o ofício do historiador ontem e hoje

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O OFÍCIO DO HISTORIADOR ONTEM E HOJE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA E O HISTORIADOR Raphael Almeida Dal Pai 1 Pensar o fazer do ofício do historiador, necessariamente leva a refletir sobre como fazer História 2 , e por extensão, como a produção do saber histórico deve ser compreendida. Dado ao grande número de autores que se debruçaram – e ainda se debruçam – sobre a teoria da História, temos uma grande gama de possibilidades a serem consideradas neste sentido. Portanto, antes de avançar na reflexão, é importante salientar que, mesmo com esse grande volume de escritos sobre o tema, não podemos considerar que a produção do saber histórico possua um “manual” mais eficaz em detrimento de outro. É necessário que a teoria seja adaptada aos desafios colocados pela prática do historiador. Neste sentido, teoria passa a ser um guia que indica caminhos possíveis, podendo não ter todas as respostas às questões com as quais o historiador se defronta. Para tanto, primeiramente se buscará abordar algumas questões da especificidade da História, suas proximidades e distanciamentos com outros campos do saber e a relação do 1 Mestrando do programa de pós-graduação stricto sensu em História da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) nível: mestrado. E-mail: [email protected] 2 Uso em letra maiúscula justamente para expressar o entendimento da História enquanto disciplina e campo do saber.

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Reflexões sobre pensar e fazer história

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Page 1: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

O OFÍCIO DO HISTORIADOR ONTEM E HOJE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE A HISTÓRIA E O HISTORIADOR

Raphael Almeida Dal Pai1

Pensar o fazer do ofício do historiador, necessariamente leva a refletir sobre

como fazer História2, e por extensão, como a produção do saber histórico deve ser

compreendida. Dado ao grande número de autores que se debruçaram – e ainda se

debruçam – sobre a teoria da História, temos uma grande gama de possibilidades a

serem consideradas neste sentido. Portanto, antes de avançar na reflexão, é importante

salientar que, mesmo com esse grande volume de escritos sobre o tema, não podemos

considerar que a produção do saber histórico possua um “manual” mais eficaz em

detrimento de outro. É necessário que a teoria seja adaptada aos desafios colocados pela

prática do historiador.

Neste sentido, teoria passa a ser um guia que indica caminhos possíveis,

podendo não ter todas as respostas às questões com as quais o historiador se defronta.

Para tanto, primeiramente se buscará abordar algumas questões da especificidade da

História, suas proximidades e distanciamentos com outros campos do saber e a relação

do historiador com o passado; em um segundo momento, situar o diálogo entre presente

e passado na produção do conhecimento histórico.

O problema mais comum a saltar a frente da reflexão, é o fato de como

conseguir estudar acontecimentos passados. Esta é uma questão nevrálgica, pois, além

obviamente, do saber histórico ser construído a partir de acontecimentos passados,

conforme nos afastamos no tempo, estes acontecimentos se tornam mais difíceis de

serem estudados3. Note-se que esta dificuldade não se resume apenas à questão da

disponibilidade de fontes. Hosbsbawm chamou a atenção de forma muito clara para o

1 Mestrando do programa de pós-graduação stricto sensu em História da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) nível: mestrado. E-mail: [email protected] Uso em letra maiúscula justamente para expressar o entendimento da História enquanto disciplina e campo do saber.3 Vale ressaltar que no caso de quem trabalha com a chamada História do tempo presente, a dificuldade não reside necessariamente na escassez de fontes, mas sim na grande quantidade de informação. Porém, o problema aqui colocado se pauta mais na objetividade do saber histórico do que na questão da abundância ou não de fontes.

Page 2: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

fato de alguns intelectuais negarem que a realidade objetiva seja acessível, por conta dos

chamados “fatos”, existirem apenas devido a conceitos e problemas formulados

(HOBSBAWM, 1998, p.08). Ou seja, que até mesmo o que convencionalmente é

chamado de “fato histórico” existe apenas enquanto fruto de abstração e

esquematização.

No entanto, constatar que o chamado “fato histórico” é construído de acordo

com fatores de variações das mais possíveis (formas de apropriação da ideologia

dominante, ressignificação da memória, para citar alguns exemplos) não muda o

processo histórico real; pois “o passado é, por definição, um dado que nada mais

modificará” (BLOCH, 2001, p. 75). Thompson muito provavelmente partindo da

afirmativa de Bloch, estabelece isto como sendo o “status ontológico do passado”:

“Os processos acabados da mudança histórica, com sua complicada causação, realmente ocorreram, e a historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode modificar, em nenhum grau o status ontológico do passado” (THOMPSON, 2009, p. 59).

Em outras palavras, pode-se ver a história sob várias perspectivas, mas nunca ser

capaz de mudar os acontecimentos. É possível tentar justificar os crimes de guerra

cometidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1954), ou até mesmo, questionar

se Hitler proferiu uma ordem direta aos seus subordinados em relação ao extermínio de

judeus; mas é impossível negar que tanto os Aliados (Inglaterra, EUA e França) quanto

o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) cometeram crimes de guerra; assim como é

impossível negar o genocídio de judeus levado a cabo pelos oficiais e soldados

alemães4. Os efeitos dessas sucessões de acontecimentos se fazem ativos no presente,

afetam o cotidiano em níveis que até mesmo fogem da percepção consciente.

Thompson ainda aponta que existe uma diferença muito importante entre atribuir

significados a realidade histórica e afirmar que ela se modifica com o correr do tempo:

“[...] devemos defender não que ‘a realidade histórica se modifica de época para época, com as modificações na hierarquia de valores’, mas

4 Obviamente que a perseguição de judeus não foi apenas uma exceção da Alemanha, mas a título de exemplo para facilitar o entendimento da argumentação, não foi aprofundada a questão.

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que ‘o significado’ que atribuímos a tal realidade se modifica dessa maneira” (THOMPSON, 2009, p.62).

A partir destas considerações, percebe-se que existe uma diferença muito clara

entre considerar os acontecimentos como concretos e as formas de ressignificação

desses acontecimentos decorrentes do girar da ampulheta. Partindo disto, os

acontecimentos não são apenas construções do historiador, em outras palavras, os

acontecimentos de fato se situam em um passado concreto; e este passado, de fato faz

parte de uma realidade histórica.

Porém, situar os acontecimentos passados como sendo imutáveis, não estabelece

qual o objeto de estudo da História – apesar de sua centralidade na produção do

conhecimento histórico. Marc Bloch na década de 1940 situava o objeto do historiador

como sendo:

“por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,]5 por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar.” (BLOCH, 2001, p. 54)

Obviamente que, situar o objeto da História como sendo a humanidade, não

diminui a importância do acontecimento no seu estudo; afinal, estudar os “homens no

tempo” (BLOCH, 2001, p. 55) – suas ações, relações, práticas sociais, etc., – não seria

possível sem olhar também para os acontecimentos. Ainda partindo das reflexões de

Bloch, o estudo das ações dos homens no tempo aponta para uma especificidade própria

do ofício do historiador.

“O historiador, por definição, está na impossibilidade de ele próprio constatar os

fatos que estuda” (BLOCH, 2001, p. 69). Ou seja, o historiador não tem a possibilidade

de estudar o acontecimento no momento em que se desencadeia6, pois ao recorrer a

escrita, o acontecimento passa ao campo do passado. Nesta ótica, o historiador está

5 As palavras entre colchetes partem do texto na obra do autor.6 Sobre isso é necessária uma observação: mesmo os historiadores que procuram pesquisar a chamada História do tempo presente se encontram nesta impossibilidade. Por mais que os desdobramentos do acontecimento ainda estejam em momento de sucessão, o estudo não é imediato ao acontecimento, enquanto este passa ao campo do passado de forma quase que imediata.

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sempre falando de um presente na posição de observador daquilo que se estuda. “Ele só

chega depois de concluído o experimento, sempre” (BLOCH, 2001, p. 72), portando,

produz a partir dos vestígios deixados por este “experimento”. Ciências como a Física,

por exemplo, podem em algumas circunstâncias, “recriar” fenômenos para melhor

estudo. A História tem a especificidade de sempre partir dos resíduos deixados pelo

passado.

Thompson situa o conhecimento histórico enquanto campo do saber, por possuir

uma forma própria de ser produzido, obedecer a certos critérios, sendo o conjunto

desses critérios a “lógica histórica7” (THOMPSON, 2009, p.55); alguns desses critérios

apontados serão apresentados com mais profundidade ao longo do texto: 1. O

conhecimento histórico tem como objeto imediato acontecimentos reais e evidências,

que se tornam cognoscíveis a partir de questionamentos levando em conta as

determinações do objeto; 2. Tal conhecimento possui uma série de limitações

(THOMPSON,2009, p. 57); 3. As evidências não podem responder a todas as perguntas

à elas feitas; 4. A interrogação e a resposta são mutuamente determinantes

(THOMPSON, 2009, p. 58). Partindo disso, os resultados obtidos pelo historiador, não

são verdade imutáveis:

“O conhecimento histórico é, pela sua natureza, (a) provisório e incompleto (mas não por isso, inverídico), (b) seletivo (mas não por isso, inverídico), (c) limitado e definido pelas perguntas feitas à evidência (e os conceitos que informam essas perguntas), e, portanto, só ‘verdadeiro’ dentro do campo assim definido” (THOMPSON, 2009, p.57).

Apesar de ser uma formulação do autor sobre o conhecimento histórico, pode-se

perceber que ela pode se estender a uma noção do conhecimento científico de modo

geral. Se assumirmos que a ciência como um todo, consegue responder a todas as

questões da humanidade, não haveria mais motivos para dar continuidade ao processo

de produção do conhecimento. Portanto, ela tem limites, e especificamente na produção

do conhecimento histórico, esses limites não são estabelecidos pelo historiador:

7 Não irei discutir ponto por ponto a chamada lógica histórica pois perderia o objetivo do texto.

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“O ‘pensamento’ (se é ‘verdadeiro’) só pode representar o que é adequado às propriedades determinadas de seu objeto real, e deve operar dentro desse campo determinado. Se escapa a isto, então se transforma num remendar malfeito, extravagante e especulativo (THOMPSON, 2009, p. 29)

O pensamento, mesmo sendo “abstrato” se insere em uma relação com as

evidências; relação esta onde as próprias formulações do pensamento estão limitadas

pelas interrogações feitas pelo historiador – afinal, as evidências apenas “falam” a partir

das perguntas formuladas à elas – e pela capacidade de responder à estas perguntas

determinada pelas propriedades do próprio objeto de questionamento. Daí a necessidade

– e esta necessidade não se restringe apenas à História – de procurar evidências

diversas; estabelecer diálogos e conexões entre as fontes.

Thompson ainda aponta que a evidência, apesar de suas limitações, possui

concretude:

‘Um historiador está autorizado, em sua prática, a fazer uma suposição provisória de caráter epistemológico: a de que a evidência que está utilizando tem uma existência ‘real’ (determinante), independente de sua existência nas formas de pensamento, que essa evidência é testemunha de um processo histórico real, e que esse processo (ou alguma compreensão aproximada dele) é o objeto do conhecimento histórico (THOMPSON, 2009 p. 43)

Em outras palavras, as evidências, são resíduos concretos de processos que se

deram em um tempo e lugar real; indo de encontro com o que Marc Bloch também

apontou como foi descrito em linhas anteriores: que o historiador trabalha com os

vestígios deixados pelos acontecimentos. “Estamos, a esse respeito, na situação do

investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu” (BLOCH,

2001, p. 69); porém com a consciência de que, ao contrário do investigador, dada a

complexidade do objeto estudado, ao historiador não é possível reconstituir os

acontecimentos tais quais eles ocorreram; havendo então a diferença entre a história

(real) e o conhecimento histórico. Resta ainda responder a questão das evidências: Se,

elas são testemunhos reais de acontecimentos reais, elas podem ser consideradas

expressão da verdade tal qual aconteceu?

Page 6: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

Os primeiros historiadores a procurarem estabelecer as formas de se produzir

conhecimento histórico e consolidá-lo enquanto campo do saber científico, já

apontavam para o fato de nem sempre as fontes serem verdadeiras, sendo, neste caso,

necessário criticar as fontes8. Como documentos pessoais e particulares – como cartas,

por exemplo – que tivessem sobrevivido a ação do tempo, e chegado às mãos do

historiador, eram considerados impossíveis de serem neutros (pois sempre haveria uma

intencionalidade inerente ao documento), a “reconstrução do passado” deveria ser feita

a partir de documentos produzidos por órgãos governamentais de alguma ordem

(federal, municipal, legislativo, judiciário, entre outros), também chamados de

“documentos oficiais”. Acreditava-se que, estas fontes seriam as mais neutras possíveis,

sendo assim, indicadas a serem usadas no processo de refazer o passado. Marc Bloch,

discípulo direto desta tradição9, aponta que, mesmo as fontes consideradas “oficiais”

não eram neutras:

“Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais ingênuos dos policiais sabem disso. [...] Do mesmo modo, há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos. Uma experiência, quase tão velha como a humanidade, nos ensinou que mais de um texto se diz de outra proveniência do que de fato é: nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais, [eles]10 também podem ser falsificados” (BLOCH, 2001, p.89)

Bloch já aponta para uma questão fundamental no ofício de historiador: os

vestígios que sobrevivem à ação do tempo não são neutros. Ao contrário do que diziam

os historiadores que partilhavam dos mesmos pressupostos da chamada “Escola

metódica”, até mesmo documentos produzidos por governos ou instituições

governamentais possuem uma intencionalidade da qual não é possível uma neutralidade.

Ainda assim, as fontes “mentirosas” também podem apontar questões relevantes ao

historiador: “acima de tudo, uma mentira enquanto tal é, a seu modo, um testemunho”

8 Em sua obra Introdução aos estudos históricos, Langlois e Seignobos estabelecem que o documento deveria passar por uma crítica interna (onde seria buscado contradições e impurezas no próprio documento) e a crítica externa (uma vez que, não se constatou nenhuma irregularidade com o conteúdo do documento, este passa a ser avaliado conforme o seu contexto histórico). Passado este momento de questionamento sobre a veracidade do documento, e não havendo a constatação de nenhuma “impureza”, seria válido ao historiador usá-lo para reconstituir o passado.9 Marc Bloch foi aluno de Charles Seignobos, um dos grandes expoentes da “historiografia positivista” (BLOCH, 2001, p. 19).10 Palavra entre colchetes conforme consta no original.

Page 7: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

(BLOCH, 2001, p. 98); partindo desta ótica, elas podem revelar intencionalidades por

de trás de seu conteúdo, relações de poder e disputas situadas no contexto em que as

fontes foram produzidas.

No ímpeto de discorrer sobre a impossibilidade de neutralidade dos produtos das

ações da humanidade no tempo, Jacques Le Goff adverte que as fontes (os documentos)

devem ser tratadas levando em consideração a sua produção. Elas não são apenas

vestígios de um passado, mas também foram produzidas neste passado com uma

intencionalidade. “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é

um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham

o poder” (LE GOFF, 1990, p.545). Portanto, o historiador precisa ter em mente que,

tomando o conteúdo de um documento como uma verdade absoluta, pode o levar a

reforçar relações de dominação ou até mesmo justificar atos de opressão.

Partindo da questão da formação dos Estados-nação no pós-Segunda Guerra

Mundial, Hobsbawm aponta que “a história é a matéria-prima para as ideologias

nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria-prima

para o vício da heroína” (HOBSBAWM, 2010, p.17). Mais adiante, o historiador

britânico coloca que “nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como

os seminários nos quais o IRA aprendeu a transformar fertilizante químico em

explosivos” (HOBSBAWM, 2010, p.17).

As considerações dos dois autores nos fazem perceber a importância que o ofício

de historiador tem para a sociedade, bem como que a relação com a história, e, por

extensão, a relação com as fontes utilizadas, não podem ser encaradas como simples

capricho. As considerações trabalhadas até o momento procuraram trazer algumas

reflexões sobre a relação do historiador com as evidências, ainda restando a questão da

relação entre passado e presente.

É sabido que a chamada “Escola metódica” acreditava ser a função do

historiador reconstituir a história como aconteceu de fato, portanto, ao seu

entendimento, estudar o passado seria uma forma de não permitir a repetição dos erros

cometidos (BLOCH, 2001, p. 70). Ao longo do desenvolvimento do pensamento da

História enquanto campo do saber, a relação entre presente e passado começou a ser

vista não mais de forma tão unilateral. Marc Bloch muda a tonalidade da reflexão

Page 8: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

apontando a necessidade de compreender o presente pelo passado e o passado pelo

presente (BLOCH, 2001, p. 25).

Ao discutir sobre a relação entre presente e passado, Jean Cheneaux aponta que

função do passado está não apenas em relação ativa com o presente, como a este

subordinado. “Se o presente tem primazia sobre o passado é por que apenas o presente

impõe e permite mudar o mundo” (CHESNEAUX, 1995, p.62). Para Chesneaux, a

utilidade do saber histórico está na transformação da sociedade. O que vale na relação

com o passado é a sua capacidade para responder às questões do presente. Se trata de

colocar o passado à serviço das lutas do presente. Nisto residiria a cientificidade da

História:

“O critério essencial do saber científico se mantém no vaivém entre a teoria e a prática. E a história, por definição, só pode realizar esse vaivém em contato com o presente. [...] É, em primeiro lugar, na análise de nossa sociedade viva, que se devem isolar os princípios de conjunto de análise das sociedades humanas aí compreendidas as do passado” (CHESNEAUX, 1995, p.78)

Qualquer saber com pretensões de ser “científico” teria que primeiramente, em

uma relação dialética entre teoria e prática, transformar a realidade. Chesneaux parte da

tradição marxista para conceber esta noção de ciência, e, como o saber histórico, bem

como o passado – porém, nunca fechado apenas em seu objeto – se relaciona com o

presente. A partir das considerações de Chesneaux, uma questão é possível de ser

levantada: se, o passado deve ser usado para responder as questões do presente, o

historiador estaria atribuindo uma relação de causalidade com seu objeto. Afinal, para se

levantar questões, é preciso levantar hipóteses tanto em relação ao passado quanto em

relação às fontes a serem utilizadas na verificação de determinada hipótese.

Se a História é uma ciência – com todas as suas especificidades que a fazem a

mais única de todas – no mesmo grau de importância que as demais, é comum pensar

que para “compreender” (BLOCH, 2001, p. 125), seria necessário também, apontar

fenômenos que causaram os acontecimentos. No entanto, a questão da causalidade na

produção do conhecimento histórico, possuiu seus nuances. De acordo com Moisés

Antiqueira, não se pode entender que a história teria uma causa única, sendo a

causalidade estudada a partir dos efeitos singulares por ela desencadeados

Page 9: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

(ANTIQUEIRA, 2014, p. 13). Ou seja, para se identificar as causas, o historiador parte

dos efeitos para estipular possíveis causas.

No entanto o cerne da questão da causalidade é trazida por Antiqueira ao apontar

como exemplo a abordagem de Perry Anderson e Moses Finley sobre as razões que

explicariam o “declínio” da mão de obra na sociedade romana imperial (ANTIQUEIRA,

2014, p. 19). Ao abordar a questão do ponto de argumentação de cada autor, Antiqueira

se utiliza do método de “frequência relativa” definido por Ernest Negel para apresentar

um modelo causal na produção do conhecimento histórico (ANTIQUEIRA, 2014, p.14).

A partir do modelo em questão, Antiqueira mostra que as causas elencadas pelo

historiador, partem de uma escolha do mesmo em relação as suas evidências, e que; os

fatores causais, de ordem qualitativa, na produção do conhecimento histórico agrega

concretude e plausibilidade a narrativa desenvolvida pelos historiadores

(ANTIQUEIRA, 2014, p. 24). Vale chamar atenção que as escolhas e hierarquizações

das causas não são arbitrárias: “as narrativas históricas apresentam relações causais que

não equivalem a construções livremente formuladas, mas antes são edificadas a partir de

provas, controles e operações cognitivas (ANTIQUEIRA, 2014, p. 14). Ou seja, o

historiador faz suas escolhas com base no campo de limites definido pelas evidências

que possui.

Neste sentido, a própria causalidade na produção do conhecimento histórico

somente é possível dada a posição do historiador em relação ao passado; e,

consequentemente, as evidências por ele utilizadas. Os questionamentos apontados pelo

historiador partem de suas relações com o presente dialogando com as evidências

disponíveis.

Por fim, e, naturalmente, a discussão sobre o ofício do historiador, está longe de

ser completa nestas breves considerações. As reflexões aqui trazidas apenas procuraram

situar o ofício do historiador como sendo algo: dotado de uma série de particularidades

– no entanto, não por isto, “menor” em relação à outros campos do saber; realizado a

partir de questões concretas mesmo possuindo limites; de grande atualidade – uma vez

que possui uma relação com o presente, não podendo a História ser compreendida como

“a ciência do passado”.

Page 10: O Ofício do Historiador Ontem e Hoje

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTIQUEIRA, Moisés. Modelos causais e a escrita da história. História da Historiografia.

Ouro Preto, n. 14, p. 11 – 26, abr. 2014.

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de

Janeiro: Zahar, 2001.

CHESNEAX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e

historiadores. São Paulo: Ática, 1995.

HOBSBAWM, Eric J. Prefácio. In: _____. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras,

1988.

_____. Dentro e fora da História. In: _____. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras,

1998.

LE GOFF, Jacques. Documento\monumento. In: _____. História e memória. Campinas:

Editora da UNICAMP, 1990.

THOMPSON, Edward P. Intervalo: A Lógica Histórica. In: _____. A miséria da teoria ou um

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_____. Tem a História uma Teoria?. In: _____. A miséria da teoria ou um planetário de

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_____. Os Filósofos e a História. In: _____. A miséria da teoria ou um planetário de erros.

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