a historia do historiador

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A História do Historiador Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

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USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Prof. Dr. Jacques Marcovitch

Vice-Reitor Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Diretor Prof. Dr. Francis Henrik Aubert

Vice-Diretor Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

DH DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Chefe Profª. Drª. Laura de Mello e Souza

Suplente Prof. Dr. Jorge Luís da Silva Grespan

CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS

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Membros Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

Profª. Drª. Maria das Graças de Souza do

Nascimento (Filosofia)

Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)

Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)

Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização dos detentores do copyright

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ISBN: 85-86087-??-?

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PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

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Introdução .........................................................................7

As Antigüidades ............................................................... 13

As Idades Médias ............................................................. 37

As Idades Modernas ......................................................... 53

A Modernidade ................................................................. 69

O Historiador Contemporâneo........................................... 87

Bibliografia .................................................................... 113

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“Quando eu evoco um arco, cheio de beleza e simetria,

(...) uma certa realidade que o espírito conheceu

através dos olhos e que foi transmitida à memória,

suscita a visão imaginária.”

Agostinho, De Trinitate, IX, xi, 6.

Passado e memória dão conteúdo, identidade e espessuraa todos os humanos. Por mais isolado que se encontre um gru-po, uma comunidade ou mesmo um só indivíduo, todos estãoimbuídos de um passado, de uma memória e de uma história. Ahistória de si mesmos é também a história da vinculação comdeterminado tempo e espaço. Embora a individualidade se ela-bore dentro de uma dinâmica, onde se relacionam o vivido e oconcebido, isso não torna todos os homens historiadores. A his-tória pessoal de cada um inevitavelmente terá raízes numa his-tória externa, mais ampla, mais difusa, imbricada com o social,o econômico, com as estruturas da cultura, nem sempre per-ceptível no plano da consciência individual. É justamente datradução dessas histórias através de narrativa coerente, elabo-rada a partir de elementos concretos, não ficcionais, com bases

INTRODUÇÃO

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8 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

num múltiplo e complexo inter-relacionamento entre tempo, es-paço e a expressão dos grupos humanos, que se ocupará ohistoriador. O historiador não será guardião da memória indivi-dual, ou memorialista, mas aquele que ao indagar capta o sen-tido da construção de uma memória social no tempo, criandouma imagem do passado. Neste sentido a memória é documen-to e não produto final.

Apesar de o indivíduo existir na história, não será ele o ob-jeto principal do historiador. Mesmo em períodos onde se privile-giou uma história de heróis, foi impossível caracterizar aheroicidade isoladamente; o herói sempre precisou de um mo-mento adequado para demonstrar sua habilidade e, principal-mente, de uma identificação com um objetivo suprapessoal, comum grupo e com idéias por este concebidas. As relações interpes-soais, a construção mental e física do mundo, o exercício do po-der de uns sobre os outros, os encontros entre diferentes estão nabase daquilo que Virginia Woolf definia como “fantasma imenso ecoletivo, incapaz de ser exorcizado” ou seja, o passado, ao qual ohistoriador dará forma para que ele se transforme em história.

Assim como o conteúdo da história não é o indivíduo isola-do, tampouco o historiador expressará uma subjetividade ilimi-tada na sua captação do passado. Pelo simples fato de partici-par de um passado realizado no presente, de pertencer ou seprojetar num determinado grupo social, seu trabalho expressa-rá uma historicidade intrínseca na escolha de temas, na abor-dagem, na leitura da documentação, no processo de reflexãoconvertido em texto. Paradoxalmente, nesta condenação do his-toriador ao presente situa-se a eternidade de um passado quenunca se esgota. Caso contrário, a história da Grécia, por exem-plo, teria sido escrita por Heródoto e ponto final. No entanto,cada século reelaborou a história grega dentro de suas perspec-tivas e possibilidades. Nos limites entre a “consciência possível”e a “consciência real” próprias e de seu tempo, o historiadorbusca no passado a consciência de seu próprio tempo.

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Devemos considerar também que nem sempre o termo his-toriador foi utilizado para identificar aquele que se ocupa dopassado. Tampouco existiu uma profissão ou uma carreira dehistoriador em todos os tempos e todas as sociedades. Pessoascom os mais diferentes perfis e formações desempenharam fun-ções de destrinchar, refletir, falar ou escrever sobre o passado,tendo em vista as mais variadas preocupações e múltiplas per-cepções de tempo.

O historiador, diante da necessidade de organizar seu pen-samento, seu entendimento, cria medidas e categorias de tem-po, organiza esse tempo em função de fatos, de ciclos, de épo-cas, de estruturas. Com isto acrescenta uma noção de tempodiversa daquela vivida pelas comunidades; na antigüidade, porexemplo, foi Timeu da Sicília, no século IV a.C., que introduziuum sistema numérico estabelecendo uma correlação entre ascrônicas das diversas cidades-estados, dado que cada uma es-tabelecera uma cronologia a partir das listas de dignatários quea cada ano as governavam. O tempo jamais é único no estudoda história, pode ter uma predominante qualitativa ou quanti-tativa, é desigual e particular a cada sociedade, a cada momen-to e a cada espaço. É físico e metafísico. Pode até mesmo nãoexistir.

Dependendo de suas crenças, é possível a uma sociedadeconceber o mundo sem passado, num eterno presente em quepassado e futuro se fundem. No Egito, na China, na Índia, emAztlán, há deuses que significam o próprio tempo, um tempocontínuo, sem fraturas, sem imperfeito ou mais-que-perfeito;predomina então uma idéia do não-tempo divino que interpenetrao cotidiano.

Na cultura do cristianismo, forjadora de uma forte estru-tura conceptiva no ocidente, ocorre o inverso, o tempo existe naesfera do humano, fora da divindade, que é eterna. No século V,

INTRODUÇÃO

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10 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

Santo Agostinho atribuiria ainda ao tempo cristão uma nuancepsicológica; o presente torna-se uma experiência na alma; opassado é uma imagem memorial da alma; o futuro existe comoexpectativa psíquica; o tempo comum é passageiro e sem senti-do e cessará no momento em que a alma se unir com Deus – ofora do tempo. A noção personalizada do tempo de Agostinhocoincide, num outro plano de conjectura, com a percepção deAlbert Einstein de que as indicações de tempo eram sempre re-lativas à posição do observador; assim, dois fatos simultâneospodem ser vistos tanto simultaneamente como numa seqüênciatemporal. Para Einstein espaço e tempo formam um contínuoquadridimensional, exatamente como os astecas haviam conce-bido o deus Omotéotl, com os quatro Tetzcatlipocas nos quatrocantos do espaço, criando o espaço e o tempo simultaneamente.

Em virtude da crença numa determinada idéia do tempo– cíclico, por exemplo, como uma cobra mordendo seu própriorabo, como o ritmo das estações, ou linear, como um rio queflui, como a areia da ampulheta – o narrador da história busca-rá seus conteúdos e o próprio espírito da narrativa de maneirasdiversas. Se baseada no eterno retorno, no cíclico, na idéia denascimento, desintegração e renascimento, a história assume opapel de mestra, pois conhecendo o passado descortina-se umfuturo sem surpresas. Na visão linear, judaico-cristã por exce-lência, com um início, meio e fim assegurados, a ênfase recairáno processo de aperfeiçoamento do mundo até atingir seu pontoculminante representado por seu próprio fim; a esta concepçãoliga-se uma idéia intrínseca de progresso, de progressão contí-nua, de propósito divino, excluindo a noção de ruptura. Em 1830,Hegel propõe a seus alunos a construção de uma história filosó-fica plena de necessidade, de totalização e de finalidade, queevocaria “a manifestação do processo absoluto do Espírito emseus mais elevados aspectos: a marcha gradual através da quala humanidade atingiria sua verdade e tomaria consciência de

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si. Para ele, os povos históricos, com as características determi-nadas de suas éticas coletivas, de sua constituição, de sua arte,de sua religião, de sua ciência, constituiriam as configuraçõesdesta marcha gradual (...) Os princípios dos espíritos dos povos(Volksgeist), na série necessária de sua sucessão definidas ape-nas como momentos do único Espírito universal: graças aoshomens, Ele se eleva na história a uma totalidade transparentea si mesma e traz a conclusão.” Nada mais distante da práticahistórica das últimas décadas do século XX, que leva em contadiferenças, descontinuidades e descompassos.

Estas diferenças, as descontinuidades, que por vezes sótravestem a própria continuidade, estão na base deste trabalho,uma análise suscinta das idéias que nortearam as diversas cons-truções do passado elaboradas pelos historiadores no ocidente.A partir de uma pré-história da história na antigüidade grega eromana até a contemporaneidade observaremos quão variávelfoi o papel da história e do historiador nas sociedades. No interiordo discurso histórico poderemos perceber as injunções do poderna escolha dos temas evocados, a ausência quase total ou adetratação e estigmatização dos elementos que não partilhavamdesse poder – artesãos, camponeses, escravos, índios, mulheres,crianças, incapacitados, desocupados, doentes –, as ideologiasdo poder religioso que muitas vezes emprestaram suas estraté-gias para o poder temporal. Observaremos quão útil pode ser opassado na criação de mitos destinados à mobilização de po-vos para a guerra e a conquista, à criação das nações e nacio-nalidades, de culturas hegemônicas, de despotismos e imperia-lismos, mas também de um senso de libertação e justiça atravésdo conhecimento e da consciência de um estar no mundo eiva-do pela dinâmica do passado.

Também a análise da vida pessoal, dessa individualidaderelacionada com o todo, e dos móveis particulares que guiam oshistoriadores mencionados no corpo do trabalho, nos auxilia a

INTRODUÇÃO

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12 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

vislumbrar a importância maior ou menor desta especializaçãodo saber nos diferentes tempos e espaços, bem como suas fun-ções ideológicas, políticas e culturais. Mas, sobretudo, a enun-ciar uma história dos historiadores.

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“Vocês gregos são apenas crianças, falantes e vãs, que

nada sabem do passado.”

Sacerdote egípcio falando com Solon.

Antes da história havia as lendas, as cosmogonias. A me-mória coletiva dos ancestrais era narrada por homens sábiospara toda a coletividade. O passado, quase nunca interpretadocom o distanciamento próprio à racionalidade ocidental, contri-buía com medidas e parâmetros, certezas e temores, para umsentido de enraizamento, de identidade dos grupos. A sofistica-ção intrínseca à construção dos passados míticos é enorme. Aimportância dos narradores na sociedade, primordial. Estasnarrativas tinham uma ligação profunda também com o nãoverbal, danças, rituais, elementos arquitetônicos, pinturas, pa-drões téxteis, cerâmicos etc...; inseriam-se numa totalidade semdistinções entre a “história”, a “geometria”, a “literatura”, a “re-ligião” ou os afazeres cotidianos da vida. Hoje em dia, na África,ainda encontramos comunidades onde os velhos detêm a me-mória de acontecimentos ocorridos no século XV ou mesmo antes;na Albânia, há poucas décadas, ainda podiam ser vistos poetas

AS ANTIGÜIDADES

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14 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

que, de vilarejo a vilarejo, narravam epopéias evocativas de umatradição homérica.

A relação interno-externo, humano-divino, alto-baixo,cheio-vazio, direito-esquerdo, portanto, a relação entre opostosnorteia as narrativas míticas, que tendem a horizontalizar umdiscurso, abrandar os lapsos entre duas ações consecutivas,estabelecer laços. Assim, Deus criou o céu e a terra; a terra erainforme e vazia, mas antes dela deveria existir o grande vaziosobre o qual a Bíblia nada fala, mas que encontramos no textode uma pirâmide egípcia: “quando o céu não havia nascido,quando a terra não havia nascido, quando o homem não havianascido, quando os deuses não haviam sido concebidos, quan-do a morte não havia nascido...”. A idéia do vazio para o cheio,do antes para o depois, da seqüência de atos, da detecção dosmomentos de mudança, da vontade de preservação dos diferen-ciais, serão algumas das formas da mitologia adotadas pelo dis-curso histórico escrito.

Esta história escrita, no entanto, não é de imediato aceitasem resistências, mesmo entre as elites e os intelectuais. NoPhaedrus de Platão (428 a.C. - 348 a.C.), Sócrates lamenta aexpansão do texto escrito e da leitura, que fariam esmorecer amemória e suas faculdades críticas. A nostalgia da tradição oralpode ser sentida na época de Tucídides (c. 470 - c.395), quandogregos cultos se lembram do tempo em que a história era pre-servada pela memória do povo.

Heródoto (c. 484 a.C. - 425 a.C.) declara no início de suasHistórias – este título, aliás, é posterior, pois na época as obrasnão vinham com denominação – seu desejo de expor suas pes-quisas (historíé) para impedir que os feitos de gregos e bárbarosse apagassem da memória, principalmente as razões de terementrado em conflito. Estão aí presentes, portanto, as noções dememória, identidade, seqüência de acontecimentos e confronta-ção entre opostos como apresentadas pela tradição mítica. Ago-

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ra, no entanto, centrados no mundo da ação, com pouca ênfaseou nenhuma nas correspondências entre universo e humanida-de, separando as esferas do sagrado e do profano.

Esta tentativa de distinção, na verdade, já fora concebidaantes de Heródoto, nas Genealogias de Hecateu de Mileto (c.540 a.C. - 480 a.C.). Situada na costa da Ásia Menor, Mileto eraum dos maiores centros comerciais internacionais na época e,portanto, aberta a contactos muito diversos. O aristocrataHecateu cresce durante os primeiros tempos da ocupação persa(a partir de 546 a.C.), num momento que corresponde tambéma uma mudança de atitude nas indagações e explicações sobreo mundo, sua origem e natureza, a um ensaio de afastamentoem relação às tradições legendárias e mitológicas pela chamadaescola jônica de filósofos. Após suas viagens pelo Egito e Pérsia,Hecateu chega à conclusão de que as tradições históricas vigen-tes na Grécia tinham algo de ridículo e deveriam ser discutidas.Este processo de separação do mito e do fato concreto é seme-lhante àquele ocorrido no âmbito da passagem do pensamentomítico à razão e à construção da pessoa, como analisa JeanPierre Vernant em Mito e pensamento entre os gregos. Por outrolado, esta nova história escrita, ao implicar uma desconfiançafrente à memória e à oralidade comum, privilegiará uma elitealfabetizada, público alvo desta nova memória.

O registro escrito grego, no entanto, é relativamente tardioquando comparado com o de outras culturas, como a judaica. OPentateuco data de c. 900 a.C. Por volta do ano 80, o historiadorjudeu Josephus ironizava a crença de que os mais antigos fatosestariam ligados aos gregos e que estes fossem a única fonte daverdade; considerava que a história grega era muito recente, “deontem ou ante-ontem” e que a idéia de compilar histórias eraainda mais recente; diz ainda que os próprios gregos estavamcientes de que os egípcios, caldeus e fenícios, para não falar dosjudeus, teriam preservado a memória das tradições mais anti-

AS ANTIGÜIDADES

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16 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

gas. Josephus argumentava também que os gregos não tinhamum sentido do passado enraizado e que um acontecimento comoa guerra de Tróia (c. 1250 a.C) era considerado legendário e nãohistórico.

Apesar de não ser o primeiro e nem o único, é a figura deHeródoto que assombra o imaginário dos historiadores de todasas épocas. O republicano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), aotransformá-lo em “pai da história”, acabou por despertar emtodos um sentido de filiação, de dependência em relação a umaautoridade. Em vista disso, Heródoto foi tripudiado, acusado dementiroso, louvado, protegido, perdoado, imitado, tratado comcondescendência, com eqüidade, mas inevitavelmente acaboupor estar sempre presente numa espécie de raiz de uma árvoregenealógica fantasmagórica dos historiadores.

Muito pouco sabemos sobre Heródoto. As informações deque dispomos são indiretas e por vezes tidas como fictícias. Nas-cido em Halicarnasso por volta de 480 a.C., tornou-se cidadãode Thourioi na Itália do sul. Foi exilado em Samos, viajou peloOriente Médio, sobretudo no Egito, conheceu a região do marNegro, a Grécia continental e a Itália do sul. Parece ter vividoalgum tempo em Atenas, mas segundo tradições diversas teriamorrido em Thourioi, ou em Pella na Macedonia ou em Atenasmesmo. Viveu numa época atormentada, entre o fim das guer-ras médicas e o início da guerra do Peloponeso.

Hoje em dia conhecemos as Histórias de Heródoto dividi-das em nove livros – cada um correspondendo a uma musa.Este formato, no entanto, parece ter sido criado na épocahelenística. Num estudo publicado em 1980 sobre a representa-ção do outro na obra de Heródoto – a questão do outro é funda-mental na historiografia da segunda metade do século XX, comovocê verá mais adiante – o historiador francês François Hartogconsidera que a associação das narrativas das Histórias com asmusas demonstraria que a obra deveria então ser vista em

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proximidade com a poesia e a ficcão. O mesmo sentimento sur-ge num comentário de Voltaire, em 1768, em que Heródoto élouvado pela novidade de seu empreendimento e sobretudo porsuas fábulas. Voltaire une duas tradições contraditórias; de umlado reforça o mito fundador de Heródoto como modelo dos his-toriadores e de outro aponta para o caráter ficcional da obra. Atradição de que a obra de Heródoto é fabulosa, portanto menti-rosa, reporta-se a Tucídides, que não acreditava na possibilida-de de se escrever uma história do passado, mesmo próximo.Mais tarde, Plutarco (c.46-49 - c. 125) reitera as acusações defalsidade e acusa ainda Heródoto de philobárbaros – admiradordos bárbaros – e traidor da Grécia.

Os primeiros quatro livros das Histórias falam dos não gre-gos – lídios, persas, babilônios, massagetas, egípcios, citas, líbios,etc., enquanto que os demais narram principalmente as guer-ras médicas. A escrita da história nascia então sob o signo daguerra, pois o Heródoto historiador durante muito tempo foiassociado a esta parte da obra, em contraponto com o Heródotoviajante – dicotomia hoje superada pela semântica histórica.

Heródoto trabalhou com um material diverso e enorme.Com fontes orais ao interrogar pessoas com quem se encontra-va, com a experiência visual obtida nas viagens ao observar,classificar e medir costumes, edifícios, santuários, esculturas,monumentos, rios, mares, caminhos – ver com os próprios olhosera então considerado mais importante do que o ouvir com ospróprios ouvidos – e também com textos e inscrições. Registradepoimentos conflitantes, indica o que prefere e deixa ao leitorsua escolha final. Documenta as crenças populares, a maneiracomo o povo egípcio, por exemplo, via seu próprio passado.Embora desconfie de muitas de suas informações, não hesitaem transcrevê-las. Mostra-se discreto em relação a mistériosreligiosos – “sobre a metempsicose há gregos (os pitagóricos)que defendem certas idéias; eu os conheço, eu nada falarei so-bre isso”.

AS ANTIGÜIDADES

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18 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

A história grega é construída com testemunhos orais, crô-nicas locais e inscrições. A primeira invasão da Grécia pelospersas ocorrera pouco antes de Heródoto nascer, a segundaquando ainda era criança. A cronologia geral da obra, no entan-to, é confusa; passa por vezes abruptamente de uma série deacontecimentos para outra, indo e voltando no tempo. Por outrolado, não consegue apreender claramente as transformaçõesadvindas com o tempo na história dos povos.

Quanto ao espaço, grandes deslocamentos marcam as His-tórias; Heródoto faz da Grécia o centro do mundo em relação àsoutras terras. A geografia é fundamental para toda a obra, daífrases como “o Egito é a dádiva do Nilo” etc. Nesse sentido tam-bém, ao descrever os usos e costumes de cada país, as formasde poder dos não gregos, reforça a idéia da diferenciação entre ogrego e o bárbaro, ao mesmo tempo em que diferencia um bár-baro de outro; um egípcio não é um persa, que não é um cita etc.No todo, é tolerante em relação às diferenças. Apesar de ter sidoapontado como um instrumento de propaganda do poder deAtenas, não pode ser considerado como um tradutor oficial des-te poder; nunca trabalhou para o governo e não poupa críticasaos próprios atenienses. A vontade dos poderosos aparece comouma determinante na engrenagem da história, mas o Destinoprevalece sobre tudo e sobre todos. Heródoto acredita nos orá-culos, nos presságios.

A história nascia também sob o signo da prosa. Por setratar de uma obra que iria também ser lida para o públicoaparecia como uma grande novidade. Algumas fontes, emboradiscutíveis, atestam o êxito e a popularidade da obra lida emAtenas, Corinto, Tebas e Olímpia. Há até mesmo uma anedotaem que Tucídides ainda criança acaba chorando de emoção aoouvir Heródoto. A história, ainda sem muita definição, deveriaoscilar entre estória e história. O modelo épico ainda se encon-tra na base da narrativa e o historiador ainda não existe comoprofissão.

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Tradicionalmente considera-se Tucídides (c.470 - c.395a.C.) como o sucessor de Heródoto. Tucídides detesta o passa-do. É o historiador do presente e da Grécia. O passado e o mun-do além de suas fronteiras lhe parecem completamente destitu-ídos de interesse. Para ele os gregos antigos deveriam viver comoos bárbaros seus contemporâneos, o que torna o conhecimentodo passado grego e do bárbaro inúteis. Paradoxalmente, o sécu-lo XIX tornar-se-á o século da história positivista, da históriasomente do passado que será considerado um grande modelo aser seguido, objetivo e científico.

Nascido num meio aristocrático, como Heródoto, prova-velmente foi aluno de Anaxágoras, dos sofistas Gorgias eAntiphon. Foi eleito estratego em 424 a.C. Comandou uma ex-pedição naval de Atenas na Trácia, mas, como não pôde impedira tomada de Amphipolis pelo espartano Brasidas, foi acusadode traição. Para escapar à pena de morte, refugiou-se durantevinte anos na Trácia, onde sua família explorava minas de ouro.Voltou a Atenas em 404 a.C., por ocasião da anistia impostapelos espartanos, morrendo logo depois, talvez assassinado porseus inimigos políticos.

A História da guerra do Peloponeso – a luta entre Esparta eAtenas – cobre o período do início da guerra (431 a.C.) até 411a.C., com a queda dos 400. Tucídides considera esta guerra amais importante de toda a história, mesmo diante das guerraspersas ou da guerra de Tróia. Enxergava nela um embate diretoentre sistemas políticos e desempenhos políticos, entre modosde vida irrenconciliáveis. A obra não foi acabada; a atual divisãoem oito livros tampouco corresponde à composição original. Oartifício cronológico usado por Tucídides é o da divisão da açãoem invernos e verões, tentando superar a confusão causada pelosdiferentes calendários das cidades gregas. Não utiliza nenhumadata. O tempo é construído de uma maneira lógica, não cronoló-gica.

AS ANTIGÜIDADES

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20 QUEIROZ, Tereza A. Pereira de & IOKOI, Zilda M. GrícoliQUEIROZ, Tereza Aline Pereira de & IOKOI, Zilda Maria Grícoli.

A documentação básica advém de textos transcritos (pazde Nicias), das viagens realizadas pelo próprio Tucídides na Itá-lia, na Sicília e no Peloponeso, de informantes com os quaismantinha contacto em várias cidades e do testemunho pessoaldo autor. Ao contrário de Heródoto, descarta totalmente a idéiade destino, de um curso da história. Considera que os fatosocorrem em virtude dos interesses e das paixões dos homens. Amoral guia a vida privada, não dos Estados; a vontade de poderatua como força motriz do mundo. Ecos de Tucídides permeiamas obras de Machiavel e de Nietszche.

Tucídides considerava que a inteligência seria o único ins-trumento passível de ser utilizado para o entendimento da his-tória; queria uma história sem estórias, com um estrito encade-amento de fatos políticos e militares, onde a verdade fosse ex-posta, não somente versões múltiplas dos fatos. Seu objetivo –escrever uma história do presente para o futuro, útil para aque-les “que queiram entender claramente os acontecimentos quetiveram lugar no passado e que (a natureza humana sendo oque é) mais dia menos dia, quase que da mesma forma, serãorepetidos no futuro. “Assim, tendo em vista a imutabilidade danatureza humana, a história tenderá a se repetir; o que supõeque a natureza humana pode moldar a história, mas que a his-tória não pode afetar a natureza humana. Num estilo denso esóbrio, tenta revelar as razões e a psicologia das partes envolvi-das no conflito entre atenienses e espartanos e, diante da docu-mentação, pretende ser imparcial; no entanto, não conseguedeixar de imprimir suas próprias idéias filosóficas e preferên-cias políticas no decorrer da narrativa, de adorar algumas per-sonagens, execrar outras. Utiliza discursos para expor opiniõescontraditórias e antíteses como a do interesse e do direito. Umdos tradutores de Tucídides, o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), pensador do poder absoluto, considerava-o “o maior his-toriógrafo político” jamais visto.

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Tucídides está do lado de Atenas e Péricles e a história daguerra do Peloponeso é uma obra plena de suas paixões. Mesmoconsiderando os argumentos contra a expansão ateniense, asdiscussões sobre o direito, a justiça ou a nobreza de exercer seupoder sobre outros, nunca vacila em defender a causa de Ate-nas, a superioridade de suas instituições e de sua cultura. En-cara como uma tragédia a deterioração moral do mundo gregoem guerra. É um historiador engajado politicamente com limi-tes de tolerância mais estreitos em relação a Heródoto. Seumundo é fechado, centrado na natureza humana, e desligadoda história da natureza. Tucídides constrói uma história con-temporânea perene, imune ao processo histórico e ao exterior.

Xenofonte (c. 430 a.C. - c.352 a.C.), aristocrata e rico comoTucídides, freqüentou os sofistas e foi aluno de Sócrates, massegue uma trilha política totalmente diversa. A desintegraçãoprogressiva da democracia no século IV e o aumento dos encar-gos para os ricos fazem com que as críticas ao regime se tornemconstantes entre os próprios atenienses. A hostilidade à demo-cracia faz com que Xenofonte entre para um exército de merce-nários gregos recrutados por Ciro, o Jovem para uma expediçãocontra seu irmão Artaxerxes II. Após a derrota de Cunaxa con-duziu a retirada dos Dez Mil. Como chefe de mercenários lutouao lado do rei de Esparta, Agesilas, contra os persas na ÁsiaMenor. Banido de Atenas e despojado de seu bens acaba lutan-do contra Tebas e os próprios atenienses. Após 394 a.C. retira-se numa propriedade doada pelos espartanos. Por volta de 367a.C., é anistiado e volta para Atenas.

Sua vontade era a de ser um continuador de Tucídides,mas o espírito de seus escritos é diverso. Traduzem o clima dedesarvoramento e desintegração política das cidades gregas. NasHelenicas estende a narrativa de 411 a 362 a.C., e em Anabasenarra a expedição dos Dez Mil. Prossegue, portanto, com a ela-boração da história do presente, instantânea. Acredita, no en-

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tanto, que os deuses têm um enorme papel no desenrolar dosacontecimentos. Em seus livros chamam atenção seus conheci-mentos militares e a tradução do gostos e das preocupações daaristocracia da época, sua paixão pela caça, pelos cavalos, aomesmo tempo em que fala dos estranhos costumes dos povosque conhecera; a pretensa objetividade de Tucídides está au-sente. Da subjetividade de Xenofonte, de uma certa desconexãointrínseca ao seu texto, de sua naturalidade sem retórica, dasexplicações desconcertantes que atribui aos fatos, fluemdesveladamente sua parcialidade mas também uma traduçãomenos intelectualizada da representação do mundo dos quepartilhavam do poder. Em geral, a historiografia o descreve des-favoravelmente em relação a Tucídides. Isto se explica pelo seumenor brilho, pela sua falta de “objetividade”, de inteligênciahistórica, mas talvez também pelo fato de ter tomado o partidode Esparta contra Atenas, o que choca o imaginário europeucom sua idealização das virtudes atenienses.

Com a perda da liberdade, as cidades gregas integram-seao império de Alexandre, aos reinos de seus sucessores e final-mente ao império romano. Da época alexandrina restaram nar-rativas sobre as conquistas e descrições das terras invadidas,que retomam a etnografia de Heródoto. Nearco (séc. IV a.C.),companheiro de Alexandre, descreve a Índia como Heródoto fi-zera com o Egito, plena de espaço, geografia, etnografia, cor lo-cal, anedotas, diferenças. Restam fragmentos de vários autoresda época. De Filisto de Siracusa – que se ocupa das cidadesgregas do ocidente e da Sicília, ausentes na obra de Xenofonte.De Ctesias, que elabora a história dos impérios assírio e meda edos reis da Pérsia até 395, e também uma Indica com relatosfabulosos e descrições de plantas, animais e homens imaginári-os. De Teopompo, talvez o mais importante historiador do sécu-lo IV; protegido de Alexandre, para louvar seu senhor Felipe daMacedônia escreveu uma obra caudalosa e barroca de cinqüen-

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ta e oito livros, introduzindo assim um elemento pessoal deter-minante – não mais a guerra, a cidade ou o império, mas o líder.A louvação a Alexandre transborda nos escritos de historiado-res como Calístenes de Olinto, e é mais velada nas histórias deAlexandre de Ptolomeu e Aristóbulo. No geral, continua prevale-cendo o presente como tema historiográfico e de maneira cadavez mais clara e aberta impera o elogio do poder.

Políbio (c. 202 a.C. - 120 a.C.), grego de origem, permane-ceu dezesseis anos em Roma como refém. Amigo de ScipiãoEmiliano, conheceu vários políticos e teve acesso a arquivos.Viajou pela Itália, Espanha, Gália, e acompanhou Scipião emsuas campanhas contra Cartago e Numância. Apesar de grego,era um admirador incondicional dos romanos – “que homemseria tão indiferente ou preguiçoso a ponto de não querer sabercomo e sob que forma de governo quase todo o mundo habitadose submeteu ao governo único dos romanos, em menos de cin-qüenta e três anos ?”. Suas viagens, portanto, são mui distintasdaquelas de Heródoto. Não mais incursões de um homem isoladoem mundos diversos, mas de alguém identificado com as idéiashegemônicas de Roma, pisando num terreno “universal” – “Háanalogia entre meu plano da história e o maravilhoso espírito daidade de que me ocupo...a fortuna fez todos os assuntos huma-nos convergirem para um só e mesmo fim; assim, é minha in-tenção de historiador colocar diante dos leitores uma visão ge-ral...” . Várias obras que têm por base suas experiências, comouma sobre a guerra na Numancia e um tratado de tática foramperdidas. Restaram os quarenta livros de suas Histórias, com-preendendo o período de 220 a.C. até 146 a.C., mas com refe-rências a épocas anteriores. Políbio faz a apologia do poder deRoma. Sua hegemonia dever-se-ia à moral, à superioridade daconstituição romana e à capacidade desse povo. No entanto, foium dos primeiros escritores a deplorar a corrupção moral exis-tente em Roma, o que se tornaria um tema corrente durantemais de seis séculos.

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Ciente do papel utilitário que a história poderia desempe-nhar nesta sociedade expansionista, a concebe como matériaisolada da eloqüência, da erudição ou da poesia, porque a ver-dade deveria prevalecer sobre a forma literária. Para Políbio ahistória deve ser universal – como o domínio romano –, pragmá-tica – narrando as ações dos estadistas ou chefes militares, asdecisões tomadas por assembléias e as revoluções políticas, numperíodo recente –, fundamentada nas experiências política e mi-litar, lastreada pela geografia e iluminada pela filosofia. Estabe-lece que as causas determinantes dos acontecimentos não sãofatos imediatos, mas sim o conjunto das instituições, das reli-giões, a organização militar e o poder econômico; o historiadordeve sempre escolher um começo, uma causa, para explicar oque diz. Estuda os regimes políticos para situar o regime roma-no entre os outros e fazer o elogio de sua constituição. Ao estu-dar o mecanismo das instituições, Políbio pretende estabelecerleis que seriam úteis para prever o futuro, dado que cada regimeseria uma espécie de organismo vivo sujeito às leis biológicas.Apesar disso, não deixa de atribuir um papel importante à per-sonalidade dos grandes homens e ao próprio destino. Segundodiz, nunca a fortuna havia obtido tal triunfo como o do estabele-cimento do Império Romano. A força romana era irresistível eseria um crime qualquer rebelião contra ela. Políbio representaum exemplo acabado de historiador trabalhando para o poder.A posteridade viu em Políbio uma noção racionalista da história– o pensamento precede a ação, o individualismo domina –, etambém o construtor de uma grande síntese.

Entre os escritores de origem grega, mas já imersos nacultura romana, Plutarco ocupa um lugar singular pela reper-cussão que terá durante séculos no ocidente. Para termos umaidéia, entre 1450 e 1700, suas obras tiveram 62 diferentes edi-ções. Nascido em Cheronéia, na Beócia, por volta do ano 46,viajou para Roma, onde conheceu políticos e intelectuais, e parao Egito. Dividiu a maior parte de seu tempo entre suas funções

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de arconte em Cheronéia e a de sacerdote de Apollo em Delfos.Morreu por volta do ano 120. Os remanescentes de seus inúme-ros escritos estão reagrupados em duas obras, as Vidas parale-las – biografias de homens ilustres organizadas em pares, umgrego e um romano, com exceção de quatro – e as Obras Morais– uma miscelânea de escritos sobre assuntos os mais variados,como o porquê dos velhos lerem melhor de longe do que de per-to, o porquê da existência de um rosto na face da lua e muitosoutros, que bem retratam o ócio da paz romana. Plutarco éeclético, acreditando na imortalidade da alma, nas práticasdivinatórias e na justiça da Providência. Grande analista da psi-cologia humana, moralista, considera como grandes virtudes apiedade, a moderação e o bom senso. Foi um dos ídolos deMontaigne: “Plutarco, eis o meu homem”.

A produção biográfica de Plutarco deriva de uma longatradição de anedotas e de reminiscências mais ou menos histó-ricas que remonta aos tempos de Xenofonte e Platão. Apesar denão se considerar historiador – distingue biografia e história –,de não ter qualquer gosto pela pesquisa de documentos, de ob-ter suas informações somente através de livros, durante séculosPlutarco serviu de fonte e de inspiração para os historiadores.As vidas paralelas, ao criarem um quadro moral idealizado dos“grandes homens” como Alexandre e César, Demóstenes e Cícero,entre outros, centram a história em torno de personalidades esubsidiam o individualismo e a heroicidade presentes duranteséculos na historiografia política.

Numa sociedade conservadora como a romana, a históriaencontrou um terreno favorável, expresso numa vasta produção.Em relação à história grega haverá mudanças. Embora os his-toriadores romanos não sejam menos subjetivos, haverá umdeslocamento temporal acentuado para o passado e espacial-mente a história do mundo será a história de Roma. A subservi-ência ao poder, ainda tênue na Grécia, torna-se uma constante.Considerada um genero literário privilegiado, animada por um

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ideal patriótico, a forma da história podia ser mais importanteque seu conteúdo.

A questão da memória parece ter tido sempre importânciapara os romanos. Já no século IV a.C., o grande pontífice escre-via num album, uma tábua embranquecida, os acontecimentosdiários. As famílias tradicionais guardavam recordações de seusantepassados; a tradição oral era forte, as imagens preserva-vam rostos e as inscrições funerárias exaltavam os feitos dosmortos. Canções épicas narravam as vidas de heróis comoRômulo, Coriolano, os Horácios e Curiácios e muitos outros. Noséculo III, as guerras púnicas fundamentam um tipo de históriaépica como o Bellum punicum de Nevio, que misturava mitologiagrega e história romana. No século II, os Anais de Ennio, emversos, remontam às origens troianas e se estendem até a guer-ra da Istria (178-177), louvando o heroísmo e a superioridademoral de Roma.

Durante a segunda guerra púnica surgem anais em pro-sa, como um instrumento de propaganda anti-cartaginesa. Re-montando às fundações de Roma, os primeiros analistas comoFabio Píctor e Cincio Alimento escreviam em grego. Esta pro-dução patriótica toma impulso com Catão (234 a.C. - 149 a.C.),que vê na história uma atividade apropriada à velhice e à apo-sentadoria. Nas Origens remonta à fundação de Roma e desen-volve sua história até o presente; apresenta a conquista romanacomo um feito do povo romano e não só das famílias aristocráti-cas.

A tradição dos analistas sobrevive durante séculos. Cícero(106 a.C. - 43 a.C.) os vê apenas como cronistas, não escritores.Embora não tivesse escrito nenhuma obra histórica, Cícero, aolongo de sua obra, irá refletir sobre o papel da história na políti-ca e sobre as formas que deveria assumir. Para ele o conheci-mento da história nacional, da história dos povos conquistado-res e daquela dos homens ilustres era um instrumento funda-

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mental para os estadistas e oradores. Cícero atribui à históriaum caráter utilitário. É uma fonte de exemplos morais e podedar uma estrutura de discernimento para o estadista, além desituar todos numa tradição. Para isto então torna-se necessárioo respeito a uma ordem cronológica. Insiste em dizer que a his-tória não é epopéia e nem poesia, embora seja um gênero retórico,pois possui uma verdade objetiva e que são necessários méto-dos para chegar a esta verdade.

Cícero concebe uma história ideal baseada na veracidadee na imparcialidade, com uma base cronológica, assentada nageografia, destacando o relato dos fatos com suas causas e con-seqüências e as imbricações entre as ações humanas e os aza-res da fortuna; julga importante tecer o retrato moral e cívicodos grandes homens. Investe contra a busca de um passadoremoto, preferindo as narrativas do contemporâneo.

O contemporâneo, a paixão e o comprometimento políticobasearão a obra do historiador Salústio (c. 86 a.C - 35 a.C.).Excluído do Senado em 50 a.C., por adultério com a filha deSila, retorna no ano seguinte pela intermediação de César, dequem é partidário incondicional. Enriquecido pela prática dacorrupção no posto de governador da África Nova (Numídia) em46 a.C., fica no entanto sem qualquer futuro político após amorte de César em 44 a.C. Decide então tornar-se historiador.Com a Conjuração de Catilina, a Guerra de Jugurtha e as Histó-rias, das quais só restam fragmentos, pretende demonstrar aruína progressiva do regime aristocrático instaurado após a der-rota dos Gracos.

Para Salústio o trabalho como historiador foi um prolon-gamento de sua vida política. Em suas obras destila seus ódiose convicções. Na base da história romana estaria uma luta se-cular entre o patriciado e a plebe. Findo o cesarismo só restavaa decadência dos tempos em que vivia. Em suas obras critica avida ativa – tão elogiada por Cícero – e enaltece a nobreza e a

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dignidade do espírito, o que denuncia seu platonismo. Em Catilinafaz a apologia do passado, dos tempos gloriosos dos inícios darepública, idade de ouro estóica, em que a virtude, a justiça, afrugalidade reinavam tanto na paz como na guerra; a este tem-po ideal contrapõe a Roma contemporânea, poço de todos osvícios, escravizada pela oligarquia detentora de magistraturas eriquezas, assentada na demagogia. É um texto todo permeadopor uma violência concentrada e retratos bem lavrados das per-sonagens.

A Guerra de Jugurtha também trata da história contempo-rânea. Para além da pintura do caráter de Jugurtha, das descri-ções exóticas, deixa entrever a inquietação de Roma após a re-volução dos Gracos.

Nas duas obras há dramaticidade, vivacidade, painéis des-critivos da geografia, do passado, da etnografia, uma escolhadeliberada de alguns episódios em detrimento de outros paracriar o efeito desejado, uma ênfase no peso da personalidade nacondução dos acontecimentos, a relação das pessoas com suasorigens e seu meio social para explicar suas condutas. Salústioé inevitavelmente comparado a Tucídides no que tange à forma,à brevidade do discurso, à língua densa e difícil. Seus discursoscaracterizam as personagens importantes, descrevem sistemaspolíticos, preparam os acontecimentos. À medida que narra, in-terpreta. Sua grande precisão nos temas – o maior episódio deque se ocupa cobre apenas dez anos – reproduz-se também naanálise minuciosa, na explicação daquilo que conhece como tes-temunha. Para Salústio cabia ao historiador não somente nar-rar, mas ver as causas sob os efeitos das ações. Seu trabalhoreitera uma concepção de história profundamente associada àexperiência, ao vivido.

O patriotismo do reino de Augusto fará com que também ahistória se transforme. Há, portanto, uma diferença de fundoentre Salústio e Tito-Lívio (c. 64 a.C. - 10 A.D.), autor de uma

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história de Roma (Ab urbe condita libri) em cento e quarenta edois livros, de suas origens até o ano 9 a.C. Movido por umpatriotismo exacerbado e não por uma convicção política deter-minada como Salústio, o burguês, republicano e sedentário Tito-Lívio procura as causas da grandeza de Roma na moral roma-na; constrói o retrato de um romano ideal, heróico, trabalhador,justo, uma figura una que corresponde à unidade do império econtribui para sua propaganda; o homem romano é o bem maisprecioso da nação.

Fundamentada numa pesquisa livresca, em fontes secun-dárias, sem um espírito crítico agudo – muitas vezes Lívio citafontes contraditórias e somente aponta o que lhe parece maisplausível, outras vezes se contradiz fragorosamente –, convenci-do de estar cheio de razão, com gravidade, em tons dramáticosou épicos, a obra expressa um sentido de grandeza provavel-mente vivo na mente dos romanos. A história seria uma mani-festação do espírito ético romano. Os cento e quarenta e doislivros nos chegaram divididos em décadas, estabelecidas prova-velmente a posteriori.

Tito-Lívio rompe com a história em moda na sua época, ahistória contemporânea de Salústio. Tampouco quer fazer umahistória universal, mas sim nacional, negando-se a tratar detemas alheios à história romana. A base de sua história é a vida,política e coletiva, e suas paixões, passíveis de serem controla-das pelos princípios tácitos aceitos por todos para a condutaindividual e coletiva. Os grandes homens seriam os instrumen-tos da história, os guias do povo, encarnando os interesses su-premos da pátria, dando os grandes exemplos, dominando cadaperíodo; são geralmente caracterizados através de discursos. Masé tão pessimista quanto Salústio no que concerne ao presente; agrandeza estava no passado. Por outro lado, representa um ou-tro tipo de personagem. Não é o homem experiente, político,diplomata ou militar que no fim da vida resolve fazer história.

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Sem participar da vida pública é um dos primeiros historiado-res do gênero intelectual de gabinete. Não pertencia a qualquerseita filosófica, respeitava a religião e via nela um meio paramanter a ordem e a disciplina entre o povo; acreditava na im-portância da Fortuna no desenrolar da história e, particular-mente, num crescimento de Roma como manifestação de umavontade divina. Achava natural que, após tantas provações, osromanos fossem senhores do universo. Afinal, haviam pratica-do todas as virtudes: a piedade em relação aos deuses, a fé, aconcórdia, a moderação, a prudência, a clemência. Tito-Lívioproclama o conservadorismo e a moral ecoando o programa deregeneração do mundo romano de Augusto.

Veleio Patérculo (c. 19 a.C. - 31 A.D.) é de novo um homemde ação que se engaja na construção do passado romano. Lega-do de Tibério na Germânia, fez uma brilhante carreira militarantes de se tornar o historiador do imperador. Suas Historiaetentam descrever toda a história do mundo greco-romano desdea guerra de Tróia e inserir a história de Roma na história uni-versal.

Na base de seus escritos, porém, está a louvação dos pri-meiros césares – César, Augusto e Tibério – e uma panfletagemrasgada do próprio Tibério. Este aparece como um herdeiro pre-destinado de Augusto; é bem nascido, é belo, é culto, é virtuoso,é bravo, é prudente etc. É o grande continuador da missãoregeneradora de Augusto. Veleio acredita que a causa da gran-deza dos césares reside numa conjunção do sobrenatural com avirtude; os grandes homens, no entanto, não concentram todo opoder sobre o devir histórico, pois existem também mecanismosinvisíveis, determinantes, absolutos e coletivos que levam ospovos à decadência.

A produção laudatória terá vários seguidores. Após amonumentalidade de Lívio, a historiografia tendeu por outro ladoa se diluir em gêneros menores, biografias, memórias, anais,

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ensaios. Em meio a este panorama destaca-se a obra de Tácito(c. 55 - 120).

Originário do meio eqüestre e possivelmente provincial,entrou na carreira administrativa durante o governo de Vespa-siano; foi cônsul (97), procônsul da Ásia (110 - 113). Sua gran-de eloqüência já era notória antes de se dedicar à história.Diálogo dos oradores, Vida de Agrícola e a Germânia precedemsuas obras propriamente históricas, as Histórias e os Anais.Os Anais tratam do passado não vivido pelo autor, o reino dosjúlios-cláudios: Tibério, – Calígula e Cláudio – Nero; as Históri-as da contemporaneidade, das guerras civis de 69 e do reinadodos flavianos.

Tácito objetiva fazer uma obra moral; diante da miséria,da crueldade e do deboche da época, quer salvar as virtudes doesquecimento, execrar os vícios. É um grande leitor de almascomplexas, de povos estrangeiros – como os germanos. Sua filo-sofia da história é totalmente pessimista; em sua obra transpareceuma obsessão pela tirania, pela discórdia, um desejo de liberda-de de expressão e de restauração do poder da palavra. Seu estiloconciso, rápido, quase sem verbos, transmite violência, inquie-tação, amargura, brutalidade, de uma forma compacta, dandoum tom totalmente diverso em relação à historiografia praticadaaté então.

Para Tácito a história não é um campo para louvações pes-soais, não se presta a floreios oratórios como em Tito-Lívio, nãoé uma lição política como em Tucídides e Políbio. A história deveproceder a uma análise moral, avaliar as mudanças, as defor-mações da alma humana quando pressionada por circunstân-cias externas. O historiador deve comparar, analisar, levar emconta detalhes mínimos que podem indicar a essência de umapessoa ou de uma época. A explicação dos fatos deve ser maiscompleta e extensa do que a narração dos fatos. Uma das carac-terísticas mais interessantes nos retratos humanos criados por

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Tácito é que nunca se repetem – Cláudio é fraco e inerte, mani-pulado por suas mulheres e seus libertos, atravessa as maisaterrorizantes tragédias sem agir e sem compreender o que sepassa; Nero é um louco romanesco, extravagante, desequilibra-do, com sede do impossível e do extraordinário; Messalina temsede de escândalo e luxúria; Agripina pende para o crime, émais viril, mais decidida, ambiciosa. Estas personagens tam-bém se modificam sob as circunstâncias. Da mesma forma sãoanalisados os sentimentos coletivos: o medo e a fraqueza doSenado ao aclamar Tibério, a tristeza dos soldados diante deseus companheiros mortos, a apatia do povo após o principadode Augusto, os rompantes de violência popular no teatro, osmotins militares, o saque de Cremona, o incêndio do Capitólioetc.

Tácito utilizou fontes orais e escritas para construir suahistória; ouvia os rumores do Senado e os das ruas e consultavaarquivos oficiais e crônicas divergentes; brada contra o servilis-mo de cronistas como Veleio Patérculo. Acredita na intervençãodos deuses no processo histórico, mas ataca a superstição, eprocura decifrar o quanto há de vontade e liberdade naqueleprocesso. Embora não fosse alheio aos mecanismos coletivos,econômicos e sociais da história – analisa as relações entre osdesmandos dos imperadores e o déficit nas finanças públicas, acrise do ano 33 – é certo que constrói uma história dramática,centrada em tragédias, pessoais e coletivas. Sua obsessão pelaviolência e as regiões mais sombrias da psique faz dele um com-panheiro de historiadores cristãos tão diversos como Agostinhoe Gregório de Tours.

A partir do século XVI, principalmente, quando as refle-xões sobre a tirania são freqüentes, a obra de Tácito será muitovalorizada na Europa; Guicciardini (1483 - 1540) dizia que Táci-to ensinava muito bem as pessoas a viverem sob o jugo dastiranias, ao mesmo tempo em que ensinava aos tiranos como

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fundar suas tiranias. Muito já se escreveu sobre o tacitismo deMachiavel.

Na época de transição entre a historiografia antiga e amedieval destacam-se Suetonio (75 - c.140) e Amiano Marcelino(330 - c. 391), considerado o último historiador da antigüidadepor ser pagão. Suetonio, originário da ordem eqüestre, dedicou-se à carreira administrativa, onde chega a trabalhar como se-cretário de Adriano; suas funções fazem com que tenha acesso aarquivos e documentos secretos. De grande erudição, amigo dePlínio, mantém a crença na religião tradicional, na adivinhação,e desconfia profundamente dos cultos orientais, como o cristia-nismo. Sua paixão era a pesquisa, os livros, a escrita. A maiorparte de sua obra, incluindo uma enciclopédia de história natu-ral, foi perdida. Restaram as Vidas dos doze Césares (c. 120),Sobre os homens ilustres (c. 113), De gramáticos e retóricos euma Vida de Terêncio. Além de pesquisar em livros e arquivos,utilizava fontes orais para escrever seus trabalhos, o que lhesdá um tom anedótico e escandaloso muito acentuado.

Os Doze Césares tratam do mesmo período estudado porTácito; mas o nome deste e muito menos seu espírito não estãopresentes. Obedecendo a uma ordem cronológica, Suetonio ela-bora as biografias dos doze primeiros césares romanos; preferese estender mais sobre a reconstituição das vidas dos mais an-tigos, ao contrário do hábito de carregar a pesquisa nos temposmais próximos. Mesmo assim não quer ser considerado histo-riador. Seus contemporâneos o vêem como um gramático. Suaproximidade com a história pode ser detectada principalmentepela massa de documentação presente nas biografias, emborahaja pouca crítica, nenhum julgamento de valor muitos silênci-os e nenhuma visão de conjunto. A opção pela biografia suben-tende sua convicção no poder pessoal sobre a história, mas tam-bém uma concepção dinástica de poder. Apesar disso, os DozeCésares fizeram uma longa carreira no ocidente.

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Amiano Marcelino, o último historiador antigo, era oficialmilitar. Nasceu em Antioquia em 330, começou sua carreira naguarda do Palatino, integrando um corpo do séquito imperialque realizava missões nas províncias. De 353 a 360 trabalhoucom Ursicino, participando da luta contra o rei Sapor da Pérsia.Em 363 fica sob o comando do imperador Juliano. Para compi-lar o material de sua História foi para Roma, estabelecendo-sedepois em Antioquia. A obra abrange desde o período do adven-to de Nerva (96) até a morte de Valente (378) em trinta e umlivros, os trezes primeiros perdidos.

Amiano diz querer ser historiador imparcial, ater-se à ve-racidade, basear-se em documentos, negar o fantástico, procu-rar um meio termo entre vícios e virtudes para retratar osgovernantes, convencer. Não tem uma posição anti-cristã abso-luta; diz ser a virtude mais importante do que paganismo oucristianismo. Suas pesquisas e a transposição de suas experi-ências resultaram numa obra altamente patriótica, de fundobelicista, contrária aos germanos, laudatória das façanhas deum Juliano sábio e herói, plena dos fatos que considera dignosde memória, na linha de Políbio. Vivendo em pleno período dadesintegração do Império, Amiano faz a apologia da Roma eter-na, santa, venerável, mãe dos deuses, base da liberdade e dasabedoria, ao mesmo tempo em que canta as virtudes douniversalismo imperial romano. Flagrante de anacronismos emsua exaltação do agora inexistente, de uma ideologia exangue, aescrita de Amiano, no entanto, fecha um ciclo da história roma-na ufanista, centrada na saga deste povo eleito pelos deuses e aFortuna para dominar o mundo. Iniciava-se agora a saga dosoutros eleitos. Por Deus e sua Divina Providência.

A crítica contemporânea, notadamente Alberto Momigliano,tem se preocupado em indagar qual seria o público da históriana antigüidade. Evocaremos aqui alguns resultados de sua pes-quisa. Ao contrário da poesia, das obras teatrais, da oratória, ahistória não era um genêro elaborado para ser ouvido. Por outro

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lado, os historiadores não formavam um grupo profissional enem mesmo um grupo distinto dentro da sociedade. Vários his-toriadores gregos viveram no exílio, vários romanos ocupavamcargos políticos, militares ou administrativos. A história, por-tanto, seria uma atividade marginal ou complementar à vidadas pessoas.

Momigliano acredita que no princípio, no século V a.C.,deveria haver leituras públicas das obras, mas que com o tempodevem ter caído em desuso. Sabemos que Tucídides escreviapara ser lido. Entre os séculos III a.C. e IV A.D., porém, há umadocumentação esparsa sobre leituras de obras históricas.Amiano, por volta de 392, teria lido alguns trechos de seu livroem público. Temos alguma documentação sobre as persona-gens que leram obras históricas – Brutus lendo Políbio, Cláudiolendo Tito-Lívio etc. Sabemos também da existência de resumosde obras para o grande público. Dispomos de alguns indíciossobre a disponibilidade de algumas obras no mercado, sua exis-tência nas bibliotecas públicas do império, mas muito fragmen-tários. Na medida em que Roma, a história e o poder andavamjuntos, há fontes sobre as relações entre historiadores egovernantes; mas estas deveriam ser desiguais, Tácito como aris-tocrata deveria ter mais penetração na alta sociedade do queSuetonio, simples cavaleiro. Augusto não tolerava historiadoresfora de uma linha oficial, o que leva a pensar que a história podeser uma disciplina perigosa. Tibério queimou as obras do histo-riador Cremutius Cordus, que acabou se suicidando. A isto seacrescenta que na antigüidade não havia uma distinção clara euniversalmente aceita entre história e ficção.

Na base de todas as indagações estaria uma grande incóg-nita. Segundo Momigliano, a de compreender o porquê da exis-tência da história em sociedades onde ela não fazia parte daeducação formal e onde a religião, a filosofia e os costumes de-terminavam a conduta dos homens.

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“O mundo é o conjunto de todas as coisas, que se

compõem do céu e da terra. (...) No sentido místico, o

mundo é propriamente o signo do homem. Pois da mes-

ma maneira que aquele é constituído de quatro elemen-

tos, este igualmente se compõe de uma mistura de qua-

tro humores, cuja combinação forma um só ser exis-

tente.”

Isidoro de Sevilha, De natura rerum.

A institucionalização do cristianismo como religião de es-tado em 313, a desintegração política e econômica do impérioromano e a ruptura de seu quadro geográfico estão na base dosurgimento de uma nova história e de um novo historiador.

Embora a história não esteja enquadrada no trivium – gra-mática, retórica, dialética – ou no quadrivium – aritmética, as-tronomia, música, geometria –, que compõem a estrutura bási-ca da educação e nem o historiador tenha se profissionalizado,a História, com um grande H, será um elemento primordial nacomposição da identidade do homem cristão.

A noção de história universal liga-se aos judeus cristiani-zados. No momento em que seguidores de Cristo, como S. Pau-

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lo, transformam sua crença, até então nacional, em uma reli-gião universal, absorvendo a ideologia política do império, dãomargem ao surgimento desta história universal. Assim o NovoTestamento, continuação do Testamento nacional, historiará asbatalhas e as conquistas dos apóstolos em terras estrangeiras;não mais conquistas militares, mas que utilizam ainda uma armados pagãos, a oratória e a discussão intelectual. Na medida emque cristãos estão imbuídos da verdadeira verdade, esta palavrapassa a ter um peso muito grande na maneira de refletir sobre omundo. No entanto, não devemos confundir verdade com obje-tividade. A verdade do passado terá fins utilitários, variados,como o de legitimar o poder, numa seqüência infinita, de Deusaté o mais obscuro dos príncipes. A verdade da história poderáser utilizada no momento de decisões, da tomada de atitudespolíticas. As teorias do poder divino do papa e do imperadordocumentam-se nos exemplos da história, no poder exercidopor Melchisedec ou no procedimento da passagem do poder deCristo para S. Pedro. A subjetividade presente na historiografiaantiga assumirá contornos diversos, em conformidade com ou-tros padrões.

Uma imagem comum nas catedrais góticas francesas é ada seqüência de reis judeus e reis franceses. Numa linha reta.Assim muitos concebem a história cristã. Ordenada, olhandopara a frente, sem reviravoltas cíclicas. Uma história linear comcomeço – a Criação –, meio – a Encarnação – e fim – o JuízoFinal. Outros se voltarão para uma experiência do tempo orde-nada por cadências regulares – a cada mil anos, por exemplo,seria necessária uma purificação para que tudo renasça. Nummundo organizado por Deus, os fatos se legitimam automatica-mente e se amoldam sempre a uma explicação de ordem sobre-natural. A própria expansão do império romano seria um desíg-nio de Deus para facilitar posteriormente o trabalho apostólico.Nos primeiros séculos do cristianismo ocidental, a Igreja se apre-sentará como fiadora da ação de Deus na história; o historiador,

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nesse sentido, será uma testemunha da presença de Deus nomundo.

A noção de tempo tornando-se primordial, o conhecimen-to do tempo, sua ciência, tomarão um aspecto religioso. Apoiadana astronomia e na matemática, a cronografia, que estabeleciadatas e computos, era considerada uma ciência cristã. Por ou-tro lado, acentua-se a diferenciação entre história “antiga” e con-temporânea. História passa a ser um termo empregado diantede uma visão geral e recuada dos fatos; para o contemporâneo,a presença de uma cronologia minuciosa passa a ser de praxe.

Podemos constatar também uma enorme variedade de gê-neros históricos desde os primeiros séculos da Idade Média. Umainovação é a dos textos hagiográficos – história dos santos, nar-rativas sobre milagres, sobre o translado e a descoberta de relí-quias ou listas episcopais. Estas listas fundam uma pseudo-linhagem episcopal e legitimam o bispo como pai dos fiéis. Ashistórias de santos também podiam ocultar um propósito legiti-mista, que favorecia uma comunidade ao estabelecer uma anci-enidade, uma história para determinados locais. Além disso dis-pomos de inúmeros Anais e Crônicas; homens ligados à Igrejaou a administração dos reis eram responsáveis pela catalogaçãode fatos geralmente políticos, militares e extraordinários – pas-sagem de cometas, milagres etc. – considerados importantes du-rante o ano nos anais. As crônicas implicam uma maior ampli-tude cronológica e também uma análise dos acontecimentos noâmbito de desígnios políticos e religiosos. Ecos da historiografiaantiga, alusões a Tácito, a Salústio, a Tito-Lívio por exemplo,permeiam esta nova história, que, no entanto, trata o passadonuma perspectiva bem diversa. Conscientes das transformaçõesoperadas pelo cristianismo no mundo, tentam explicá-las à luzda religião.

Uma reflexão sobre todos os cronistas, analistas, escrito-res que se referem ao passado e historiadores dos quinze pri-

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meiros séculos do cristianismo seria muito extensa. Nos limita-remos a alguns exemplos nos quais a intenção de escrever umahistória é mais definida. Assim, Agostinho (354 - 430), por exem-plo, importantíssimo na definição da ideologia e das funções dahistória medieval – na Cidade de Deus defende a teoria de que aqueda de Roma era apenas uma pequena amostra dos infinitose universais poderes divinos – não será considerado como histo-riador.

A tentativa de interpretar a história humana numa pers-pectiva cristã já se manifesta no panfleto de Lactâncio (c. 260 -c. 325) sobre a Morte dos perseguidores. Convertido ao cristia-nismo em 300, foi preceptor do filho do imperador Constantino;suas ligações com o poder – Constantino oficializa o cristianis-mo no império – e a paixão de neófito se confundem em seutrabalho, onde anuncia a vitória do Ponte Mílvio com violência.

S. Jerônimo (c. 341 - 420) atribuirá à história um papeldecisivo na vida pessoal de cada um e no próprio cristianismo.Aristocrata convertido por volta de 366, buscou na pregação, noaconselhamento, no eremitismo, no celibato, as formas de vidacristã. Com uma sólida formação clássica, tendo sido secretáriodo papa Damásio e fundador de inúmeros conventos, deixouuma produção enorme em livros, panfletos, cartas, onde o tem-po presente é sempre avaliado em função da missão cristã; as-sim, numa carta a uma de suas amigas romanas que desejavase casar, argumenta que, diante do horror das invasões de “bes-tas ferozes” – os germanos – ao império romano, era inconcebí-vel pensar na felicidade pessoal e que a única atitude digna ecristã seria a do celibato.

Jerônimo traduz do grego para o latim a Cronica de Eusébiode Cesaréia (265 - 340), considerado o pai da história eclesiásti-ca, e a atualiza até sua época. Nesta obra, Eusébio tratava dopassado longínquo, da vingança divina contra os perseguidoresda Igreja, da luta contra perseguidores e heréticos, das disputas

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doutrinais e da sintonia entre a pax romana e o cristianismo,utilizando uma enorme documentação e poucos discursos; acitação, a “autoridade”, fundamental nas obras medievais, e nãoa retórica, se impunha. No Dos homens ilustres, Jerônimo traçaum quadro completo do desenvolvimento da Igreja, enumeran-do todas as grandes personagens desta história. As Vidas dosanacoretas Paulo de Tebas, Hilarion, Malchus, dão o tom paraas biografia santas medievais. Seu maior empreendimento foi atradução para o latim e revisão crítica da Bíblia (Vulgata), consi-derada por pagãos e mesmo veladamente pelos cristão comouma obra de padrão literário execrável. Seus prefácios e co-mentários sobre os livros das Escrituras objetivam melhorelucidar fatos, datas e seus encadeamentos.

Sulpício Severo (c. 360 - c. 420) originário da Aquitânia,em sua História Sagrada pretende descrever a história do mun-do desde a criação até o ano 400 para instruir os ignorantes econvencer os cultos.

Paulo Orósio (c. 390 -?), um padre espanhol que, em 414,foge das invasões germânicas e refugia-se em Hippo, tambémpensará na história como um amplo painel. Discípulo de Agos-tinho, escreveu vários trabalhos ligados à defesa da ortodoxia e,a pedido daquele, um suplemento histórico à Cidade de Deus. AHistória contra os pagãos (415 - 417) objetiva provar que o cris-tianismo não fora responsável pela queda de Roma, e que, aoanalisar a história humana evidencia-se um desígnio providen-cial; seu livro é um exaustivo catálogo dos males da humanida-de, detectados desde os mais antigos impérios do mundo. Du-rante séculos este trabalho, bem como o de Eusébio, servirão desubsídio para a escrita de crônicas universais como a de Otto deFreising, no século XII.

Com a divisão do antigo império em reinos germânicos, oshistoriadores tendem a traduzir uma visão de mundo mais loca-lizada, focada num cotidiano mais limitado, numa nova lingua-

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gem, embora se digam herdeiros de Tácito ou da historiografiaantiga. É o caso da História dos Francos de Gregório de Tours eda História dos lombardos de Paulo Diácono.

Gregório de Tours (c. 539 - 594), bispo de Tours, descendede uma família romana senatorial integrada ao reino franco. Noprefácio da História dos francos, Gregório deplora a inexistênciade um homem capaz de escrever sobre os acontecimentos atuaise decide assumir esta tarefa; de fato, vai além. Inspirado porEusébio, Jerônimo e Orósio e mais seu conhecimento da Bíblia,começa a narrativa nos dias da Criação.

No livro I cobre 5596 anos da história da humanidade, deAdão até a morte de S. Martinho de Tours, em 397. Os outrosnove livros da história dos francos relatam os acontecimentosdesde a morte de S. Martinho até 591, pouco antes de sua mor-te. A partir do livro II, quando começa a mencionar os reis fran-cos, suas fontes forçosamente serão outras; as agora perdidasHistoria de Renatus Profuturus Frigeridus e a Historia deSulpicius Alexander, cartas de Sidonio Apolinário e de S. Avito,vidas de santos e de mártires, escritos de seus contemporâneosVenancio Fortunato, Sulpicio Severo e Ferreolo e muitos outros.Cita Virgílio e Salústio. Insere a transcrição de uma série dedocumentos originais, como a carta enviada a bispos por oca-sião da fundação do convento de Santa Radegunda em Poitiers;sete respostas a esta carta; o texto do tratado de Andelot assina-do entre os reis Guntram e Childeberto II em 587; a carta dopapa Gregório aos flagelados da peste de 590 em Roma, e ou-tros. A presença desta documentação demonstra o espírito queanima a escrita da história de Gregório; uma história baseadano documento, na autoridade e na discussão desta autoridade.Mas também as fontes orais e o testemunho ocular, a perspicá-cia de observação, a participação pessoal em vários aconteci-mentos, servirão de subsídio à narrativa. Além de descrever,Gregório tenta desvendar pontos obscuros, como o da primeira

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vez que um líder franco se transforma em rei, através de umainvestigação minuciosa. Apesar de se preocupar em ler nos acon-tecimentos os signos da intervenção divina no mundo, está atentoao real, ao visual.

Um dos aspectos mais cativantes desta história dos fran-cos é a linguagem. Gregório escreve como deveria falar. Muitocriticado por não mais seguir os padrões antigos, é justamenteneste latim falado, menos conciso que o clássico, no seu estilosimples, que podemos desvendar inúmeros traços da mentali-dade, da visão de mundo de sua época. Gregório, ao contráriode muitos historiadores antigos, nunca saiu da Gália. Seu hori-zonte é fechado. Logo, pode descrever com minúcia cenas quejamais seriam consideradas dignas de nota pela historiografiaantiga. Sem enunciar qualquer julgamento, pinta com precisãoos horrores, as intrigas, a luxúria e a volúpia sanguinária dosmerovíngios. As fúrias encarnadas em Fredegonda, as misériasde Brunhilda, renascerão na historiografia romântica do séculoXIX, com as Narrativas dos tempos merovíngios de AugustinThierry, e no romance gótico.

No século VII, numa distante região da atual Inglaterradominada pelos anglo-saxões, a história será uma das expres-sões da cultura religiosa de Beda (673 - 735), dito o Venerável.Aos sete anos de idade, órfão, foi ele encaminhado a um conven-to; com treze anos fixou-se na abadia beneditina de Yarrow e daínão mais saiu até sua morte. Educado tanto pela leitura dasobras cristãs como clássicas aí existentes, escreveu comentá-rios bíblicos, tratados de gramática, uma versão expurgada doDe rerum natura de Isidoro de Sevilha, dois trabalhos de histó-ria, A História do povo e da igreja dos anglos (731) – da conquistade Júlio César em 73 até o presente – e a Vidas dos abades, euma cronologia universal calculada pela era cristã e fundamen-tada em estudos astronômicos.

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No prefácio de sua história eclesiástica, Beda informa seusleitores sobre as fontes que utilizara e o tratamento a elas con-cedido. Procura sempre reunir a maior documentação possívelsobre todos temas, utilizando tanto testemunhos escritos comoorais e mesmo arqueológicos. Para isto estabelece uma intensacorrespondência no sentido de obter cópias ou originais de ma-nuscritos. Descarta o que não lhe parece adequado e não secontenta em somente arrolar o material utilizado, mas em fun-di-lo num todo coerente. “Como as leis da história exigem, tra-balhei honestamente para transmitir o que pude aprender dasfontes, para a instrução da posteridade”. Escrevendo como cris-tão, o maravilhoso e os milagres estão presentes no texto; come-tas, tempestades, curas, são apontadas como intervenções dire-tas de Deus no mundo. Assim, não somente a história dos povosque colonizam a ilha e da igreja é narrada, mas também aslendas, as crenças populares, que possam ser interessantes ouedificantes para seus leitores. Apesar das dificuldades que deveter tido em reunir sua documentação, a crítica moderna consta-ta uma grande precisão nos fatos arrolados em sua história. Poroutro lado, Beda representa bem tanto a dinâmica da culturaanglo-saxônica como a cultura eclesiástica quase profissionalque dominará a Europa por séculos.

Um outro tipo de historiador, de formação religiosa, mastrabalhando para o poder temporal, é Eginhardo (c. 770 - 840),uma das estrelas da chamada renascença carolíngia. Nascidonuma família aristocrática, foi educado na abadia de Fulda, e,posteriormente admitido na escola palatina de Carlos Magno,em Aachen. Ingressa na política no reinado de Luiz, o Piedoso;foi secretário e amigo pessoal de Carlos Magno até a morte desteem 814, e posteriormente conselheiro de seu filho Lotário. Oconflito entre Luiz, o Piedoso e seus filhos o leva a prudentemen-te se afastar da política, em 828. É neste momento de sua vidaque decide escrever uma biografia de Carlos Magno. Em 830,

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retira-se na abadia de Selingenstadt. Além da vida de CarlosMagno, deixou cartas e obras hagiográficas.

A Vita Caroli é um panegírico do imperador, seguindo fiel-mente os moldes da Vida dos doze Césares de Suetonio e, parti-cularmente, a biografia de Augusto. Este será um procedimentocomum durante vários séculos; os autores copiam a seqüênciade temas e mesmos os comentários dos autores latinos. Colo-cam suas personagens numa espécie de camisa de força. Ape-sar disso, as diferenças de sensibilidade acabam por aflorar. Hátambém um outro aspecto a ser considerado nesta imitação. Namedida em que a cultura cristã assume formas e conteúdospróprios e mais definidos no ocidente, parece haver um certoabandono da literatura latina profana, considerada imprópria;no entanto, as obras históricas não teriam sido afetadas porestas restrições; talvez porque a história edificasse.

No prefácio da Vita Caroli, Eginhardo define suas metas:escrever sobre a vida pública de Carlos Magno e descrever suavida cotidiana. Aproveitava o fato de ter sido uma testemunhaocular dos dois aspectos da existência do imperador a partir de791, quando este estava com quarenta e nove anos de idade.Apesar desta proximidade, e de dispor de documentação para operíodo anterior, ao escrever de memória, Eginhardo cometeráuma série de imprecisões.z Algumas vezes deliberadamente, paracamuflar a verdade e proteger seu senhor. No todo, porém, tra-ta-se de uma obra surpreendente pelo seu estilo, concisão, etambém por ter como motivo um tema não religioso.

Uma outra biografia de Carlos Magno seria escrita maistarde pelo chamado monge de S. Gall (c. 840 - c. 912), sobre oqual quase nada se sabe. Trata-se de uma obra com um carátermais mítico, legendário, recheada de anedotas saborosas, even-tualmente derivada das lendas populares sobre o imperador.

Além da biografia cortesã, a época é pródiga em históriaseclesiásticas locais, de sedes episcopais, mosteiros, comunida-

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des, escritas por religiosos mais ou menos obscuros. Assim aHistória da Igreja de Reims de Flodoardo (894 - 966), a Históriado mosteiro de S. Bertin do abade Fulcuino (m. 990). A Cronicado religioso de Angoulême, Adémar de Chabannes, é mais am-pla, cobrindo a história do povo franco; a partir de 980 torna-seuma crônica da aristocracia da Aquitânia. Inúmeras são ascronografias universais como a de Reginono de Prum (906), a domonge Hermann, o curto, de Reichenau – retomando a divisãoagostiniana de seis épocas do mundo –, a do bispo Othon deFreising, entre outras. A produção de vida de santos também éconsiderável; servem a propósitos piedosos, políticos, e econô-micos ao propagandear os milagres de santos locais e atrair pe-regrinos: vida de Sta. Eulália (881), vida de S. Legério (950 -1000), vidas de Santa Foi (1000 - 1050) – santa que atrai milha-res de peregrinos, no caminho de S. Tiago –, vida de S. Alexis(1040). Há ainda a História dos normandos de Dudo, deão dacolegial de S. Quentin, as Histórias de Richer, monge de S. Rémide Reims, cobrindo o período de 888 a 995, e os textos das His-tórias do monge Raul Glaber, talvez findos por volta de 1048.

O ano mil, segundo Georges Duby, parece ter passado quasedespercebido em vários anais e crônicas contemporâneos. Nadaou quase nada é dito sobre a data nos anais de Benevento, nosde Verdun e outros. O cronista Raul Glaber, no entanto, em suaobra dedicada a Odilon, abade de Cluny, talvez explique estaausência ao formular um outro cálculo do tempo, um outromilenio, relativo à morte de Cristo. Assim 1033, e não 1000,seria o outro milênio, dentro de uma cadência temporal religio-samente marcada.

A história continua a ter grande importância para a cons-ciência cristã. Os méritos das obras históricas são definidosno livro Das Maravilhas do abade de Cluny, Pedro, o Venerá-vel (c. 1092 - 1156): “boas ou más, todas as ações produzidasno mundo, pela vontade ou pela permissão de Deus, devem ser-vir à glória e à edificação da Igreja. Mas se nós as ignoramos,

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como podem contribuir para a louvação de Deus e a edificaçãoda Igreja?”

A partir dos séculos XI-XII, no entanto, a escrita da histó-ria passa a ser utilizada com maior freqüência pelos podereslaicos, que nela também vêem uma ocasião para cantar suasglórias e legitimar seus direitos. Uma série de crônicas familia-res, de biografias individuais de grandes personagens laicos ede histórias nacionais podem ser encontradas. Assim HenriqueII da Inglaterra (1133 - 1189) contrata clérigos para escrever ahistória de seus predecessores. Wace, cânone de Bayeux no sé-culo XII, traduz a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey deMonmouth (c. 1100 - 1154), que ajuda a popularizar as lendasdo rei Arthur na França, e elabora o Roman de Rou (c. 1175),narrando a história dos duques da Normandia, com bases emfontes latinas. Um anônimo encarrega-se da biografia de Gui-lherme, o Marechal (c. 1145 - 1219), regente da Inglaterra du-rante a minoridade de Henrique III; o escritor é contratado pelofilho de Guilherme, o conde de Pembrocke, por volta de 1226.

Surge assim um novo tipo de produtor da história. Nãomais preso a uma estrutura monástica ou episcopal, mas geral-mente de formação religiosa, e que passa a trabalhar a soldopara a aristocracia para escrever suas genealogias, algumas vezesmíticas. É o caso de Lambert d’Ardres, analisado por GeorgesDuby, que entre 1201 e 1206 termina sua História dos condesde Guines “à gloria dos altos senhores de Guines e de Ardres”.Lambert era um clérigo que servia no castelo de Ardres, parentedistante desse senhor; apesar de clérigo, era casado e tinha fi-lhos, também sacerdotes. Dizia-se “mestre”, tinha conhecimen-tos de retórica, da poesia antiga e das produções literárias cor-teses contemporâneas, além, certamente, de dispor de toda umabase religiosa de conhecimentos.

Os deslocamentos para o oriente motivados pelas cruza-das dão margem ao surgimento de um outro tipo de história,

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mais heróica, próxima da epopéia. O beneditino Guibert deNogent (1053 - 1124) escreve sobre a primeira cruzada em seuGesta Dei per francos, a partir de Gesta anonimos, sem ter sidotestemunho direto. A Historia eclesiastica do monge OrdericoVitale (c. 1075 - 1143), que em princípio deveria contar a histó-ria da abadia de Saint-Evroul en Ouche, acaba abarcando umespaço geográfico bem mais amplo. Partindo dos documentosde que dispunha a abadia, além de construir sua história, narraa história de toda a vizinhança e da aristocracia normanda. As-sim, acaba seguindo estas personagens pela Inglaterra, a Itáliado Sul e o oriente das cruzadas. Escreve por meio de círculosgeográficos e cronológicos sucessivos, a partir do ponto fixo queé a abadia, utilizando todos os tipos de fontes disponíveis, escri-tas, orais, populares e canções.

Um peregrino de Évreux, Ambrósio, companheiro deRicardo Coração de Leão, nos fins do século, narra a TerceiraCruzada (1188 - 1192). Sua História da guerra santa, em ver-sos, é trabalho de um profissional, que tem por fonte seu pró-prio testemunho ocular dos acontecimentos.

Paradoxalmente, são as cruzadas que definitivamente con-solidam a história laica na Idade Média, nas crônicas de Geoffroyde Villehardoiun (c. 1150 - c. 1213) e Robert de Clari. Ambosparticiparam da quarta cruzada, mas o resultado das duas obrasé bastante diverso. Clari dá o testemunho do combatente co-mum, subordinado a chefes que o mantêm ignorante da razãode seus movimentos, alheiado da grande política. Ao contrário,Villehardouin, marechal da Champagne e um dos chefes daquarta cruzada, vê a cruzada de cima, do lado dos poderosos.Seu relato da Conquista de Constantinopla tende a ser muitoclaro, muito lógico, muito preciso, para ser considerado total-mente verossímil; na base de sua narrativa está a vontade dejustificar o porquê da mudança de rumo da quarta cruzada paraConstantinopla, que transformou os cristãos desta cidade em

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infiéis. Sem mentir abertamente, escamoteia a verdade sobretu-do através de seus silêncios.

Além da história oriental, surge uma outra vertente, na-cional. A afirmação das monarquias nacionais fará com que ahistória submeta-se gradativamente ao serviço da política. Oabade de S. Denis, Mathieu de Vendôme, no século XIII organi-za a reunião de um vasto material de notícias necrológicas dosreis de França, há séculos redigidas pelos monges; traduzidaem francês a partir de 1274, esta compilação foi o ponto departida das Grandes crônicas de França, cuja redação prosse-gue até Luiz XI.

Na História de S. Luiz (1309) de Joinville (c. 1224 - 1317),senescal da Champagne, há uma fusão da hagiografia com ahistória das cruzadas. Escrita sob encomenda para a rainhaJoana de Navarra, após a canonização de Luiz IX, a obra preten-de edificar seus leitores através das “santas palavras” e dos “bonsensinamentos” do grande rei. Admirador e amigo de Luiz IX,Joinville não poupa anedotas que enalteçam sua figura, mistu-rando o concreto e o maravilhoso. Narra sem preocupação comum encadeamento lógico de fatos ou idéias.

No século XIV, a guerra dos Cem Anos fornecerá o mate-rial para a história nacional e política. Escrita em francês, oespírito cavalheresco e as proezas militares ocupam o primeiroplano. Dos cronistas da guerra, o mais considerado é Jean Frois-sart (c. 1337 - c. 1400), que, apesar de ser um clérigo de origemburguesa, admira a aristocracia e seu modo de vida.

Froissart desde jovem trabalhará para a nobreza; vai paraa corte da Inglaterra, onde cai nas boas graças da rainha, suacompatriota Felipa de Hainaut, com um pequeno ensaio histo-riográfico sobre os fatos ocorridos desde 1356. Freqüenta a altasociedade inglesa, partindo depois para a Escócia e a Itália, ondeteria conhecido Petrarca em 1367. Com a morte da rainha, ficasob a proteção do duque Venceslau de Luxembourgo, e conti-

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nua seu trabalho de historiador. Com base em informações pes-soais escreve sobre a atualidade, mas tenta buscar um iníciopara seu texto nos anos entre 1325 e 1356, utilizando comofonte a crônica de João, o belo. Em 1388, vai para o sul paraobter informações para sua história e conhecer a corte do condede Foix, o famoso Gaston Phébus. De volta a Paris continua suacrônica, volta para Inglaterra, e daí em diante nada mais se sabede sua vida. Dos quatro livros de suas Crônicas, o primeiro erabastante favorável à Inglaterra, e por isso foi corrigido mais tar-de, quando Froissart se aproxima do círculo de Guy de Chati-llon. A partir daí, seu texto pende para a França e os Valois. Noterceiro livro, escrito já na velhice, mostra uma certa indepen-dência de julgamento.

Froissart já encarna um historiador diferente deVillehardouin ou Joinville. Não escreve para manter viva a me-mória dos grandes acontecimentos de sua vida. Escreve profis-sionalmente como defensor dos aristocratas. Não participa dosacontecimentos que relata, e seu objetivo é o de agradar a no-breza que compra seus livros, e seus protetores que aí vêemseus nomes em destaque. Sua história tem um tom romanesco,era também poeta. Os temas de suas crônicas poderiam servirtambém para epopéias cavalherescas: as proezas, as festas, ostorneios, as grandes aventuras, a audácia dos mercenários oudos nobres, como Aymerigot Marcel ou Du Guesclin, e os peri-gos da guerra dos Cem Anos vividos nas grandes batalhas comoas de Crécy ou Poitiers.

A guerra dos Cem Anos dará emprego a muitos outroshistoriadores. A luta interna na França, entre armagnacs eborguinhões, fará com que cada lado contrate seus próprios cro-nistas, encarregados de expor as visões adequadas a seus se-nhores. Huizinga dirá que os cronistas borguinhões “encenamum sonho”.

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Dentro da cronologia tradicional, Felipe de Commynes(1447 - 1511) representaria o limite entre o medieval e o moder-no. Suas Memórias, escritas entre 1489 e 1498, expressam ummaior cuidado no estabelecimento de laços entre os aconteci-mentos e um julgamento mais ácido sobre os homens; não sãomais uma invocação das virtudes tradicionais e nem elogio oupanegírico.

Em seu prólogo ao arcebispo de Viena, Commynes defineo objetivo de seu livro: “escrever o que eu soube e conheci dosfatos do rei Luiz XI”. Diz ter observado em seu herói coisas boase más, e portanto não quer mentir.

Commynes nasceu na Flandres. Seu pai era governadorde Cassel e bailio de Gand. Destinado à vida militar, integroudesde cedo a corte de Felipe, o Bom, ficando depois a serviço doconde de Charolais, Carlos, o Temerário. Neste momento foi tes-temunho das primeiras lutas entre Luiz XI e a casa da Borgonha.Pouco depois muda de lado e, a partir de 1472, se torna confi-dente do rei, de quem recebe a senhoria de Argenton em trocade terras que possuía na Borgonha. Até a morte de Luiz XI par-ticipa de todos os acontecimentos a seu lado. Cai em desgraçapor um tempo com a morte do rei, mas acaba se reconciliandocom Carlos VIII; com ele parte para a Itália, onde é enviado comoembaixador a Veneza.

As Memórias exploram os grandes desígnios da política. Oaspecto exterior dos acontecimentos não interessam aCommynes; observa, analisa, pesa, julga, compara a partir dointerior dos acontecimentos. Enquanto moralista e cristão, per-mite-se tecer considerações gerais sobre a natureza humana e opríncipe ideal.

Como vemos, a escrita da história na maioria dos casoscontinua a ser um trabalho paralelo a outros. Monges cumpremfunções religiosas e fazem história, homens de estado traba-lham para o governo e fazem história, outros são poetas e retóricos

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e fazem história. Há um outro aspecto que também devemosconsiderar. Diante da diversidade, da profundidade e amplitudedos debates filosóficos e místicos ortodoxos e heréticos, das ex-pressões plásticas do românico e do gótico, das novas formaliza-ções da vida, a partir do século XII, é difícil atribuir aos analis-tas-cronistas-historiadores um lugar preeminente. As inquieta-ções de Abelardo, o fervor de Bernardo, o sorriso do anjo deReims, o rigor sistemático de Aquino, acabam por ofuscar osmais dignos labores históricos.

Bernard Guenée invoca razões contingentes para esta si-tuação. Os cronistas seriam intelectualmente medíocres, a his-tória não era ensinada nas escolas, servia apenas de auxiliar naexegese dos textos sagrados, os autores são modestos – só que-rem relatar, pois se acham indignos de esclarecer a vontadedivina...

No entanto, mesmo admitindo esta mediocridade, o senti-do da história está presente. No século XII, frases como “a ver-dade é filha do tempo” e “somos anões em pé nos ombros degigantes” (autores antigos e cristãos) são ditas naturalmente,admitindo que os contemporâneos viam mais longe do que osantigos. Além disso, não é negligenciável o papel que a história ea hagiografia medievais desempenham na criação de uma mito-logia política e religiosa no ocidente. E, sobretudo, é inimaginávelo valor que as obras medievais, as mais canhestras, podem terpara o historiador do século XX. Na verdade, quanto mais es-pontâneos, ingênuos, confusos, e maus escritores, melhores fon-tes se tornam!!!

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“Quando Tales estima ser o conhecimento do ho-

mem muito difícil ao homem, ensina-lhe que o conheci-

mento de qualquer outra coisa é impossível.”

Montaigne, Ensaios, II, xii.

A providência divina não se aposentará nos séculos ditosmodernos. A questão da fatalidade estará presente sob outrosnomes – fortuna, acaso, sorte – e, no século XVII, literalmentecomo providência divina na obra de Bossuet (1627 - 1704).

Ordenado sacerdote em 1652, foi levado à pregação por S.Vicente de Paula. Seus depois publicados Sermões e Oraçõesfúnebres, sua condição de preceptor do delfim, entre 1670 e1680, sua luta contra os protestantes, a função de chefe daigreja galicana, atribuem uma coerência à sua obra histórica.Bossuet decide se dedicar à história no momento em que está seocupando da formação do delfim; acredita que mais do que nin-guém os reis devem encarnar os valores morais do cristianismo.O Discurso sobre a história universal (1681) é uma defesa dahistória providencialista contra seus detratores, como RichardSimon que publicara uma História crítica do Velho Testamento –

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submetendo os textos sagrados a uma exegese profana – e con-tra Spinoza, que deseja submeter Deus às leis da natureza; visatambém ressaltar a utilidade da história como mestra de precei-tos morais e políticos. Em sua última versão (1700) aparece di-vidido em três partes: as épocas, a continuidade da religião, osimpérios. Na parte relativa aos impérios explica como todos ser-viram aos desígnios de Deus, permitindo o triunfo da Igreja.Tudo, mesmo aquilo que aparece sob uma forma anárquica,estaria submetido à ordem de Deus. Por outro lado, Bossuetelabora um aparato crítico para a abordagem do fato histórico:para os grandes acontecimentos diz ser necessário o estudo dascausas longínquas, dos móveis imediatos e dos resultados atra-vés de uma busca no tempo remoto e da distinção de povosdominantes e homens extraordinários.

Diante dos conflitos da igreja galicana com o papa, os pro-testantes e os quietistas, Bossuet revigora o providencialismocomo plataforma política.

Se, tradicionalmente, Bossuet representa a continuidadeda história sacralizada, isto não significa que Deus tenha desa-parecido para os demais historiadores. O próprio Machiavel emseu poema “Da ambição” diz ter sido o mundo criado por Deuspara benefício do homem; este Deus, através de si mesmo ouatravés dos céus, da fortuna e outros seres sobrenaturais, con-tinuaria a fazer prevalecer seus desígnios nos fenômenos danatureza e também na esfera humana.

Devemos considerar, no entanto, que também outras ques-tões se acrescentam às tradicionais. Do ponto de vista prático, ahistória será favorecida pelo sistema de imprensa de Gutenberg.Caem por terra os temas intocáveis, e verdades consagradaspassam a ser discutidas ou desmentidas; é o caso de LorenzoValla (1407 - 1457), que mesmo objetivando um acordo entreantigüidade e moral cristã, desmascara a farsa do texto denomi-nado “doação de Constantino”, pelo qual este imperador conce-

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dera autoridade suprema sobre a Igreja e a Itália ao papa Silves-tre I (314 - 335). No todo, uma “humanização” da história tende-rá a prevalecer, por razões principalmente de ordem política.Isto nos leva à Itália do norte principalmente, onde a complexi-dade da experiência comunal deu margem à criação de idéiaspolíticas particularistas ou universalistas, mas imbuídas de umvoluntarismo humano. Neste sentido, os usos do passado, datradição, dos historiadores antigos, romanos principalmente, nãoserá inocente. A historiografia será apenas mais uma das ex-pressões da consciência cívica, do nacionalismo local, dochauvinismo geralmente, e da exaltação dos governantes.

As obras históricas de Petrarca (1304 - 1374) traduzemcom precisão suas aspirações no sentido da criação de uma uni-dade italiana, de uma restauração do império romano. Pede aopassado que sirva de consolo para o presente, pois sente a neces-sidade de viver numa pátria. Seu pai e a família haviam sidoexilados pelos guelfos negros em 1312; isto fez com que vivesseem Avignon e freqüentasse a universidade de Montpellier, antesde estudar Direito em Bologna. Durante sua vida viajou constan-temente pela Flandres, França e Itália, muitas vezes encarregadode missões políticas. De temperamento melancólico, refugia-senuma história idealizada de Roma para fugir da atualidade; emseu Viri illustres (Homens ilustres), ao comentar as grandes perso-nagens romanas, principalmente utilizando as idéias de Tito-Lívio,elimina qualquer elemento que ameace seu quadro ideal. Em ge-ral, não critica suas fontes; provido que sejam antigas as conside-ra dignas de crédito. Petrarca inova, no entanto, pelo fato de seustrabalhos históricos terem sido elaborados por vontade própria enão sob encomenda de alguma autoridade.

Boccacio (1313 - 1375), segue os passos de Petrarca, mascom um espírito diverso; tem os pés no presente. Suas Mulheresilustres (105 biografias de mulheres da antigüidade, em suamaioria gregas e romanas, sem santas), publicadas por volta de1362, seriam a contrapartida dos “homens ilustres”. Mas,

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Petrarca queria exaltar a grandeza militar e política de Roma, aopasso que Boccaccio quer agradar seu público com anedotas.As fontes que utilizam são semelhantes, os grandes autoresantigos e alguns obscuros; Tácito, desconhecido de Petrarca,entra na bibliografia de Boccaccio. Em outra obra, De casibusvirorum ilustrium, que pretende ser uma história universal, uti-liza fontes medievais como Gregório de Tours e Paulo Diácono.

Boccaccio não se atém só ao passado ao retomar a tradi-ção da biografia dos grandes homens do presente. Na Vida deDante não parte de um molde pré-estabelecido pela tradiçãoliterária e, ao mesmo tempo, abre caminho para o gênero histó-rico “vida dos artistas”, consagrado com Vasari no século XVI.

Petrarca e Boccaccio utilizam a história como moralistas;além do mais, suas obras históricas se diluem numa vasta pro-dução literária de maior peso. A chamada história humanistaserá produzida por homens ligados ao governo, com fins propa-gandísticos bem marcados e com um agudo cuidado estilísticopróprio a seduzir o leitor. A história volta a se ligar à retórica,tanto na Itália como na França. O objetivo de se igualar a Tito-Lívio é tão grande, que alguns voltam a escrever em latim e nãomais em língua nacional.

Na Itália, a primeira obra considerada como históriahumanista é a História florentina de Leonardo Bruni (1369 - 1444).Bruni nasceu em Arezzo, estudou Direito, foi secretário do papa,em 1405, e, a partir de 1415, passa a morar em Florença, ondedesempenha diversas funções públicas.

Sua história de Florença abandona todas as explicaçõeslendárias, os mitos, os milagres, que normalmente apareciamnas histórias locais, como a de Giovanni Villani (c. 1275 - 1348).Enfatiza a política e as circunstâncias gerais – geográficas, es-tratégicas – como substrato da história, ignorando a interven-ção da providência. Fortemente marcado pela leitura dos auto-res da antigüidade, a retórica muitas vezes toma o lugar de uma

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visão crítica de personagens e situações; as contigências econô-micas desaparecem e são travestidas em motivos elevados. Emse tratando de uma cidade construída pelo comércio e o artesa-nato como Florença, deixa uma lacuna irreparável.

Bruni segue uma cronologia anual, o que também resultanuma abundância de relatos de pequenos acontecimentos eausência de visão de conjunto, além de nem sempre acabar orelato de um fato, caso se estendesse para o próximo ano. Notodo, concentra-se mormente na história interna da cidade e, apartir daí, faz sua apologia. Florença é a campeã das comunas,a que resiste aos planos hegemônicos dos inimigos, a predesti-nada pela sua tradição histórica, pela geografia, a salvaguardara estabilidade da Itália e os princípios republicanos. Florença éo lugar ideal, concebido segundo um plano racional, numa pers-pectiva geométrica que define seu papel histórico, sua vocaçãopara a liberdade.

Bruni terá seus seguidores em Poggio (1380 - 1459), con-selheiro em Florença de 1453 a 1458, que também escreve umahistória florentina, em Accolti (1415 - 1466), chanceler da repú-blica em 1459, em Scala (1430 - 1497), também chanceler. Paraestes, a escrita da história era praticamente uma continuidadede suas funções públicas. Accolti, por exemplo, era um súditofiel dos Médici; em sua história florentina, o que prevalece é avontade de louvar ao máximo a família e Lorenzo de Médici,através de uma releitura da história local. É o típico exemplo dehistoriador propagandista, escravo do poder.

A exemplo de Florença, todas as cidades italianas passa-ram a produzir uma história local, promovidas pelo governo.Governantes e intelectuais comprovavam pelo exemplo florentinoo quanto poderia ser útil uma panfletagem erudita. Contrata-vam então letrados, alguns até nascidos fora do local, para pro-mover suas cidades. Assim, Sabellicus (1436 - 1506) e PietroBembo (1470 - 1547) em Veneza.

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Bembo é um humanista considerado, contratado pelo Con-selho dos Dez para continuar a obra de Sabellicus. Venezianode origem, de família aristocrática, foi secretário do papa Leão Xe, mais tarde, nomeado cardeal em 1539. Começou em 1531 aRerum Venetarum Historiae, onde, sem espírito crítico, registratodos os tipos de acontecimentos, enaltecendo sem limites opoderio militar veneziano e calando sobre qualquer atitude polí-tica que pudesse prejudicar a imagem da república.

A história que Lorenzo Valla (1407 - 1457) escreve paraNápoles também serve aos interesses dinásticos locais. Entre1434 e 1447, Valla viveu como secretário e leitor da corte do reiAfonso de Nápoles, e é nesta qualidade que escreve a suaHistoriarum Ferdinandi regis Aragoniae, a história do pai de seupatrão.

Uma figura curiosa é a de Paulo Giovio (1483 - 1552), ir-mão do historiador de Como, Benedetto Giovio. Paulo estudoumedicina em Pádua e Pavia; em 1516 já pratica medicina emRoma. Protegido do papa Leão X, a quem dedicara uma obrasobre história contemporânea, acaba nomeado professor da uni-versidade romana. A partir daí trabalha principalmente comohistoriador, embora em 1526 tivesse também sido nomeado bispode Nocera por Clemente VII.

Giovio não esperava ser contratado para escrever a histó-ria de cidades e de famílias governantes. Ele próprio se oferecia,cobrando altos honorários; caso não pagassem, transformavaos elogios em insultos e fazia com que linhagens inteiras desa-parecessem da história. Mais do que historiador era uma espé-cie de repórter e jornalista; fazia inúmeras entrevistas, seguiapasso a passo o desenrolar das batalhas, conhecia todos, emitiajuízos sobre todos. Em suas obras misturava altas doses de elo-gio a seus clientes, ao mesmo tempo em que insinuava detalhespicantes e comprometedores que fariam as alegrias do grandepúblico. Apesar de tudo seus escritos possuem um tom moral

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bem acentuado. Por outro lado, percebe que as histórias locaisnão mais tinham sentido diante dos sinais de alargamento domundo, como a descoberta da América; introduz, então, em seusescritos digressões – ainda que vagas – sobre a história da civili-zação. Mostra-se indignado com Machiavel por ter sido tão pa-triota em seus textos.

Entre 1519 e 1521, Machiavel (1469 - 1527) consegue apatronagem dos Medici para escrever uma história de Florença.Sua situação pessoal era então muito difícil, tanto moral comofinanceiramente, e este encargo tinha uma função bastante prag-mática. Uma de suas maiores dificuldades foi a de conciliar adedicatória com o estudo da lenta escravização de Florença aosMédici. Para evitar constrangimentos, carregou o livro com do-cumentação e reduziu ao máximo os comentários.

Na biografia do tirano de Luca Castruccio Castracani,condottiere do século XIII, elaborada por volta de 1520, Machiavelbusca materializar suas idéias políticas numa pessoa. Resumesua personagem dizendo que era bom para seus amigos, terrívelpara com os inimigos e infiel com todos os outros. Interessa-sepor Castruccio por ter sido ele capaz de ao menos tentar forjarum estado – a formação de um estado era uma obsessão emMachiavel. Quando faltam dados que documentem a vida dotirano, não hesita em tomar emprestado traços de biografiasantigas. Utiliza muito o historiador antigo Diodoro em sua his-tória do tirano de Siracusa, Agatocles. Como este, Castrucciotorna-se uma criança abandonada – porque não devia pertencera nenhuma família aristocrática – e depois um homem semmulher e nem filhos – porque não deveria fundar uma dinastia.

No conjunto da obra de Machiavel, a produção histórica émenos original; na história de Florença, por exemplo, recopiaautores anteriores, como Blondus, Villani e Simonetta. O maissignificativo são os ecos de suas teorias na compreensão do pro-cesso histórico ; a inserção dos fatos históricos em grandes mo-

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vimentos gerais e naturais, o papel da Fortuna, o pragmatismo,e sua crença totalmente a-histórica de que a natureza humanaé sempre igual.

O historiador e amigo de Machiavel, Francesco Guicciardini(1483 - 154O), como ele também fora funcionário público. Suaprimeira história de Florença data de 1509, mas, como políticohábil, não deixou que fosse publicada enquanto vivo; não pou-para críticas à tirania de Lorenzo de Médici, considerando-o res-ponsável pela ruína do Estado. Mais tarde, numa primeira histó-ria da Itália tratada como um todo, diria que a época de ouroitaliana fora a de Lorenzo de Médici. Ao contrário de Machiavelnão se interessa pela filosofia da história, mas com o estudo darealidade, uma realidade vista com a maior parcialidade possível.

Dos historiadores do século XVI, talvez o mais conhecidohoje em dia seja Vasari (1511 - 1574), autor das Vidas dos maisexcelentes pintores, escultores e arquitetos – de Cimabue a Tiziano.Pintor e arquiteto, foi empregado por Cosimo de Médici, em 1555,como arquiteto no Palazzo Vecchio, onde concebia cerimôniaselaboradas e grandes decorações para as festas da família. Se-guindo uma ordem cronológica, Vasari se ocupa da vida dosartistas, sem pretender com isso realizar uma obra histórica deconjunto. Acredita basicamente que o tempo vai melhorando aarte; vê progressos, aperfeiçoamentos, que poderiam ser trans-mitidos aos leitores mediante a apresentação das biografias in-dividuais de cada artista; “tentei distinguir entre o bom, o me-lhor e o máximo”. Na dedicatória que faz a Cosimo, reitera queseu propósito é didático. Considera que o inevitável declínio dasartes pode ser sustado pelo esforço humano; Machiavel diziaque a decadência podia ser detida pela virtú.

Apesar da parcialidade de seus julgamentos, da impreci-são de muitos dados, de sua visão da arte desvinculada da so-ciedade, suas anedotas sobre os pintores, verídicas ou não, es-tão integradas ao imaginário de qualquer estudioso da arte. Além

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disso, formulou alguns conceitos para os historiadores da arte:o de distinção entre o que é boa arte e arte ruim, de estabeleci-mento de relações entre as obras, as intenções do artista, e atradição de sua época, de julgar as obras pelos padrões e conhe-cimentos disponíveis na época de sua produção e pelos maisaltos padrões estabelecidos pela crítica contemporânea.

Na França, os historiadores também estão à serviço dapolítica, da sedimentação dos estados modernos e dos patriotis-mos. Fascinados pela Antigüidade, Tito-Lívio e pela históriahumanista italiana, escrevem em latim, as histórias gerais daFrança – De rebus gestis francorum, de Paul Émile em 1500 – oua história imediata – Historia mei temporis, do estadista católicoJacques Auguste de Thou (1553 - 1617). Por outro lado, o cultodos grandes homens, a crença numa finalidade pedagógica emoral da história, animam as biografias do historiógrafo oficialde Carlos IX e Henrique III, Girard de Haillan. Uma outra cor-rente é a dos eruditos que empreendem a catalogação das“antigüidades”, atribuem historicidade ao direito romano, e sevoltam para a filologia, a numismática; assim Pierre-Pithou (1539- 1596) e seu irmão François (1543 - 1621) – galicanos, patrio-tas, defensores dos direitos da coroa francesa, que estudam odireito francês em nome do interesse nacional contra os ultra-montanistas e os jesuítas –, o advogado Etienne Pasquier (1529- 1615), que em suas Pesquisas sobre a França, examina asorigens das instituições francesas e os progressos da autorida-de real, abordando a evolução dos costumes, das crenças, dasidéias e das letras.

Na Alemanha, em 1531, é publicada uma História da Ale-manha, onde o humanista de Selestat, Beatus Renanus (m.1547),leitor de Plínio, Tácito e Tito-Lívio, utiliza textos antigos em alto-alemão com um grande sentido da crítica.

Evidencia-se o fato de que todos aqueles que se ocupamda história têm uma outra formação e que esta atividade é uma

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entre outras. Também Claude Fauchet, autor das Antigüidadesgaulesas e francesas até Clóvis (1599), era magistrado antes deser nomeado historiógrafo de França por Henrique IV; sua obrasitua-se numa corrente patriótica cuja expressão mais triun-fante tomará forma na história do século XIX.

A indiferença à história parece ser uma marca do séculoXVII. O interesse do classicismo pelo permanente e o universalfaz com que a história seja vista como o domínio do contingentee do particular. Descartes (1596 - 1650) despreza a história emnome da metafísica e da física. O espírito científico prevalecesobre a erudição – sob seu signo era vista a história. SegundoPascal (1623 - 1662) a história seria incapaz de qualquer pro-gresso por ser um conhecimento livresco, dependente da me-mória; ao contrário das ciências físicas não depende nem doraciocínio, nem da experiência, mas somente do princípio deautoridade, como a jurisprudência ou a teologia. Em 1668, sur-ge um ensaio Do pouco de certeza que há na história. Considera-da inútil em geral, continua, no entanto, a ser útil na formaçãodos futuros reis de França.

Por outro lado, o trabalho dos eruditos na compilação dedocumentos antigos será importante. A erudição dos séculosXVI e XVII engloba a arqueologia, a epigrafia, a numismática e afilologia e seus praticantes eram denominados “antiquários”. Éo caso do jesuíta de Liége, Jean de Bolland, com as Actasanctorum, coletânea de vidas de santos, classificadas dia a dia,seguindo o calendário; dos beneditinos de S. Maur, com as Actasantorum ordinis S. Benedictis, editadas a partir de 1668 sob adireção de Mabillon – que introduz a “diplomática” – e os traba-lhos de dom Bernard de Montfaucon, como os Monumentos damonarquia francesa (1729 - 1733), para citarmos apenas algunscentros de erudição religiosa. É importante também o trabalhodo oratoriano Richard Simon (n.1638), que marca o início daexegese bíblica crítica. Em 1663, Colbert funda a Pequena Aca-

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demia, que em 1716 se transforma na Academia Real de Inscri-ções e Belas Letras, com membros religiosos e laicos, e cujoobjetivo é a publicação de “memórias” consagradas à história, àarqueologia e à lingüística. Nestes círculos eruditos, aparecemas primeiras obras sobre o mundo árabe, a Pérsia, a Índia e aChina, escritas por missionários e viajantes. Ecos do colonialis-mo.

A integração de outros povos no horizonte histórico fazcom que Fenelon (1651 - 1715), escreva, em 1714, que “o pontomais necessário e mais raro para um historiador é que saibaexatamente a forma de governo e o detalhe dos costumes danação sobre a qual escreve a história, a cada século. Um pintorque ignore il costume, não pinta nada com verdade.”

No século XVIII, os filósofos fazem obra de historiadores.D’Alembert (1717 - 1783) dizia que a história era o último dosconhecimentos sem a filosofia; algumas obras deixam de ter otítulo história para se denominarem “progresso do espírito hu-mano”, como a de Turgot (1750) e Condorcet (1790). David Hume(1711 - 1776) escreveu uma história da Inglaterra .Montesquieu(1689 - 1755), em 1734, publica Considerações sobre as causasda grandeza dos romanos e da sua decadência. Voltaire (1694-1778) realiza a História de Carlos XII, Século de Luiz XIV e Ensaiosobre os costumes. É de Voltaire a expressão “filosofia da histó-ria” (1756). As primeiras filosofias modernas da história tam-bém tomam forma no século XVIII. Voltaire, Kant (1724 - 1804)e Condorcet (1743 - 1794) acreditam num progresso da huma-nidade em direção a um ideal.

Esses filósofos com pele de historiadores verão o passadocom outros olhos. Montesquieu quer explicar “a história pelasleis e as leis pela história”, partindo do princípio de que cadacivilização forma um todo original, tem um “espírito geral”, com-posto pelas instituições políticas, a vida econômica, a geografia,a religião e os costumes. Voltaire diz que seu objetivo “é sempre

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o de observar o espírito do tempo; é ele que dirige os grandesacontecimentos da história.”; na verdade, tem horror aos crimese às loucuras da humanidade, por isso renuncia a uma histórianarrativa, ao detalhe factual inútil, quer esclarecer o leitor e nãosobrecarregar sua memória. Apesar de admirar os grandes ho-mens, diz pretender no Século de Luiz XIV “pintar à posterida-de, não as ações de um só homem, mas o espírito dos homensno século mais esclarecido que jamais houvera”.

Muitos historiadores do iluminismo conseguem se liberarda camisa de força do Estado e da Igreja, escrevendo com ointuito de divulgar suas idéias; atacam as formas tradicionaisda religião e concebem a importância do fato histórico em rela-ção com suas teses. Os que continuavam na dependência dogoverno eram criticados; Montesquieu diz que Voltaire, comohistoriador, escrevia como um monge para seu convento.

O inglês Edward Gibbon (1737 - 1794) produz uma obraclássica sobre a antigüidade, a História do declínio e queda doImpério romano (1776 - 1788). De origem aristocrática, Gibbonviveu muito tempo em Lausanne na casa de um erudito calvinista.Conheceu Voltaire e do iluminismo sua obra expressa uma filo-sofia da história e tendências anti-eclesiásticas e profanas; seuestudo sobre as origens do cristianismo – responsável pelo grandeêxito da obra – foi trabalhado como um tópico de história profa-na, através de um crítica cética de lendas e autores eclesiásti-cos.

A mudança de atitude frente ao fato e à concepção de his-tória será absorvida pela historiografia do século XIX. Introdu-zindo a dúvida, a crítica racionalista, uma metodologia, as no-ções de história cultural e universal, os filósofos dão à históriaelementos para que se afirme triunfante no século XIX. O séculoda história e também do historiador. A história deixa de serassimilada à erudição, ao antiquarismo e passa a desempenharum importante papel na educação e no cotidiano das pessoas.

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Tudo se historiza, o historiador se profissionaliza e passa aencarnar a consciência da nação. De matéria secundária, apên-dice do conhecimento humano, transforma-se num mecanismoimprescindível para a compreensão do mundo e dos homens.Esta mudança radical liga-se profundamente ao próprio mo-mento histórico da Europa. Seu fundamento é a Revolução Fran-cesa.

A Revolução é sentida por todos os franceses como umaruptura. Os contra-revolucionários dizem que a revolução foraum atentado à história, esta entidade milenar baseada num flu-xo natural do tempo. Os revolucionários queriam acabar comtudo o que fosse passado, principalmente religioso; daí, numprimeiro momento, a destruição sistemática dos monumentosfranceses, da monarquia ou da igreja, dos objetos que formali-zavam o tempo.

Passado esse rápido momento, as mais diversas pessoasviram o interesse que o passado podia apresentar na educaçãodos cidadãos. Já em 1789, temas da história francesa – CarlosIX, Fenelon – passam a ser encenados no teatro, substituindo ostemas antigos. A Revolução abre os arquivos públicos, senho-riais, eclesiásticos. A criação por Alexandre Lenoir do Museudos Monumentos Franceses, com salas montadas com objetosreferentes a cada século da história francesa, desde a IdadeMédia, atraiu multidões ávidas por conhecer os estilos de vidado passado.

A Convenção (1792 - 95) estabelece que, para a terceirasessão de suas Escolas Centrais, deveria haver um professor dehistória especial, ensinando dez horas por semana, encarrega-do de fazer com que seus alunos “repousassem deliciosamenteseus olhares sobre os acontecimentos memoráveis que lhes li-bertaram”.

Esta história na verdade ainda estava se fazendo, não ha-via sido escrita. Diante disso, a história não será ensinada nas

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escolas primárias por medo que as crianças possam “contrairmedos e preconceitos”, como diz Volney (1757 - 1820), membrodo comitê de instrução pública sob o Diretório (1795). Mas, noano III, Volney já ensina história na Escola Normal, junto comoutros Ideólogos – o grupo de filósofos que abandona a metafísi-ca em proveito das ciências do homem, destacando a análise dalinguagem, da gramática e da lógica.

Napoleão (1769 - 1821) quer historiadores capazes de mos-trar “a desordem perpétua das finanças, a falta de regras e derecurso na administração” do passado, em contraste com a épo-ca do Consulado, onde “se gozam dos benefícios derivados daunião das leis, da administração e do território”. Uma históriaoficial. Acha absurdo que nas escolas sejam dadas aulas sobreas guerras púnicas e não sobre a guerra da América. Em 1807,numa carta, Napoleão fala do projeto de criação de “uma escolaespecial de história”, de “um curso de bibliografia” e de váriascadeiras no Colégio de França.

No programa de ensino dos liceus napoleônicos, a história ématéria obrigatória nos primeiros e segundos anos de Humani-dades, onde estudam jovens de 15 a 17 anos. O professor dehistória nasce do improviso, na medida em que ainda não existeuma especialização na matéria. Em 1812, o jovem Guizot (1787 -1874) ensinava na Sorbonne “o trabalho comparado das leis,das artes e dos costumes, a origem dos impérios com as causasde seus progressos e de suas decadências” e também “as regrasda ciência crítica”.

No entanto, mesmo na época napoleônica não aparecemmanuais diversos daqueles que vinham sido produzidos hávários séculos; como o de Le Ragois, da época de Luiz XIV,apresentando uma série de fichas com as histórias dos reisde França.

A grande virada, no sentido de uma ampla aceitação dahistória pelo grande público, do reconhecimento de seu valor

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primordial na escolaridade, e de uma mudança no enfoque dahistória será empreendida pelos historiadores chamados român-ticos. Romantismo é um conceito utilizado para caracterizar umacerta visão de mundo, idealista, metafísica e poética, cuja ex-pressão intelectual, artística e política começa a tomar formaem fins do século XVIII. Contrapondo a sensibilidade e o idealis-mo filosófico ao racionalismo e ao empirismo da ilustração, oindividualismo ao universalismo, a estética européia medieval àclássica, privilegia a interioridade, a espiritualidade; no âmbitopolítico esse individualismo será traduzido em idéia nacional.

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“Nossa Geração teve que pagar para saber, pois a

única imagem que irá deixar é a de uma geração vencida.

Será este o seu legado aos que virão”

Walter Benjamin – Sobre o Conceito de História, 1940.

Na França, Rousseau é um dos primeiros a articular asensibilidade romântica diante do mundo. Mas, para a história,tudo começa com o êxito retumbante do Gênio do Cristianismo(1802) de Chateaubriand (1768 - 1848). No dia em que é lança-do, as pessoas disputam a tapas os exemplares; depois da leitu-ra se convencem de que o cristianismo “é delicioso”, como dizMme. Hamelin em suas lembranças. Militar, monarquista,Chateaubriand vê sua carreira interrompida pela Revolução; viajapara a América e depois para a Inglaterra. De volta à França, em1802, publica o Gênio, uma apologia da religião estritamente deacordo com os desígnios de Napoleão de reconciliação da Igrejacom o Estado. Um ano depois o autor era admitido na diploma-cia pelo próprio Napoleão.

Chateaubriand vê na religião católica um alicerce da civili-zação, uma inspiração para a arte e um modelo para a sociedade.

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As páginas que comparam as grandes catedrais góticas com asflorestas primitivas da França expressam uma arrebatadora vi-são onírica do passado, a força dos primeiros franceses, da pá-tria. A visão tradicional de que a beleza só poderia ser clássicadesabava por completo. O que Goethe (1749 - 1832) esboçarano seu ensaio sobre a Catedral de Strasburgo (1773), para ele aencarnação do gênio alemão, Chateaubriand apresenta com aexaltação e magnificência de uma sinfonia.

O século XVIII havia apresentado o cristão como um ridí-culo. Chateaubriand, que pertence a este século e ainda com-partilha muitas de suas idéias, concebe a apologia cristã nãopartindo de Deus, ignorado pelos cultos, mas ao contrário, comespírito empírico, partindo do real, pela experiência. Como diz,“era preciso pegar o caminho inverso, não provar que o cristia-nismo é excelente porque vem de Deus, mas que ele vem deDeus porque é excelente.” Em seu livro não ataca os filósofos,mas os exalta fazendo de Voltaire e Rousseau dois homens im-buídos dos fantasmas do cristianismo.

Chateaubriand coloca Deus como uma garantia para amanutenção da ordem social, mas, em realidade. Deus mal apa-rece no livro. Consciente da insegurança do mundo diante daquebra das hierarquias, das contradições de sua época, atinge oleitor pela emoção, pelos movimentos de seu coração. Vê no cris-tianismo uma filosofia histórica do progresso, que quebra o eternoretorno, que tem um nítido sentido do antes e do depois – exata-mente como Voltaire via a história. O tempo era um elementocriador e a história possui uma objetividade absoluta; é o planode encontro entre o tempo e a eternidade. Deus não era arquite-to como na Idade Média, mas doutor em história.

Apesar de não ser propriamente um historiador, suas obrasforam fundamentais para despertar em muitos a vocação pelahistória. Augustin Thierry (1795 - 1856) narra: “em 1810 (...)um exemplar dos Mártires (de Chateaubriand), trazido de fora,

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circulou na escola... A impressão que me causou o canto deguerra dos francos tinha algo de elétrico. Eu saí do lugar ondeestava sentado e, andando de um lado para outro da sala, eurepetia em voz alta e batendo os pés no chão: “Faramond !Faramond ! nós combatemos com a espada !...” Este momentode entusiasmo foi decisivo para minha vocação futura... Eis aquiminhas dívidas para com o escritor genial que abriu e que deno-mina o novo século literário. Todos aqueles que, em diferentessentidos, caminham pelas vias deste século, o encontraram nafonte de seus estudos, em suas primeiras inspirações; não exis-te ninguém que não deva lhe dizer, como Dante à Virgílio: Tuduca, tu signore e tu maestro”...

Se os primeiros momentos do romantismo são anti-revo-lucionários, logo haverá um fusão entre Revolução e romantis-mo convergindo para o estudo da história nacional, para a cap-tação da cor local. Os historiadores românticos serão liberais e aIdade Média, o gótico, o bárbaro, o passado nacional, serão te-mas privilegiados.

A história liberal, história da burguesia conquistadora, tempor missão afirmar o valor e legitimar a nova classe detentora dopoder, ao mesmo tempo que pretende criar uma identidade na-cional. Após a restauração de 1815, a história torna-se o campode luta entre liberais e conservadores. Estes querem apagar aRevolução, o corte num contínuo histórico, enquanto os liberaisansiavam pela integração dessa ruptura no presente e tambémnuma relação com o passado. O estudo da história torna-seuma questão de Estado e historiadores como Guizot, Thiers,Cousin serão nomeados ministros. O historiador liberal é o por-ta-voz da burguesia.

Em 1832, Guizot (1787 - 1874), ministro da instrução pú-blica, inicia uma catalogação sistemática de todas as fontes damemória nacional e a publicação dos Documentos inéditos rela-tivos à história da França, “uma pesquisa integral do passado”,

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em suas palavras, seguindo o êxito dos Monumenta Germaniaehistorica, publicado na Alemanha. Prosper Merimée (1803 - 1870),nomeado inspetor dos monumentos históricos, em 1833, per-corre toda a França – tendo como assistente Viollet-le-Duc, fu-turo responsável pelas grandes restaurações de igrejas, castelose cidades medievais – para efetuar um levantamento das rique-zas arqueológicas francesas; Merimée “descobre”assim as igre-jas românicas, iniciando uma série de estudos e ensaios sobreas artes da idade média.

Augustin Thierry, após ter sido secretário de Saint-Simone colaborado em jornais liberais, não se tornará um político,mas vê na política, no momento pós-revolucionário um impulsopara sua dedicação à missão de escrever história: “A história daFrança tal como foi feita pelos historiadores modernos não é averdadeira história do país, a história nacional, a história popu-lar. A melhor parte de nossos anais, a mais grave, a mais instru-tiva, ainda está por ser escrita; falta-nos a história dos cidadãos,do povo. Esta história nos apresentará exemplos de conduta eeste interesse de simpatia que procuramos em vão nas aventu-ras deste pequeno número de personagens privilegiados quesozinhos ocupam a cena histórica. Nossas almas ligar-se-ão aodestino das massas de homens que viveram e sentiram comonós. O progresso das massas populares para a a liberdade e obem estar nos parecerá mais imponente que a marcha dosfazedores de conquistas, e suas misérias serão mais tocantes doque aquelas dos reis despossuídos.” Assim, o historiador nãodeve ser o porta-voz dos grandes, mas sim aquele que se inter-roga sobre os sentimentos e os movimentos do povo. Em 1820,Thierry publica A verdadeira história de Jacques Bonhomme,evocando as diferentes formas de servidão do campesinato fran-cês desde a época da invasão romana até seus dias. Em 1840,diz que no lugar das antigas ordens, da desigualdade de clas-ses, a Revolução havia construído uma sociedade de vinte e cin-co milhões de cidadãos vivendo sob a mesma lei. Em 1850, o

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Ensaio sobre a história da formação e dos progressos do TerceiroEstado, uma comparação das burguesias inglesa e francesa,uma desenvolvida pelo Estado e a outra pelo comércio e indús-tria, distingue no passado a existência de uma massa popular,conduzida e encarnada pela burguesia.

Numa outra dimensão, a leitura do Ivanhoé de Walter Scottresultará numa mudança no estilo da escrita da história paraThierry. Tradicionalmente, o livro de história apresentava umanarração dos fatos e em seguida os comentários do autor. Thierryacha falsa essa divisão que separa “os fatos daquilo que consti-tui sua cor e sua fisionomia individual”, acha que o historiadordeve narrar e pintar ao mesmo tempo. Na Narrativa dos temposmerovíngios (1824), livro que reafirma o gosto do público pelaIdade Média, o texto reflete as leituras de Chateaubriand e Scott.A Narrativa baseia-se na teoria da luta de raças – entre galo-romanos e germanicos – como motor da história do desenvol-vimento nacional; a luta de raças antecederia a luta de classes.No Ensaio sobre a história do terceiro estado, dirá que 1789 e1830, enquanto movimentos populares, serão a revanche daconquista franca.

Guizot, fiel à Luiz Felipe, durante a Monarquia de Julhoserá o chefe do partido da Resistência, ministro do interior, daeducação pública, embaixador em Londres; em 1840 substituiThiers no ministério dos Assuntos Estrangeiros e se torna o ver-dadeiro chefe do governo. Sua política, que favorecia a grandeburguesia nacional, contribuiu para aumentar a miséria dostrabalhadores e instigar uma crescente oposição. Antes disso,na década de 20, fora professor de história na Sorbonne, ondeem seus cursos celebrava a Revolução como a batalha decisivada história francesa. Dizia então “que a luta das diversas clas-ses de nossa sociedade preencheu nossa história. A Revoluçãode 1789 foi sua explosão mais geral e mais poderosa.” Mas, nogoverno, diante do triunfo burguês quer congelar a história con-

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tra os perigos do “quarto estado”; considerava, em 1847 – poucoantes da revolução de 48 – que todos os interesses haviam sidosatisfeitos e que a luta de classes havia terminado.

Marx será um atento leitor da historiografia românticaburguesa francesa. Nela vê uma consciência explícita da luta declasses como motor da história.

O grande astro da historiografia burguesa será JulesMichelet (1798 - 1874). Nascido num meio popular, filho de umimpressor, Michelet, após ter sido um aluno brilhante, é encar-regado do curso de história antiga na Escola Normal Superior. Éum apaixonado pela filosofia da história de Victor Cousin, Herdere sobretudo Vico (1668 - 1744), de quem traduz os Princípios deuma ciência nova sobre a natureza comum das nações (1725).Nesta obra, Vico critica o racionalismo cartesiano e utiliza ummétodo comparativo, apoiando-se na filologia, para estudar aformação, o desenvolvimento e a decadência das nações que,obrigatoriamente, passariam por três fases sucessivas: idade dosdeuses, dos heróis e dos homens; em cada uma destas fases épossível colocar em paralelo o modo de governo, o sistema jurí-dico e a linguagem. O princípio de “humanidade que se cria”,utilizado por Michelet, é de Vico.

Nomeado chefe da sessão histórica dos Arquivos Nacio-nais (1831), volta-se para o passado nacional e elabora sua enor-me História da França, cujos seis primeiros volumes, das ori-gens à morte de Luiz XI, aparecem entre 1833 e 1844; neles criauma idade média romântica, idealizada, em que as pedras seanimam e se espiritualizam na mão dos artistas, tempo da in-fância da França, da união da religião e do povo sofredor e desuas lutas, do “grande movimento progressivo, interior, da almanacional”. Seus cursos no Colégio de França atraíam multidões;tendo rompido com o catolicismo, neles desenvolve suas idéiasdemocráticas laicas. Entre 1847 e 1853 publicou os sete volu-mes da História da Revolução Francesa, um trabalho profun-

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damente passional e ao mesmo tempo minuciosamente docu-mentado: “eu não poderia compreender os séculos monárquicosse antes, antes de tudo, não tivesse dentro de mim a alma e afé do povo.” Após 1851, destituído de suas funções oficiais,continua a publicação dos volumes relativos à história da Fran-ça, de Luiz XI a Luiz XVI, todas imbuídas de um espírito depolêmica política.

Michelet explica sua paixão arrebatada pela história e pelaFrança como uma obra da política, da revolução de 1830: “Estaobra laboriosa de quase quarenta anos foi concebida a partir deum momento, do raio de Julho. Nestes dias memoráveis, fez-seuma grande luz e eu vislumbrei a França”. Como Thierry, achaque a França ainda não possui uma história e que a escritadesta história, “a ressurreição total da vida” é uma missão. Ohistoriador é um sacerdote com poder de ressuscitar os mortos,que passam a falar através de seus livros. É necessário entre-gar-se totalmente a esta tarefa imortal. A geografia, o homem, opovo – “tal pátria, tal homem”– e todos os aspectos da vida pas-sada, o historiador deve buscar na mais ampla documentação,para criar uma história total. Para Michelet o nome da França éRevolução, acima de tudo, dos conflitos políticos, econômicos,de classe. “Franceses de todas as condições, de todas as classese de todos os partidos, guardem bem uma coisa, sobre esta terravocês só tem um amigo verdadeiro, é a França”. A nação é oquadro e o resultado essencial de sua busca. Para Michelet,liberdade não é um conjunto de garantias jurídicas, como acre-ditava “o pobre Montesquieu”; a vida é que era tudo.

Georges Lefebvre considera que um gênio como Micheletnão podia deixar nem método, nem programa de pesquisa enem discípulos. E, como Lucien Febvre gostava de lembrar, apósMichelet a história sofre de uma considerável perda de vigor, deum encolhimento de seus horizontes. Mas é Roland Barthes quemcapta Michelet com sutileza, imaginação e argúcia: “Tudo para

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ele é enxaqueca... Este homem que deixou uma obra enciclopé-dica feita de um discurso ininterrupto de sessenta volumes de-clara-se a todo momento “ofuscado, sofredor, fraco, vazio.“...Michelet tem enxaquecas históricas....Estar doente da histó-ria é não apenas constituir a história como um alimento, comoum veneno sagrado, mas também como um objeto possuído...”.

O historiador e o professor de história viverão seus dias deglória absoluta na França após a derrota de Sedan e a perda daAlsácia e da Lorena. Com a queda do Segundo Império e a pro-clamação da Terceira República, em 1870, não se tratava maisde construir uma nação através do livro de história, mas sim depreparar a juventude para a recuperação concreta desta nação.Esta será a tarefa dos professores de história nas últimas déca-das do século XIX até 1914. Nunca, nem antes e nem depois, oensino da história fora ou seria considerado a tal ponto impres-cindível e redentor.

Entre 1876 e 1896, Hippolyte Taine (1828 - 1893), críticoliterário, filósofo e historiador, havia buscado as causas da guerrade 70 e da Comuna na obra As origens da França contemporâ-nea; aí adota seu método, feito à imagem das ciências naturais,baseado nos determinismos da raça, do meio geográfico e social,do momento da evolução histórica, que antes lhe havia servidopara explicar as manifestações artísticas, para agora explicar asituação da França.

No âmbito do grande público e da educação cívica, a divul-gação de uma idéia republicana de pátria, sagrada mas laica,histórica mas científica, será empreendida pelo historiador ErnestLavisse (1842 - 1922), autor de uma História da França, com-posta entre 1892 e 1911, e do manual Lavisse, lido por todas ascrianças francesas nas escolas públicas. Lavisse constrói umahistória linear da França, com base nas batalhas e na heroicidadedaqueles que sacrificaram sua vida pela pátria. O presente, aTerceira República, é considerado como o ápice da história fran-

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cesa e todos os períodos anteriores são considerados em relaçãocom o presente. A França aparece como um soldado de Deus, opaís de maior ação civilizatória de todos os tempos. Cabe aosprofessores de história, segundo Lavisse, a maior de todas asmissões, fazer com que cada um se projete nessa grandiosidade,inculcar uma adoração pela pátria que impulsionará os jovens àsua defesa e à retomada da Alsácia e da Lorena.

Até 1880, a disciplina histórica ainda não tinha total auto-nomia universitária, pois se ligava à filosofia ou às humanida-des literárias. São criadas então uma licença específica para oensino de história e um grande número de cátedras universitá-rias. O historiador é agora um profissional. Em 1890, CharlesSeignobos (1854 - 1942) é encarregado de um curso de pedago-gia das ciências históricas. Em 1898, é publicada a Introduçãoaos estudos históricos de Charles-Victor Langlois e Seignobos, omanual por excelência da história positivista.

A escola dita metódica ou positivista desenvolve-se na Fran-ça durante a III República. Seus princípios estão expostos nomanifesto de Gabriel Monod escrito para o lançamento de suaRevista histórica, em 1876, e no manual de Langlois e Seignobos.Encontrava-se na linha do cientificismo histórico de Taine e deFustel de Coulanges (1830 - 1889) para quem a história podiaser uma ciência, mas jamais uma filosofia da história. Para osmetódicos, a pesquisa histórica deveria ter um caráter científi-co, distante de qualquer especulação filosófica, visando a umaobjetividade absoluta, alheia ao meio social do historiador que aelabora; esta objetividade seria produto da aplicação de técnicasrigorosas no inventário das fontes, na crítica dos documentos,na organização dos trabalhos na profissão. Os historiadorespositivistas participam ativamente nas reformas do ensino su-perior, dirigem grandes coleções – História da França, de Lavisse,Povos e Civilizações, de L. Halphen e Ph. Sagnac, História geralde A. Rambaud, por exemplo –, ocupam cadeiras nas novas uni-

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versidades e elaboram os manuais para as escolas primária esecundária com galerias de heróis, seqüências de fatos e datas.

Langlois e Seignobos, visando a constituição de uma his-tória científica, descartam o providencialismo de Bossuet, asfilosofias da história de Hegel e Comte, a história-literatura deMichelet, o progressismo racionalista e o finalismo marxista. Ahistória seria apenas “o trabalho de documentos”, atrás dos quaiso historiador se apaga; estes documentos seriam limitados ape-nas aos escritos voluntários – cartas, decretos, correspondên-cias, manuscritos diversos; para a escola metódica não são con-siderados documentos, por exemplo, os sítios arqueológicos outestemunhos involuntários, como manuais de confissão, can-ções etc. O historiador primeiro deve fazer um inventário domaterial disponível – “heurística”–, salvar, registrar e classificaresse material e passar à crítica externa, de erudição, do docu-mento. Esta consiste em encontrar a fonte do documento, des-cobrir sua autenticidade pela paleografia, enumerar seus pon-tos principais – nomes, datas, lugares – fazer uma ficha de tudoe passar à crítica interna; retomar as informações da crítica deerudição, fazer a análise do conteúdo e a crítica positiva da in-terpretação para ter certeza do que o autor quiz dizer. Analisaras condições nas quais o documento é produzido e fazer a críti-ca negativa para controlar os dizeres do autor. Esta parte dehermenêutica recorre à lingüística, para determinar o valor depalavras e frases. Feito isso, é necessário comparar com outrosdocumentos da época para estabelecer um fato particular,reagrupar fatos isolados em quadros gerais – sociais, institucio-nais – e, finalmente, por dedução ou analogia, ligar os fatos en-tre si e preencher as lacunas da documentação levando o histo-riador a arriscar algumas generalizações ou interpretações, semque, no entanto, ele se iluda de que está desvendando algummistério, “a história será constituída....quando todos os docu-mentos forem descobertos, purificados e colocados em ordem.”

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Diante de trabalho tão complexo, o manual de Langlois eSeignobos sugere que deva haver eruditos de um lado, e do ou-tro, jovens pesquisadores com pesquisas modestas, escrevendopequenas monografias, sob a tutela dos grandes professoresuniversitários que analisam essas monografias e, cientificamente,por meio delas constroem teses gerais. Os professores devemser especialistas num deteminado assunto e assumirem capítu-los concernentes às suas especializações nas grandes obras dehistória universal, do país etc. Estava instaurado o regime uni-versitário da cátedra.

Apesar de este ter sido o modelo histórico predominantena França até 1930, sua origem não é francesa. A tentativa deaniquilamento das filosofias da história originou-se na Alema-nha, em meados do século XIX, como uma contra-posição aoromantismo e ao idealismo de Hegel.

Nas primeiras décadas do século XIX, o romantismo ale-mão confundiu-se com o nacionalismo e a luta política pelaunificação. O filósofo Herder (1744 - 1803) ao dizer que “todaperfeição humana é nacional, secular, e estritamente conside-rada, individual”, fundia as noções de pátria, história e indiví-duo; para ele tudo o que existe era produto do clima, das cir-cunstâncias temporais aliadas a virtudes nacionais e seculares.Nas Idéias sobre a filosofia da história da humanidade (1784 -1791) postula que a história é um estudo dos tipos de civiliza-ções humanas, de suas línguas, de suas culturas, de onde sedesprende a alma popular. Com este espírito são elaboradostrabalhos sobre a história do direito, por exemplo, como os deKarl Friedrich Eichhorn (1781 - 1854), que considera o direitocomo uma emanação popular, e os de Friedrich Karl Savigny,que também via no gênio nacional alemão as origens do direito.

A busca de um passado comum que justifique a supera-ção dos particularismos políticos é intensa na Alemanha; erudi-

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tos concentram seu saber em dicionários especializados; naPrússia, em 1819, o Barão von Stein, ministro de FredericoGuilherme III, funda em Frankfurt uma sociedade de estudosalemães antigos; a série dos Monumenta, reunindo as fontesalemãs entre 500 e 1500, é publicada a partir de 1826.

A história é também um terreno de especulação para osfilósofos. As primeiras reflexões de Hegel (1770 - 1831), ao assu-mir a cátedra de filosofia em Berlim, substituindo Fichte, em1818, foram sobre o espírito do judaísmo e do cristianismo. Ape-sar de acreditar no poder da razão, é também um homem de fé,e seu sistema visa a permitir que todo o Universo seja pensado.Hegel pretendia forjar novos conceitos aptos a traduzirem a vidahistórica do homem e sua existência num povo ou numa histó-ria. Este será o tema da Fenomenologia do Espírito (1807), quedescreve a história da consciência desde o “aqui e agora” até osaber absoluto; considera que o problema fundamental é o darealização da humanidade em nós e da humanidade na histó-ria. A história expressaria o movimento do espírito, dado que omundo seria um espelho do espírito. Menos individualista queos românticos, acredita que o indivíduo se funde inteiramenteno espírito do universo. Retoma o providencialismo cristão edescarta o acaso, postula que no desenvolvimento histórico e doespírito haveria sempre um progresso; neste sentido, o presenteseria sempre o objeto da história. Esta história no entanto seriaracional, pois a razão governa o mundo, e a dialética seria a“alma motriz da história”. A história universal representaria oprogresso na “consciência de liberdade”; assim, teria inícios nooriente, passava pelos gregos e romanos e terminava com ospovos germânicos-cristãos. O Estado aparecia no centro destahistória universal em que a razão tiraria partido do instinto co-letivo para fazer avançar a humanidade nos caminhos da perfei-ção. Protegido da monarquia prussiana, considera o Estado oobjetivo final absoluto, a realização da liberdade.

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Estas teorias Hegel aplicaria em suas obras históricas, comoa História da filosofia. Pela primeira vez, construia-se uma his-tória da filosofia baseada numa conexão entre os diferentes sis-temas e não somente em vidas dos filósofos. Hegel retoma paraa filosofia o projeto de Winckelmann (1717 - 1768) para a histó-ria da arte, baseado no estudo dos estilos e não dos artistas. Aohistoriador da filosofia não caberia julgar, mas compreender ejustificar cada um dos sistemas, os mais diversos. A refutaçãode um sistema por outro seria própria ao desenvolvimento dafilosofia: “O desenvolvimento da árvore é a refutação da semen-te, a flor refuta as folhas mostrando que não são a existênciasuprema e verdadeira da árvore. A flor acaba sendo refutadapelo fruto, mas este não poderia ter chegado a existir sem asetapas precedentes.”. Tese, antítese, síntese. Em história políti-ca: no fim da república romana, César, ambicioso, toma o poder(tese); seus inimigos, ambiciosos, lutam contra César (antítese);César triunfa e se impõe como único governante (síntese), cor-respondendo assim às circunstâncias históricas.

O idealismo absoluto de Hegel não distingue o sujeito doobjeto, o ser do conhecer. Nas Lições sobre a filosofia da históriadiz que “o espírito tem em si mesmo o seu centro; não existeunidade fora dele, mas ele a encontra, ele é em si e consigo...Oespírito sabe-se a si mesmo; ele é o julgamento de sua próprianatureza; ele é também a atividade pela qual volta a si, se pro-duz assim, se faz o que é em si. Segundo esta definição, pode-mos dizer que a história universal é a representação do espíritoem seu esforço para adquirir o saber daquilo que é.” História doespírito e do universo são a mesma coisa. A integração da di-mensão do tempo como categoria de inteligibilidade feita porHegel é uma manifestação da importância assumida pela histó-ria no século XIX. Hegel formou vários historiadores idealistascomo Baur (1792 - 1860) e Zeller (1814 - 1908), além de ter sidointelectual que estimulou amplos setores da juventude, “os jo-vens hegelianos”, entre os quais aquele que mais se debruçousobre seu pensamento, Karl Marx.

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O romantismo alemão, entretanto, baseava-se na utopialibertária, bebendo no messianismo judaico os elementos ques-tionadores tanto do individualismo como da articulação dos in-divíduos na idéia de nação. Evidentemente, a configuração his-tórico-cultural da formação da Europa Central e a ausência deprojeto de unificação alemã, que só será realizado no final doséculo XIX, permitiu que ali se constituísse um outro paradig-ma mais anarquizante especialmente com Martim Buber, FranzRosenzweig, Gershon Scholem ou Leo Lowenthal. A aspiraçãodo grupo a uma organização nacional judaica os afasta do na-cionalismo político. Leo Loventhal, por exemplo, considera omarxismo demasiadamente articulado com a sociedade indus-trial. A cultura judeo-alemã aparece com Heine e Marx, Freud eKafka, Ernest Bloch e Walter Benjamin. Um pouco esquecidaespecialmente depois da maré nazista, sobreviveu apenas noexílio, como uma cultura da diáspora, e seus últimos represen-tantes Marcuse, Erick Fromm, Ernest Bloch, Georg Lukács aca-bam de se extinguir, não sem deixar profundas marcas na ciên-cia, literatura ou filosofia do século XX. Unidos pela idéia polis-sênica que significa redenção, restituição, reparação, restabele-cimento da harmonia perdida, estes pensadores contraditoria-mente vivem com orgulho esse sincretismo (Landauer) ou pelodilaceramento (Kafka), negando as origens alemãs (Scholem) oua identidade judaica (Lukács).

Em contrapatida ao hegelianismo e ao romantismo, Leopoldvon Ranke (1795 - 1886) nega as filosofias da história “especu-lativas”, “subjetivas” e “moralizadoras” em prol de fórmulas “ci-entíficas”, “objetivas” ou “positivas”. Para ele o historiador nãodeve “julgar o passado nem instruir seus contemporâneos, massimplesmente dar conta do que se passou”; não haveria qual-quer relação entre o sujeito – o historiador – e seu objeto – o fatohistórico; o historiador escapa a qualquer tipo de condiciona-mento social, portanto é absolutamente imparcial; a históriaexiste em si, independente de quem a estuda; o historiador deve

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registrar os fato passivamente, como um espelho reflete umaimagem; ao historiador cabe apenas reunir os fatos, baseadosem inúmeros documentos e a narrativa histórica deve então seorganizar a partir destes fatos; toda e qualquer reflexão é inútile prejudicial. Só assim pode-se chegar ao conhecimento da ver-dade.

Ranke pertence a uma família de pastores alemães protes-tantes, estudou teologia, gramática e filologia na Universidadede Leipzig e busca uma utilidade para esta ciência fora da anti-güidade, onde havia uma grande massa de estudantes; volta-seentão para a história moderna. Entre 1816 e 1825, torna-seprofessor de história em Frankfurt-sobre-o Oder; trabalha mui-to nesse período lendo os historiadores italianos e os autores dofim da Idade Média, desviando-se um pouco dos autores latinose principalmente de Tucídides, a quem muito admirava. Em 1824,escreve sua primeira obra, sobre os povos romanos e germânicos,onde já se atém à sua fórmula de apenas narrar os fatos. Apesardisso insiste sobre a influência de Deus sobre a história e acontinuidade das duas nações que estuda. Ranke decide nestaépoca estudar história moderna, um dos períodos que ilustrariaa vontade de Deus sobre os grandes acontecimentos. Para ele,que por pouco não se tornara pastor, a história era uma manei-ra de se conhecer Deus. Publicado, seu livro desperta interesseno meio universitário. Ranke é convidado a lecionar na recém-fundada universidade de Berlim. Guilherme de Humboldt dese-java então transformá-la no maior centro cultural da Alema-nha; nela trabalhavam Niebuhr, Schleiermacher, Fichte, Savigny,Bockel, todos a serviço da Prússia e de uma Alemanha nova. Jácomo professor, Ranke decide continuar suas pesquisas sobre oséculo XVI italiano e parte para Viena, onde havia uma infinida-de de documentos venezianos. Desse período resultam a Histó-ria do papado – onde destaca a importância das nações depoisda queda de Roma e a impotência da Igreja a impor seus sonhosde soberania nacional – e a História da revolução sérvia – em que

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demonstra a comunidade de civilizações que une os povos ro-manos e germânicos em oposição ao destino histórico dos eslavosoprimidos pelo sistema imperial oriental, incapazes de afastaros muçulmanos e de conseguir uma independência nacional. Apartir de 1828, passa três anos na Itália, onde percebe que suavocação de historiador é um mandato de Deus. A revolução de30 o faz voltar à Alemanha. Em Berlim inicia a publicação doHistorische Politische Zeitschrift – jornal de história política, emque explica a história européia contemporânea e a verdade dasteses prussianas. Continua a pensar na ordem divina presidin-do a sucessão de épocas e de nações dominantes; mas não vêcomo Hegel um progresso nesta sucessão, mas sim uma conti-nuidade cristã, que soube encampar a riqueza da antigüidade.Prosseguiu como professor da universidade de Berlim e comopesquisador e autor de livros até o fim da vida. Encara a vitóriada Prússia sobre a França em 1870 como uma corroboração desua tese sobre a ascensão e queda das nações. Morre em Berlim,em 1886. Em 1865 havia recebido um título de nobreza por seutrabalho como historiador. Ranke é um exemplo da penetraçãodo cientificismo na história, mas sem resultados concretos; suaimparcialidade apenas desnuda a enlevo da burguesia diantedo que considerava progresso, ao mesmo tempo em que man-tém firme uma tradição da história política, factual, religiosa-mente providencial, e, sobretudo, voltada para a defesa das te-ses do governo vigente. Por outro lado, representa o historiadorjá inserido num quadro universitário. Seus discípulos ocupa-ram todas as mais importantes catédras de história na Alema-nha.

Entre seus alunos, um se tornaria mais famoso do que opróprio Ranke. É Jacob Burckhardt (1818 - 1897), autor daCivilização do renascimento na Itália (1860), obra marcante naafirmação autônoma da história da cultura. Com um fundohegeliano e sua admiração incontida pelo classicismo,Burckhardt tenta captar o renascimento em sua individualida-

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de, fazendo dele uma época de ouro forjadora do futuro, emborasó visse decadência no século XIX.

Na Inglaterra, as revoluções industrial e francesa dão mar-gem a uma historiografia romântica, conservadora, anti-industrialista, anti-iluminista e anti- francesa, exemplificada nasobras de homens políticos como Edmund Burke (1729 - 1797)Reflexões sobre a Revolução na França (1790), Thomas Carlyle(1795 - 1881), História da Revolução Francesa (1837) e Heróis eculto dos heróis (1841), onde insiste sobre o papel dos gênios nahistória, opondo-se ao utilitarismo e ao materialismo, e ThomasMacaulay, História da Inglaterra a partir de James II (1849 -1861). Macaulay, muito popular em sua época, formula suasconsiderações a partir do presente e procura provar que a salva-ção da Inglaterra nunca esteve na revolução ou no despotismo,mas sim num governo parlamentar liberal.

Ranke, Macaulay, Michelet, e na geração seguinte Lavisse,cada um dentro da especificidade de seu país de origem e de seumomento, respondem a um imperativo de compreensão dasmudanças do presente que torna o especialista em pensar ahistória em um elemento ativo dentro da sociedade. A acelera-ção do tempo provocada pelas Revoluções – americana, france-sa, industrial – e também pela penetração da máquina e dasproduções derivadas das ciências no cotidiano abria caminhopara que fossem pensados métodos de análise do passado, im-pregnados de paixão política e cientificismo. Embora aparente-mente contraditórios, tanto a paixão como o cientificismo con-vergiram para a escrita de uma história política, mítica, rechea-da de fatos, batalhas e grandes nomes.

A MODERNIDADE

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“Nada é mais real do que nada.”

Samuel Beckett

A grande revolução para o historiador contemporâneo vemda Alemanha, quando Karl Marx escreve um manifesto que ga-nha dimensões de uma bomba. A história e a luta de classes. Nomanifesto de 1848, e nos Manuscritos estabelece-se um novorumo para a história e os historiadores. A partir de noções aber-tas como formação econômico-social, consciência de classe, modode produção, reinstaura-se um campo de debates com conse-qüências de longo prazo. A Dialética da Natureza de Hegel ésubstituída pela constituição da noção de necessidade especial-mente a partir das análises da escassez e da abundância. Osestudos sobre economia política permitem encontrar o sentidodos interesses restritos dos economistas clássicos, quedebruçados sobre conceitos de preço e lucro justificam as no-ções de valor agregados apenas ao capital, mas não extraídos dotrabalho. Marx reorganiza o pensamento de David Ricardo so-bre o valor de uso e o valor de troca e nele insere o valor dotrabalho não pago, extraído do trabalhador na medida em quese define o salário pela média do tempo gasto socialmente na

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produção de uma mercadoria. Em A Ideologia Alemã, dialogatanto com os jovens hegelianos, como com os socialistas român-ticos ou utópicos que propunham uma alteração moral na rela-ção entre os proprietários e os trabalhadores. Dedica-se a en-tender a sociedade da necessidade e projeta como devir o reinoda liberdade, onde não haveria estado nem classes sociais. EmGrundisses recupera dimensões cotidianas das experiênciashumanas e desenvolve com muita precisão o método hipotéticoanalítico. Exercício primoroso é realizado em 18 Brumário, ondeestuda os conflitos entre as classes sociais na França de 1848 eo golpe de Luiz Bonaparte. Estabelece um combate aberto con-tra o idealismo e termina por destacar com muita força o papelda economia no desenvolvimento da história humana. Sua obramais citada, O Capital, foi organizada a partir de estudos esparsosem três volumes, por Karl Kautisky. Evidentemente a ordemestabelecida aos estudos permite um bom entendimento do sis-tema capitalista em seus três tempos: produção, circulação erealização do valor, ou seja, o processo de acumulação. Os se-guidores, nomeados marxistas, foram inicialmente os economis-tas entusiasmados com as possibilidades de mensuração aber-tas pela crítica da economia política. A contribuição mais signi-ficativa, entretanto, refere-se à luta de classes e ao sentido dapráxis revolucionária. No desenvolvimento do capitalismo o ho-mem perde o sentido do trabalho enquanto criação, o trabalhoparcelar aliena e compartimenta o trabalhador à lógica da pro-dução. A mercadoria se humaniza e o homem é coisificado. Aclasse que se forma nesse processo é o proletariado, que paralibertar-se deve se apropriar daquilo que é tomado pelo capita-lista libertando-se a si e a sociedade como um todo. Recupera-se a noção de revolução constituída pela burguesia e inclui-se osentido de superação. Este novo modo de pensar a história es-palha-se como um fio de pólvora e os debates em torno da revo-lução ampliam-se para toda a Europa.

A primeira guerra mundial, de 1914 a 1918, seria um fatordecisivo na mudança de rumo da construção da história. Após a

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carnificina perpetrada pelas nações envolvidas no conflito mun-dial, mesmo tendo sido realizada a expansão dos impérios colo-niais britânicos e franceses ficava impossível cultuar os mitosda sacralidade do Estado nação, do herói nacional, da missãocivilizadora do ocidente contra os bárbaros, da história-batalha,do progresso. Os funcionalistas e liberais norte-americanos ade-riram prontamente aos postulados do presentismo, especialmen-te J.H.Robinson em A nova História publicado em 1912 em NovaYork e H.E.Burns em História e Escritos Históricos de 1937. Atendência relativista se espraia com maior vigor depois da se-gunda guerra mundial, especialmente no combate aos postula-dos do pensamento marxista e na relativização das lutas que seabriram entre as classes naquele período.

A oposição ao relativismo será concebida na idéia de que oconhecimento histórico se constitui por determinações sociaisque lhe atribuem um caráter de classe.

Marx ao questionar a dialética hegeliana define a Históriacomo luta entre as classes sociais, e especifica os interesses declasse como elemento central no entendimento dos conflitos so-ciais, dando ao presentismo outras centralidades móveis e arti-culadas não no sentido do relativismo niilista, mas como ele-mentos norteadores da reflexão no entendimento das estrutu-ras sociais, das desigualdades e das diferenças existentes entreos donos dos meios de produção e dos que, desprovidos dessesníveis de propriedade, tornaram-se vendedores de sua força detrabalho.

O problema da verdade passa a ser explicado de mododistinto do universo da idéias, encaminhando-se para a desco-berta dos conflitos mediados por necessidades subjetivas e ob-jetivas das relações entre o ser e o existir.

Deve-se ainda perguntar se o político e o estatal contêm averdade dessa realidade, ou seja, a História? O pensamento

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marxista considera que a verdade do político encontra-se nosocial e que apenas as relações sociais permitem compreender eexplicar as formas políticas. Na medida em que elas se consti-tuem como relações vivas e ativas, possuem uma base material,ou seja, os meios de trabalho e sua organização e se desenvol-vem por meio de técnicas e da divisão social do trabalho. Conhe-cê-las e desvender o seu significado pressupõe a apreensão doreal e a quebra tanto do relativismo como das verdades indivi-duais. Para Marx a única possibilidade de apreensão do real sedá pela práxis, ou seja, pela prática social na medida em queesta só é compreensível se forem articulados os conhecimentosteórico/filosóficos com a crítica radical da prática social. Essateoria dialética da realidade e da verdade não pode separar-sede uma prática. Teoria e prática em uma noção essencial nopensamento de Marx, qual seja, a superação. Deste modo, oconceito de superação em Marx comporta uma crítica da sínte-se hegeliana acabada, na qual o movimento dialético, o tempohistórico, a ação prática se desmentem a si mesmos. Deste modo,a religião deve e pode ser vencida. Ela já o é na filosofia e pelafilosofia. A superação da religião consiste em seu desapareci-mento.

Em que consiste para Marx a superação da Filosofia? Eladifere da superação da religião pois é mais complexa. Desa-parece o lado especulativo, sistemático e abstrato, deixando oespírito da crítica radical, o pensamento dialético, os conceitos eabrindo a um projeto de ser humano integral, que deve ser rea-propriação da integralidade do humano enquanto razão, senti-do e obra, e superação do homem coisificado pela divisão socialdo trabalho que alienou o homem criador que pode ser reencon-trado. A superação da filosofia compreende, pois, sua realiza-ção, ao mesmo tempo que o fim da alienação filosófica.

Para Marx, o homem deve também empreender a supera-ção do político. Ela comporta a superação do Estado, e a transfe-

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rência para as relações sociais organizadas das funções por eleaçambarcadas. Mais precisamente, afirma Henri Lefebvre na So-ciologia de Marx, a democracia contém o segredo da verdade detodas as formas políticas, elas desembocam na democracia, masa democracia só vive senão lutando para manter-se e superando-se em direção a uma sociedade liberta do Estado e da alienaçãopolítica. Para Marx, o rompimento com a alienação política per-mite a recuperação da racionalidade imanente às relações sociaisem razão dos conflitos, substituindo a coerção que o Estado exer-ce sobre os homens. A gestão social das coisas são centrais nasuperação do conceito hegeliano do Estado.

No período inicial deste século, os pensadores marxistasenrijeceram a dialética propugnada por Marx e desenvolveramanálises macroestruturais da economia e da demografiaredefinindo o sentido materialista desses pressupostos. O grupode Ernest Labrousse na França criou uma escola econométricade grande importância, mas que paulatinamente foi sendo assi-milada pelos supostos positivistas e pelas análises estruturali-zantes.

Ao longo da segunda metade deste século o esgotamentodas formas estruturais foi sendo sentida como dilema da inves-tigação histórico-social e também do enrijecimento estatista dapolítica definida para o bloco soviético no pós-guerra. Em am-bos os casos, os historiadores se debruçaram em busca dassubjetividades, e procuraram reencontrar os desafios postula-dos no século XIX e desviados pelos conflitos e interesses doséculo XX.

No que se refere ao entendimento da religião, esta passa aser decodificada como alienação inicial e fundamental do serhumano, raiz de toda a alienação. Ela mostra a gênese do pen-samento filosófico que se desenvolve como já foi apontado nestetexto, no terreno das lutas sociais, travando com elas violentasbatalhas nem sempre vitoriosas e se redefinindo num campo

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específico. Deve-se perguntar, deste modo, onde se encontra averdade da filosofia? As idéias filosóficas, ou melhor, as repre-sentações (do mundo, da sociedade, do homem individual), ela-boradas pelos filósofos, sempre mantiveram certa relação comos combates da vida política, ou porque os filósofos se manifes-taram contra os senhores do momento, ou porque lhes dispen-sam seus apoios. A razão humana, nos dizeres de Henri Lefebvre,se manifesta por dois caminhos contraditórios e inseparáveis: arazão de Estado (a lei, sua capacidade organizativa) e a razãofilosófica (o discurso, a lógica e a coerência). O hegelianismopretendeu ser o sistema filosófico perfeito dessa díade. A críticaradical desse sistema fez com que ele explodisse retirando-lhe ométodo (Lógica e dialética), e os conceitos (totalidade, negatividadee alienação). Em meio aos acontecimentos da guerra, na Rússiarealizavam-se duas revoluções inesperadas: a de fevereiro,dirigida pelas facções burguesas anti-aristocráticas e a de outu-bro, cuja direção introduziu na cena histórica o partido proletá-rio revolucionário. Na europa central e oriental desenrolavam-se acontecimentos que encontrariam eco posterior no ocidente.Os socialistas alemães sofrem um duro golpe, especialmente aLiga Spartakista, e os Bolcheviques passam a governar um grandepaís – a Rússia.

No ocidente, as primeiras inquietações frente à históriapositivista começam a manifestar-se antes mesmo da guerra.Em 1903, François Simiand (1873-1935), discípulo de Durkheime entusiasta da estatística como técnica de estudo das ciênciassociais, denuncia na história positivista sua tendência a exage-rar a importância dos fatos, do individualismo dos heróis e dacronologia, ao se perder na busca das origens. Para outros, ahistória econômica parecia ser uma opção à exaltação do políti-co; esta tendência toma forma nos trabalhos de Henri Hauser,que inaugura a cadeira de história econômica na Sorbonne, HenriSée e na tese de Paul Mantoux (1906) sobre a revolução indus-trial no século XVIII. O socialismo francês da época, misturando

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várias tendências, do marxismo ao “populismo” de Michelet, atra-vés da História socialista da revolução francesa, dirigida porJaurès (1859 - 1914), aponta para novos caminhos. Da mesmaforma, a reabilitação de Robespierre feita por Albert Mathiez (1874- 1932) surge como uma versão diversa da história republicanadantonista.

Na Alemanha, Oswald Spengler (1880 - 1936), que tiverauma formação mais científica do que humanista, inicia antes daguerra um Esboço de uma morfologia da história universal; pu-blicado em 1918, no momento da derrota alemã, com o título Odeclínio do Ocidente, obtém um enorme sucesso, com mais de100.000 exemplares vendidos. Spengler, que até 1933 flertoucom os nazistas, atribui um caráter nitidamente pessimista aopresente e formula uma teoria das catástrofes. Ao mito do pro-gresso, opõe uma concepção cíclica da história, comparandocada cultura a um todo orgânico, a uma entidade homogênea,com nascimento, crescimento, maturidade e decadência; “oshomens são os escravos da vontade da história, os órgãos auxi-liares executivos de um destino orgânico”, “a humanidade é umagrandeza zoológica”. Ao contrário do pontilhismo positivista, Odeclínio representa uma orgia da síntese, em que culturas, obrasde artes, países, períodos, os mais diversos são comparados ejustapostos a cada página. Sobretudo, representa o sentimentode aniquilamento dos alemães do pós-guerra.

Na França, partir de 1920, a escola metódica, positivista, eseu discurso ideológico, que nada tem de imparcial como pro-clamava, começa a ser atacada sistematicamente em várias fren-tes. Seus integrantes, Seignobos, Louis Halphen, Ph. Sagnac eoutros herdeiros de Lavisse, que ocupam postos importantesnas universidades, são contestados primeiro pelos integrantesda Revue de Synthèse de Henri Beer; nos anos 30, pelos inte-grantes da revista Annales d’histoire economique et sociale, fun-dada em 1929 por Lucien Febvre (1878 - 1956) e Marc Bloch

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(1886 - 1944), que ensinavam na Universidade de Strasburgo.Febvre fizera seus estudos de história em Nancy e depois emParis, na Escola normal superior e na Sorbonne; Bloch, nascidonuma família burguesa judia, também passa pela Escola nor-mal superior e pela Sorbonne, indo depois para a Alemanha,onde estuda nas universidades de Leipzig e Berlim.

O fato de o historiador ser agora um profissional dentro deum quadro universitário permitirá a concepção de pressupostosmetodológicos derivados de uma discussão intelectual coletiva.As novas ciências humanas, a sociologia de Durkheim (1858 -1917), a geografia de Vidal de la Blache (1845 - 1918), a antro-pologia, a filologia, a lingüística, a economia, a psicologia, con-tribuem com seus aportes conceituais e metodológicos à discus-são histórica, provocando uma renovação sem precedentes nes-ta disciplina. Pela primeira vez, desde Heródoto, caía por terra atirania do político.

Febvre, Bloch e o grupo dos Annales condenam na histó-ria tradicional, por eles chamada historizante, que: a atençãodada somente a documentos escritos, voluntários, negligenci-ando os documentos não escritos – vestígios arqueológicos, sé-ries estatísticas – e os testemunhos involuntários que muito di-zem sobre as atividades humanas; a ênfase no fato, no fato sin-gular, num tempo curto – uma batalha, por exemplo –, ao invésde apreender a vida das sociedades, que se mostra por fenôme-nos comuns, repetitivos, e que se manifestam num tempo longo– a cultura do trigo, por exemplo; o privilégio atribuído pela his-tória historizante aos fatos políticos, diplomáticos, militares emdetrimento dos fatos econômicos, sociais e culturais; sendo ahistória “dos vencidos de 1870”, a história historizante é extre-mamente prudente, não se engaja em debates, não se arrisca ainterpretações e descarta qualquer tentativa de síntese.

A problemática do presente foi formulada de modoinstigador pelo italiano Benedetto Croce em 1919, com a publi-

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cação do ensaio A história reduzida ao conceito geral de arte.Descarta simultaneamente o sentido objetivista dos positivistase a possibilidade de um caráter descomprometido do historia-dor que não pode se referir ao passado senão motivado pelosdilemas do presente. Retomando os elementos constitutivos dopensamento de Dilthey e Simmel, Croce destaca dois níveis deintervenção do historiador: a intuição e o sentido individual.Procurando contudo definir a história como uma arte especial,uma vez que o artista retrata o possível e o historiador o querealmente aconteceu, polemiza com o sentido universal do co-nhecimento histórico e com as formas enciclopedistas de ar-mazenar de modo definitivo os conhecimentos sobre o passa-do. Collingwood em sua Idéia de História considera a proposi-ção presentista formulada pelo italiano, central no desenvol-vimento do ofício do historiador, por estabelecer a polêmicaentre o singular e o universal, chave na distinção entre históriae ciência.

Para Croce, a distinção entre a arte e a história está nopensamento. Ao conceber a arte como intenção pura e o pensa-mento como revelador do real, para além do possível, coloca otempo presente como engendrador dos enigmas a serem revela-dos pelo trabalho analítico do historiador e a projeção do devircomo enunciador do projeto a ser transformado em ação. NaLógica (1909) Croce demonstra com maior clareza sua oposiçãoaos positivistas quando discorre longamente sobre o juízo devalor, apontando ser ele singular e universal simultaneamente.Relaciona num todo a história e a filosofia, combatendo suaseparação em campos de conhecimento distintos, e, hierarqui-camente colocados. Trata de reordenar as polaridades entre ovivido e o concebido como níveis de apreensão do real a seremcapturados pela consciência. Considerando a história comoautoconhecimento do espírito vivo, atribui ao historiador a tare-fa de fazer vibrar os acontecimentos, ou seja, que seus registrose sentido estejam presentes no seu vivido.

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O presentismo de Croce inaugura orientações de novosprocedimentos no trabalho do historiador e do professor de his-tória e remete-os à busca do significado do presente e à formu-lação de problemas para tornar o conhecimento inteligível. Esti-mulado por essa dimensão o historiador passa a considerar astemporalidades históricas como objeto de reflexão e a epistemo-logia do história pôde ser definida e formulada. Os objetivos emétodos da investigação propugnados como objetividades cien-tíficas pelos positivistas sofrem clivagens de crítica e a idéia deinteresses do presente na recuperação do passado põe abaixo averacidade inquestionável dos acontecimentos. Introduzindo osubjetivismo relativista, Croce formula postulados gerais sobreo sentido transitório e mutável do conhecimento, uma vez queele atribui ao historiador o poder de criar uma imagem históricasob influência dos interesses e motivos atuais. Na Teoria da His-tória, ele se refere “à necessidade prática na qual todo o juízohistórico se baseia, e confere à história a propriedade do atualporque está sempre em relação – por mais longínquo que seja opassado a que se referem os fatos – com uma necessidade atual,uma situação atual...”

Defendendo o “espírito de partido”o historiador defronta-se diretamente com o problema dos juízos históricos. Collingwooddivulga estas idéias entre os anglo-saxões sendo duramente cri-ticado pelos marxistas. O presentismo de Croce é um marco nosdebates teóricos sobre a natureza da história e os fundamentosteóricos filosóficos deste campo do conhecimento.

Na Inglaterra, a história positivista também recebe golpes,de Arnold Toynbee (1889 - 1975) e dos “relativistas”, “presentis-tas”. Toynbee, cuja obra é célebre e conhecida do grande público,mas execrada pelos historiadores profissionais, decide durante aprimeira guerra ser um Tucídides dos tempos modernos, “comum pé no presente e outro no passado”. Rejeitando a historiogra-fia francesa, utiliza um método comparativo à la Spengler, base-

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ando-se em fontes de segunda mão. No Um estudo da história(1930 - 1950), as civilizações aparecem como entidades fechadas,amplas unidades históricas num longo tempo e num amplo es-paço, coexistindo e não em necessária sucessão. Assim, no sécu-lo XX, haveria cinco civilizações: o Ocidente, a União Soviética eseus satélites, o Islão, a Índia e o Extremo-Oriente. Toda civiliza-ção nasce de uma resposta a um desafio, geralmente de ordemnatural, passa depois a se desenvolver, pode fracassar ou não,ser estimulada por grandes homens, mas fatalmente entra emdecadência. Guy Bourdé e Hervé Martin, em As escolas históri-cas, vêem em Toynbee uma prefiguração do estruturalismo nasciências humanas. Mas, assim como Spengler, Toynbee e suateoria da decadência se afiguram sobretudo como uma respostaà desintegração do Império Britânico no século XX.

Os marxistas ingleses vivenciaram de modo diferente a teo-ria das classes e a concepção de história. Matrizados pela tradi-ção empírico-prática, debruçaram-se sempre sobre as experiên-cias, sobre os marginais, e produziram reflexões históricas –tanto na academia, como fora dela – originais e instigantes. Cris-topher Hill, George Rudé, Perry Anderson, seu irmão Benedict eEdward Thompson são exemplos de uma fértil historiografiamarxista que não se submeteu aos modelos estruturais nem aopresentismo desprovido de bases histórico-empíricas.

Os “presentistas” ingleses, nos anos 30 e 40, contestam ospressupostos de Ranke para a história, apontam o cientificismocomo uma escolha ideológica. Acreditam que o historiador temsempre uma atitude ativa, construtiva, jamais passiva comoqueria Ranke. Charles Oman, em 1939, afirma em seu livro Sobrea escrita da história, que a história jamais pode ser puramenteobjetiva, por ser a maneira como o historiador apreende e rela-ciona uma série de acontecimentos. Em 1935, Carl Becker afir-ma que cada século reinterpreta o passado da maneira quemelhor lhe convém; que cada geração projeta na história suaspróprias visões.

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O grande teórico idealista, contrário ao positivismo, da es-cola inglesa é R.G. Collingwood. Suas visões da filosofia e histó-ria, bem como o interesse pela estética e pelo idealismo hegeliano,fazem com que freqüentemente seja comparado a BenedettoCroce (1866 - 1952). Em A idéia da história (1946), um ensaio defilosofia da história, Collingwood ressalta que o historiador des-creve o passado em função do presente, através de uma escolhadeliberada dos fatos; que o pensamento histórico é uma ativida-de da imaginação, um testemunho, válido num certo momentoe se transforma quando mudam os métodos históricos e os en-foques: “S. Agostinho olhava para a história romana sob o pontode vista de um cristão primitivo; Tillemont sob o ponto de vistade um francês do século XVII; Gibbon sob o ponto de vista deum inglês do século XVIII; Mommsen sob o ponto de vista de umalemão do século XIX. Não há sentido em perguntar qual é oponto de visto correto. Cada um dos pontos de vista é o únicopossível para o homem que o adotou”. Apesar de relativista,Collingwood não é absolutamente cético, considerando que ohistoriador produz um tipo de conhecimento tão válido como odas ciências naturais. “A história, como a teologia ou a ciêncianatural, é uma forma especial de pensamento”, cujo objeto sãoas ações humanas no passado, que são interpretadas com baseem documentos variados, tendo por finalidade o auto-conheci-mento humano.

Estas buscas de rompimento com o positivismo, seja atra-vés do idealismo ou de uma abertura às outras ciências huma-nas, não significa o desaparecimento total da história política tra-dicional. Mas, é sobretudo na França que a definição de novosrumos para a história foi decisiva na produção historiográfica devárias gerações, com enorme influência inclusive no Brasil.

O grupo dos Annales de Febvre e Bloch desde os primeirostempos pretende construir uma história total, orgânica, onde asestruturas prevaleçam sobre os fatos, embora estes não desa-

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pareçam; dá atenção às evoluções mais lentas e significativas enão somente ao tempo curto dos fatos fechados em si; abre umenorme campo de conhecimento ao articular as bases econômi-cas, os quadros sociais, com as sensibilidades, as diferentes ma-neiras de pensar e ver o mundo, a dimensão psicológica do serhumano. Profundamente sensível ao histórico, à mudança, ogrupo dos Annales descarta os mitos da natureza humana imu-tável, do eterno retorno, das origens e seus anacronismos. Ex-plora a história espiritual, religiosa e cultural de maneira inova-dora. Duas obras magistrais que concretizam esse novo espíritosão Os reis taumaturgos (1923) de Marc Bloch, uma análise dadimensão sobrenatural atribuída ao poder real e O problema daincredulidade no século XVI – a religião de Rabelais (1942) deLucien Febvre, onde um anacronismo atribui o sentido de incré-dulo, livre pensador e racionalista a Rabelais.

Para Bloch, a história não é a ciência do passado; seu ob-jeto são os homens. É o que proclama no texto que escreve em1941, mais tarde publicado sob o título Apologia para a históriaou O trabalho do historiador. “O bom historiador se parece com oogro da lenda. Onde sente o cheiro de carne humana, sabe quelá está sua presa.” A história é uma ciência dos homens no tem-po. “A atmosfera onde seu pensamento respira naturalmente éa categoria da duração.” Este tempo, para Bloch é tanto contí-nuo, como mudança perpétua. “O homem também mudou mui-to: em seu espírito e, sem dúvida, até nos mais delicados meca-nismos de seu corpo. Sua atmosfera mental transformou-se pro-fundamente; sua higiene, sua alimentação, igualmente.” Diantedisso, a história deve ser feita através de uma multiplicidade dedocumentos e de técnicas, tendo em vista a complexidade dosfatos humanos; para Bloch desaparece a noção de ciências au-xiliares da história, dado que não deveria haver especializações,mas uma exploração global em todos os campos – etnologia,lingüística, folclore etc. Por isso insiste em dizer que o historia-dor deve ter uma formação sólida e ao mesmo tempo variada.

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A ignorância do tempo passado comprometeria não só oconhecimento do presente, mas inclusive a ação no presente,diz Bloch. A história não é um trabalho somente de erudição,feito a quatro paredes. Afirma que os historiadores devem seencontrar em congressos, trocar experiências, estabelecer quaisseriam os problemas dominantes de sua época, serem atuais,ancorados no presente. No entanto, não cabe ao historiador jul-gar, mas compreender com ética. A história deve ser verdade e ohistoriador deve ser aquele que busca o verdadeiro e o justo,dentro do tempo.

Também nos anos 30, na França, toma forma uma obrade história econômica, próxima em alguns aspectos, mas nãototalmente inserida na corrente dos Annales. Esboço do movi-mento dos preços e das rendas na França no século XVIII (1933)e Crise da economia francesa no fim do antigo regime e no inícioda Revolução (1944) de Ernest Labrousse abrem o caminho dahistória quantitativa, que reconstitui séries e médias represen-tativas da evolução econômica e social, os ritmos da conjunturana produção e no comércio, no trabalho e no nível de vida. Atra-vés do fato econômico era atribuída uma nova coerência à histó-ria colonial.

Naquele período pode-se encontrar fenômenos equivalen-tes na historigrafia latino-americana, mais especialmente noMéxico, Argentina, Peru e Brasil. Ao longo da primeira grandeguerra, o tema fundamental é o da civilização contra a barbárie.A Europa projeta sobre o mundo uma noção eurocêntrica, espe-cialmente no rechaço da língua, costumes, valores religiosos,raça e forma de governo. Na América Latina Sarmiento escreveFacunto, cuja mensagem central é a defesa da idéia de uma raçasuperior no novo continente, destinada a se projetar sobre oplaneta. A Raça Cósmica formada pelo melhor de todas as raçasexistentes, simbiose de aperfeiçoamento obtido pelos mais dife-rentes contributos no paraíso tropical. Oliveira Vianna, na se-

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qüência de Nina Rodrigues e de Oliveira Lima também insistena idéia de uma raça a ser constituída a partir de integraçãonacional, de imigração européia e mesmo de educação controla-da pelo estado. Assim, aos professores de história e aos historia-dores cabe o desenvolvimento do senso de ordem, do valor dotrabalho, das generosidades do estado e mesmo da restauraçãoda noção de paraíso tropical.

Na década de 1930 dois trabalhos destacam-se na críticaao positivismo de base racial: Casa Grande e Senzala de Gilber-to Freyre, que introduz um sentido sociológico para o contributodo negro na formação cultural brasileira e mesmo no desenvol-vimento do patriarcalismo e do paternalismo; e Sérgio Buarquede Holanda que realiza um magistral trabalho de síntese da idéiade Brasil no ensaio Raízes do Brasil. Trata-se de um texto queanalisa o caráter isolacionista e individual da colonização doBrasil, responsável pela organização do patriarcado rural, pelasrelações de compadrio e de favor e de fato pelo que considerouser a síndrome do homem cordial. Já na década de 1940, CaioPrado Junior desenvolve um amplo processo de pesquisa orien-tado pela teoria de Marx e através do materialismo dialético pro-cura encontrar o “Sentido da colonização” especialmente criti-cando a teoria dos ciclos econômicos, dos determinismos ra-ciais e geográficos demonstrando a complexidade da recupera-ção histórica de um país marcado por rupturas superficiais,quase invisíveis, de uma história que se move lentamente. For-mação do Brasil Contemporâneo, História Econômica do Brasil ea Revolução Brasileira são marcos fundamentais nessa trajetó-ria. Ainda entre os historiadores marxistas deve-se destacar oesforço teórico de Fernando Novaes no entendimento do caráterexógeno das determinações econômicas e sociais no Brasil comseu trabalho Portugal e Brasil no comércio do Atlântico e JacobGorender O Escravismo Colonial. Já contrariando os estudosestruturalizantes, Emilia Viotti escreve Da Senzala à Colônia e

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Da Monarquia à República – Momentos Decisivos. Em Novaes eViotti, o empirismo é o eixo central de comprovação ou negaçãoda historiografia estruturalizante do período. Finalmente, nosares da nova história, Maria Odila Leite da Silva Dias e CarlosGuilherme Mota recuperam, cada um com procedimento dife-renciado do outro, o cotidiano e a cultura brasileiros.

Destaque deve ser feito no Peru, ao volume entitulado Sieteensaios de interpretación de la realida peruana de Jose CarlosMariátegui. Este escritor genial, que morreu aos vinte e seis anos,iniciara estudos sobre o pensamento de Marx e com ele desen-volvia um profundo processo analítico sobre a formação socialperuana retomando as análises sobre o império incaico e delederivando pesquisas sobre o campesinato do país para desco-brir o sentido histórico das unidades produtivas socializantesna tradição daqueles grupos, o que para o autor demandava umprocesso orgânico dos revolucionários em consonância com amística andina. Assim, ainda na década de 1930, reúne utopiae religiosidade que são para o autor elementos de expressão darebeldia do povo andino. Essa preocupação se explicita contra amaré exatamente quando, na Terceira Internacional, definia-seum sentido excludente entre os níveis concretos e subjetivos.

A influência francesa para a formação dos historiadoresprofissionais brasileiros afasta-os de seus parceiros latino-ame-ricanos, especialmente quando o próprio Braudel chega com amissão francesa na formação da Universidade de São Paulo,juntamente com Levy Strauss e Pierre Monbeig. Nesse mesmoperíodo Fernand Braudel redimensiona os estudos sobre o pa-pel do dinheiro no mundo mediterrâneo. A partir das proposi-ções de tempo longo, médio e curto ele desvenda os múltiplosprocessos de intercâmbio que envolveu os vários países do oci-dente e do oriente, através dos negócios que se realizavam atra-vés de rotas terrestres, marítimas e de rios envolvendo merca-dores, feiras, financistas, cientistas e interesses econômicos.

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As missões alemã e italiana, presentes nos primeiros anosde formação da USP, não produziram as determinações dos fran-ceses, considerados como centralidades no processo civilizatóriopretendido pelas elites cafeicultoras paulistas.

Após a segunda guerra, a história dos Annales se impõedefinitivamente. A revista, desde 1946, passa a se chamarAnnales, Economies, Sociétés, Civilisations. Novamente a guerraseria decisiva na escolha dos caminhos do historiador. Dianteda avalanche de pequenos e grandes fatos do presente, os histo-riadores aprofundam sua busca de sentido da história total, naestrutura, nos grandes espaços e na longa duração. Com a mor-te de Bloch, fuzilado pelos alemães, Febvre e Fernand Braudel(1902 - 1985), professor do Departamento de História entre 1935e 1937 na Universidade de São Paulo, representam um segundomomento do grupo. Em 1948, Lucien Febvre e Braudel assu-mem também a direção da 6a. sessão da Escola Prática de AltosEstudos em Paris. Durante as décadas de 50 e 60, o grupo dosAnnales publica um conjunto de obras centradas na territoriali-dade – cujos trabalhos pioneiros são os de Braudel, O Mediterrâ-neo na época de Felipe II e o de Pierre Goubert, Beauvais e osbeauvaisis nos séculos XVII e XVIII –, na história econômica e nademografia histórica.

Braudel, após completar seus estudos de história, seguepara a Argélia como professor, onde descobre o Mediterrâneo.Do encontro com Febvre, sua intenção de fazer uma tese sobre apolítica mediterrânica de Felipe II, um assunto tradicional, setransforma num estudo que tem por centro o próprio Mediterrâ-neo, o que mostra sua mudança de perspectiva. Levanta a do-cumentação em vários arquivos da área, de Dubrovnik à Veneza,Roma, Madrid e outros centros. A obra de Braudel sobre o Medi-terrâneo estender-se-á por toda a sua vida; desde seus primei-ros esboços em 1929 até a publicação da versão final em 1966.Seu horizonte geográfico se alarga com o trabalho sobre Civiliza-

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ção material, economia e capitalismo – séculos XV a XVIII, publi-cado na década de 70.

Ao refletir sobre a dialética do tempo e do espaço, Braudel,em sua tese sobre o Mediterrâneo, concebe várias formas detempo, ou durações: o de uma história factual da política e doindivíduo, o de uma história do tempo conjuntural, cíclico,interdecenal, da economia e, finalmente, o tempo longo, da lon-ga duração da geografia. Este tempo longo, privilegiado em seustrabalhos, representaria o de uma “história quase imóvel”, doshabitantes das montanhas e seus costumes ancestrais nas ca-deias do Atlas, dos Apeninos, do Taurus etc., dos homens quevivem nas planícies do Languedoc, da Campania, etc. atacadospela malária das águas estagnadas, e dos homens da beira domar Negro, do Egeu, do Adriático, onde os ventos e as correntesimpõem o ritmo da vida. O tempo geográfico tocaria a própriaeternidade não fosse pelas variações climáticas, biológicas, asmudanças nos sítios urbanos e no traçado das rotas terrestres emarítimas.

O segundo tempo é o da história social dos grupos, dahistória estrutural, onde se avalia o comércio, a dimensão dosmercados, as distâncias, a demografia, os mecanismos monetá-rios, a expansão do ouro e da prata americanos no Mediterrâ-neo, as oscilações de preços etc. No terceiro tempo encontramos“uma história tradicional, não na dimensão do homem, mas doindivíduo....; uma agitação superficial... Uma história com os-cilações breves, rápidas, nervosas”; é a história da rivalidadeentre os impérios, espanhol e turco, de suas instituições, pro-víncias, populações, da força militar, da ação e dos aconteci-mentos como a abdicação de Carlos V, a paz de Cateau-Cambresis, Lepanto etc.

Ao longo de sua carreira, como diretor dos Annales, pro-fessor da Escola de Altos Estudos, do Colégio de França, diretorde tese de inúmeros alunos, Braudel torna-se um historiador

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muito conhecido também do grande público, que, principalmentea partir dos anos 60, voltará a ter grande interesse pela história.Aberta a todas as ciências sociais, à sociologia de Gurvitch, àdemografia de Sauvy, à etnologia e ao estruturalismo de Lévi-Strauss, Braudel considera a história como um campo muitoflexível e, fiel à Bloch e Febvre, busca a história total.

A Segunda Grande Guerra foi inteiramente reveladora dosdilemas abertos e das indefinições a serem superadas. Muitoshistoriadores e filósofos marxistas reuniram-se em torno do quese convencionou chamar de Escola de Frankfourt. Pensadorescomo Theodor Adorno, Horkeiheimer e Benjamin procuraramromper com a história projeto e passaram a ressaltar as subje-tividades expressas pela arte, pela estética e pelos elementoscentrais da cultura. Com objetivos claramente anti-políticos es-ses intelectuais procuraram encontrar não os nexos do poder,mas o sentido do reencontro da humanidade do homem, ex-pressa na obra de arte e nos valores da vida, da ecologia, dadefesa do devir e do planeta. Deste grupo, cujo fim trágico osunifica, reconhece-se a narrativa histórica como central. A rela-ção do historiador com a obra de arte e sua dimensão documen-tal reintroduz o sentido das subjetividades nos comportamen-tos humanos e a necessária recuperação deste nível na história.Benjamin, em Estética, procura dimensionar as relações entre ovivido e o concebido especialmente quando demonstra que nassociedades de consumo de massa o que se encontra é a estéticae não o estilo. A separação entre o homem trabalho e o homemcriador de cultura é para Benjamin um dilema do mundo mo-derno e sua reversão deve significar também a reversão de todosos elementos da dominação. Para ele, é preciso libertar o ho-mem de suas institucionalidades, uma vez que elas impedem aliberdade e a criação, sobrepõem-se contra a rebeldia para man-ter a ordem estabelecida e os processos de controle já firmados.

Uma outra tentativa de fusão da história com a filosofiatambém data desse período. Embora não se definisse como um

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praticante das ciências humanas, mas como um observadorexterior que analisa o discurso como esfera autônoma, a obrade Michel Foucault (1926 - 1984), exterior aos Annales e críticado estruturalismo, encerra uma reflexão sobre a história e cau-sou muita polêmica entre os historiadores a partir dos anos 60.Para Foucault, o século XIX, ao introduzir a idéia de “tempohistórico”, destruíra o saber analítico organizado em “represen-tações” para submeter os conhecimentos às leis de suas evolu-ções, o que teria levado às “ciências do homem”. Tendo em vistaque estas ditas ciências do homem estariam prestes a desapare-cer, Foucault objetiva constituir um método de análise do serhumano em sociedade na atualidade. Entre o estruturalismorepresentado especialmente por Louis Althusser e a hermenêu-tica, sua palavra-chave torna-se genealogia; a objetividade sen-do falsa e a subjetividade enganosa, restaria estabelecer agenealogia das práticas que fizeram do homem atual aquilo queé; uma esfera “analítico interpretativa”do “poder, da verdade edo corpo”. Contrário à história tradicional das continuidades,Foucault privilegia as rupturas bruscas, as descontinuidades, ea emergência de novas estruturas sobre as antigas, apesar desituá-las na longa duração; para ele importa a coerência internados sistemas conceituais e a passagem de um sistema a outro.Conceitos como tradição, evolução e influências devem ser apo-sentados. Cada discurso possuiria uma conexão com “um con-junto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas notempo e no espaço.”; assim os sistemas repressivos de Vigiar epunir dizem respeito a tudo mais que existe na sociedade, naeconomia, na educação, fazem parte de um sistema global deadestramento destinado a formar “corpos dóceis”. Para Foucault,os documentos não mais são considerados como reflexos do pas-sado, mas como um material que deve ser recortado; a própriahistória não mais seria memória do passado, e sim apenas umtrabalho sobre documentos.

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As polêmicas e a busca de novas metodologias colocam ahistória em primeiro plano e fazem com que a produção histo-riográfica francesa do pós-guerra seja imensa. Além dos traba-lhos sobre economia, história quantitativa, demografia históri-ca, fecundidade, natalidade, nos quadros de uma região ou épo-ca – Os camponeses do Languedoc do século XV ao XVIII (1966)de Emmanuel Le Roy Ladurie ou Os homens e a morte no Anjounos séculos XVII e XVII (1971) de F. Lebrun, por exemplo – come-çam a surgir trabalhos mais qualitativos, voltados para umaantropologia histórica. É o caso de História das populações fran-cesas e suas atitudes diante da vida desde o século XVIII (1948)de Philippe Ariès, que inaugura uma série de trabalhos sobre amedicina e as doenças na história, o estudo do corpo doente esaudável – assim, J. Léonard e Os médicos na França do oesteno século XIX (1976) e muito outros. Os estudos de populaçãovoltam-se para a história da família e da sexualidade, como emOs amores camponeses do século XVI ao XIX (1975) de J.-L. Flan-drin, O amor no ocidente na época moderna (1976) de J. Solé.Temas antes poucos explorados, próximos àqueles do historia-dor holandês J. Huizinga no Outono da Idade Média (1919), comoo da infância, da gravidez, do sentimento da morte, dos compor-tamentos coletivos diante destes e de outros fenômenos como adoença, o prazer, a contracepção, dão margem a inúmeros estu-dos elaborados por Philippe Ariès, Pierre Chaunu, M. Laget en-tre muitos.

As diferentes visões e manifestações da vida e do mundo, ahistória dos oprimidos, do outro, tornam-se cada vez mais pre-sentes como objeto de estudo do historiador, atraindo para ahistória o leitor comum. Daí o grande êxito em vários países deMontaillou (1975) de Le Roy Ladurie, um trabalho etnológico nopassado de uma aldeia cátara no século XIII. A aproximaçãocom a etnologia está presente também nos trabalhos de JacquesLe Goff e Pierre Vidal-Naquet.

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Nos anos 70, os historiadores dos Annales, atentos ao pen-samento de Lévi-Strauss e de Michel Foucault, partem para aexploração das estruturas mentais, uma região nebulosa entrea organização social e a ideologia, o consciente e o inconsciente.Surge então um terceiro momento dos Annales, bastante pró-ximo às teses de Bloch, mas situado no presente, carregado comoutros aportes e ingredientes, que é o momento da “história nova”,da “história das mentalidades”, coincidindo com o pós-maio de68. O historiador Michel Vovelle, autor de Piedade barroca edescristianização na Provença no século XVIII (1978) diz que aescola dos Annales sai do porão e sobe até o sótão. Com asmentalidades, os livros de história se transformam em best-sellerse os historiadores chegam ao grande público, não somente atra-vés da imprensa, mas também da mídia eletrônica.

O termo história nova surge em 1978 e faz polêmica. Aspi-rando “à mais global e coerente das visões sintéticas da histó-ria”, como dizem Pierre Nora e Jacques Le Goff, o historiadordeve partir de hipóteses, submetendo-as à verificação e as mol-dando de acordo com estas. O historiador constrói seu objeto deanálise através dos documentos de diversas naturezas que po-dem ou não responder à sua interrogação – por exemplo, existi-ria um espírito maternal na idade média, ou isto é uma inven-ção recente ? Em função da pergunta, o historiador interpretaseus documentos, utilizando-se de todas as técnicas possíveis –fotos aéreas, informática etc.– e todos os documentos – escritos,orais, arqueológicos, artísticos, o folclore, a festa etc. Do marxis-mo, a nova história herda as amplas periodizações e a análiseestrutural do social; para Guy Bois, a história global seria ape-nas uma novo nome para modo de produção ou formação eco-nômica e social. Os temas são tratados em séries – por exemplo,as variações de um culto de santo desde a idade média até oséculo XX – em grandes espaços, analisando grandes conjuntoscom organização social e econômica coerentes e representaçõeshomogêneas – por exemplo, a vasta Civilização do ocidente me-

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dieval de Jacques Le Goff, ou O tempo das catedrais de GeorgeDuby. Estas obras são escritas mediante uma releitura de fon-tes conhecidas, portanto dizem respeito a novas indagações enão a novas descobertas; nelas os silêncios também podem sersignificativos; não caberia mais ao historiador ler somente o queé dito, mas prestar atenção também no que é omitido – este é oponto de partida das Três ordens ou imaginário do feudalismo deGeorges Duby.

A questão do imaginário abriu todo um novo campo depesquisas para a história. O imaginário abrangeria um campomuito vasto da experiência humana, em temas como a curiosi-dade pelo desconhecido, a consciência do corpo, a angústia damorte, as festas, a loucura, o erotismo, os sonhos, as relaçõesentre insconsciente e cultura e muitos outros. Le Goff atesta aocaráter indefinido do termo e a dificuldade no estabelecimentode fronteiras entre imaginário e representação – tradução men-tal da percepção de uma realidade externa –, imaginário e sim-bólico – relação de um objeto com um sistema de valoressubjacente, histórico ou ideal – e imaginário e ideológico – oquadro conceitual organizador da sociedade; embora não sejaapenas representação, simbolismo ou ideologia, o imaginárioteria implicações com os três conceitos. Além disso, em imagi-nário existiria imagem – iconográficas e também imagens men-tais. Para Le Goff, no cerne do imaginário medieval estaria otema do “maravilhoso” – os ogros, os mortos que voltam do pur-gatório, o passado mítico das dinastias nobres e muitos outrasexpressões; como diz, “estudar o imaginário de uma sociedade épenetrar no fundo de sua consciência e de sua evolução históri-ca. É ir à origem e à natureza profunda do homem, criado à“imagem de Deus”.

A nova história dos anos 70 traz então à tona outrasproblematizações e outros temas para a história, dentro de umpadrão multidisciplinar. O próprio caráter vago de alguns deseus conceitos – Le Goff diz explicitamente que “a atração fun-

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damental da história das mentalidades é seu caráter vago”– le-varia a uma produção historiográfica das mais diversificadas –mitos, corpo, sentimentos, mas também política e religião. Osresultados da nova história, de fato, penderam mais para umapluralização dos tempos e dos objetos nas décadas de 60 a 80,do que para a construção da “história total”.

Se os Annales negligenciaram a história política cara aospositivistas, percebe-se nos últimos anos a retomada do políti-co; não mais como o era no século XIX, mas num sentido maisamplo, também simbólico e antropológico, como nos trabalhosde Maurice Agulhon, Pierre Nora, René Rémond, e também LeGoff e Duby. Outra tendência das últimas décadas tem sido a doestudo do presente ou do passado recentíssimo, através da in-corporação da memória à história e da transformação da me-mória em objeto histórico. Não mais necessitando estar mortopara existir historicamente, o passado se amplia na oralidade enão somente em seus vestígios materiais tradicionais.

Por outro lado, as questões relativas aos limites do conhe-cimento histórico, seu caráter, a questão dos anacronismos con-ceituais, das relações entre história e discurso, da indissolubili-dade dos laços entre história e historiador (como advoga HenriMarrou, no seu Do conhecimento histórico, 1959), entre outras,continuam polêmicas nas últimas décadas.

Em 1971, Paul Veyne, historiador da antigüidade, em Comose escreve a história, refuta as pretensões da história de se tor-nar ciência, mesmo com uma metodologia positivista, marxistaou estruturalista, e considera que desde Heródoto e Tucídidesnão teria feito qualquer progresso. Para Veyne a história tratade acontecimentos humanos que, como num romance, seriamsimplificados e organizados; o conhecimento histórico teria comobase o particular e não um estabelecimento de leis como nafísica ou na economia. Seu interesse está na narrativa, que tempor base o verdadeiro, o que aconteceu – daí sua vantagem so-

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bre o romance –, mas de forma mutilada e lacunária; aos docu-mentos caberia fazer e responder as perguntas. Distanciado dosconceitos universais – “falsos porque fluidos” –, o historiadordeve se ater a seres e acontecimentos únicos e, para cada época,forjar conceitos adequados aos fatos interpretados. Para Veyne,o método do historiador deve depender de uma sabedoria, deuma experiência, derivada do conhecimento dos textos e da cap-tação das regularidades, não das leis, de um período.

Ao contrário do desengajamento e do ceticismo de Veyne,Michel de Certeau considera a história como um conhecimentoa serviço do presente. Com uma formação pluridisciplinar emfilosofia, história, psicanálise e semiótica, discute a natureza dahistória – uma divisão entre presente e passado própria ao oci-dente e às suas relações com a morte – em A escrita da história(1975). A história não seria uma ressurreição do vivido, masuma operação complexa, que deveria ser efetuada através detécnicas como a análise estrutural dos textos. Certeau nega apretensão do historiador em enunciar o real, na medida em quetodos os discursos acabam por se referir a uma retaguarda oculta,ao silêncio, às leis do inconsciente e do meio social a que perten-ce o historiador. A consciência dos condicionamentos da histó-ria seria uma exigência de sua cientificidade; o historiador nãovive fora do mundo, mas tem uma função social, está inseridono quadro das instituições, e, portanto não pode se dizer objeti-vo; o saber histórico, portanto, é ideológico, quando mais nãofosse por seus silêncios que ocultam relações de poder. ParaCerteau, os “métodos históricos” seriam práticas de iniciadosdentro de um grupo e de submissão a uma hierarquia e ao reco-nhecimento; isto faz com que a história esteja “estritamente con-figurada pelo sistema onde é elaborada.”

Com este texto a história do historiador se fecha. Podemosperceber que tanto a inserção da história como a do historiadorno plano da educação e no plano social não são recentes. De

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uma atividade marginal, prazeirosa, erudita, própria a velhos,aposentados, escritores em dificuldades financeiras, propagan-distas políticos, monges reclusos, assume no século XIX seuscontornos atuais. O historiador deixa de ser um diletante, per-dido no mundo da erudição, para ser o professor, o especialista,dentro de um sistema educacional, da sociedade. E faz a histó-ria do presente.

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Título A HISTÓRIA DO HISTORIADOR (TEXTOS DE APOIO N. 2)

Coordenação editorial,

Diagramação e Capa M. Helena G. Rodrigues

Revisão autoras e Simone Zaccarias

Montagem Charles de Oliveira/Marcelo Domingues

Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP

Mancha 11,5 x 19 cm

Formato 16 x 22 cm

Tipologia Bookman Old Style 11/15 BernharMod 14

Papel miolo: off-set branco 75 g/m2

capa: cartão branco 180g/m2

Impressão da capa

Impressão e Acabamento Gráfica – FFLCH/USP

Número de páginas 116

Tiragem 500

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP

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