page 42: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

42

Nesta praça, deveriam estar localizados o pelourinho, a Igreja e a Casa de Câmara e

Cadeia. Todas as casas deveriam ter suas fachadas construídas de acordo com a mesma

tipologia, associando à praça o caráter de “formosura” (TEIXEIRA, 2006). Sendo assim, a

Praça da Matriz em São Luiz mostra-se como um verdadeiro remanescente da tradição

setecentista de organização desse elemento urbano, visto que todos os elementos citados pelo

autor são observáveis nessa localidade.

Nesse sentido, o traçado urbano regular e seu elemento gerador, as praças,

constituem-se um patrimônio fundamental das cidades, sendo que em São Luiz do Paraitinga

essa relação ocorre de maneira clara e segura, o que pode ser comprovado pela função

articuladora que desempenha em relação ao traçado urbano como um todo. As suas dimensões

em relação ao núcleo urbano bicentenário, além da magnitude das edificações que a

emolduram, com destaque para a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, ruída na inundação de

2010, ressaltam a importância da normatização, por parte do Estado, a ordem distante, que

concebeu esse espaço, a tipologia arquitetônica e volumétrica das edificações, inclusive na

dimensão dos vãos, regras estas que remontam a um período anterior ao da fundação desse

povoamento.

2.1. SÃO LUIZ DO PARAITINGA, UM PATRIMÔNIO DO CAFÉ?

Ainda no campo dos espaços concebido e vivido, porém, não mais relacionado à

ordem distante que se impõem à ordem próxima, temos a construção de São Luiz do

Paraitinga como cidade do café. Esse espaço teve na própria ordem próxima a sua concepção

como patrimônio do café e esse discurso foi apropriado pela ordem distante, fortalecendo a

premência do lugar como sustentáculo de identidade.

No decorrer do século XIX a região do Vale do Paraíba começou a sofrer profundas

transformações, onde antes dominava o cultivo do açúcar passou, cada vez mais, a ter no

cultivo do café a sua sustentação econômica.

Porém, mesmo São Luiz do Paraitinga fazendo parte desse contexto por estar

localizada as margens do principal corredor de produção cafeeira do país à época, como nunca

apresentou uma produção de açúcar relevante, não passou por esse processo de substituição

de cultivo.

Mesmo assim, é decorrente a associação entre São Luiz do Paraitinga e o ciclo do café,

no sentido de associar o patrimônio cultural remanescente nos dias de hoje como fruto desse

período econômico, a população local exalta a suposta riqueza do município proporcionada

Page 43: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

43

pelo café. Não queremos aqui tirar a importância desse período para a produção desse espaço

urbano, visto que é desse período a construção dos principais edifícios de maior importância

artística, como a grande Igreja Matriz e os sobrados neoclássicos que emolduram a praça

principal da cidade. Porém, não se pode esquecer que a cidade foi fundada em decorrência da

atividade tropeira e é essa a atividade que, mesmo no período áureo do café no Vale do

Paraíba, proporcionou que São Luiz do Paraitinga vivesse seu período de maior prosperidade.

Segundo o IPHAN (2010), mesmo nesse período de maior riqueza da região, o

município era sustentado principalmente pelo tripé milho/feijão/café. Documentos da época

informavam que a riqueza da localidade se dava principalmente pela lavoura comercial de

culturas tidas como tradicionais, marca da expressão da cultural caipira que confere a São

Luiz do Paraitinga um legado cultural singular no território paulista, abrangendo os saberes e

fazeres, as manifestações religiosas e profanas, as músicas e as danças.

Prova desse fato é a ocorrência, ainda hoje na cidade, de festas como a do Divino, o

momento em que o lavrador agradece a Deus as boas colheitas, as Festas Juninas em

comemoração a Santo Antônio, São João e São Pedro, a Festa dos Santos Reis que comemora

a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus, dentre outras. Durante essas festas são realizadas

danças como a Dança de Fitas e a Catira, além da realização dos folguedos, onde se destacam

a Cavalhada, a Congada, o Jongo e o Moçambique. Todas essas manifestações, segundo

Pellegrine Filho (2008), têm origens remotas, são formas vivas e dinâmicas que se apresentam

e se renovam em suas funções, formas e significados, são eventos que marcam as

comunidades de seus praticantes, são instrumentos valiosos de salvaguardar a memória desses

grupos. Sem falar de um dos principais sustentáculos de identidade coletiva, as ligadas ao

paladar, pois em poucos lugares em São Paulo é possível saborear um afogado, um arroz com

pato ou suã de porco, um bolinho de farinha, uma canjiquinha com entrecosto, um pastel de

angu ou uma paçoca de carne-seca, sendo que todas essas comidas típicas podem ser

saboreadas em um dos edifícios mais simbólicos da cidade, o Mercado Municipal. É a

presença dessas manifestações culturais que confere ao patrimônio ambiental urbano de São

Luiz do Paraitinga uma genuína alma caipira, a relação entre o patrimônio material e o

imaterial, e, segundo Francisco (2008), isso de dá não apenas pela sobrevivência dos bairros

rurais e sua interação com a cidade, mas é o resultado da permanência de uma cultura citadina

eminentemente caipira.

A associação de São Luiz do Paraitinga como cidade do café no imaginário das

pessoas encontra suporte também no título de “Cidade Imperial”, concedido por D. Pedro II

em 1873, quando a cidade alcança o momento auge de sua importância econômica e política.

Page 44: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

44

Porém, os dados históricos não corroboram com essa preponderância das elites locais no

cenário regional. Para Santos (2008), em um momento de alijamento de municípios pequenos

como São Luiz do Paraitinga do atual processo da economia globalizada, torna-se importante

para essas populações poderem associar a sua história com a de localidades que, pelo menos

em um determinado momento histórico, exerceram certa importância e protagonismo,

permitindo a esses cidadãos fazer parte do que o autor chama de uma “história de sucesso”.

Sendo assim, a ordem próxima concebe um espaço fictício e passa a vivê-lo no seu

imaginário.

São Luiz vai se aproveitar desse período de expansão da cafeicultura no Vale do

Paraíba, porém, desempenhando a função que lhe deu origem, a de entreposto comercial, visto

que toda produção de café do Vale do Paraíba e do sul de Minas tinham que passar por São

Luiz do Paraitinga nos lombos dos burros para acessar o porto de Ubatuba.

Para corroborar com esse fato, temos o Gráfico 1 que mostra a produção cafeeira dos

principais municípios do Vale do Paraíba, salientando que, no que se refere a São Luiz do

Paraitinga, há imprecisão quanto à totalidade da produção. Nesse sentido, fica claro a

modéstia da produção cafeeira em território luizense se comparada à produção de seus

vizinhos.

Gráfico 1: Produção cafeeira nos municípios do Vale do Paraíba. Fonte: SANTOS, 2008. * em 1836 houve um levantamento parcial da produção luizense, sendo assim, para efeito de

comparação utilizamos os dados de 1852 para esse município.

Santos (2008) reforça a importância de São Luiz do Paraitinga como entreposto

comercial, qualificando a rota que passava por esse município como sendo a segunda mais

0

20.000

40.000

60.000

80.000

100.000

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Produção cafeeira em 1836 (arrobas)

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movimentada à época, com um fluxo de aproximadamente 78 mil animais transportando

centenas de milhões de arrobas de café3.

Nesse sentido, é importante salientar que em São Luiz do Paraitinga a riqueza gerada

pelo café não se concentrou de maneira tão intensa, como ocorreu em outros municípios da

região, não apenas nas mãos dos “barões do café”, mesmo que esses possuam no imaginário

da população local grande importância, mas também nas mãos dos comerciantes e dos

pequenos produtores de gêneros alimentícios que abasteciam a região e os tropeiros que

passavam pelo município.

Assim, não se pode diminuir a importância do café como responsável pela produção

do espaço urbano tradicional de São Luiz do Paraitinga, mas isso se deu de maneira indireta,

foi a sua vocação de entreposto comercial, hora de tropas que transportavam ouro, hora de

tropas que transportavam café, e de abastecimento de gêneros alimentícios que estimulou a

fundação e expansão desse núcleo.

3 SCHMIDT, Carlos. A vida rural no Brasil – A área de Paraitinga, uma amostra representativa. Pág. 34-35.

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46

3. SÃO LUIZ DO PARAITINGA: UM ESPAÇO CONCEBIDO/APROPRIADO COMO LUGAR DA VIDA

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Page 47: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

47

O lugar é produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por

relações sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a construção de

uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura

civilizadora produzindo a identidade, posto que é aí que o homem se reconhece

porque é o lugar da vida. (Carlos, 1996: 22)

Temos o intuito aqui de entender como se deu a produção do espaço da cidade de São

Luiz do Paraitinga, desde a sua fundação como parte de uma política de ocupação da capitania

de São Paulo até os dias atuais, enfocando os ciclos econômicos que acarretaram a expansão

dessa malha urbana, com destaque para a inundação de 2010 que impôs grandes alterações na

dinâmica da cidade.

Entre São Paulo e Rio de Janeiro, nos municípios de Taubaté e Guaratinguetá, tivemos

um dos principais focos de atividades bandeiristas em direção ao estado de Minas Gerais, o

que culminou com a descoberta de ouro nesse último. Esses municípios passam então a

desempenhar um papel importante de entroncamento de caminhos de tropas para o

escoamento dessas riquezas em direção ao porto marítimo de ligação imediata, o porto de

Ubatuba. Essas cidades estavam separadas por um “mar de morros”4 que ocupava todo o

planalto, desde a Serra da Bocaina até a Serra de Guararema.

Nesse sentido, Saia (1977) salienta que esse planalto entre Taubaté e Ubatuba passa

então a ser cortado por diversas trilhas pelo crescente fluxo de tropas, criando uma demanda

nessa região por produtos de primeira necessidade no período da mineração, do final do

século XVII ao início do século XIX.

Para Silva (2008), o tropeirismo tem origem a partir de uma conjuntura social,

geográfica e política, o que o torna não apenas uma atividade econômica, mas sim

socioeconômica pelo viver específico que proporciona e pelo impacto sobre o território,

estimulando a fundação de arraiais e vilas. A forma do traçado urbano de São Luiz do

Paraitinga, situado em um dos meandros do Rio Paraitinga, decorre da época do

estabelecimento dessas rotas de escoamento do ouro explorado na capitania de Minas Gerais.

Sendo assim, a criação e desenvolvimento de São Luiz estão diretamente relacionados à sua

localização (Mapa 2).

4 Segundo Ab‟Saber.

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48

Page 49: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

49

3.1. Da várzea do Rio Paraitinga à Imperial Cidade

A fundação da vila foi estimulada em 1769 pelo Morgado de Mateus como parte de

uma ampla política de organização territorial e dinamização da economia implantada pelo

Marques de Pombal em 1765, com o fim de impor ao território um maior controle por parte

do governo português. Para Santos (2008), era fundamental para a crescente economia de um

país em formação a organização do espaço e das relações sociais, tendo em vista um maior

controle do Estado, e esse autor lembra ainda que São Luiz estava situada em uma região

estratégica no escoamento de grande parte da produção paulista rumo ao litoral nos séculos

XVIII e XIX.

Com o advento da atividade aurífera na região das Gerais, a necessidade de caminhos

mais organizados e seguros para o escoamento dessas riquezas se intensifica. Assim, a

fundação de novos núcleos urbanos ao longo desses caminhos cresce, pois estes permitiam,

por parte da coroa, um maior controle, além é claro de melhorar a qualidade do transporte.

Santos (2008) lembra ainda que, com a aproximação do fim do século XVIII, a região

do Vale do Paraíba passa a ser considerada a mais importante da capitania, por esta ter sido

um dos principais caminhos dos bandeirantes na exploração do território, por exercer função

fundamental para o escoamento do ouro, sobretudo sob o esquema de tropas, chegando ao

século XIX como a região mais povoada da capitania.

Nesse sentido, mesmo antes de sua fundação, São Luiz do Paraitinga tem como

principal vocação econômica servir de apoio para as tropas responsáveis pelo escoamento de

todo tipo de produção rumo ao litoral, em especial ao porto de Ubatuba.

Nessa época temos a elaboração de um plano urbanístico “ilustrado” para São Luiz do

Paraitinga, com a adaptação de um traçado urbano regular ao relevo acidentado da região,

além de normas que garantiam a simetria das fachadas e da volumetria dos edifícios, o que

garantem a esse patrimônio ambiental urbano características paradigmáticas do planejamento

urbanístico que pontuou a segunda metade do século XVIII no Brasil (IPHAN, 2010).

O patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga é considerado um exemplo

único, visto que das fundações planejadas por Morgado de Mateus, São Luiz preencheu e

consolidou o plano regular a que foi sujeito já na década de 1830, constituindo-se hoje como a

principal referência, nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, dessa política “ilustrada” da segunda

metade do século XVIII. Esse traçado, elaborado em 1769, é dominante até os dias de hoje na

configuração urbana em questão e, em nenhuma das numerosas fundações do período no

Brasil, o plano e o programa urbano-arquitetônico estão presentes como nessa cidade paulista.

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50

O município teve seu primeiro período de expansão urbana (Mapa 3), segundo Saia &

Trindade (1977), entre 1770 e 1800, quando a economia local começou a ganhar consistência

devido à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, fato que levou a uma

dinamização de toda a economia da região Sudeste, consolidando a tradição de policultura de

São Luiz, em especial as culturas do feijão, milho, fumo, café e da criação de suínos para o

abastecimento da região do médio Vale do Paraíba, além do sul da capitania de Minas Gerais

e da corte no Rio de Janeiro, configurando-se como um município voltado aos gêneros para o

mercado interno.

É deste período a configuração da malha urbana da praça central, a Igreja da Matriz, as

Capelas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e das Mercês (Figuras 7, 8 e 9),

além das ruas Barão do Paraitinga e Cel. Domingues de Castro que faziam a ligação entre

esses templos católicos que se constituíram como marcos estruturais do plano urbanístico

ilustrado. É importante salientar que hoje apenas os locais marcam os assentamentos desses

edifícios primitivos, visto que a capela de Nossa Senhora do Rosário fora substituída, já na

primeira metade do século XX, por uma nova edificação de feições neogóticas e a Capela de

Nossa Senhora das Mercês, juntamente com a Igreja da Matriz, ruíram em decorrência da

grande inundação de 2010.

Figura 7: Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, em 1884. Fonte: CONDEPHAAT.

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Figura 8: Igreja do Rosário dos Homens Pretos, em 1906, ainda em feições coloniais. Fonte: IES

Figura 9: Capela das Mercês, em 1981. Fonte: IPHAN.

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Entre 1800 e 1850 temos um segundo período de crescimento urbano da cidade (Mapa

3). Este se dá principalmente entre a capela de Nossa Senhora do Rosário e o Rio Paraitinga,

com a abertura da Rua do Carvalho e a construção de casas de “meia morada” pela população

mais pobre, assim como a abertura da rua Cel. Domingues de Castro e da estrada para

Ubatuba, no Morro da Vila, por detrás da Praça onde mais tarde foi edificada a casa em que

nasceria Dr. Oswaldo Cruz. Nesse período, a população total do município girava em torno

dos 10 mil habitantes, como mostra o Gráfico 2.

Apresentando um crescimento urbano lento, porém contínuo, em 1830 a trama urbana

de São Luiz do Paraitinga já se encontrava saturada, obrigando a abertura de novas ruas e a

concessão de novos lotes. O projeto de “cidade iluminista” se consolida por volta dessa

década (SAIA & TRINDADE, 1977). A documentação da época indica que tanto em relação

Gráfico 2: Evolução da população de São Luiz do Paraitinga. Fonte: PETRONE, 1959/ IBGE, 2005/ SEADE, 2005. Organizado por Danilo Pereira.

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à praça central, como em relação aos alinhamentos das edificações, tem-se o empenho em

manter a uniformidade das fachadas e da volumetria, térrea ou assobradada, questões relativas

à “formosura”, simetria e regularidade, posto desde o início do povoamento na configuração

do cenário urbano local.

Em 1857, a então vila é elevada à categoria de Cidade Imperial de São Luiz do

Paraitinga, título concedido por D. Pedro II a alguns aglomerados urbanos importantes na

época como Ouro Preto, Recife e Salvador, o que ressalta a importância do município para a

época, colocado ao lado de localidades paulistas como São Paulo, Itu, e Taubaté. É este

período, 1850 a 1890, o de maior riqueza do município, quando temos a ocupação completa

dos terrenos na várzea do Rio Paraitinga até a atual Praça Teodoro Coelho (praça da Santa

Casa de Misericórdia), com a abertura da rua Cel. Manoel Bento e o prolongamento da rua

Cel. Domingues de Castro (Mapa 3). Em 1884 os lotes dessas novas ruas já estavam

densamente ocupados. É desse período também o início da ocupação em direção ao Morro do

Cruzeiro (Figura10).

Em 1872 a cidade já contava com 355 casas no perímetro urbano, em 1844 eram

apenas 180, sendo destas 36 sobrados (SAIA & TRINDADE, 1977). Num segundo momento,

a cidade passa por um grande adensamento e por obras que melhoraram a vida citadina como

calçamento e pavimentação de ruas, além de obras de contenção e drenagem, iluminação e

abastecimento de água, e em 1897 a obra da nova ponte de acesso à cidade diretamente na

Praça da Matriz.

A partir de 1890, a expansão urbana resultou na edificação de prédios públicos

deslocados para fora da área mais antiga, como a criação da Santa Casa em 1900 e do

Mercado Municipal em 1902, ambas ao longo da rua Cel. Manuel Bento.

No entanto, em 1877, é completada a ligação ferroviária entre as cidades de São Paulo

e Rio de Janeiro, o que modifica os fluxos de mercadoria produzidos do sul de Minas Gerais e

no médio Vale do Paraíba. Com essas mercadorias seguindo para o porto do Rio de Janeiro os

portos de Ubatuba e Paraty entram em declínio, e com ele a vocação de entreposto comercial

de São Luiz do Paraitinga, o que fortalece a cafeicultura que passa a seguir para a capital

através da estação ferroviária de Taubaté.

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Elaboração: Danilo Pereira

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Figura 10: Vista do centro histórico, em 1886 e em 2011. Fonte: IES e Danilo Pereira.

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Esse crescimento da atividade cafeicultora conferiu maiores lucros aos poucos

fazendeiros do município, o que possibilitou a construção de novos edifícios, em especial de

alguns dos grandes sobrados que emolduram a praça central, expressão dessa elite ciosas da

sua situação financeira, social e política. Esses sobrados são um dos poucos remanescentes de

moradias urbanas erguidas nesse período em São Paulo. Para Marins (2008a), o processo de

urbanização em território paulista ocasionou a valorização excessiva das terras urbanas,

acarretando a demolição em massa das antigas moradias erguidas durante o Império.

Porém, como o clima da região não era muito propício para a cafeicultura, uma grande

geada em 1917 liquidou os pés de café do município e este entra em um forte período de

estagnação econômica. A partir de então, a população local, que chegou a quase 30 mil

habitantes em 1900, passa a declinar (Gráfico 2).

3.2. De Imperial Cidade a último reduto caipira paulista5

Sem atrair imigrantes após a abolição da escravatura, a população de São Luiz do

Paraitinga praticamente desapareceu, em 1940 eram pouco mais de 10 mil habitantes (Gráfico

2). Esse fato, associado a uma agricultura tradicional ainda muito forte, conferiu a esse

município certa “originalidade dentro do Estado” (PETRONE, 1959), o que justificou a sua

inclusão na área de cultura caipira de São Paulo.

A crise econômica, ocasionada pela mudança dos fluxos de mercadoria no Vale do

Paraíba, impossibilitou significativas intervenções no patrimônio ambiental urbano de São

Luiz do Paraitinga. Sendo assim, a cidade permaneceu “congelada” no tempo, sem ser

significativamente alterada. Porém, vale ressaltar que a falta de recursos impediu a alteração

no núcleo antigo, mas não a expansão urbana à revelia da lei no seu entorno, fortemente

influenciado pelo fluxo migratório campo-cidade decorrente dessa estagnação econômica no

campo. Contudo, ainda predomina na cidade a malha tradicional integrada à paisagem natural

(IPHAN, 2010).

Nessa época, partes significativas das áreas rurais do Vale do Paraíba são convertidas

em pastagem para a criação de gado voltado a atividade leiteira, o que não é diferente em São

Luiz do Paraitinga, que passa também a receber um forte contingente de migrantes do sul de

Minas Gerais, atraídos pelos baixos preços das terras nesse município.

5 LUZ, 2004.

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57

A produção leiteira de São Luiz do Paraitinga foi estimulada pela instalação da

indústria de laticínios Vigor em 1953, nesse período a população do município volta a crescer

e atinge os 15 mil habitantes. Porém, a imposição econômica que passou a exigir cada vez

mais investimentos financeiros na modernização dessa atividade, incompatível à realidade dos

pequenos produtores, fez com que essa fase da pecuária leiteira passasse então a declinar nos

anos de 1980 e consequentemente os preços das terras passam por um processo de

desvalorização. Esse processo passou a estimular a expansão do plantio extensivo de eucalipto

por empresas de papel e celulose instaladas fora do município a partir daí.

Durante a década de 1980, com o declínio econômico do campo, tem-se a

intensificação do êxodo rural e o conjunto urbano tradicional torna-se pequeno, essa malha

urbana que contava com 1.395 habitantes em 1950 passou a contar com 6.145 habitantes em

2000. Tem-se então a ocupação quase que por completa do Morro do Cruzeiro (Figura 10) e,

devido às limitações físicas que oferece o sítio onde se desenvolveu a cidade, a ocupação, de

forma descontínua, dos vales entre os morros em relação à malha urbana de origem

bicentenária.

Em 1982, a cidade de São Luiz do Paraitinga foi reconhecida como Patrimônio

Cultural do Estado de São Paulo pelo CODEPHAAT, passando a ser considerado o maior

conjunto arquitetônico tombado no estado de São Paulo. São Luiz começou então a buscar na

atividade do turismo a revitalização de sua economia, valendo ressaltar que, após o

tombamento, a população do município volta a crescer, mesmo que de forma modesta.

Vale destacar que, na atualidade, o conjunto tradicional em questão mantém quase as

mesmas funções de outrora, são constituídas principalmente por moradias e por pequenas e

médias casas comerciais (Anexo II), o que lhe confere um grande diferencial em relação aos

outros centros históricos tombados como Paraty, onde a população local foi expulsa para dar

lugar às atividades comerciais voltadas ao turismo. Porém, inspirado em locais como Ouro

Preto, Olinda e Recife, São Luiz do Paraitinga passa a dar ênfase às suas manifestações

populares como o carnaval de rua e os festejos religiosos num cenário urbano tradicional

tombado, imerso numa paisagem natural pouco alterada (IPHAN, 2010) como atrativo.

3.3. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio cultural brasileiro em risco

Palco do maior desastre em área protegida por seu valor cultural na história do Brasil,

São Luiz do Paraitinga tem seu centro histórico arrasado pela maior cheia já registrada do Rio

Paraitinga, no início de 2010. Segundo um relatório preliminar divulgado pelo

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CONDEPHAAT, logo após o evento, dos 426 bens tombados, 65 foram seriamente

danificados e 16 totalmente arruinados (Mapa 4). Dentre os destruídos estão os principais

símbolos do município: a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, do século XIX; a singela

Capela de Nossa Senhora das Mercês, do início do século XVIII; o sobrado do “Grupo

Escolar”, do século XIX; e um sobrado datado de 1858, que fazia parte de um dos mais

importantes conjuntos de fachadas remanescentes do planejamento ilustrado.

Nesse momento de crise, o centro histórico de São Luiz do Paraitinga, que já se

encontrava em processo de estudo para a sua proteção federal desde 2007, é tombado em

caráter de emergência pelo IPHAN e obras de recuperação e salvamento são iniciados por

esse instituto. Cabe ressaltar que estudos acerca da relevância paisagística e urbana de São

Luiz do Paraitinga por esse órgão remontam aos anos de 1950, o que resultou no tombamento

federal da casa onde nasceu o sanitarista Dr. Oswaldo Cruz em 1956 e no próprio centro

histórico pelo CONDEPHAAT em 1982, este último levado ao conselho em conjunto com os

técnicos do IPHAN à época.

É importante lembrar que enchentes ocorrem periodicamente em São Luiz do

Paraitinga, visto que esse conjunto urbano localiza-se em uma área de várzea, documentação

antiga aponta outras duas grandes enchentes no município em 1864 e em 1882.

Segundo Pereira (2011), as perdas decorrentes dessa última inundação não podem ser

encaradas apenas como perdas materiais, mas também como perdas da memória de uma

comunidade, visto que, entre os bens arruinados estão os principais sustentáculos da

identidade luizense. A Igreja Matriz foi o palco dos acontecimentos mais marcantes na vida

daquelas pessoas, além de ser o principal local de reunião nas missas de domingo dessa

comunidade fortemente católica, é o local onde essas pessoas foram batizadas, onde se

casaram e batizaram seus filhos. Além disso, era onde se realizavam as cerimônias de entrega

dos diplomas de conclusão do ensino médio e fundamental, ou seja, os principais

acontecimentos da vida pessoal de cada luizense ocorreram dentro daquele edifício. Podemos

dizer então que o seu desabamento acarretou a perda do principal sustentáculo de memória

coletiva dessa comunidade. Se até o momento do desmoronamento da matriz a inundação

promovia perdas individuais, após a sua queda passamos a ter uma grande perda coletiva. E

esse fato torna-se ainda mais claro quando observamos como essa comunidade agiu quando as

águas começaram a baixar, em vez de irem socorrer seus pertences pessoais, passam a

recolher nos escombros das igrejas todos os objetos que para eles poderiam ser salvos, mesmo

antes da chegada dos técnicos especializados dos órgãos de patrimônio.

Page 59: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

59

Além dessas perdas coletivas, temos que contar as perdas pessoais, de cada objeto,

fotografia ou documento que carregava a história de cada um, além da história de toda a sua

família, o que para Bosi (2003) são os objetos biográficos, que além de uma sensação estética

ou de utilidade, são responsáveis por dar um “assentimento posição” das pessoas no mundo, à

sua identidade. Ademais, os objetos que sempre estiveram presentes falam à alma em uma

língua natal, são objetos que envelhecem com o seu proprietário e se incorporam à sua vida,

representando uma experiência vivida, uma aventura efetiva do proprietário.

Para Marins (2008b), o patrimônio cultural torna-se relevante na medida em que é

interpretado como vetor da formação do indivíduo e das relações sociais, que dele se

apropriam, reelaborando-os a si próprios. O patrimônio ambiental urbano de São Luiz do

Paraitinga, indiscutivelmente, repercute sobre a formação dos indivíduos locais e das relações

sociais, ou seja, sobre o peculiar patrimônio imaterial dos luizenses, visto que, como já

discutimos anteriormente, esse lugar se configura como espaço vivido por excelência. Nesse

sentido, torna-se imprescindível para a salvaguarda desse patrimônio intangível a

recomposição desse patrimônio urbano brasileiro.

Figura 11: Desabamento da Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa, em 2010. Fonte: Folha de São Paulo.

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4. UMA GEOGRAFIA DESIGUAL DO PATRIMÔNIO

CULTURAL BRASILEIRO

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O uso da palavra cultura para objetivar o patrimônio significa exatamente o que se

pretendia trabalhar a partir de um conceito específico sobre a qual se compusesse um

universo de bens, objetos e paisagens, selecionados por critérios culturais cujo

sentido não seria apenas testemunhar o passado ou servir de documento para essa ou

aquela disciplina, mas que atendesse o presente, não apenas por sua materialidade,

mas também pelo esclarecimento do universo de representações simbólicas implícito

nas relações entre os homens, da qual faz parte a memória. A ação preservacionista

deveria resultar do conhecimento científico e, por meio dele, contemplar os

múltiplos fios que tecem a diferenciação cultural própria das sociedades

contemporâneas. (RODRIGUES, 1999:135)

Questões referentes ao patrimônio cultural vêm articulando alguns saberes

acadêmicos, tateando entre a Arquitetura, o Urbanismo, a História e a Antropologia, estas já

consagradas. Porém, é importante salientar a importante contribuição que a Geografia pode

conferir a esse tema, sendo esta a ciência detentora de conceitos e metodologias que

propiciam a investigação do espaço geográfico, visto que as experiências sociais não se fazem

fora do espaço, o homem ao ocupar e agir sobre a natureza produz o espaço e deixa registrado

nele a sua história.

Na atualidade as discussões acerca do patrimônio cultural estão cada vez mais

centradas nas questões da identidade e é na escala do lugar que ela se estabelece, sendo esta

outra categoria de análise da geografia. Segundo Carlos (1996), é no lugar que se guarda o

significado e as dimensões do movimento da história, passível de ser apreendida pela

memória decorrente da acumulação dos tempos, marcados, remarcados e nomeados, natureza

transformada pela prática social, acumulando cultura que se insere em um espaço e tempo.

No que tange as ações do Estado pela salvaguarda desses acúmulos de cultura no

espaço, Choay (2000) salienta que estas nasceram somente com a Revolução Industrial e

Francesa, embaladas pelos valores do Romantismo. As políticas públicas de preservação da

cultura no Brasil optaram pela arquitetura como foco de suas ações e essa opção foi

fortemente influenciada por esse modelo patrimonial estabelecido nesse contexto francês,

principalmente no que se refere às políticas centralizadoras, ao sistema de organização dos

órgãos públicos e pelas discussões centradas nas questões da identidade nacional.

Essa autora salienta ainda a importância da passagem da noção de monumento-

artefato, entendendo este como o idealizado e construído com o fim de perpetuar a memória,

possuindo assim uma origem espaçotemporal, para a de monumento-histórico, este

possibilitando atribuir características que vão muito além das atribuídas pelo seu idealizador,

permitindo que um sítio urbano como o de São Luiz do Paraitinga se integre a um conjunto de

bens denominados de “patrimônio nacional”, mesmo este não tendo sido concebido para tal,

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63

mas sim com o intuito de servir como uma localidade de apoio à atividade tropeira. Assim,

para Choay (2000), todo o objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico

sem ter tido na sua origem um destino memorial.

As primeiras ações voltadas à salvaguarda do patrimônio ocorreram na Inglaterra,

quando um grupo de eruditos passou a se dedicar a colecionar objetos antigos, desenhando-se

assim um processo de valorização do passado através de artefatos que testemunharam a

história nacional.

Mas é com a Revolução Francesa que o Estado passa a assumir em caráter oficial a

função de salvaguardar os elementos que testemunharam o passado, em especial os bens

expropriados do clero e da monarquia, e que passaram a ser tutelados pelo Estado francês.

Segundo Choay (2000), o objetivo que se pretendia alcançar através dos valores

atribuídos ao patrimônio nacional recém-inventado seria: o valor nacional, onde é evocada

uma suposta identidade nacional; o valor cognitivo, que evoca a cidadania; e o valor

econômico vinculado ao turismo, mesmo este só tendo se concretizado na França um século

depois. Entretanto, já se enxergava no patrimônio nascente um potencial atrativo turístico

inspirado no modelo italiano, em particular o de Roma.

Sendo assim, cabe salientar que a Revolução Francesa rompeu com o passado e suas

ações contraditórias não permitiram que, na França, fossem estabelecidas políticas de

preservação mais eficazes e duradouras, sendo que apenas no século XIX as primeiras

medidas consistentes foram implantadas, simultaneamente ao estabelecimento de uma teoria e

uma metodologia de restauro dos monumentos, o que, consequentemente, acarretou

reverberações no campo do patrimônio.

No Brasil, a primeira proposta de lei no sentido de garantir a salvaguarda do

patrimônio cultural se deu através do anteprojeto de lei criado por Mário de Andrade em

1936, em que este se esforçava em abranger uma noção de patrimônio no sentido amplo e

global, onde lugares, objetos, fazeres, saberes, manifestações eruditas e populares se

colocavam como sustentáculos de uma memória nacional.

Contudo, oficialmente, a preservação do patrimônio cultural brasileiro começou a ser

abarcada pela esfera pública um ano antes. Em 1935 temos a elevação da cidade mineira de

Ouro Preto à categoria de Monumento Nacional, seguida pela criação do IPHAN em 1937,

então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

Rodrigues (1999) salienta que a escolha de Ouro Preto como primeiro Monumento

Nacional conferia ao século XVIII a responsabilidade pelo estabelecimento da consciência

Page 64: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

64

emancipatória e a maturidade da arte e da arquitetura colonial no Brasil, o que para essa

autora guiaria a atuação do IPHAN nos seus tombamentos seguintes.

Marins (2008b) vai além, para esse autor a eleição de Ouro Preto significou a escolha

de uma arquitetura rica e faustosa, associando a memória nacional às cidades coloniais

mineiras, nesse sentido, depreciando o lugar de São Paulo no mosaico que passaria a

constituir a memória e a identidade nacional, visto que as cidades paulistas nunca

apresentaram a mesma exuberância que as mineiras.

Cabe salientar aqui que estas escolhas não se dão apenas no campo técnico, mas

também no campo ideológico, visto que as elites políticas e intelectuais buscavam moldar a

sociedade para o advento da modernidade. Portanto, opta-se por adotar como representante da

identidade nacional os sustentáculos das memórias das camadas populares urbanas, em

especial as vinculadas às classes sociais mais abastadas. Assim, a cultura negra, a indígena ou

as vinculadas ao mundo rural, como a cultura caipira, são esquecidas.

A adoção desses critérios privilegiou os estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de

Janeiro, os mais ricos do Brasil no período colonial, em detrimento do estado de São Paulo,

herdeiro de alguns dos mais antigos núcleos urbanos brasileiros. Marins (2008b) salienta que

as soluções arquitetônicas paulistas foram referências para as edificações ricas e faustosas que

sobreviveram nesses estados privilegiados.

Nem mesmos os intelectuais paulistas foram capazes de valorar o seu patrimônio

nesse momento. Mario de Andrade considerava a arquitetura tradicional das cidades mineiras,

baianas e pernambucanas como “maravilhosas e espantosas”, e que em São Paulo se deveria

tombar o pouco que restava do período seiscentista e setecentista com referência à arquitetura

neocolonial com elementos do barroco, negligenciando todo um patrimônio em arquitetura

neoclássica e eclética que são os grandes representantes da cultura paulista no que se refere

aos bens tangíveis imóveis.

O fato que mais corrobora com o total descaso relacionado ao patrimônio cultural

paulista frente às políticas federais de preservação foi à ausência de “centros históricos”

tombados até 2009, quando parte do perímetro urbano de Iguape é elevada à categoria de

Patrimônio Cultural Nacional.

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Segundo o “Guia de Bens Tombados” pelo IPHAN, até 2009 haviam 52 municípios

brasileiros com pelo menos um conjunto urbano tombado6, sendo que desses, 10

encontravam-se na Bahia e 10 em Minas Gerais, ou seja, apenas dois estados da federação

concentravam quase 40% do total de conjuntos urbanos tombados e nessa época São Paulo

não possuía nenhum (Mapa 5). Aqui cabe ressaltar que já em 2009 o estado paulista contava

com 10 conjuntos urbanos reconhecidos como patrimônio cultural pelo CONDEPHAAT.

Ao que se refere à totalidade dos bens tombados, é notória a desigualdade que esse

modelo de seleção, adotado pelo IPHAN para eleger os bens que, segundo seus técnicos,

deveriam representar a identidade nacional, impôs à geografia do patrimônio no Brasil,

configurando-se em uma verdadeira geografia desigual do patrimônio nacional. Rubino

(1996) salienta que, em um país de grandes dimensões como o Brasil, o IPHAN desenvolveu

suas atividades de modo marcadamente desigual, onde o conjunto de bens tombados desenha

um mapa de densidades discrepantes nas diversas regiões, períodos e tipos de bens, formando

conjuntos fechados e finitos.

6 Por problemas conceituais, é difícil precisar o número de conjuntos urbanos tombados pelo IPHAN, sendo que o presente

número foi levantado através de uma interpretação do autor dos dados disponibilizados pelo arquivo do órgão federal.

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Quadro 1: Bens Tombados em 2009 e em 1967

Estados Bens 2009 % em 2009 Bens 1967 % em 1967

Acre 0 0 0 0

Alagoas 11 1,05 5 0,76

Amapá 1 0,10 1 0,15

Amazonas 4 0,38 1 0,15

Bahia 184 17,57 131 19,88

Ceará 21 2,01 3 0,46

DF 4 0,38 1 0,15

Espírito Santo 14 1,34 11 1,67

Goiás 23 2,20 17 2,58

Maranhão 20 1,91 8 1,21

Mato Grosso 5 0,48 1 0,15

Mato Grosso do Sul 3 0,29 0 0

Minas Gerais 204 19,48 165 25,04

Para 25 2,39 16 2,43

Paraíba 23 2,20 15 2,28

Paraná 15 1,43 8 1,21

Pernambuco 80 7,64 57 8,65

Piauí 7 0,67 6 0,91

Rio de Janeiro 224 21,39 140 21,24

Rio Grande do Norte 14 1,34 10 1,52

Rio Grande do Sul 38 3,63 13 1,97

Rondônia 2 0,19 1 0,15

Roraima 0 0 0 0,00

Santa Catarina 22 2,10 8 1,21

São Paulo 77 7,35 41 6,22

Sergipe 25 2,39 0 0

Tocantins 1 0,10 0 0

Total 1047 100 659 100

Fonte: Rubino(1996) e IPHAN (2009)

Como pode ser observado no Quadro 1 e no Mapa 6, dos 1.047 bens tidos como

significativos à memória nacional até 2009, apenas 77 estão em território paulista, ou seja,

pouco mais de 7%, número muito pequeno se comparado aos 224 do Rio de Janeiro, aos 204

de Minas Gerais ou aos 184 da Bahia, que somam cerca de 60% do total de bens tombados.

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Quando o IPHAN iniciou sua atuação no estado, a própria capital paulista ainda

resguardava significativos exemplares de edificações em taipa, além de vários municípios do

interior que, sem o respaldo das políticas de preservação, viram seus bens culturais tangíveis

serem desmantelados na segunda metade do século XX (MARINS, 2008b). O patrimônio de

São Luiz do Paraitinga só sobreviveu porque foi, posteriormente, submetido à tutela do órgão

de proteção estadual e por se constituir como um forte elemento de identidade para a

população local, como espaço vivido.

Somente a partir dos anos de 1970 que as questões referentes ao belo passam a ser

problematizadas e isso se dá, segundo Toji (2009), quando a atuação de historiadores ganha

fôlego dentro do IPHAN. Estes passam a incorporar uma visão de patrimônio enquanto

“documento” ou “testemunho” que pudessem representar momentos da história nacional no

interior do instituto.

Ainda nessa década, temos a criação do Centro de Referências Culturais (CNRC) para

o campo do patrimônio imaterial, incorporado pelo IPHAN em 1979, revigorando as práticas

de patrimônio pela noção de referência cultural7, ampliando a ideia de patrimônio e se

aproximando da proposta original de Mário de Andrade, sendo incorporados saberes do

campo da sociologia, da antropologia e da educação ao campo do patrimônio.

Contudo, como pode ser observado no Quadro 1 e no Mapa 7, de 1967 até 2009 houve

uma pequena tentativa de melhorar a representatividade do patrimônio brasileiro, visto que,

com exceção do Rio de Janeiro, que teve sua representatividade acrescida em 0,15%, os

estados de Minas Gerais e Bahia tiveram quedas de 5,5% e 2,3% respectivamente, contra o

crescimento de 2,3% de Sergipe, 1,6% do Rio Grande do Sul, 1,5% do Ceará e 1,1% de São

Paulo. Apesar desta tentativa, é importante ressaltar que os resultados têm sido modestos e

que o mapa do patrimônio nacional continua extremamente desigual, ressaltando a ausência

de Roraima e do Acre.

Os primeiros bens registrados no livro do tombo do IPHAN referentes ao patrimônio

paulista foram as coleções arqueológicas, etnográficas, artísticas e históricas do Museu

Paulista da Universidade de São Paulo e a Capela de São Miguel Paulista, em 1938. De lá

para cá se deram sucessíveis tombamentos de bens isolados, porém, os primeiros conjuntos

urbanos só vieram em 2009 e 2010, respectivamente Iguape e São Luiz do Paraitinga.

Para tratar a questão da gestão do patrimônio em São Luiz do Paraitinga, é importante

abordar as ações do Estado sobre o espaço que repercutem direta, ou indiretamente, sobre a

7 Conceito que busca a atribuição de valor cultural a partir de diferentes sujeitos sociais (TOJI, 2009).

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preservação do patrimônio na atualidade, a relação da ordem distante sobre a ordem próxima,

os conflitos e alianças estabelecidas entre as diversas escalas de poder, principalmente em um

momento de crise como o atual, quando o maior conjunto arquitetônico tombado de São

Paulo sofre com as cheias do Rio Paraitinga. É o que será feito nos capítulos a seguir.

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5. O CONDEPHAAT E A PRODUÇÃO DE UM ESPAÇO URBANO ESQUIZOFRÊNICO

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Inseridos numa década de grandes transformações de parâmetros comportamentais e

de imensas mutações demográficas e espaciais que atingiram as principais cidades

brasileiras, os primeiros órgãos estaduais de preservação atuaram parcialmente na

contracorrente dos cânones estabelecidos pelo IPHAN. (MARINS, 2006b:154)

Aqui iremos analisar como se estabeleceram as políticas paulistas de preservação do

patrimônio cultural, destacando em que contexto da evolução destas se reconheceu a

relevância do patrimônio luizense para São Paulo e os resultados dessas políticas na produção

do espaço geográfico local.

Qualificamos este como esquizofrênico, porque se de um lado os planos da ordem

distante estabeleciam os padrões, modelos e diretrizes de uma cidade racionalmente

produzida, de outro o destino da cidade foi sendo submetido ao contexto econômico e a

dinâmico social local, ou seja, a ordem próxima, resultando em um espaço, hora planejado e

hora produzido à revelia da lei.

Os Compromissos de Brasília (1970) e Salvador (1971), que reuniram os

governadores da maioria dos estados da federação, consolidaram o compartilhamento das

tarefas de proteção do patrimônio cultural entre a esfera federal e os estados. Os primeiros

órgãos estaduais de salvaguarda tiveram sua atuação marcada por ações que contrastavam

com os cânones estabelecidos pelo IPHAN, passando a proteger edificação e núcleos urbanos

não contemplados pelos critérios estabelecidos há décadas pelo órgão federal.

Criado em 1968, o órgão de preservação do patrimônio do estado de São Paulo, o

CONDEPHAAT, teve em seus primeiros anos de atuação que lidar com a tensão de se

posicionar entre os antigos parâmetros herdados pelo IPHAN e uma demanda social que via

suas referências culturais desaparecerem pela crescente especulação imobiliária, tanto na

capital como no interior (RODRIGUES, 1999). Para essa autora, a criação desse conselho só

foi possível quando a burguesia paulista passa a buscar um símbolo identitário, encontrado na

figura do bandeirante. Assim, como elementos edificados desse período são extremamente

escassos no território paulista, os conselheiros optaram pela proteção de construções filiadas

ao neoclassicismo do auge da cafeicultura. Então, se o IPHAN privilegiava a arquitetura

barroca do período colonial, o CONDEPHAAT optou pela arquitetura neoclássica do período

do império, mas novamente a arquitetura era privilegiada.

É importante ressaltar que antecedeu a criação do CONDEPHAAT uma reforma

administrativa iniciada em 1967 no governo de Roberto Costa de Abreu, quando se tem a

criação da Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo do Estado de São Paulo. Nesse momento

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72

são criadas diversas instituições voltadas ao incentivo da cultura, porém ainda não no sentido

da salvaguarda de bens patrimoniais. É deste período a criação da Fundação Padre Anchieta,

do Museu de Arte Sacra, do Museu da Imagem e do Som, da Casa Brasileira e do Paço das

Artes, demonstrando por parte do Estado uma preocupação com o espetáculo e as artes

plásticas.

O projeto de criação de um órgão de proteção do patrimônio paulista tornou-se lei em

22 de outubro de 1968 com o n° 10.247, no contexto político de plena ditadura militar. No

início, o conselho era composto por oito membros, tendo um representante da Secretaria da

Cultura, Esporte e Turismo, um da Universidade de São Paulo (Departamento de História),

um do Instituto de Pré-história, um do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e outro

do Guarujá-Bertioga, um do Instituto de Arquitetos do Brasil, um da Cúria Metropolitana de

São Paulo e um do IPHAN. Em 1975 foram acrescentados ao conselho mais dois

representantes da Universidade de São Paulo (Departamento de História da Arquitetura da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Departamento de Geografia da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas), um da Comissão de Artes Plásticas do Conselho

Estadual de Cultura e um da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Nesse ano tivemos

também a extinção da representação do Instituto Histórico e Geográfico de Guarujá-Bertioga.

Em 1983 tivemos novamente a ampliação do conselho, que passou a contar com 25

conselheiros, com a incorporação de representantes dos Departamentos de Ciências Sociais e

Antropologia de todas as universidades públicas do Estado, ampliação de representantes dos

Departamentos de Geografia, História e História da Arquitetura da Universidade de Campinas

e da Universidade Estadual Paulista, da Secretária da Agricultura e Abastecimento e da

Secretária de Esporte e Turismo8 (RODRIGUES, 1999).

A presença de especialistas das universidades no conselho se justificava pela tentativa

desta em estabelecer trocas entre as práticas preservacionistas e os centros de produção de

conhecimento onde a noção de preservação poderia se ampliar, mas essas trocas foram

tênues, e as ações do CONDEPHAAT se deram de maneira segmentada, exemplo disso foi o

tombamento do Conjunto da Serra do Mar e Paranapiacaba (1985), onde a normativa abarca

apenas as questões do patrimônio natural, sendo incapaz que garantir a salvaguarda de um

importante patrimônio cultural edificado como as ruínas do Presídio da Ilha Anchieta, não

tombado até os dias hoje.

8 A Secretária da Cultura, Esporte e Turismo foi substituída pela Secretária da Cultura e Turismo e a Cultura foi incorporada

em 1979 à Secretária da Cultura, Ciência e Tecnologia.

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A criação do órgão de preservação do patrimônio cultural paulista foi fortemente

ligada a um processo de valorização do passado e da possibilidade do seu consumo pela

atividade do turismo, fato influenciado pelas Normas de Quito de 1967 que buscava

relacionar de maneira direta a preservação do “patrimônio monumental” como possibilidade

de desenvolvimento através da atividade do turismo, o que de certo modo contrastava com as

orientações do IPHAN, visto que este atuava no sentido de valorar o passado enquanto

referência para a constituição de uma suposta nacionalidade, além de fonte de conhecimento

arquitetônico, e não como um bem potencial a ser explorado economicamente.

Nos seus primeiros anos de atuação (1969 a 1975), o CONDEPHAAT volta-se ao

modelo de preservação estabelecido pelo IPHAN (RODRIGUES, 1999), com uma visão

nostálgica do passado, não considerando a vida urbana contemporânea como expressão

cultural, contemplando através de tombamento, bens em arquitetura tradicional,

caracterizando-se em um órgão distante da sociedade, isso devido às condições políticas do

momento, um território nacional sob regime militar, o que dava o tom da relação Estado-

sociedade.

É desse período a abertura do processo de tombamento de São Luiz do Paraitinga, este

fortemente influenciado por estudos realizado nos anos de 1950 pelo IPHAN-SP, quando o

arquiteto Luis Saia esteve à frente da superintendência estadual. À época realizou-se um

sistemático levantamento métrico e fotográfico das edificações antigas do núcleo em questão,

resultando no tombamento, em 1956, da casa onde nasceu o sanitarista Dr. Oswaldo Cruz

pelo órgão federal. Porém, com o falecimento de Saia, esses estudos não foram finalizados

pelos que o sucederam, tendo como justificativa a falta de antiguidade, o pouco valor

artístico, a falta de originalidade desse núcleo e pela política de delegar aos órgãos estaduais

os novos tombamentos a partir de 1970, significando na exoneração por parte do IPHAN de

uma das suas principais obrigações, a da gestão do patrimônio, se dedicando apenas à

pesquisa, ou seja, ao trabalho menos conflituoso.

Nesse sentido, podemos dizer que a abertura do estudo de tombamento de São Luiz do

Paraitinga é o resultado de uma grande influência do IPHAN sobre o conselho paulista,

marcando o caráter conservador do mesmo e o seu distanciamento da população, visto que

mesmo o CONDEPHAAT tendo sido pioneiro na adoção do que Marins (2008b)

denomina de “tombamento de balcão”, política que se inicia em 1983, o processo de

acautelamento de São Luiz foi solicitado pelo conselheiro e arquiteto Eduardo Corona. Ou

seja, esse tombamento não resultou de uma demanda popular, mas sim de uma sinalização

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74

política, esse acautelamento de cima para baixo sem dialogar com a população gerou dúvidas,

visto que a estes não foi explicando as responsabilidades.

Em 1975 inicia-se uma nova fase do conselho paulista, esta se daria até 1982, ano da

homologação do tombamento do centro histórico aqui estudado. Esse período, denominado

por Rodrigues (1999) como “Considerando o Presente”, consiste no estabelecimento de

políticas revolucionárias da preservação do patrimônio, políticas estas que influenciaram

profundamente o estudo de tombamento de São Luiz do Paraitinga.

Nesse período temos a adoção de uma nova postura de proteção, onde não se abarcava

mais apenas o objeto a ser tombado, mas o ambiente em que este se inseria, considerando as

ações humanas que agiam sobre ele. Nesse sentido, a cultura passava a ser entendida como

“coisa viva”. É nesse período que o CONDEPHAAT incorpora aos seus estudos o conceito de

“Patrimônio Ambiental Urbano”, onde elementos como as ruas e a paisagem são somadas as

edificações como parte de um meio ambiente que seriam suporte de memória e, como tal,

suscetíveis ao acautelamento público. É nesse sentido que a arquitetura eclética, tida como

“menor”, passa a ser objeto de tombamento, visto que esta passa a ser considerada um

importante elemento de ambientes urbanos antigos, cuja eleição considera valores como o

afetivo dos grupos sociais. Assim, ao contrário das políticas federais, o tombamento de um

bem apenas pelo seu valor artístico mostra-se desprovido de sentido, já que é o seu uso que

lhe confere atribuição de valor cultural, ou seja, os espaços vividos passam a ser valorados.

Foi esse tipo de postura do conselho estadual que possibilitou, em 1982, que fossem

listados os 426 bens do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, visto que se tivessem

mantido os cânones da primeira fase o número de bens seria bem menor, já que nem todos

possuem influência da arquitetura neoclássica, a mais valorada na fase anterior.

É deste período também que temos o estabelecimento de outras iniciativas também

consideradas revolucionários das políticas de preservação do patrimônio de São Paulo, dentre

elas é possível apontar a grande atenção com as áreas naturais, onde se destaca o tombamento

de todo o conjunto da Serra do Mar e de Paranapiacaba, um dos últimos redutos de Mata

Atlântica preservada no país, além de se listar bairros com vegetação expressiva como o

bairro dos Jardins em São Paulo (1986). Tivemos também, como já mencionado, pouca

ênfase aos tombamentos baseados em inventários sistemáticos, com a prevalência da chamada

“política de balcão”, onde o próprio cidadão poderia indicar um bem que julgasse relevante

para a identidade cultural de um grupo para ser tombado, o que possibilitou o reconhecimento

de bens filiados aos imigrantes, sobretudo japoneses, e da arquitetura industrial e ferroviária.

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75

Sendo assim, incluído no Programa Cidade Históricas do CONDEPHAAT em 1980,

São Luiz do Paraitinga teve o seu estudo de tombamento iniciado em uma fase mais

conservadora do CONDEPHAAT, quando este ainda estava fortemente vinculado às políticas

federais de preservação. Porém, o estudo em questão absorveu os aspectos progressistas da

fase seguinte pelo qual passou o conselho paulista, o que resultou num tombamento de

conjunto e da elaboração de uma normativa que pretendia guiar o planejamento urbano

futuro.

A normativa elaborada prevê, além da proteção do chamado centro histórico em si, da

paisagem que o cerca, mas a ausência de uma fiscalização mais intensa acerca das diretrizes

elaboradas pelo CONDEPHAAT levou a uma intensa ocupação à revelia da lei no entorno no

núcleo urbano bicentenário (Figuras 12 e 13). É importante ressaltar também que, mesmo

após a abertura dos estudos referentes à proteção desse núcleo histórico, em 1969, quando

todos esses imóveis passam a ser tutelados pelo Estado e qualquer intervenção necessitaria de

autorização do mesmo, muitos casarões de taipa passaram por forte descaracterização e até

mesmo foram demolidos, fato justificado pela dificuldade da população local em se enquadrar

a esse novo momento de normatização decorrente da ausência da atuação do órgão e da

dificuldade em se manter financeiramente esses imóveis de manutenção onerosa, ou seja,

tivemos uma dissonância entre a ordem distante e a ordem próxima. Esse fato pode ser

facilmente percebido pela chamada “preservação de fachada”, pois em São Luiz do Paraitinga

grande parte dos painéis pintados nas paredes internas e nos forros se perdeu devido às

intervenções sem as orientações técnicas devidas, a preservação se restringiu basicamente as

fachadas e a volumetria das edificações.

Essa obsessão pelas fachadas levou também a uma reprodução dos padrões

arquitetônicos dos períodos colonial e imperial nas novas construções, os chamados “falsos

históricos” (Figuras 14), mesmo o CONDEPHAAT repudiando esse tipo de obra em seu

estudo de tombamento, exemplares desse tipo estão espalhados por todo centro histórico,

dificultando aos olhos de um leigo a percepção do que é verdadeiro do que é falso.

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76

Figura 12: Centro histórico, em 1978. Fonte: IBGE, 1978.

Figura 13: Centro histórico, em 2007. Fonte: Danilo Pereira.

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77

A Resolução de Tombamento (SC-55 de 1982) estabeleceu uma normativa que, além

de regrar a situação presente, pretendia estabelecer como deveria se dar o desenvolvimento

desse núcleo urbano. Em um primeiro momento o presente processo realiza uma descrição

das características desse sítio, como o histórico, zona envoltória, traçado urbano, tipologia e

cronologia das edificações, usos das edificações, estado de conservação e regime de posse do

imóvel. A resolução solicitava ainda que o presente núcleo fosse prioridade dos órgãos de

proteção municipal, estadual e federal em seus programas devido à sua importância como

patrimônio representante do período cafeicultor na região, ou seja, como foi discutido no

capítulo anterior, a ordem distante incorpora o discurso da ordem próxima.

Após essa análise, é definida a proposta de atuação, como os graus de proteção de

cada edificação e as diretrizes para as novas construções no centro histórico ou na área

envoltória. Nesse momento o conjunto em questão é dividido em Centro Histórico I e Centro

Histórico II, onde o primeiro corresponderia à área com as melhores habitações, com a

presença de grandes sobrados do século XIX, construídos pelas famílias mais abastadas, onde

a resolução ressaltava que estas possuíam influência da arquitetura urbana observada em

Minas Gerais e que, pela homogeneidade e peculiaridade, esse conjunto se tornava único no

estado de São Paulo.

Figura 14: Falso histórico na Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2011. Fonte: Danilo Pereira.

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78

Esta área deveria ser considerada de proteção proeminente, todas as intervenções

ficariam sob controle da PMSLP e do CONDEPHAAT, sendo que o estudo em questão ainda

apontava a necessidade da adoção de ruas de pedestre e reestruturação do tráfego nessa zona,

o controle de publicidade, iluminação e sinalização, fixação de gabarito máximo de dois

pavimentos e a utilização do rio para compor a ambiência do conjunto.

O Centro Histórico II se caracteriza por edificações de menor porte e alguns sobrados

isolados, ressaltando que essas foram as que sofreram maior descaracterização. Essas zonas

deveriam receber tratamento diferencial quanto ao rigor das intervenções físicas propostas,

sendo assim, essa zona têm sua preservação necessária para se manter a harmonia do Centro

Histórico I, onde se limita a altura e a volumetria das edificações. Sendo assim, o que se

objetivava era garantir à preservação dos bens ligados à elite local, não dos bens como um

todo.

Além do estabelecimento dessas duas zonas de proteção definidas em função dos

correspondentes valores artísticos, estabeleceu-se graus de proteção para cada imóvel

individualmente, levando-se em conta o seu grau de conservação, usos, manutenção dos

espaços internos e o período da construção, assim se estabeleceram os seguintes graus de

proteção:

GP1 Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou

funções análogas às originais e que possuem os espaços internos preservados. Essas

deveriam ser conservadas integralmente.

GP1a Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou

funções análogas às originais e que possuem os espaços internos preservados. Essas

passaram por algum tipo de descaracterização, contudo passíveis de restauração.

Elas deveriam ser conservadas integralmente, além de passar por um processo de

restauração.

GP2 Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou

funções análogas às originais, estas passaram por algumas descaracterizações

impossíveis de serem restauradas devido à indisponibilidade dos elementos

primitivos. Assim, essas edificações deveriam ter a fachada, cobertura e volumetria

preservadas.

GP3 Imóveis construídos no século XX. Essas deveriam ser preservadas para se manter o

visual do conjunto, podendo ser reformadas, desde que mantido o equilíbrio urbano.

GP4 Novas edificações. Aqui a resolução de tombamento salienta que deveriam ser

evitadas soluções que conduzissem a imitação do antigo, porém, respeitando a

homogeneidade do núcleo urbano, seja em sua volumetria, utilização de cores ou na

relação com a paisagem.

Quadro 2: Grau de Proteção dos imóveis tombados pelo CODEPHAAT: Fonte: SC-55 de 1982.

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79

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Quanto à Zona Envoltória, definia que se deveriam determinar as áreas passíveis de

ocupação urbana para que estas fossem incorporadas de maneira organizada ao centro

tombado, e que se mantivesse a paisagem do seu entorno para que esta servisse de cenário ao

núcleo bicentenário.

A presente resolução apontava ainda o estabelecimento de ruas para pedestre,

enfatizando que as mesmas não foram dimensionadas para a circulação de veículos e

proporcionando ao citadino a utilização plena de certos espaços urbanos, ou seja, uma

preocupação com o espaço vivido, além de se evitar que a circulação de veículos danificasse a

estrutura das edificações. Em consequência do estabelecimento dessas ruas de pedestres seria

necessária a implantação de áreas de estacionamento para os moradores dessas ruas restritas,

a implantação de uma nova ponte na Rua Benfica para desviar o tráfego do centro histórico, a

necessidade de ampliação da rede hoteleira, visto que para o CONDEPHAAT a vocação

turística de São Luiz do Paraitinga era clara, e o remanejamento do Terminal Rodoviário para

fora do centro histórico. É importante salientar que a presente Resolução de Tombamento já

previa uma intensa ocupação das margens do Rio Paraitinga, porém a única preocupação

desta era em se manter a ambiência e não com as questões ambientais.

Apesar de Rodrigues (2000) afirmar que a próxima fase do conselho paulista, que ela

denominou de “Tempos de abertura”, referente ao período de 1982 a 1987, buscava uma

aproximação entre o CONDEPHAAT e a sociedade, com o fim do regime de exceção,

tornando-se um órgão de pesquisa da memória com forte interação com as populações locais,

no caso de São Luiz do Paraitinga essa atuação não se realizou, esse sempre foi tido pelos

luizenses como um órgão distante, burocrático, frágil e ineficiente, visto que não conseguiu

implantar as normativas que estabeleceu na Resolução de Tombamento, com exceção da

realocação do Terminal Rodoviário. Porém, é importante ressaltar que não se pode colocar

nos conselheiros e técnicos a responsabilidade pela falta de eficácia do mesmo, mas sim no

fato deste, como um órgão de Estado, estar submetido a um governo que sempre privilegia os

interesses econômicos em detrimento dos interesses sociais. Para este governo não interessa

um órgão de patrimônio forte e atuante, visto que isso impossibilitaria a manutenção da atual

política econômica, totalmente submetida aos interesses da especulação imobiliária.

Mais recentemente, em 2006, a Secretária de Estado da Cultura passou por um

processo de reestruturação e, nesse processo, o CONDEPHAAT também sofreu mudanças. A

mais significativa foi a criação da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH),

unidade submetida diretamente ao gabinete do secretário e que passou a ter como atribuição

inventariar o patrimônio cultural e natural, coordenar o Grupo de Conservação e Restauro de

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Bens Tombados, além de servir de núcleo de apoio administrativo ao CONDEPHAAT,

cabendo ao conselho apenas a deliberação de estudos e projetos elaborados pela UPPH. Essas

mudanças podem ser encaradas como uma tentativa de atrelar cada vez mais as decisões ao

controle da Secretaria da Cultura.

Em 2006 também tivemos uma reorganização da estrutura do conselho paulista, com

um fortalecimento dos representantes do governo em detrimento dos representantes das

universidades e da sociedade. Passaram a ser dez conselheiros indicados diretamente pelo

governo (quatro da Secretária da Cultura, um da UPPH, um da Secretária do Meio Ambiente,

um da Secretária de Esporte, Lazer e Turismo, um da Secretária da Justiça e Defesa da

Cidadania, um da Secretária da Economia e Planejamento e um da Procuradoria Geral do

Estado), treze representantes das universidades públicas paulistas (Departamentos de História,

Geografia, História da Arquitetura, Antropologia ou Sociologia e do Museu de Arqueologia e

Etnologia da Universidade de São Paulo), dois representantes de diversos seguimentos da

sociedade (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil e Instituto de Arquitetos do Brasil) e

um do IPHAN.

Nesse sentido, esse processo de fragmentação da estrutura administrativa com a

criação do UPPH e a maior presença do governo na composição do conselho têm uma clara

intenção de enfraquecer o CONDEPHAAT, tornando-o ainda mais suscetível aos interesses

do capital imobiliário, mesmo que estas reformas possuam o discurso de modernizar, agilizar

os estudos de tombamento e de se aproximar da sociedade.

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6. O IPHAN E O SALVAMENTO DE UM PATRIMÔNIO CULTURAL NACIONAL

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Mesmo críticos renitentes aceitariam que a experiência de preservação do assim

chamado “patrimônio histórico e artístico nacional” constitui a política cultural mais

bem-sucedida na área pública deste país. E tal concordância poderia ocorrer a

despeito do fato de cada um deles manifestar reservas de bom calibre quer quanto ao

conteúdo doutrinário cristalizados pela expressão entre aspas quer no tocante à

substância factual a que cada um dos termos remete (MICELI, 1987)

Nesse momento iremos discorrer sobre como se estabeleceram as políticas federais de

preservação do patrimônio cultural, ou seja, sobre a trajetória do IPHAN nos seus 74 anos de

existência, claro que de maneira sucinta. Destacaremos os fatos políticos, visto que os

relacionados às suas ações e os resultados que estes produziram sobre o mapa desigual do

patrimônio cultural brasileiro já foram contemplados anteriormente.

A partir da análise desse contexto político, procuraremos entender em que momento e

circunstância, levando-se em conta a relação da ordem distante e a ordem próxima (Lefebvre,

1991), se deu o tombamento do conjunto urbano de São Luiz do Paraitinga.

O IPHAN foi criado em 1937 pelo decreto-lei n° 25, que regulamentava a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional por meio do tombamento. Porém, foi na constituição

de 1934 que tivemos a primeira referência à proteção de bens culturais pela esfera estatal no

Brasil, quando se dispôs que “cabe à União e aos Estados proteger as belezas naturais e os

monumentos de valor histórico e artístico...” (BRASIL, 1934), ou seja, temos a consagração

do patrimônio histórico e artístico como um princípio constitucional.

O decreto-lei n° 25 organizou a proteção dos bens culturais brasileiros através do

tombamento, efetivando-se quando o presente bem é inscrito em um ou mais dos quatro livros

do tombo criado pelo mesmo decreto-lei, o Livro do Tombo Arqueológico, Etnológico e

Paisagístico; o Livro do Tombo Histórico; o Livro do Tombo das Belas Artes e o Livro do

Tombo de Artes Aplicadas. Esses livros possuem status diferentes dentro da instituição, sendo

o Livro do Tombo das Belas Artes o de maior prestígio.

Nos seus primeiros trinta anos de atuação, de 1937 até 1967, denominado “Fase

Heroica” por Fonseca (1997), sob a direção de Rodrigo de Mello Franco de Andrade, foram

responsáveis por instituir uma política federal de preservação, marcando uma posição oficial

do Estado na questão da salvaguarda da memória. Porém, é importante marcar que esse

período também foi marcado pelo atendimento de interesses específicos e não coletivos,

principalmente aos interesses do Estado e dos intelectuais modernistas.

Temos nesse momento uma busca incansável por uma cultura e uma identidade

“autenticamente brasileira”, encontrada nos bens do período colonial, em especial as

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signatárias do barroco mineiro. Fonseca (1997) salienta que nesse momento a eleição dos

bens a serem listados não era embasada por estudos e pesquisas, mas sim pelas escolhas feitas

pelos técnicos, não sendo necessário formular justificativas, prevalecendo as características

estéticas, onde o caráter histórico era secundário.

O decreto-lei n° 3.534 de 1946 criou quatro distritos sedes do IPHAN, em Belo

Horizonte, São Paulo, Salvador e Recife. É nesse momento que temos por parte da sede

paulista o início dos estudos referentes à relevância do patrimônio cultural de São Luiz do

Paraitinga, sob a coordenação do arquiteto Luis Saia. À época realizou-se um profundo

estudo dessas edificações, porém, como elas não se enquadravam nos cânones da instituição

no presente momento, o seu tombamento foi negado e esses estudos foram encaminhados na

década seguinte ao CONDEPHAAT, para que este realizasse o tombamento.

A segunda fase, que Fonseca (1996) denomina de “Fase Modernista”, se inicia em

1967 e vai até o fim dos anos 1980, quanto esta autora termina a sua análise. Sob a direção de

Renato Soeiro, esta fase foi marcada por uma nova política de tombamento, voltada mais para

a salvaguarda de conjuntos urbanos, este como uma resposta à crescente especulação

imobiliária e à atividade turística. Assim, a ideia de ambiência foi criada para possibilitar a

inclusão de outros estilos arquitetônicos que anteriormente não eram aceitos, tentando manter

a volumetria dos imóveis do entorno, dificultando a ação dos especuladores.

Promovido pelo Ministério da Educação em 1970 e 1971, os encontros dos

governadores tiveram como objetivo promover a discussões acerca das medidas necessárias à

defesa do patrimônio cultural brasileiro. Como resultado desses encontros tivemos,

respectivamente, o Compromisso de Brasília e o Compromisso de Salvador, estes

estabeleciam o compartilhamento da preservação do patrimônio com os municípios e os

estados, buscando estabelecer políticas locais de salvaguarda dos bens culturais. Aqui cabe

salientar que é nesta conjuntura que tivemos a criação do CONDEPHAAT, mesmo esta se

dando anos antes, em 1968.

Com a criação do órgão de proteção paulista, o IPHAN de São Paulo delega a este os

novos tombamentos, se exonerando em tombar e gerir o patrimônio cultural, suas principais

funções. Assim, o tombamento federal do núcleo urbano estudado aqui se torna cada vez mais

distante.

Até então de caráter estritamente cultural, o IPHAN foi fortemente influenciado nos

anos de 1950 e 1960 pela ideologia do desenvolvimentismo, atrelando o nacionalismo aos

valores modernistas. Nesse período temos a eleição de um novo estilo arquitetônico como

subsídio da identidade nacional, a arquitetura modernista no estilo Oscar Niemayer.

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Em 1979 temos a criação da Fundação Pró-Memória (FNPM), esse fato significou o

estabelecimento de uma nova dinâmica do órgão federal, acarretando uma reformulação do

mesmo com a manutenção dos instrumentos legais que lhe conferiam eficácia. A FNPM tinha

como finalidade realizar inventários, classificação, conservação, proteção, restauração e

revitalização dos bens culturais, enquanto o IPHAN coordenava e dirigia as atividades de

preservação dos bens culturais.

Em 1985 temos a criação do Ministério da Cultura (MinC), e tanto o IPHAN como a

FNPM ficam sob tutela do mesmo. A criação deste ministério não foi resultado de uma

reivindicação popular, mas sim de um arranjo político. Mesmo agora a cultura tendo pela

primeira vez um ministério próprio, as questões referentes a este continuavam secundárias

(FONSECA, 1996).

Em 1988 tivemos a promulgação da nova Constituição, nesse momento o Estado

abarca a questão cultural de maneira mais abrangente através dos artigos 215 e 216, com a

ampliação da noção de patrimônio cultural e com o surgimento de um novo agente frente a

esse processo, a sociedade em parceria com o Estado. Porém, mesmo assegurado pela

constituição, os mecanismos públicos de preservação do patrimônio passaram por um

processo de desmantelamento no governo de Fernando Collor, quando temos a extinção do

MinC e do IPHAN em 1990, tornando-se respectivamente a Secretaria da Cultura e Instituto

Brasileiro de Patrimônio Cultural, o que dá início ao que denominaremos terceira fase do

IPHAN.

Esse desmantelamento da área da cultura foi somado com a aprovação da Lei Rouanet,

que permitia que projetos de incentivo à cultura recebessem patrocínio e doações de empresas

e pessoas físicas, podendo estes virem a ter parte dos benefícios concedidos abatidos no

Imposto de Renda. Esse fato efetivou a cooptação da esfera da cultura pelo mercado, de

maneira que apenas os projetos de grande visibilidade, portanto, os que possuíam maior

capacidade de gerar lucro tivessem agentes financiadores, uma verdadeira “privatização” da

cultura e do patrimônio, cabendo ao Estado apenas a aprovação das ações.

Com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da Republica, quando

temos o início da quarta fase do IPHAN, o MinC é recriado e o IPHAN é efetivado como uma

entidade integrada a Administração Pública Federal, revigorando assim a atuação dos órgãos

oficiais de cultura.

A questão mais importante referente a essa temática no presente período refere-se à

institucionalização do patrimônio imaterial, redefinindo as diretrizes de preservação no Brasil.

Instituído pelo Decreto n° 3.551 de 2000, juntamente com o Programa Nacional do

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Patrimônio Imaterial (PNPI), tendo como objetivo fomentar e buscar estabelecer parcerias

entre as instituições federais, estaduais, municipais, universidades, organizações não

governamentais, agências de desenvolvimento e fomento ligadas à cultura, pesquisa e

educação.

Com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 2003 não tivemos grandes mudanças

na estrutura do MinC e do IPHAN, porém houve mudanças significativas nas políticas de

ambos, principalmente no que tange o direcionamento dos recursos por meio dos Pontos de

Cultura e no estabelecimento das prioridades. Contudo, as mudanças mais significativas

referem-se ao início de uma política de reconstituição dos quadros administrativos e técnicos

do IPHAN, caracterizando uma nova fase desse instituto, portanto, a quinta fase. Através de

concursos públicos, novos quatros são incluídos ao corpo técnico e administrativo,

revitalizando suas ações em relação às políticas de patrimônio, com uma maior disposição

para o diálogo com a sociedade e pela busca por uma melhor representatividade do

patrimônio nacional, visto que as tentativas anteriores foram insuficientes.

É deste período também a aprovação do regimento interno do IPHAN, neste se

estabelece que é de competência do presente instituto proteger, fiscalizar, promover, estudar e

pesquisar o patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, são estabelecidas as ações de rotina

do órgão, como as vistorias, visitas técnicas e fiscalizações, análises de processos e aprovação

de projetos, emissão de autorizações, notificações e embargos, acompanhamento da execução

de intervenções e projetos e a adoção de medidas legais no caso de danos aos bens tombados.

Nessa nova conjuntura política, temos em 2007, quase cinquenta anos depois, a

reabertura de estudos acerca da possibilidade de realizar novos tombamentos em São Paulo,

com destaque para os conjuntos urbanos de Santos, Iguape e São Luiz do Paraitinga.

Dessa maneira, em dezembro de 2009 Iguape é declarada Patrimônio Cultural

Nacional, constituindo-se no primeiro conjunto urbano tombado pelo poder público federal no

estado de São Paulo. Tal tombamento fez parte de uma série de ações do IPHAN no Vale do

Ribeira (tombamento dos bens da imigração japonesa, estudo da Paisagem Cultural,

inventário de referências culturais, ações de educação patrimonial). Cabe ressaltar que o

presente tombamento não se restringe apenas ao núcleo urbano, um conjunto composto por 60

imóveis, mas também pelo registro do Morro da Espia, responsável pelo abastecimento de

água doce dos primeiros grupos humanos que habitavam a região e pelos vários sítios

arqueológicos encontrados e cadastrados anteriormente pelo IPHAN na localidade, e pelo

Setor Portuário (Canal do Valo Grande e Estuário Lagunar do Mar Pequeno) por se constituir

como um importante testemunho da relação intrínseca entre o conjunto urbano e as águas.

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A definição dessa grande área a ser tombada foi estabelecida de forma participativa,

onde a população foi sistematicamente ouvida em vários encontros promovidos pela

superintendência do IPHAN de São Paulo e a Prefeitura Municipal de Iguape com a

população, prova desse fato foi a abertura da Casa de Patrimônio do Vale do Ribeira nesse

município, mesmo antes do seu tombamento.

Porém, esse processo participativo não ocorreu no caso do tombamento de São Luiz

do Paraitinga, talvez isso tenha ocorrido pelo fato de ter se congregado ao tombamento de

Iguape justamente os novos técnicos aprovados nos últimos concursos públicos, com uma

visão mais democrática de patrimônio, e no caso de São Luiz do Paraitinga seguiu-se o

mesmo modelo e abordagem tradicional. Assim, se desenhava novamente um tombamento

autoritário de cima para baixo, no mesmo modelo ao efetuado pelo CONDEPHAAT em 1982.

Contudo, vítima de um desastre natural, São Luiz do Paraitinga tem seu centro

histórico arrasado pela maior cheia já registrada do Rio Paraitinga, em janeiro de 2010. Dessa

maneira, a sociedade cobra do IPHAN um posicionamento oficial na recuperação desses bens,

e esse órgão tomba em caráter emergencial o presente centro histórico e a paisagem do seu

entorno em março do mesmo ano, mesmo antes de ter seu dossiê concluído, uma vez que essa

ação era necessária para embasar juridicamente suas ações no município.

Nesse momento é deslocada para São Luiz uma equipe do IPHAN de Goiás,

responsáveis pela recuperação da cidade de Goiás Velho depois de cheia do Rio Vermelho em

2000. Inúmeras obras de salvamento são iniciadas, entre elas se destacam o salvamento dos

remanescentes das Igrejas Matriz e das Mercês e o escoramento de vinte edificações que

possuíam risco iminente de ruir, além de obras emergenciais na Igreja do Rosário e na casa

Dr. Oswaldo Cruz, estas duas últimas, mesmo não tendo sido afetadas diretamente pela

enchente, encontravam-se em precário estado de conservação.

Enfim, quase sessenta anos depois do início dos primeiros estudos referentes à

relevância de São Luiz do Paraitinga como patrimônio cultural pelo IPHAN, temos o seu

reconhecimento como Patrimônio Cultural Nacional em 10 de dezembro de 2010, em uma

reunião do Conselho Consultivo do IPHAN no Palácio Gustavo Capanema, na cidade do Rio

de Janeiro, com o acautelamento de mais de 450 imóveis numa área superior a 6,5 milhões de

metros quadrados.

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Nesse sentido, podemos concluir que, como aponta Scifoni (2006), o processo de

valorização dos bens tem, antes de qualquer coisa, um caráter político, a definição do que tem

valor e do que não tem implica uma escolha, uma seleção que ocorre segundo padrões de

aceitação social que tem uma historicidade, ou seja, os bens são suporte físico de valores que

lhes são conferidos de acordo com as condições presentes em cada momento da história.

6.1. O IPHAN como protagonista de um processo de recuperação

A grande inundação do réveillon de 2010, quando choveu intensamente em toda a

Bacia do Rio Paraitinga, resultou na elevação de cerca de 14 metros do nível do rio. Só para

se ter uma ideia da magnitude dessas chuvas, o Rio Paraitinga despeja na Represa de

Paraibuna, segundo a Companhia Energética de São Paulo (CESP), cerca de 80 mil litros de

água por segundo, no pico da inundação chegou a despejar 2 milhões de litros por segundo.

Com esse desastre e a grande cobertura que a mídia deu ao evento, a reconstrução e a

restauração de imóveis tombados em São Luiz do Paraitinga passam a ser prioridade da

Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e do MinC que, através dos seus respectivos órgãos de

patrimônio, passam a atuar de maneira mais sistemática através de intervenções diretas e de

fiscalizações com a instalação de escritórios técnicos no município.

Para guiar esse processo de reconstrução é necessário considerar as Resoluções do

CONDEPHAAT, a de tombamento em 1982 e a complementar de 2010, e o Tombamento do

IPHAN de 2010, sem desconsiderar as recomendações internacionais por meio das Cartas de

Patrimônio da UNESCO para conferir legitimidade a esse processo.

Nesse sentido, a Carta de Veneza de 1964 (IPHAN, 2004) é o principal documento

orientador das intervenções em imóveis de interesse cultural. O seu artigo 3° sugere que “a

conservação e a restauração de monumentos visam à salvaguarda tanto da obra de arte quanto

do testemunho histórico”, sendo assim, para garantir à sobrevivência do monumento a

restauração é aceita.

No artigo 9°, a mesma carta sugere que a restauração é “uma operação que deve ter

caráter excepcional. Tem por objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do

monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos.

Termina onde começa a hipótese; no plano das reconstituições conjecturais, todo trabalho

complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á

da composição arquitetônica e devera ostentar a marca do nosso tempo. A restauração será

sempre precedida e acompanhada por um estudo arqueológico e histórico do monumento”.

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Nesse sentido, a carta indica que se devem respeitar os remanescentes das edificações, visto

que estes são os documentos autênticos.

Como em São Luiz do Paraitinga o pau a pique e a taipa mostraram ser totalmente

vulneráveis a eventos extremos de inundação, onde “as técnicas tradicionais se revelaram

inadequadas, a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as

técnicas modernas de conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por

dados científicos e comprovada pela experiência”, diz o artigo 10° da Carta de Veneza. Então,

entendemos que os materiais remanescentes devem ser preservados, porém, para garantir à

sobrevivência desses bens a eventuais inundações futuras, estes devem ser recompostos com

o emprego de materiais resistentes.

Já a Carta de Burra de 1980 (IPHAN, 2004) estabelece, no artigo 17°, que a

“reconstrução deve ser efetivada quando constituir condição sine qua non de sobrevivência de

um bem cuja integridade tenha sido comprometida”, ressaltando no artigo 19° que “a

reconstrução deve limitar-se à reprodução de substâncias cujas características são conhecidas

graças ao testemunho material e/ou documental”. Assim, no caso de São Luiz do Paraitinga, a

reconstrução dos imóveis é aceita por haver levantamentos métricos e arquitetônicos de todos

os imóveis tombados pelos órgãos de preservação.

A Carta de Nairobi de 1976 (IPHAN, 2004), que dispõe sobre as recomendações

relativas à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea, coloca

como um dos seus princípios gerais que “cada conjunto histórico ou tradicional e sua

ambiência deveriam ser considerados em sua globalidade, como um todo coerente, cujo

equilíbrio e um caráter específico dependem da síntese dos elementos que o compõem e que

compreendem tanto as atividades humanas quanto as construções, a estrutura espacial e as

zonas circundantes. Desta maneira, todos os elementos válidos, incluídas as atividades

humanas, desde as mais modestas, têm, em relação ao conjunto, uma significação que é

preciso respeitar”. Sendo assim, as reconstruções precisam ser pensadas em conjunto, não

como reconstruções de imóveis isolados, deve ser levada em consideração a relação dos

luizenses com o presente conjunto urbano em sua totalidade, visto que este, como já foi

discutido, configura-se como o lugar da vida, espaço vivido e suporte da identidade local.

Portanto, mostra-se importante a reconstituição do mesmo para que essas relações espaciais

persistam.

Por fim, a Carta de Nara de 1994 (IPHAN, 2004) dispõe sobre autenticidade e afirma

no artigo 13° que “dependendo da natureza do patrimônio cultural, do seu contexto cultural, e

da sua evolução através do tempo, os julgamentos de autenticidade podem estar ligados ao

Page 91: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

91

valor de uma grande variedade de fontes de informação. Entre os aspectos destas fontes,

podem estar incluídos a forma e o desenho, os materiais e a substância, o uso e a função, as

tradições e as técnicas, a localização e o enquadramento, o espírito e o sentimento, bem como

outros fatores internos e externos. O uso destas fontes permite a elaboração das específicas

dimensões artística, histórica, social e científica do patrimônio cultural que está a ser

examinado”. Nesse sentido, quando a carta evoca o uso, a função, as tradições, o espírito e o

sentimento como fatores responsáveis pela conferência de autenticidade dos bens, há como

contestar a legitimidade do patrimônio de São Luiz do Paraitinga? Depois de tudo o que foi

discutido neste trabalho até aqui, a relação do lugar e da identidade em Carlos (1996) e de São

Luiz como o espaço da vida em Lefebvre (1991), não restam dúvidas quanto a sua

autenticidade.

Contempladas as questões de legitimidade desse processo de recuperação do centro

histórico no âmbito internacional, é necessário entender quais são as diretrizes adotadas pelos

órgãos de patrimônio, ou seja, as normativas que efetivamente guiaram esse processo. Sendo

assim, é necessário iniciar pelas determinações da Resolução de Tombamento do

CONDEPHAAT (SC-55 de 1982), que especifica o grau de proteção de cada imóvel, se ele

deve ser integralmente ou parcialmente conservado para garantir a harmonia do conjunto, o

que exige, por parte de intervenções em determinados imóveis, a adoção de métodos

científicos de restauração. Não entraremos com mais detalhes aqui, visto que essa resolução

já foi sistematicamente descrita anteriormente.

No que se refere ao tombamento do IPHAN, este ainda não possui uma normativa

específica, está sendo construída em parceria com a população local, porém, trata-se de um

tombamento paisagístico, cujos limites extrapolam os estabelecidos pelo CONDEPHAAT,

contudo este se preocupa com a relação estabelecida entre os imóveis e as medidas das

quadras, quanto ao seu aspecto exterior, principalmente em relação às elevações frontais,

incluindo os panos de cobertura, a volumetria.

Quanto à Resolução Complementar à de Tombamento de 2010 (SC-3 de 2010), fruto

de discussões entre o Conselho, técnicos da UPPH e o IPHAN, estabeleceu-se diretrizes

específicas para a reconstrução e reformas dos imóveis atingidos pela inundação, orientando-

se a utilização de técnicas e materiais resistentes a possíveis futuras inundações, onde as

edificações com grau de proteção GP1 e GP2 e perda estrutural igual ou superior a 50%

deveriam ser recompostos com alvenaria estrutural. Nas intervenções realizadas nas

edificações parcialmente arruinadas, com menos de 50% de perda estrutural, a restauração

Page 92: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

92

deveria, preferencialmente, utilizar as mesmas técnicas construtivas dos remanescentes.

Como vimos, estas determinações estão de acordo com as Cartas Patrimoniais da UNESCO.

A resolução exige ainda que se respeitem as dimensões das paredes originais, que as

fachadas sejam recompostas de acordo com seus elementos decorativos e seus materiais

originais, que a volumetria e os telhados sejam respeitados. Apesar desta resolução ter sido

estabelecida em parceria entre o CONDEPHAAT e o IPHAN, no que se refere às técnicas de

restauração adotadas, é importante salientar que a posição deles tem sido divergentes em

muitos casos, o que tem acarretado muita morosidade na aprovação e execução de algumas

obras.

Mostra-se justo e necessário reconhecer o importante papel que o IPHAN

desempenhou no processo de salvamento dos remanescentes da Igreja Matriz e da Capela das

Mercês, o que possibilitou que à população fossem devolvidos vários objetos, dentre eles

importantes imagens sacras de extrema relevância para as memórias dessas pessoas, como a

imagem de Nossa Senhora das Mercês do século XVIII (Figuras 15 e 16), construída em terra

cota e que fora encontrada em 82 pedaços sobre os escombros da capela dedicada a ela, além

dos elementos integrados das edificações, suscetíveis a serem reincorporados aos novos

templos.

É importante salientar o papel que a população local teve nesse processo de

salvamento, visto que, mesmo antes das equipes técnicas dos órgãos competentes chegarem à

cidade logo após a inundação, a população já havia retirado dos escombros inúmeros objetos

que para eles serviam como sustentáculos de identidade, muitas vezes deixando seus próprios

pertences pessoais em segundo plano. Essa atitude foi muito valorizada pelos órgãos de

patrimônio, em especial pelo IPHAN, influenciando de maneira decisiva em suas ações, que

posteriormente contratou essas pessoas para dar continuidade às obras de salvamento, assim

como na reconstituição dos imóveis.

Após esse primeiro momento de salvamento, mostrou-se necessário estabelecer um

planejamento em conjunto entre IPHAN, CONDEPHAAT e PMSLP para o estabelecimento

de uma estratégia que visasse a reconstrução, recomposição e restauração dos imóveis

tombados. Porém, houve uma clara cisão entre a esfera federal e a estadual, onde a PMSLP, a

esfera mais fraca, não conseguindo impor sua posição perante o governo federal e o estadual

opta por se aliar, por questões partidárias, à esfera estadual. Assim, o IPHAN se viu isolado, e

esse fato pode ser comprovado pelo descaso da prefeitura na Reunião do Conselho do

IPHAN, que deliberou pelo tombamento definitivo de centro histórico em questão, quando

nenhum representante da mesma esteve presente.

Page 93: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

93

Figura 15: Nossa Senhora das Mercês, após restauração. Fonte: Biapó (2010)

Figura 16: Nossa Senhora das Mercês, antes da restauração. Fonte: Biapó (2010).

Page 94: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

94

Figura 18: Igreja Matriz, antes das obras de salvamento. Fonte: Biapó (2010)

Figura 17: Igreja Matriz, após as obras de salvamento. Fonte: Biapó (2010)

Page 95: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

95

Esse fato forçou o IPHAN a eleger outros parceiros nesse processo de recuperação.

Assim, temos a entrada de duas instituições civis locais nesse processo, o Instituto Elpídio dos

Santos (IES) e a recém-criada Associação dos Amigos para a Reconstrução e Preservação do

Patrimônio Histórico de São Luiz do Paraitinga (AMI São Luiz). Essa parceria só foi possível

porque, nesse momento dramático, tivemos o alinhamento de um grupo de técnicos do

instituto mais sensíveis às questões que envolviam esse processo, que entenderam ser o

patrimônio cultural luizense um elemento de coesão entre a população e o poder público.

O IES é um tradicional órgão de valorização da cultura local, que tem como

fundadores os filhos do compositor Elpídio dos Santos, e que passa a desempenhar um

importante papel de salvaguarda do patrimônio após o convênio firmado com o IPHAN.

O presente convênio foi responsável pelo repasse de verbas para a restauração integral

da Igreja do Rosário, único templo católico do centro histórico que não fora atingido pelas

águas do Rio Paraitinga, mas que se encontrava em péssimo estado de conservação, sendo

condenada pelo IPT em 2008. É importante salientar que, mesmo esse edifício não possuindo

nenhum valor artístico por se constituir em uma edificação em estilo neogótico, totalmente

destoante do conjunto, ele é de extrema importância para a salvaguarda das memórias dessa

comunidade, fortemente católica e que passou pelo drama de perder seus principais templos

religiosos. Sendo assim, podemos considerar que esse fato representa a vitória do espaço

vivido sobre o concebido, é o reconhecimento deste espaço da vida pela ordem distante.

Esse convênio prevê ainda a restauração completa de outro bem de extrema

importância para o presente conjunto urbano, a Casa Dr. Oswaldo Cruz, que se converterá em

um “Museu da Reconstrução”. As obras emergenciais já foram concluídas e o seu restauro

completo aguarda a conclusão do projeto arquitetônico.

A parceria entre o IPHAN e o IES também apoia diversas ações do AMI São Luiz,

uma entidade comunitária que possui como finalidade contribuir na articulação da sociedade

civil e a iniciativa privada com o poder público, em especial com os órgãos de patrimônio.

Esta vem captando recursos para serem aplicados nas áreas em que o poder público não tem

condições de atuar, se configurando como uma resposta da comunidade local às limitações

das políticas públicas de preservação do patrimônio no Brasil. Foram essas ações da

comunidade local que sensibilizaram o IPHAN quanto às questões dos imóveis particulares e,

por meio dessa parceria firmada com o IES, dois imóveis privados serão reconstruídos no

centro histórico com custeio público.

Page 96: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

96

Figura 19: Asilo de São Vicente, após reforma. Fonte: AMI São Luiz (2010).

Figura 20: Asilo de São Vicente, antes da reforma. Fonte: AMI São Luiz (2010)

Page 97: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

97

A atuação da AMI São Luiz tem se concentrado na elaboração de projetos em parceria

com o IES e na doação de recursos para a restauração de imóveis privados de famílias

carentes, entendendo que não se pode falar em São Luiz do Paraitinga enquanto seus

moradores não estiverem ocupando novamente o espaço urbano que lhes pertence, visto que

este é fato que confere a São Luiz do Paraitinga grande particularidade dentre os conjuntos

tombados no Brasil, ser ocupado pela população local. Nesse sentido, destaca-se a execução

do projeto e das obras de recuperação da Vila São Vicente de Paula (Figuras 19 e 20), um

asilo, permitindo o retorno de um grupo de idosos que ali moravam até o réveillon de 2010,

quando foram transferidos para Taubaté.

Voltando as ações do IPHAN, em parceria com o IES e a AMI São Luiz, temos o

quadro abaixo onde são sistematizadas as obras executadas, em execução e a serem

executadas pelo IPHAN em São Luiz do Paraitinga:

Quadro 3: Obras do IPHAN na recuperação de São Luiz do Paraitinga

Obra Valor (R$)

Salvamento dos remanescentes das Igrejas Matriz e Mercês, trabalho de limpeza e

escoramento de 20 imóveis públicos e privados (executado)

2,8 milhões

Projeto museológico do Memorial da Reconstrução da Casa Dr. Oswaldo Cruz

(executado)

190 mil

Obras emergenciais na Igreja do Rosário, Casa Dr. Oswaldo Cruz e Instituto Elpídio

dos Santos (executado)

1 milhão

Vídeo documentário sobre o município (executado) 6,5 mil

Festa em comemoração ao tombamento nacional (executado) 60,5 mil

Restauro da Igreja do Rosário (em execução) 2,5 milhões

Reconstituição da Igreja das Mercês (executado) 1,3 mil

Projeto executivo da Casa Elpídio dos Santos (executado) 14,5 mil

Memorial da Casa Dr. Oswaldo Cruz e construção de anexo (em execução) 730 mil

Reconstrução de dois imóveis privados no Centro Histórico (em execução) 533 mil

Projeto de paisagismo no bosque da Casa Dr. Oswaldo Cruz (em execução) 54,5 mil

Obras de paisagismo no bosque da Casa Dr. Oswaldo Cruz (execução prevista para

2011)

250 mil

Custo administrativo do convênio com o Instituto Elpídio dos Santos (execução

prevista para 2011)

270 mil

Restauro da Cápsula do Tempo (execução prevista para 2011) 48,3 mil

Oficinas de Educação Patrimonial (execução prevista para 2011) 6 mil

Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) (execução prevista para 2011) 78,9 mil

Fonte: IPHAN (2011)

Page 98: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

98

No que compete ao governo do estado de São Paulo, através do CONDEPHAAT e da

SEC, tivemos a restauração completa do Mercado Municipal, o mais antigo mercado em

funcionamento do estado (IPHAN 2010), um dos símbolos da cidade, outro importante

espaço vivido pela população. O imóvel ficou totalmente submerso e sua restauração já foi

concluída, todas as características originais foram respeitadas, inclusive no que se refere aos

materiais utilizados.

Outras das duas principais obras da SEC no centro histórico de São Luiz do Paraitinga

se referem à reconstrução do antigo Grupo Escolar e da restauração da sede da PMSLP. O

primeiro projeto, cujo imóvel original possuía grau de proteção GP1 e fora totalmente

arruinado, prevê a construção de um imóvel contemporâneo, onde a volumetria e os vãos do

imóvel original serão respeitados para garantir a harmonia do conjunto urbano, esse imóvel

deixará de ser uma escola para abrigar a biblioteca da cidade.

Quanto à sede da PMSLP, o prédio foi parcialmente arruinado e o mesmo possui grau

de proteção GP1a, ou seja, deve ser integralmente protegido. O projeto de restauração prevê o

respeito às técnicas e aos materiais originais, sendo adotados elementos modernos apenas

quando estes forem necessários para garantir que esse imóvel resista a possíveis novos

sinistros, porém, a fachada, a volumetria e as divisões internas serão mantidas.

Contudo, no que se refere à atuação do CONDEPHAAT, destaca-se o convênio

firmado entre a UPPH e a Fundação para a Pesquisa Ambiental (FUPAM), este tem como

objetivo suprir a demanda por projetos de restauro ou reconstrução de imóveis afetados pela

inundação, sendo a FUPAM responsável pelo desenvolvimento de projetos particulares em

diversos imóveis com grau de proteção GP3 e GP4, de acordo com os levantamentos técnicos

realizados pela UPPH dos danos ocorridos.

Como podemos observar no gráfico a seguir (Gráfico 3), dos 55 projetos elaborados

entre 2010 e 2011, 66% desses foram preparadas ou pela própria UPPH ou pelo convênio

firmado com a FUPAM, o que demonstra uma boa vontade do órgão estadual em viabilizar a

recuperação dos imóveis privados, visto que, sendo os projetos elaborados por eles, a sua

aprovação ocorre de maneira mais rápida.

Page 99: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

99

Gráfico 3: Responsáveis pelos projetos arquitetônicos. Fonte: PMSLP.

Os 13% de projetos elaboras pelo CONDEPHAAT, através da UPPH, referem-se aos

imóveis com grau de proteção GP1, GP1a e GP2, por estes demandarem um maior rigor

técnico, onde os imóveis devem ser protegidos integralmente. Porém, a morosidade na

elaboração desses projetos tem sido apontada pela população como um dos empecilhos para

que a restauração desses imóveis seja realizada com maior agilidade. Até outubro de 2011 a

UPPH submeteu ao Conselho apenas sete projetos de restauração, pouco se considerado que

foram esses os imóveis que mais sofreram com a inundação por terem sido os que passaram

por menos alteração no decorrer do tempo, onde a taipa e o pau a pique eram as técnicas

construtivas predominantes, além de serem os imóveis que compõem o principal espaço

vivido da cidade, a Praça da Matriz, e a população se encontra ciosa por ter esse espaço

recuperado.

Porém, é justo ressaltar que, ao analisar os projetos elaborados pela UPPH foi possível

notar que os mesmos possuem um sólido embasamento técnico, onde todos os elementos

originais são respeitados e a utilização de materiais modernos só foram sugeridos quando

estes se mostravam importante para garantir que estes sobrevivam a possíveis novos

desastres, seguindo recomendações de engenharia feitas pela equipe técnica do Instituto de

Pesquisas Tecnológicas (IPT), sempre respeitando as fachadas, volumetrias, espessura das

paredes e divisões internas.

Contudo, a recuperação dos imóveis privados não depende apenas dos projetos, mas

também de linhas de financiamento. Para isto, o Governo do Estado disponibilizou recursos

especiais para as famílias do centro histórico de São Luiz do Paraitinga com renda de até dez

13%

53%

34%

Responsáveis pelos projetos arquitetônicos

Condephaat Fupam Particular

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100

salários mínimos. Porém, poucas famílias estão conseguindo acesso a essa linha de crédito, e

isso ocorre porque os proprietários receberam esses imóveis por meio de herança, sendo

assim, alguns possuem várias famílias como titulares e quando as rendas dessas são somadas,

estas não conseguem se enquadrar. Outra questão que tem sido apontada como empecilho

refere-se à propriedade do imóvel estar regularizada, em São Luiz grande parte dos imóveis

possui apenas direito de posse, sendo necessária a sua regularização.

Gráfico 4: Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados. Fonte: PMSLP.

Como podemos observar no gráfico 4, mais da metade dos imóveis tem sido

recuperada com recursos particulares, sendo que as linhas de crédito têm auxiliado apenas

25% das famílias, ressaltando que esses 11% correspondem às famílias que tiveram algum

problema ao se adequar aos requisitos, seja pela renda ou pelas questões fundiárias.

Os imóveis que estão apresentando mais dificuldades para serem recuperados são os

que se localizam na Praça da Matriz, pois estes não se enquadram na questão de renda,

porém, a recuperação desses grandes sobrados seguindo todas as exigências dos órgãos de

preservação possui custos muito elevados, visto que estes exigem até a contratação de

empresas especializadas, o que tem levado o poder público local a procurar outras alternativas

para recuperar o principal espaço público da cidade.

6%25%

11%5%

53%

Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados

AMI-SLP

Financiamento público aprovado

Financiamento público em análise

IPHAN

Paticular

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101

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102

Como em Goiás Velho, que teve seu patrimônio recuperado após as cheias do Rio

Vermelho, em 2000, em grande parte pela iniciativa privada, a PMSLP está tentando

viabilizar que empresas que atuam na região e no município passem a auxiliar nesse processo

de recuperação, em especial as empresas de papel e celulose, como a Fibria, que possui

extensas áreas de eucalipto plantadas no município. Por se tratarem dos imóveis de maior

destaque, já que se encontram na praça principal da cidade, onde ocorrem as principais

manifestações culturais, portanto, de certa maneira com uma maior visibilidade, a prefeitura

acredita na viabilidade desse projeto, porém, este ainda encontra-se em processo de estudos.

Por fim, porém não menos importante, é necessário discorrer sobre a recuperação de

dois imóveis que se constituem como os principais sustentáculos de memória coletiva dessa

comunidade, imóveis estes que foram os primeiros a serem socorridos pela população assim

que as águas do Rio Paraitinga começaram a baixar: a Capela das Mercês e a Igreja Matriz de

São Luiz de Tolosa.

Estes são também os projetos mais polêmicos dentro dos órgãos de patrimônio, pois

colocaram em pauta novos desafios, como proceder quando um bem tem sua arquitetura

ruída, mas seus bens integrados recuperados?

Essa questão é fácil de ser entendida se compararmos o caso da Igreja de Nossa

Senhora do Rosário de Pirenópolis, em Goiás, com a da Igreja Matriz de São Luís de Tolosa.

Ambas foram acometidas por grandes desastres, a primeira num incêndio em 2002 que

destruiu todos os seus bens integrados, porém, preservou sua arquitetura. Em São Luiz se deu

o oposto, a inundação fez com que a arquitetura ruísse, mas permitiu que os bens integrados

fossem recuperados. Nesse sentido, como pode se ter a recuperação da igreja em Pirenópolis

como legítima e em São Luiz não? O que fazer com esses bens integrados? Transformá-los

em peças de museu mesmo estes ainda tendo significado no imaginário da comunidade? Ou

reincorporá-los em novas construções onde estes não estarão em harmonia com o restante da

nova edificação?

Ambos os casos são legítimos, pois, assim como em Pirenópolis, em São Luiz os

remanescentes serão respeitados e poderão ser contemplados pelos que adentrarem a nova

edificação, e se considerarmos os fatores que conferem autenticidade, segundo a Carta de

Nara de 1994 (IPHAN, 2004), esta questões já estão superadas, ficando apenas essa discussão

de “falso histórico” na dimensão de alguns arquitetos que ainda acreditam que o patrimônio

cultural se restringe a pedra e a cal, no caso a taipa.

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Figura 21: Capela das Mercês, depois da recomposição. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

Figura22: Altar da Capela das Mercês, depois da recomposição. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

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Figura23: Capela das Mercês, com destaque para o púlpito remanescente. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

Figura 24: Capela das Mercês, com destaque para a taipa remanescente. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

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A reconstituição da Capela das Mercês (Figuras 21, 22, 23, 24) obedeceu a essas

questões descritas acima. Como a principal obra executada pelo IPHAN em São Luiz do

Paraitinga até o presente momento, está foi entregue a população no dia 27 de setembro de

2011, quando se comemorou as festividades da padroeira do templo, além do aniversário de

197 anos da edificação. O projeto realizou a recomposição da capela bicentenário, com a

reincorporação de seus remanescentes, dentre eles os pináculos, os capitéis, o altar e o

púlpito. As antigas paredes de taipa podem ser contempladas no interior da edificação por

intermédio da utilização de revestimentos de vidro.

Ao observar as imagens da Capela das Mercês, principalmente em seu interior,

podemos perceber a preocupação em não se falsificar a história. Essa nova edificação está

impregnada pela história desse lugar (lugar enquanto categoria geográfica com o qual se

estabelece identidade, como em Carlos, 1996), com a história dessa comunidade, inclusive a

inundação esta ali presente e visível nos bens integrados que foram restaurados e

reincorporados, mas cujas marcas não se apagaram.

No que se refere à reconstrução do principal imóvel arruinado durante a inundação, a

Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, a recuperação desse bem prevê a realização de quatro

etapas, o que envolve o IPHAN, o CONDEPHAAT através da SEC e a Diocese de Taubaté,

proprietária do imóvel. A primeira etapa correspondeu ao processo de salvamento dos

remanescentes da antiga igreja, esta realizada pelo órgão federal. Nessa fase foi possível

salvar vários elementos decorativos, como capitéis, os altares de mármore, os sinos, o piso, os

lustres de cristais, os pináculos, os púlpitos de mármore e grande parte do forro que possui

várias pinturas de cenas bíblicas, estes são passiveis de restauração e deveram ser

reincorporados à nova edificação.

A segunda fase constituiu-se na elaboração do projeto, este fora realizado pela

Diocese de Taubaté. A Resolução Complementar do CONDEPHAAT de 2010 apontou três

possibilidades técnicas para a elaboração desse projeto. A primeira mantendo-se as

características da edificação original antes das intervenções pelas quais passou durante o

século XX, portanto, uma igreja mais harmônica ao conjunto, porém que não possui

sustentação nas memórias da comunidade. A segunda opção seria a reconstrução de uma

igreja o mais próximo possível da igreja que ruiu, mantendo-se as principais características da

arquitetura eclética da facha principal. Por fim, a terceira possibilidade previa a construção de

uma igreja nova e que em nenhum momento aludisse à antiga. Apesar de essa terceira opção

ter sido fortemente defendida entre os membros do conselho, que até chegaram a cogitar a

possibilidade da SEC promover um concurso para escolher o projeto, a demanda da

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106

população pela reconstrução de um edifício o mais próximo possível do original os

sensibilizou. Aqui cabe ressaltar também que essa resolução é anterior ao término das obras

de salvamento realizadas pelo IPHAN, o que revelaria os elementos que deveriam ser

reincorporados à nova edificação, aliás, a reincorporação destes passou a ser um pré-requisito

para a aprovação do projeto pelos técnicos do IPHAN.

Por fim, as duas últimas etapas referem-se ao processo de edificação e decoração do

imóvel, essas sob responsabilidade da SEC. As obras tiveram início em setembro de 2011,

possuem previsão de 18 meses para serem concluídas e o orçamento disponibilizado foi de 13

milhões de reais. Assim como a Capela das Mercês, a volumetria das pareces deve ser

mantida, mas ao contrário da capela, que possui paredes maciças, a Matriz possuía paredes

com mais de 1,5 metros de espessuras que deverão ser ocas, com todos os remanescentes

reincorporados e as paredes de taipa originais preservadas e expostas.

Sendo assim, fica claro o importante papel do IPHAN na recuperação do patrimônio

de São Luiz do Paraitinga, visto que é ele quem dita e estabelece as diretrizes a serem

seguidas. Porém, é justo ressaltar o papel da população local nesse processo, pois foi ela quem

sensibilizou o poder público, a ordem próxima interferindo na ordem distante. Em poucas

localidades do Brasil existe uma convergência tão clara entre o patrimônio cultural material e

imaterial como em São Luiz, o que demandou a aplicação do Inventário Nacional de

Referências Culturais (INRC) em todo o município, uma metodologia desenvolvida para

identificar e catalogar o patrimônio imaterial. Isso permitirá o levantamento desse patrimônio

intangível e das memórias da cidade, cidade esta que é lugar por excelência, onde a natureza é

transformada pela prática social, acumulando cultura em um espaço e tempo, acúmulos esses

que se dão simultaneamente e com os quais se estabelecem laços de identidade (CARLOS,

1996), espaço vivido (LEFEBVRE, 1991), de ver e ser visto, portanto um patrimônio

autêntico segundo as determinações da Carta de Nara de 1994 (IPHAN, 2004).

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107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Des

enh

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bic

o d

e p

ena

de

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m M

aia

(19

76

)

Page 108: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

108

O conhecimento científico surge de uma dúvida e, consequentemente, do desejo de

fornecer explicações sistemáticas que possam ser testadas e criticadas. Esse conhecimento,

porém, é falível. Por se reconhecer a natureza hipotética do conhecimento científico, ele deve

ser constantemente submetido a uma revisão crítica, tanto de consistência lógica das teorias,

quanto da validade dos métodos e das técnicas de investigação adotados. Ou seja, não

devemos dogmatizar os resultados, mas tratá-los como eternas hipóteses que necessitam de

constantes investigações e revisões críticas em futuras pesquisas.

Essa breve reflexão sobre o conhecimento científico se mostra necessária, porque os

resultados a que chegamos neste trabalho vão de encontro a resultados obtidos por outros

pesquisadores que afirmam, entre outras coisas, que a área de estudo em questão passa por um

processo de refuncionalização, onde o presente centro histórico estaria passado por um

processo de cenarização devido à massificação da atividade do turismo, onde a identidade das

pessoas com o lugar estaria se perdendo. Contudo, os usos dos imóveis tombados continuam

sendo os mesmos desde o primeiro levantamento em 1982, quando do tombamento pelo

CONDEPHAAT, ou seja, as famílias não estão sendo desalojadas do centro histórico para a

incorporação de novos usos voltados à atividade turística. Sendo assim, é importante ressaltar

que os métodos e técnicas adotadas neste trabalho nos levaram a resultados totalmente

divergentes, pois entendemos ser a identidade dos luizenses com o lugar que habitam como

um dos grandes diferenciais desse espaço que, para nós, é vivido.

Outra questão que gostaríamos de salientar antes de apresentar alguns resultados da

pesquisa refere-se à relação do pesquisador e seu objeto de pesquisa. Muitos manuais de

metodologia afirmam ser necessário manter uma distância estratégica entre o sujeito e o

objeto de pesquisa, buscando um não envolvimento subjetivo com as variáveis em análise,

mas isso é possível quando tratamos de memória coletiva e identidade de um grupo? Em

especial de um grupo que passou pela tragédia de perder seus principais sustentáculos de

identidade em uma grande tragédia que marcou, não só a história dessas pessoas, mas as

formas de se estabelecer as políticas de patrimônio no país. Aqui, cabe outra importante

ressalva, como o pesquisador pode manter distância do seu objeto de pesquisa quando

compartilha dos mesmos sustentáculos de memórias que essa população, possui nesse lugar

seus referenciais de identidade, que estava presente quando da inundação e viu parte dos seus

suportes de memórias serem levadas pelas águas do Rio Paraitinga? Nesse sentido,

assumimos desde o início dessa pesquisa que tal abordagem seria impossível, admitimos

assim todas as dificuldades que essa forte relação entre o pesquisador e sua área de estudo

Page 109: O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

109

iriam impor, o que não foram poucas, aliás, as dificuldades se mostraram maiores do que as

vantagens que essa proximidade propiciou.

Após o reconhecimento dessas limitações, vamos a alguns resultados que este trabalho

possibilitou que chegássemos: após o tombamento, cabe aos órgãos de proteção zelar pelos

bens listados, promovendo a manutenção e a valorização desses bens, além de difundir ações

voltadas à educação da população no que concerne às questões que envolvem a preservação

desse patrimônio.

Em São Luiz do Paraitinga, nunca houve por parte do CONDEPHAAT ações de

educação patrimonial e, no que se refere à manutenção e valorização, as ações se mostraram

insuficientes. O tombamento realizado por esse órgão apenas produziu um espaço

esquizofrênico, pois o mesmo se mostrou incapaz de implantar as diretrizes e normas que

estabeleceu no processo de tombamento, mantendo um grande distanciamento com a

população local, o que gerou um grande vazio institucional, vazio este que agora passa a ser

ocupado pelo IPHAN, que tem se mostrado mais suscetível a dialogar com os verdadeiros

agentes da preservação do patrimônio cultural, a população local.

Assim, podemos afirmar que apenas dois fatores foram responsáveis pela manutenção

desses bens no presente espaço geográfico, em um primeiro momento a impossibilidade

econômica em substituir esses imóveis por novos, e num segundo pela relação de identidade

que essa população possui com esses bens, prova disso era o grau de conservação que estes

apresentavam até o advento da inundação. Segundo levantamento do IPHAN em 2009 (Anexo

III), dos 450 bens que compõem o centro histórico, apenas 4,5% encontravam-se em estado de

conservação ruim, 12% regular e 83,5% em bom estado de conservação, o que corrobora com

o fato de que, mesmo com a ineficiência das políticas estaduais de preservação e sem uma

orientação técnica devida a população zelava pelo que ela tinha como seu patrimônio.

Outra questão que nos leva a tal afirmação é a presença nesse espaço de vários agentes

culturais não vinculados ao estado e que passaram a desempenhar um importante papel no

processo de recuperação após a inundação de 2010, como já discutimos aqui.

Gostaríamos de deixar marcado então que, até o advento da grande cheia do Rio

Paraitinga, a gestão pública do patrimônio cultural não se consistia em uma realidade em São

Luiz do Paraitinga, portanto, somente com essa nova fase de gestão patrimonial que se inicia,

tendo o IPHAN como protagonista, é que esse quadro muda e esperamos que essa nova fase

seja capaz de recuperar parte do maior conjunto arquitetônico tombado pelo seu valor cultural

em São Paulo. Esperamos ainda que esse órgão seja apto em criar mecanismos de valorização

do patrimônio imaterial, tão significativo ou até mais que o tangível, porém, lamentamos que

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110

parte das memórias pessoais e coletivas nunca poderão ser recuperadas, visto que essa

inundação não levou apenas edificações, algumas que se configuram como verdadeiras perdas

coletivas como no caso das Igrejas e do Grupo Escolar, mas levou também um pouco da

história pessoal e familiar dessa comunidade.

Apesar de tudo, uma lição positiva pode ser tirada desses acontecimentos, há anos era

comum ouvir da população local frases do tipo “São Luiz não existe lá fora, não está nem no

mapa”, hoje podemos afirmar que São Luiz do Paraitinga está no mapa e, no que se refere ao

mapa de referências culturais do Brasil, possui um lugar de destaque, seja pelo seu patrimônio

material como pelo imaterial.

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ANEXO I: Mapa das Formas do Relevo

Fonte: IPT, 2010

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ANEXO II: Uso dos imóveis do Centro Histórico em 2009

Fonte: IPHAN, 2010

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ANEXO III: Estado de conservação dos imóveis do Centro Histórico em 2009

Fonte: IPHAN, 2010

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ANEXO IV: Diagnóstico do estado dos imóveis do Centro Histórico após a inundação

Fonte: IPHAN, 2010