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HISTÓRIA E AMNÉSIA
Bruno Baendereck* (UNESP)
Cientificamente, em termos medicinais, a amnésia constitui a perda total ou
parcial da memória e entre as mais freqüentes causas da amnésia estão infecções e
patologias que afetam o tecido cerebral (encefalite, derrame cerebral e outras).
Também pode ser conseqüência de algumas doenças neurodegenerativas ou
conseqüência de traumas físicos (pancadas na cabeça, por exemplo) e psicológicos,
bem como o alcoolismo e o consumo de drogas.
No presente trabalho, no entanto, pretendemos utilizar “amnésia” enquanto
linguagem metafórica, que possibilitará iluminar algumas questões relativas ao oficio
do historiador. A idéia básica que perpassa nossa proposta é tratar da história a
partir do que significaria a ausência de história (como que uma amnésia social) na
vida dos cidadãos urbanos (prioritariamente do brasileiro, dada nossa maior
proximidade com suas vivências). Em última instância, ao pensarmos tais questões
estamos propondo uma maior valorização da História numa contemporaneidade um
tanto sombria1.
Assim, realizaremos uma análise do álbum "Amnesiac" (2001) da banda
inglesa Radiohead, com a finalidade última de discutir alguns porquês e sentidos da
História na contemporaneidade. Para tanto, apoiar-nos-emos em bibliografia da área
de teoria da História passando, assim, por alguns questionamentos básicos e
importantes sobre qual a consistência do ofício do historiador, a importância de seu
ofício na contemporaneidade, etc.. Não se trata de um trabalho na área de História
do tempo presente, mas sim de caráter teórico. O trabalho se justifica na medida em
que há uma defasagem até mesmo na formação teórica dos próprios historiadores.
Esta defasagem é constantemente ressaltada por renomados pesquisadores da
área, como Jurandir Malerba, entre outros.
* Mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Raquel Portugal. Bolsista CAPES. 1 Entraremos em detalhes sobre quais os sentidos sombrios que enxergamos na contemporaneidade.
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O historiador medievalista francês, Marc Bloch, traça um elogio ao ofício do
historiador, pelo seu esforço em recompor as vicissitudes do homem interpretando-o
no tempo2. Sem pretensões quanto a um conhecimento verdadeiro (algo improvável
quando se trata do humano), o historiador lança-se à pesquisa com métodos
próprios de observação e reconstrução do passado a partir de vestígios. É preciso
fazer perguntas ao passado, e tais questionamentos advêm do tempo presente.
Ora, sabemos bem que nenhum registro apenas registra imparcialmente. Ele
pressupõe, em verdade, um trabalho de linguagem e uma tomada de posição dos
sujeitos sociais. Outro historiador medievalista, Jacques Le Goff (que seguiu os
passos propostos por Marc Bloch) em 19943 afirmou que a memória funciona e se
constitui como instrumento de poder. Utilizando-nos da idéia de Ana Paula Goulart
Ribeiro sabemos que “tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma
grande preocupação dos que dominaram ou dominam as sociedades históricas.”4
Não é nossa intenção fazer nenhum tipo de separação simplista das classes
sociais enquanto dominantes de um lado e dominados do outro. Nosso propósito é
ressaltar que ao selecionar e ordenar os fatos segundo certos critérios, a “memória
oficial” se constrói sobre zonas de sombras, silêncios, esquecimentos e repressões5.
Sabemos que a disciplina-História exerceu por muito tempo o papel de construção e
formalização dessa memória oficial, basta pensar na construção de identidade
nacional ou da própria idéia de nação na viragem do século XIX para o XX. Em
oposição a essa memória oficial temos, ainda segundo Ana Paula, várias “memórias
coletivas subterrâneas”, que transmitem e conservam lembranças proibidas ou
simplesmente ignoradas pela visão predominante.
Marc Bloch nos legou a importante lição de que “a ignorância do passado não
se limita a prejudicar a compreensão do presente; compromete a própria ação.“6 A
vida diária do cidadão urbano oferece-lhe a simultaneidade espaço-temporal que
aloca o presente como única sede real da experiência. A modernidade inventou a
simultaneidade. Flaubert afirmava entusiasmado “tudo deve soar simultaneamente!”.
Contribuindo enormemente para aceleração (e compressão) do tempo, Henry Ford
instalou sua linha de montagem em 1913, fragmentando tarefas e distribuindo-as no 2 BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 3 LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Portugal: Editorial Estampa, 1994. 4 RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornais: memória ou amnésia. Revista tempo e presença, vol. 21, número 305, p. 29. 5 Idem, pp. 28-30. 6 BLOCH, Marc. Op. Cit. 2000, p.60.
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espaço (prolongando o espaço através da esteira de produção). Diante de tal
fenômeno, fica a impressão de que nos resta abrir mão de qualquer referência sólida
(pensando aqui em Bauman) imergir no tempo presente com unhas e dentes.
Acreditamos, como Kenneth Maxwell, que já foi o suficiente da defesa pelo
brasileiro de sua auto-imagem folclórica, de gente “eternamente jovem, bronzeada
(...), indiferente ao passado e sempre voltada para um futuro tão efêmero quanto as
tórridas telenovelas nacionais.”7
Segundo Maxwell o brasileiro tem se preocupado mais com o passado (nos
últimos dez anos), e que “o passado que o Brasil está redescobrindo é repleto de
contradições”. Assim, tem reconhecido como sujeitos pertencentes à sua história os
“desclassificados”, movimento acompanhado pelo surgimento de movimentos sem
terra, indígenas, trabalhadores da indústria, brasileiros de origem africana, etc.. “O
redescobrimento da história do Brasil pelos brasileiros desafia sobretudo o legado
peculiar que, desde o século XVIII permitiu que os governantes do país enxertassem
o imperativo do autoritarismo em sua visão de futuro.”8
Como sabemos, o desnível de renda no Brasil figura entre os maiores do
mundo. “Para que possa haver reforma, será preciso mudar um estilo político
oligárquico e uma burocracia entrincheirada...”9. Sabemos que o sistema
previdenciário não faz praticamente nada pelos trabalhadores pobres enquanto
beneficia bastante os funcionários públicos. Este é só um pequeno exemplo de
problemas enraizados historicamente, problemas que podem passar despercebidos
se prevalecer o ‘estado amnésico’ segundo o qual o presente é a única sede
referencial para a experiência. O redescobrimento da história do Brasil pelos
brasileiros fortalece essas novas vozes do interior do Brasil, que “mal existiam antes
da liberalização política e econômica, uma década atrás”10.
Cabe aqui, portanto, utilizar o álbum “Amnesiac” da banda musical Radiohead
como prisma para aprofundarmos a idéia de ‘estado amnésico’. Não escolhemos
essa obra aleatoriamente. Em verdade, até mesmo entre a literatura atual com a que
temos contato (não apenas no campo musical) acreditamos ser difícil encontrar uma
obra com começo, meio e fim que ilumine com tanta veemência a repetição e 7 MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 423. 8 Idem, p. 425 9 Idem, p. 435. 10 Idem, p. 439. Lembrando que já são vinte anos da época em que foi escrito “Chocolate, Piratas e outros Malandros”.
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circularidade de vivências sem referência no passado (amnésia) e sem projeção de
futuro (tão bem ilustradas por Camus em 1942 através de “O Mito de Sísifo”11). É por
isso que “Amnesiac” nos é tão caro enquanto prisma de análise. Basicamente, ao
tratar da idéia de amnésia, se relaciona com a matéria prima com a qual são
formulados documentos históricos e o próprio processo individual de construção de
imagens: a memória.
Selecionamos para a apresentação deste trabalho três canções que
consideramos fundamentais para traçarmos um panorama analítico. O que é comum
nas três é justamente o aviso do perigo da experiência cotidiana vivida por si só,
sem referência no passado (e, portanto, sem projeção de futuro). É interessante
notar que na própria musicalidade está marcada a repetição sem sentido, uma vez
que a banda transformou seu estilo musical em relação ao álbum anterior (Ok
Computer, 1997) deixando de lado o desencadeamento de melodias plurais e se
apropriando da linguagem musical repetitiva da música eletrônica. Com isso não
queremos dizer que toda música eletrônica é repetitiva, mas no caso de “Amnesiac”
é perceptível sua utilização nesse sentido.
Dessa forma, a primeira canção, “Embalado como sardinhas numa espremida
caixa pequena”12, tem como fundo musical uma renitente batida seca sem
progressão melódica complexa, que pode facilmente ser comparada a
desencontrados ‘martelares’ de uma fábrica no estilo fordista. A escritora e filósofa
francesa Simone Weil ao tornar-se operária da Renaut para descrever e sentir o
cotidiano do operariado nos dá em seu diário uma descrição extremamente
pertinente com aquilo que a música descreve. Sugerimos que por trás de ambas
descrições está a falta de sentido vivida num estado amnésico:
1) Radiohead:
“Depois de anos de espera, nada veio
Enquanto sua vida lampeja diante de seus olhos, você percebe:
‘sou um homem razoável, desista do meu caso.’
Depois de anos de espera, nada veio.
E você percebe, você está olhando no lugar errado:
‘sou um homem razoável, desista do meu caso’.
11 Ao final deste trabalho encerraremos com algumas idéias do filósofo sobre Sísifo, “proletário dos deuses”. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2a ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. 12 A tradução é nossa. Optamos por colocar tudo em português para facilitar a leitura ao público geral, que tiver acesso a este trabalho.
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2) Simone Weil:
“Sua própria vida sai dele sem deixar marca ao seu redor”.
“Cada sofrimento físico inutilmente imposto, cada brutalidade, cada humilhação
parece-lhe um lembrete de que ele não é nada”.
A amnésia seria então um salto para o futuro sem base no passado, sem
reflexão, eliminando qualquer dialética. Ora, se a memória é fisilógica, se ela é uma
alteração fisiológica no interior das células, quanto mais intensa a emoção (impacto
na vida da pessoas), maior a fixação da memória. E se a vivência cotidiana de um
cidadão, como a destes trabalhadores fabris descritos por Simone Weil, é permeada
por tais sensações desagradáveis e incessantemente repetitivas podemos sugerir
que, ao invés de maior fixação dessas memórias, este homem realize
inconscientemente oposto, ou seja, aquilo que Freud chama de sublimação: o
esquecimento que viabiliza continuar vivendo mesmo em situações tão
depreciativas.
Daí a insistência da canção apresentada em marcar os anos de espera, da
vida que apenas lampeja diante dos olhos. Segundo nossa interpretação, esse
homem racional e razoável que pede para que desistam de seu caso sabe de sua
trajetória circular que sai do nada em direção ao nada. Esta circularidade da
experiência será ressaltada em todas as canções analisadas. Ela é, em realidade, o
fio condutor de nossa análise. É a amnésia metafórica.
O sujeito só pode estabelecer perspectiva com base me seus enraizamentos.
O mundo observado se passa por um conjunto de imagens externas filtradas pela
interioridade subjetiva. Fixação da memória é justamente a ação sobre o que o
sujeito quer olhar. Dado que nossa percepção do mundo físico não é integral, a
memória é a supressão do objeto concebido, mas que conserva a imagem subjetiva
a partir dessas percepções13. A memória é a fixação do passado agregado, é a base
de toda ação. Sem ela não há ação. Por isso a música apresentada acima faz
menção da vida que relampeja diante dos olhos, ou seja, uma vida inerte (e portanto
desmemoriada, em estado amnésico).
Não nos interessa aqui atribuir ao compositor Thom Yorke a intencionalidade
expressa de juntar o título do álbum (Amnesiac) e esta primeira música com a idéia
13 BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp.1-106.
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de inércia ou falta de ação (ou relacioná-la a um ambiente de fábrica). Apenas
estamos sugerindo uma interpretação possível, e utilizando o amplo universo
semiótico apresentado pelo artista.
Dando prosseguimento, adentramos no universo menos individual da
memória (pois na primeira canção trata-se eminentemente de um indivíduo) ao
analisarmos a quinta música do álbum, chamada “Eu posso estar errado”.
Colocamos em negrito os elementos que mais nos chamam a atenção:
“Eu talvez esteja errado...
Eu poderia jurar ter visto uma luz surgindo
Eu costumava pensar que não nos resta futuro...
Eu costumava pensar
Abra, comece de novo.
Vamos descer a catarata,
Pensar em bons tempos
Nunca Olhar pra trás. Nunca olhar pra trás .
Abra e deixe-me entrar
Vamos descer a catarata,
Nos divertir, não há nada de mais .
E nada de mais”
Na canção, o narrador esta relacionado a um coletivo (assim também o é na
última música que analisaremos). O discípulo de Durkheim, Albax afirma que a
memória é coletivamente construída. Ora, mas se acreditarmos na máxima “eu só
sou nos outros” acabamos por ignorar as trajetórias individuais e ignorar o fato de
que existem fatores não explicáveis pela memória social (como por exemplo a
percepção de um mesmo livro por um indivíduo que muda no tempo, conforme sua
trajetória).
De qualquer maneira, a dimenção social da memória deve ser ressaltada.
Como já foi citado no artigo de Ana Paula Goulart, é difícil traçar os limites das
formas de estruturação da memória coletiva. Se há por um lado a “memória oficial”,
que seleciona e ordena os fatos segundos certos critérios próprios (e criando assim
zonas de esquecimento) há por outro várias “memórias coletivas subterrâneas” que
em quadros familiares, em grupos étnicos, culturais ou políticos “transmitem e
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conservam lembranças proibidas ou simplesmente ignoradas pela visão
dominante.”14
A musica em questão se assenta sobre uma proposta essencial: “vamos
descer a catarata”. Uma coletividade é convidada para descer a catarata, nunca
olhar pra trás, pensar nos bons tempos (como se não houvesse nada demais nisso).
Primeiramente, é impossível não precipitarmos um pouco um trecho da
próxima e última música que analisaremos por estar relacionado à mesma metáfora
do rio: “nossos corpos flutuando rio lamacento abaixo”. Está clara a referência de
ambas as canções à escuridão (ou à qualidade turva do presente), seja através do
adjetivo “lamacento” para designar o rio no qual flutuamos inertes, ou seja, através
da afirmativa “eu poderia jurar ter visto uma luz surgindo”. Diante da qualidade turva
das águas do presente, o narrador sugere então um “descer a catarata”
aproveitando o presente sem preocupação com o passado (“nunca olhar pra trás”) e
sem projeção de futuro (apenas com a atenção voltada a experimentar tempos
felizes). Mas a ironia é marca constante de inúmeras canções de Radiohead, e o
título desta não deixa dúvidas quanto à crítica à descida do rio proposta: “Eu posso
estar errado”. As conseqüências nefastas desse mergulho voluntário num rio
amnésico terão ainda mais expressividade na última música que analisaremos.
Em segundo lugar, esse narrador que sugere o mergulho impensado em tais
águas não poderia muito bem ser entendido como a mídia e o jornalismo que
‘espetacularizam’ o real (ainda segundo Ana Paula Goulart)? Esse jornalismo,
através da fruição do presente, causa um enfraquecimento da memória coletiva.
Ainda segundo a autora, a memória midiática tem sua especificidade em relação à
memória histórica: enquanto “espetaculariza” o real, enfraquece e esfalece a
memória. Em outras palavras, produz o esquecimento ao lançar inúmeros impulsos
caóticos, espetaculares, não deixando espaço para reflexão sobre aquilo que fica.
Retira assim a dimensão profunda do tempo, deixando às pessoas o sentimento de
efemeridade e superficialidade15.
Por fim, aprofundemos sobre a questão das memórias coletivas que se
esvaziariam quando todos acatassem consciente ou inconscientemente (se é que já
não o fizeram) a essa idéia de lançar-se à cachoeira amnésica de um eterno
presente. Num país de desmemoriados é impossível o agir crítico, já que se todos
14 RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Op.Cit, p.29. 15 Idem, p.30.
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experimentassem uma cegueira branca (para utilizar a metáfora de Saramago)
estariam eternamente em ruínas circulares, experimentando a euforia de possíveis
mudanças, mas logo desilusões conseqüentes16. Sem consciência histórica como
podem estes homem direcionar suas práticas? Nossa população em geral tem
consciência histórica, mas esta consciência pode e deve ser reinventada pelas
próprias camadas populares. Como bem definiu José Murilo de Carvalho17, não
assistem às transformações bestializadas, mas um pouco alheias às decisões
importantes, ao engajamento político. A população não é massa inerte, informe
(como sugere a citada sentença “nossos corpos flutuando rio lamacento abaixo”),
muito pelo contrário: resiste à sua maneira, mas possivelmente não canaliza bem as
reivindicações (como termômetro desse fenômeno basta notar a sátira que é capaz
de fazer de seu próprio estado de vida, como bilontras).
Não podemos deixar de tocar na questão da Universidade, já que estamos
contextualizando a produção de ‘amnésia’. No Brasil ela é um espaço privilegiado,
meta prioritária dos jovens de classes média e alta, cuja grande parte do ônus é
arcado pelo Estado. “Não cessa de produzir pessoal habilitado para as carreiras
burocráticas ou burocratizáveis do país”18. A Universidade é o lugar em que a cultura
formaliza-se precocemente. Fora dela os bens simbólicos são consumidos
principalmente através de meios de comunicação de massa. Imagens e sons são
consumidos maciçamente e vêm como uma torrente, do público ao privado. Os
processos psicológicos dos programas e transmissões consumidos são de apelo
imediato (medo, sentimentalismo, violência, etc.). Constituem-se enquanto receitas
de sucesso, levadas ao grande público.
Se a Universidade e um maior contato com a história poderiam mudar um
pouco o cenário descrito acima, a erosão do ensino público propicia a evasão e o
desgosto por disciplinas como a História. As práticas educacionais deveriam
relacionar-se com as vivências cotidianas dos educandos e deveriam, sobretudo,
transcender níveis institucionais formais. A história é viva, experimentada e não
simplesmente estudada. Tal erosão do ensino público não faz mais que convidar-
nos a esse mergulho na cascata do tempo presente sem referências históricas e
sem projeção de futuro.
16 BAUMAN, Zygmunt. A Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 17 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que näo foi. Säo Paulo; Companhia das Letras; 1999. 18 Idem, p. 310.
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Segundo Robert Kurz (integrante do grupo Krisis na Alemanha), as
sociedades antigas não tinham sua existência decomposta em áreas funcionais
separadas, o que as sociedades atuais entendem como primitivismo, já que
desvalorizam a integração da sociedade em prol da diferenciação. Os atributos
sociais (como política, religião, cultura...) hoje separados em esferas autônomas
para nós eram na Antiguidade contidos uns nos outros. Numa espécie de amnésia,
segundo ele, “a sociedade moderna costuma encarar seu próprio modo de
existência e suas categorias como supra-históricas...”19. Em outras palavras, é como
se crises graves como desníveis sociais dramáticos não fossem “nunca um
problema histórico e superável pela crítica”20. Essa maneira de enxergar a vida
moderna é uma espécie de autolegitimação apologética do status-quo.
Nos permitimos aqui um parêntese para estenderemos algumas reflexões
sobre as potencialidades da reflexão histórica, utilizando uma anedota de Machado
de Assis: Brás Cubas, personagem sua, ao narrar suas memórias póstumas relata o
episódio do vergalho, no qual seu negro liberto. O moleque Prudêncio “sutilmente”
vergalhava seu novo escravo da mesma forma que fora chicoteado pelo antigo
senhor21. Estas situações circulares, viciosas, são típicas da ausência de reflexão
histórica. É realmente difícil transformar o imaginário de uma nação (especialmente
uma com tamanha expansão e diversidade cultural como a nossa), mas o incentivo
à reinvenção de raízes é preciso. Um sujeito só pode empreender uma ação se está
consciente de seus desejos e de sua própria auto-imagem. “Os brasileiros precisam
construir criticamente a própria imagem para vencerem em suas lutas e negociações
de reconhecimento e superarem sua situação de crise permanente.”22
Memória e história são indissociáveis, e num exercício crítico da História
podemos inventar tradições23. Fundamental é que esta invenção são seja relegada
unicamente às mentes “iluminadas”, mas que muitos sejam estimulados e sintam
necessidade de redefinir signos. Bem como o escritor argentino Jorge Luiz Borges
não entendemos a memória como reprodução exata do passado, mas como sua
19 KURZ, Robert. Com todo vapor ao colapso. Minas Gerais: Editora UFJF – PAZULIN, 2004, p.112. 20 Idem, 2004, p.112. 21 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Indiana: R.R. Donnelley & Sons Company, 1997, p. 131. 22 Idem, 2006, p.10. 23 Para aprofundar mais sobre a questão, ver HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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reconstituição imaginativa de persistências e esquecimentos24. Temos assim o
passado como elemento de fixação de referências, plurais referências uma vez que
não apenas os acadêmicos ocupariam o oficio do memorioso (formalizando a
memória em História). Diminuiria assim o número de exilados em seu próprio país.
É-nos particularmente interessante a formulação não-essencialista do
problema identitário, a partir da qual podemos nos perguntar livremente “como
temos nos representado?” ou “o que desejamos nos tornar?”25. O indivíduo isolado
perdeu o sentido de si na multidão impessoal e urbana, e em meio a toda
impessoalidade é preciso reconstruir aquilo que se é, ainda mais num país de
desmemoriados. Da fratura entre o mundo e o espírito, é direito do cidadão ter
consciência dos conflitos vividos, sentindo novamente sua lâmina viva. Não mais o
ardor anestesiado do dia-a-dia a-histórico, sem clareza na longa duração, sem
perspectiva temporal. Visualizar o homem no tempo é esse reinventar histórico que
aqui nos referimos. Justamente essa reinvenção não deve ser um privilégio de elites
intelectuais. Conseguir ampliar a quantidade de pessoas que têm perspectiva
espaço/temporal para além do dia-a-dia de esgotamento no vazio seria também
conseguir diminuir os abismos sociais.
Analisemos então a última canção proposta, cujo nome é “Como chapas
rotatórias”:
“Enquanto você pronuncia belos discursos,
Sou dividido pela perspicácia
Você me alimenta para os leões
Um delicado equilíbrio.
Quando isso simplesmente sente-se como chapas rotat órias
Estou vivendo no nebuloso mundo de ‘cuco’
E simplesmente sente-se como chapas rotatórias
Nossos corpos flutuando num lamacento rio abaixo. ”
Esta canção é a penúltima do álbum. Toda sonoridade sugere repetição,
como se tudo estivesse sempre rodando ao redor de algo ou ao redor de si próprio.
24 PINTO, Júlio Pimentel. Ruas como entranhas: o tema urbano em Borges. Revista Estudos de História, vol. 04, número 02, 1997, pp. 79-91. 25 Para uma leitura nesse sentido da questão da identidade, ver HALL, Stuart. Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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A referência ao relógio/despertador de ‘cuco’ não é sem sentido. O nebuloso mundo
de ‘cuco’ poderia ser entendido como a própria repetição circular da qual estamos
tratando. Como podemos trabalhar na mesma música a idéia de um rio (que é
materialmente extenso e ‘linear’) e a das chapas (ou pratos) rotatórios? Ora, se o rio
não fosse lamacento ele traria a sensação de continuidade, fluência (e movimento),
o que iria contra toda a sensação de repetição e nebulosidade que nos passa a
canção. Mas a característica lamacenta deste rio, no qual todos nossos corpos
estariam flutuando, é fundamental, pois nos proporciona vincular as três canções
selecionadas (uma no começo, outra bem no meio e outra no fim do álbum) e ligá-
las à idéia de ausência de referências relacionadas ao passado – como sugere o
próprio nome do álbum – e, assim, ausência de projeção de futuro.
Somente quando percebemos que o status de amnésico significa não apenas
perder referências passadas, mas projeções futuras é que podemos compreender o
pleno significado de rotatoriedade, repetição e circularidade. Em outras palavras,
quando o cotidiano é só rotina (mundo de ‘cuco’) ele é só passado, porque o
passado permanece repetido, bruto, intocável. É presente nas ações da vida
cotidiana. O futuro não será nada mais do que esta exata reprodução.
Até agora tratamos de tudo isso para elevar a História e o oficio do
memorioso como respostas possíveis a essas armadilhas do tempo (tradição
estagmentada), da mídia, ou do próprio indivíduo que monta mecanismos dos quais
permanece em seguida prisioneiro mais ou menos voluntário. Segundo Marc Bloch,
a faculdade de apreensão do que é vivo é justamente a qualidade mestra do
historiador [e de quem aventurar-se em sua própria história e (ou) na história de
forma geral]26.
Já está mais do que assinalado por pesquisadores atuais que a produção
historiográfica é uma construção e não um resgate, e tende ao verossímil, não ao
real. Ela sobrepõe alusões cifradas a uma temporalidade passada, permitindo
distinguir tal passado como lugar de tradições e referências. Já o memorioso “evita
os dilemas da história entendida como maleabilidade e mudança”27, e oferece
enraizamento, delimitação de fronteiras e preservação do que aparentemente é
efêmero no presente. Inventam-se tradições. Sim, a História representa um risco de
26 BLOCH, Marc. Op.Cit. 2001, pp.52-55. 27 PINTO, Júlio Pimentel. Borges, uma poética da memória. In SCHWARTZ, Jorge (org). Borges no Brasil. São Paulo: Imprensa oficial SP, 2001, p.122.
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dissolver o espaço possível da lembrança, historicizando a memória e se
construindo, assim, sobre zonas de esquecimento (como colocamos no início do
trabalho). Mas a História sem pretensão de compreender um tempo eterno e
contínuo e uma representação exata do passado pode abrir brecha para o espaço
da lembrança, para o espaço da memória. Caso contrário ela também poderia
construir amnésias. A nosso ver, não entender que há um abismo entre realidade e
representação (e buscar assim uma História oficial ou demasiado enrijecida pelo
caráter “científico”) é relegar ao esquecimento tudo que é movimento, construção e
invenção, ou seja, tudo que é mais humano. E como postulou Marc Bloch, “são os
homens que a História quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no
máximo, um serviçal da erudição.”28
Assim concluímos este trabalho. No mais, encerraremos com mais uma
referência para iluminar a idéia metafórica de amnésia e circularidade repetitiva de
vivências.
Talvez a contemporaneidade seja composto em maioria numérica por gente
como Sísifo, “o herói absurdo”29. Condenado a carregar uma rocha incessantemente
até o alto de uma montanha, essa figura mítica via-se presa a um trabalho inútil e
sem esperança, já que a rocha rolaria montanha abaixo e Sísifo novamente haveria
de levá-la montanha acima. O trabalho diário da maioria dos cidadãos modernos
possui caráter semelhante, uma vez que seus benefícios não são colhidos por eles
próprios, mas por elites privilegiadas. Mais de 40 milhões de brasileiros vivem na
pobreza, com renda inferior a 150 reais por mês. Seu trabalho proporciona apenas a
reprodução de mais força de trabalho, e em longo prazo a situação de miséria
permanente.
O mito de Sísifo ”só é trágico porque seu herói é consciente”30. Os
trabalhadores brasileiros menos abastados têm consciência de sua situação, não
cumprem seu serviço a esmo como cordeirinhos domados. Segundo José Murilo de
Carvalho, respondem à situação com ironia, sátira. Não são bestializados (como
quis Oliveira Viana), mas bilontras. De uma vez por todas é preciso superar a noção
de “povão” aculturado.
28 BLOCH, Marc. Op.Cit, 2001, p.20. 29 CAMUS, Albert. Op.Cit., 2005, p.138. 30 Idem, 2005, p.139.
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Então, prossegue Albert Camus: “Não há destino que não possa ser superado
com o desprezo”31 – o que chamamos de sublimação, ou simples negação. Porém
ao desprezar uma história de longa data, desprezar a visão de um devir de pedras
carregadas montanha acima (em um suplício sem sentido), nossas populações
miseráveis perdem a oportunidade de deterem-se refletindo nos dias, anos ou
séculos de carregamento de pedras e esvaziamento de sua história. Ora, se só resta
à memória o cheiro da rocha, de sua textura, da dureza do trabalho em carregá-la e
do mínimo benefício pelo serviço, é natural a escolha por abolir tal memória, abolir
até mesmo grande parte de seu passado e entregar-se inteiramente ao momento
presente. Nomeamos a esse fenômeno o ‘viver em amnésia’ e contra ele fazemos
um apelo através do elogio ao oficio do memorioso e daquele que pensa, escreve,
vive e reinventa a história.
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Imagens utilizadas na apresentação
(fonte:
www.torrentreactor.net/torrents/2463035/Amazing-Desktop-Wallpapers-Radiohead)
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