o mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma...
TRANSCRIPT
Prefácio
O mundo dá voltas, o aparente
amigo de hoje às vezes se
torna o inimigo de amanhã, e
vice-versa. Eu escrevo contra
mortais inimigos que
desejariam passar por amigos
da causa romana. Escrevo, em
parte, contra pessoas cujo
desrespeito ostensivo pela
revelação cristã em muito
ultrapassa a sujeira dos
prostíbulos e dos
convencionais esgotos morais
mundanos. Entretanto, o
sentimentalismo hipnótico por
trás desse exército de
fantasmas que uivam
orgulhosos; e proclamam da
boca para fora a seriedade da
própria perversa loucura; esse
sentimentalismo também fora
mais ou menos o meu, qual um
selo inexorável que marca o
homem contemporâneo.
Eu me dirijo a um assunto em
relação ao qual uma
convenção tirânica se meteu
para bagunçar e avacalhar. A
verdade não tem soberania
para o antiperenialista, e de tal
modo é essa farsa bem-
sucedida em desrespeitar a
verdade e escandalizar, que a
minha intentada clarificação é
mais a consideração de um
dever, o procurar gemer sede e
fome de justiça, do que saciá-
las.
O estudo da heresia
antiperenialista é um dos mais
interessantes que jamais fiz,
talvez o mais interessante de
todos, em parte porque é uma
espécie de "aventura" na qual
eu estou imerso
historicamente; como a então
relativa novidade espírita que
nos seus dias Max Stirner
levava tão a sério. Os filmes
do Indiana Jones, entretanto,
talvez sejam suficientes para
indicar que assistir como mero
expectador a aventuras
excitantes é bem menos
perigoso do que experimentá-
las em carne e osso.
Eu quero me ater ao essencial,
e quanto possível ao mais
sucinto descrever (sem
mergulhar na indignação que o
assunto merece), para não
suceder que me venha o que
ocorreu com Jean Racine ao
escrever contra os vícios da
sua alma mater, Port Royal;
isto é, para que não me venha
que o "escrito faça bem ao
intelecto, e mal ao coração",
quando o contato com o
nefasto antiperenialismo já me
fez mal o bastante.
Eu também sou forçado a fazer
uma digressão, não biográfica
como John Henry Newman na
sua resposta clássica ao ataque
de Charles Kingsley, mas de
tipo estritamente filosófico. Eu
não confio na boa vontade da
audiência, nem me dá
esperança essa boa vontade ao
cabo da exposição -- como
Newman confiou que haveria
para si --, afinal, eu não sou
Newman, a minha audiência
não é de cavalheiros ingleses,
nem saí do estado de rabugens
de pessimismo no qual estou
metido.
Possa este escrito, pois, servir
como o testemunho de
encontro a vaias e cusparadas,
pancadas e dar de costas
coberto de desdém, para que
eu de minha vez possa cobrir
um domínio interior já não
mais perturbado pelo
escândalo, mas na resignação
esteja consolado com a
verdade. Possa eu chorar só
meu choro ante o incêndio de
Roma, enquanto os outros
cantam e tocam harpa, ou
passeiam como se fosse any
other tuesday.
Capítulo I - Um olhar casual
sobre o antiperenialismo.
No seu estudo do espiritismo,
também em outros escritos, o
fundador da escola
perenialista, René Guénon, faz
questão de destacar a
importância de desdenhar
(acaso eu disse "desdenhar"?)
o sucesso no proselitismo, o
priorizar o proselitismo; ele
faz questão de enxergar nessas
coisas ilusória vantagem.
Ganhar adeptos não é o mais
importante, segundo Guénon.
Ganhar adeptos em grande
número, mas com baixa
qualidade, lhe parecia uma
falta de senso talvez ainda
mais excêntrica do que a áurea
que se atribui ao filme "The
Room".
A pessoa familiarizada com a
obra de Guénon certamente
veria a panfletagem e a
exposição midiática de um
grupo como "Jews for Jesus"
com um frio na espinha, com
medo; tão profunda e
extensivamente o metafísico
francês se deu ao trabalho de
mostrar no proselitismo uma
cilada mortífera para a saúde
da alma. O conhecimento vem
primeiro, a ação política que
angaria adeptos (em
comparação) é um acidente de
percurso, uma nota de rodapé
que o editor insere de orelhada
e à guisa de um afterthought
fogoso; uma nota de rodapé a
que o autor diz "Por que não?"
para logo voltar o rosto a um
assunto mais interessante .
Ora, mesmo diante do fato de
René Guénon ter expresso seu
ponto de vista em semelhantes
termos, o filósofo Olavo de
Carvalho, repetida e
convictamente, pareceu ter
proposto que o aspecto mais
crucial, mais real, do esforço
guenoniano (portanto da obra
intelectual de René Guénon) é
a promoção velada do avanço
islâmico. Perguntar a diferença
entre a promoção do avanço
islâmico e uma promoção do
proselitismo islâmico me
parece quase desnecessário, já
que nos dois casos se trata de
que um efeito visado idêntico,
ou uma técnica apenas, é a
"chave interpretativa de tudo o
que ele estava fazendo".
Certamente o alardear isso, do
Prof. Olavo, sem indicar
explicitamente a tensão
interpretativa subjacente nessa
acusação (mas fazendo boca
de siri a tal), é extraordinário o
suficiente para fazer pensar.
Eu não sei se eu e o Prof.
Olavo lemos o mesmo René
Guénon; mas eu estou seguro
de que o sujeito que li
acreditava que o grande
problema da modernidade é a
redução de tudo à técnica;
também a dissipação da
modernidade (por si tomada
como boa) vindo da submissão
inversa da técnica à teoria. O
Guénon que li é um camarada
que talvez até batesse boca
com esse outro indivíduo, que
dedicou toda a sua vida à
produção de um efeito (isto é,
à aplicação de uma técnica),
não fosse o fato de a aversão à
técnica vir de par, parece, com
evitar bater boca com
estranhos.
Ora, o Olavo de Carvalho
inverter o sentido do ponto de
vista guenoniano, colocando a
técnica em cima, a teoria em
baixo, não parece ser fruto de
um bobinho mal-entendido
provável, como aqueles das
histórias da Jane Austen.
Sobretudo pela maneira
infensa a maiores explicações,
sugerindo que a reação de
estupefação incitaria no
melhor dos casos um despeito
paternal, parece mais um mal-
entendido das histórias da
Bruxa de Blair, as quais,
ademais, têm a desvantagem
de não terminar com um final
feliz. Supondo-se fosse
verdade que décadas atrás
Olavo construiu uma ritual
"barca egípcia" para habitar o
espaço sideral, conforme
alegam detratores, tal não seria
mais sugestivo da manipulação
mítica vinda de uma mulher
que sobrevoa os céus numa
vassoura, do que a
supramencionada inversão do
guenonismo.
Cair no encanto de "feiticeiros
sinistros" de modo episódico
("a barca egípcia") é temível;
cair no encanto continuamente
(como os detratores do Olavo,
os quais eu não sou baixo o
bastante para identificar como
os irmãos Velasco) é mais
temível ainda; mas o
verdadeiro boogie man das
histórias de terror, o mais
sádico hálito de narrativa
funesta, é a ideia de ser
paciente de um encantamento
negro sem que ninguém o note
nunca, exceto a mão
enverrugada que manipula
tudo no fundo
(antiperenialismo).
A fala olavista contra Guénon
parece sugerir Mateus 7:13-24
("Pelos seus frutos os
conhecereis"); porque o fruto
secular do guenonismo foi a
islamização do mundo. O
raciocínio por trás disso,
entretanto, é um emprego da
lógica dos sinais ("onde há
fumaça há fogo"). É análogo
ao alegar contra o Rei Luiz IX,
de célebre santidade e
prestígio, que a sua vida foi
um fracasso por causa das
Cruzadas que ele lançou, numa
das quais terminou sua vida;
eventos de rara e multifacetada
tragédia ou desapontamento.
Ademais, esse raciocínio
olavista, estivesse correto, não
sanaria o mistério que está em
comparar o que falam Olavo e
Guénon.
Ora, todo esse capítulo de
Mateus é uma transposição
"prática" da alegoria da estátua
de Nabucodonosor (Daniel
2:36); a "cabeça de ouro" da
estátua (que corresponde ao
primeiro dos quatro cavaleiros
do apocalipse, Apocalipse 6:2)
significando a vida
contemplativa e uma etapa
inicial "de ouro" ou
relativamente paradisíaca, na
qual não pode ser claro o que é
o sentido mais fundo e o que
um sinal externo (a distinção
entre bem e mal do fruto
proibido no paraíso), por isso a
ordem de "não julgar para não
ser julgado" (Mateus 7:1). A
segunda parte da estátua, os
braços de prata, corresponde
ao Segundo Cavaleiro, e
significa a nobreza ou a vida
de ação, daí o encorajar de
Cristo à ação, "pedir, buscar,
bater" (Mateus 7:7). A barriga
e as coxas de bronze da estátua
correspondem ao Terceiro
Cavaleiro, que significa a vida
que se baseia na compreensão
e promoção do domínio
econômico; o domínio
econômico se definindo como
aquele domínio no qual o
inacessível e o acessível, o
secreto e o midiático (como o
dinheiro), são simultâneos; daí
que Cristo fale a respeito dos
portões estreito e largo
(Mateus 7:13). As pernas da
estátua, de ferro,
correspondem ao Quarto
Cavaleiro, que significa a vida
de servo, o modo mais inferior
de vida. É por isso que o
contexto de "pelos frutos os
conhecereis" (Mateus 7: 16) é
a ideia de lobos em pele de
ovelha, porque a ovelha
simboliza o servo, o lobo a
concupiscência pejorativa que
pode aflorar no servo por
causa da sua tendência para
baixo; o que pode ser visto
pelo fato de a palavra "tirano"
significar, etimologicamente,
uma pessoa de origem inferior
que pretende ser um príncipe;
e é sabido que o maior clichê
dos tiranos é atender a
concupiscências baixas. É
nesse contexto que é dito
"Pelos frutos os conhecereis" .
Quando se tiver passado pelos
três desafios anteriores, e
terminado por achar o
caminho estreito no labirinto
dos desafios espirituais, aí
então se pode julgar outrem
desde os seus frutos.
Similarmente, depois de se ter
passado pelos caminhos no
labirinto da obra guenoniana, e
se ter atinado com a passagem
secreta, o caminho estreito
interno que é a chave-mestra
para interpretar o conjunto, aí
então se pode julgar o que é o
que pelos frutos. A mesma
coisa com a biografia de São
Luiz IX etc., inclusive porque
não é possível julgar um
homem sem julgar o seu
coração, e o "fruto proibido"
localizado "no centro do
jardim" significava
precisamente o coração do
paraíso.
O fato mesmo de que o juízo
tecido contra o Guénon deixa
intocada a relação entre a
aversão guenoniana ao
proselitismo, e o efeito
proselitista atribuído; por ora
sirva como sinal de que o
célebre filósofo se perdeu no
labirinto.
Em resposta a tais
considerações a reação
previsível do Prof. Olavo
certamente será me dar um
beijinho terno na fronte e um
toque carinhoso nas costas,
talvez até um tapinha de "go
get them, tiger!" no traseiro.
Pois deixemos essa imagem de
certo bom agouro, e passemos
a um personagem mais.
O René Guénon se notabilizou
por aprovar a divisão da
sociedade em castas, como nos
moldes da sociedade medieval;
batendo-se precisamente pela
aprovação da superioridade ou
autoridade do clérigo sobre os
demais. Esse é o ponto de vista
do Direito Canônico católico,
e se pode dizer que assim
como o Talmude é comprido e
persistente no falar de
preceitos do sábado (para usar
um eufemismo), o Direito
Canônico parece ser comprido
e persistente no dar ao clérigo
uma posição de autoridade e
privilégio.
Que o Sr. Orlando Fedeli, um
dos heróis do
antiperenialismo, fosse capaz
de mais ou menos ver que a
Igreja privilegia o clérigo, não
significa que fosse ele próprio
um clérigo. Com efeito, esse
homem, que era tido por um
campeão da ortodoxia, só
podia falar do ponto de vista
de alguém que obedece o
clérigo, sem a pretensão de o
contradizer ou o julgar (como
ele mesmo sugeriu em certas
ocasiões). Consequentemente,
toda pretensão do seu Fedeli a
ler o Direito Canônico do
ponto de vista clerical seria
extravagante; seria como um
eunuco, durante um banquete
no palácio de Xerxes, a
esbofetear a mão (à cata de
comida) do imperador, e ralhar
para que o imperador a vá
lavar.
Às vezes por trás da
humildade enfática dos
vassalos há uma afetação de
autoridade. Para o vassalo
deixado à própria sorte todo
mundo mais é um potencial
lacaio usurpador e tirânico.
Assim, o seu Fedeli fez da
subordinação da autoridade
secular à autoridade intelectual
(característica do guenonismo)
uma defesa da insubordinação
caprichosa em relação ao
clérigo; quando na verdade
essa subordinação é
precisamente correspondente à
subordinação do leigo (mundo
secular) ao clérigo (mundo
contemplativo). Que o Direito
Canônico privilegia a pessoa
contemplativa, pessoa que por
ser contemplativa se aproxima
da condição clerical, e que é
esse o sentido da submissão
normativa ao clérigo, pode ser
visto em que o Codex Iuris
Canonici de 1917 dá ao autor
célebre de livros em defesa da
fé basicamente a dispensa
automática para se casar com
mulher, quando haja
impedimentos eclesiásticos, e
a título de privilégio
concedido gratamente.
Similarmente, São Jerônimo
celebrou um leigo nominal, o
mártir e filósofo Apolônio
(senador na antiguidade pagã
romana), como uma
autoridade canônica. O
propósito do Direito Canônico
é tirar a autoridade, na Igreja,
das mãos de leigos como
Fedeli etc., e colocar nas mãos
de pessoas dedicadas à
contemplação, e na medida em
que sejam dedicadas à
contemplação.
Logo, ver no
guenonismo (com o seu
ostensivo clericalismo) um
"intelectualismo" pejorativo
ou "subjetivismo" oposto à
autoridade religiosa, e
ameaçador dela, é quase como
dizer que todo mundo tem que
obedecer o clérigo mas não há
nenhum clérigo à mão, ou não
deve haver; uma tese que,
mesmo tendo uma
questionável aparência de
sensatez, é estranhamente
verdadeira hoje.
Das argumentações contra o
perenialismo, talvez a mais
clássica e, se sugere,
arrasadora, é aquela que
chama atenção para a tese dita
perenialista de haver, por trás
das diversas religiões, um
esoterismo sapiencial
primordial que as compreende
e aperfeiçoa. Fosse verdadeira
essa tese, se argumenta, o
cristianismo seria uma forma
inferior de espiritualidade; do
que decorre que o
perenialismo supõe o desprezo
pelo cristianismo, e por isso
mesmo a sua negação. Se a
argumentação não é feita
precisamente nesses termos,
ou nessa exata intenção
aparente, importa pouco, a
exatidão ou cautela
interpretativa só podendo ser
gabada por antiperenialistas no
fazer seus escrutinadores
olharem de soslaio com
tensão.
Quando se vê, pois, os
olhinhos brilhantes de André
Abdelnor, palestrando no
Centro Dom Bosco etc., ao
alardear a arrasadora
argumentação; faz corar o fato
de que a separação entre
exoterismo e esoterismo, nas
religiões, nada mais é do que
um truísmo muito batido,
como beber vinho em bodas.
A rejeição dessa separação
entre exoterismo e esoterismo
equivale, analogicamente, ao
sonso não distinguir entre o
sofista especializado em
retórica, de um lado, e o
filósofo mais interessado em
investigações íntimas, de
outro. Diferenciar Górgias e
Sócrates não é muito difícil;
basta se perguntar quem tinha
dinheiro o suficiente para
pagar por uma estátua de ouro
maciço em homenagem
própria. Ora, porque essa
separação existe, o fundo
menos visível ou mais sutil da
doutrina cristã compreende
todas as concepções das
demais religiões, mais ou
menos como a virtude supõe a
compreensão tanto de si
mesma como da sua
degeneração, defectiva ou
viciosa. Se eu sei o que é a
generosidade eu também sei o
que é a avareza ou a
prodigalidade. Mesmo uma
seita ostensivamente maligna
guarda latente um fundo
benéfico, como a substituição
carnavalesca da esperança pelo
desespero guarda latente a sua
restauração, bastando inverter
a inversão especulativamente.
Toda sombra existente foi
projetada pelo que não é uma
sombra; algo que os
antiperenialistas parecem
acreditar que é altamente
duvidoso.
Talvez parecerá que estou
errado e não entendo de óptica
o suficiente para fazer essa
última analogia. Touché...
Talvez eu possa substituir o
último ponto, então, pela
observação de que na Summa
Theologica, Pars Prima,
Questão 2, Artigo 10, Santo
Tomás cita o Papa São
Gregório I a respeito de como
as sagradas escrituras
“enquanto descrevem um fato
[exoterismo], revelam um
mistério [esoterismo]”. Alguns
dirão que a dupla categoria
(exoterismo e esoterismo) não
se aplica a essa discussão,
porque o "esoterismo" é
definido por alguns como
aquilo que é escondido, em
religiões não católicas, de
modo mais radical do que
qualquer coisa no catolicismo.
Um pouco de reflexão,
entretanto, basta para
demonstrar que essa última
objeção é apenas semântica, e
que não se endereça a como o
perenialismo articula essas
noções.
Todas essas argumentações
antiperenialistas são bolhas de
sabão, de um tipo muito tosco
por sinal. Uma vez bem
explicadas elas são suficientes,
a uma pessoa sã, para atinar
que não se trata de uma
discussão respeitável no qual
duas partes entram de boa fé, e
mais ou menos em pé de
igualdade, para usar um jargão
olavista. Tomar a situação
assim seria se deixar
hipnotizar abjetamente. Resta,
pois, descobrir o que está atrás
dessa sombra estranha.
Capítulo II - O princípio do
antiperenialismo
O princípio do
antiperenialismo pode ser
associado à já mencionada
estátua de Nabucodonosor.
Cabeça de ouro, braços de
prata, barriga e coxas de
bronze, pernas de ferro, e pés
misturados a ferro e barro
(nessa mistura a ovelha
corresponderia ao ferro, o
lobo, supõe-se, ao barro).
Digamos que esse curso, do
ouro ao ferro etc., possa se
expressar tanto na escala
histórica maior, quanto na vida
de um indivíduo. Ele
corresponde de algum modo
aos discursos poético (ouro),
retórico (prata), dialético
(bronze) e lógico (ferro).
Uma pessoa atenta deve notar
que do discurso poético para o
discurso lógico, o discurso fica
cada vez mais extensivo. A
poesia é mais concentrada do
que a prosa, os livros de poesia
mais finos do que os ensaios
acadêmicos. Cada verso de um
poema parece sugar e prender
a atenção, como a força da
gravidade, enquanto as
páginas de prosa podem ser
lidas com bem maior distração
e dispersão. O que aconteceu
com o sentido concentrado, da
poesia para a prosa? Esse
sentido se tornou mais
escondido da consciência,
como quando um rapaz finge
para si mesmo que uma garota
não está interessada nele, para
não ter de lidar com as
consequências disso.
A negação máxima dessa
concentração (o "império de
ferro e barro", como oposto ao
"império de ouro") é
precisamente o que está
envolvido, quando se trata do
antiperenialismo. A mistura do
ferro com o barro, nos pés,
assinala a essencial
incongruência do "império de
ferro", e o estar fadado a ser
esmagado por esse calcanhar
de aquiles. Quanto mais
puramente lógico um discurso,
mais quebradiço e
inconsistente, mais cheio de
hiatos que não se deixam
preencher, porque o mundo é
diferente de um livro
demonstrativo, para os homens
forçados a falar do mundo.
A coisa pode ser vista desde
um ponto de vista mais
palpável. Carrol Quigley dizia
que "dinheiro é dívida",
justamente significando que se
você não entende o motivo
mais secreto ou complicado
para uma situação econômica
funcionar e se renovar (um
negócio), você pode perder
muito dinheiro; logo, você não
quer o dinheiro, mas sim
entender como bem investi-lo
(caminho estreito), o que é
algo completamente diferente.
O passar do "império de
bronze" para o "império de
ferro" significa precisamente
que você tem o dinheiro, as
frutas -- outrora reais mas
tornadas frutas de cerâmica
por um feitiço -- que parecem
suculentas; mas não pode
gastar o dinheiro (reverter o
feitiço e comer as frutas). A
ideia popularmente familiar de
que os impérios caem no meio
do seu apogeu significa apenas
isso, e nada mais.
A dispersão significada pelo
curso da estátua explica a
história da arca de Noé: a
civilização (significada pelas
águas diluviais) cresceu
demais, a concentração inicial,
significada pela arca, não;
porque a concentração não
pode deixar de ser o que é.
Eu desejaria bem-receber a
entropia para dentro do jargão
religioso, como a arca bem
recebeu os animais.
Capítulo III - O
antiperenialismo e a
bifurcação do dogma
Por que o "império de ferro"
se associa, simultaneamente,
ao servo e ao discurso lógico?
A pergunta é cabível porque,
afinal, a lógica sugere certo
elitismo. No caso, a palavra
mais acertada seria
"esnobismo", o que,
significando "ausência de
nobreza", bem casa com o que
foi dito sobre o fundo comum
do servo e do tirano.
O tirano tem a lógica a seu
favor como alguém tem na
mão um saquinho de chup-
chup quase inteiramente
sugado de suco, ficando só o
gelo sem sabor. O que o tirano
tem na mão é, obviamente, um
espectro ou túmulo, em vez do
discurso sadio. Que esse
espectro pareça quebradiço e
precário, como já foi sugerido,
tem a ver com esse espectro
ser uma superstição.
Assim, como eu notei alhures,
a tirania se notabiliza por
tornar as leis ou fórmulas
discursivas supersticiosas e
fantasmagóricas. Essa
característica é
necessariamente simultânea a
um estado de "intoxicação" ou
embriaguez moral, às vezes a
literal promoção da
embriaguez. Tal embriaguez,
de sua vez, é como uma
experiência de rapto; daí que
Bruno Tolentino tenha
insistido como fez no
problema do mundo repartido
em "mundo como ideia"
(superstição) e "mundo como
rapto" (embriaguez);
experiências que são realmente
dois lados da mesma moeda,
como ter de gastar dinheiro e
passear.
O mundo do antiperenialista é
um mundo de contínua
superstição, de esnobe e
contínua pretensão no domínio
discursivo, o fundo disso tudo
sendo uma embriaguez
figurativa menos lisonjeira que
a literal.
Essa bifurcação em "mundo
como ideia" e "mundo como
rapto" é projetada sobre o
dogma religioso,
desembocando em uma
profanação da doutrina
sagrada, a qual por definição
não é nem supersticiosa, nem
embotadora.
Capítulo IV - O
antiperenialismo e o efeito-
medusa
Que mais cabe para aliviar (de
mentirinha) toda essa
seriedade, do que falar de
mulher? Medusa era capaz de
tornar as pessoas estátuas. Ela
nem sempre foi assim. Se
tornou a moça um monstro
quando a deusa Atena a
amaldiçoou, e a deusa a
amaldiçoou porque Medusa foi
violada pelo deus dos mares,
Poseidon, no Templo de
Atena. A história certamente
não é o cup of tea do leitor da
Jane Austen. Talvez, até,
Medusa tenha se tornado a
Bruxa de Blair que nós
"conhecemos e amamos", se
vingando pelos séculos, nos
outros, do mal que fizeram
nela. Há pessoas que perdem a
cabeça mas não perdem a
chacota.
Eu escrevo cansado, talvez
porque tenha perdido a beleza
juvenil e pretenda ter ganhado
como troco alguma sabedoria
de velho. O velho vê todos os
tempos, porque passou por
todos, e é assim que a história
de Medusa passa a se
assemelhar, estranhamente,
com a história da besta
apocalíptica. A besta vem do
mar, ela é a mesma coisa que
as "muitas águas" sobre as
quais Babilônia, a meretriz
alegórica, se senta. Ao mesmo
tempo, a imagem da besta (em
suma, a sua estátua)
ganha vida. Eu tenho ainda
uma outra semelhança anciã,
conquanto mais recente, a
propor: no filme Entrevista
com o Vampiro, baseado em
um romance, o protagonista
Louis é jogado no mar, antes
de virar um vampiro. E a sua
primeira experiência
significativa ao ser
transformado é ser capaz de
ver nas estátuas o mover dos
olhos, ou o mover facial.
A pergunta, então, é: o que o
mar tem a ver com estátuas ou
imagens?
Nas três histórias; Medusa;
Apocalipse; vampiro; se trata
de uma espécie de alegoria
para o tema da danação da
alma.
É precisamente essa umas das
conotações da alegoria da
estátua de Nabucodonosor.
Inclusive, Nabucodonosor e
seu império babilônico são a
origem da alegoria da besta
sobre a qual Babilônia senta.
A estátua de Nabucodonosor e
a besta podem ser vistas como
a mesma coisa. A estátua se
associa à idolatria, por isso o
filho de Nabucodonosor se deu
mal, conforme narra o Livro
de Daniel, por idolatrar ídolos
feitos dos mesmos materiais
que compõem a estátua; ouro,
prata, bronze, ferro; além de
ídolos de madeira e pedra.
Essa idolatria significa se fiar
no que é de criação humana,
como uma estátua, em
oposição ao se fiar no que é de
criação divina, como a
alegórica rocha "não cortada
por mãos" que esmaga a
estátua de Nabucodonosor e se
transforma em uma montanha.
O "ganhar vida" da imagem da
besta, bem como o mover de
olhos da estátua no filme sobre
vampiro, são uma alegoria
para a idolatria, o atribuir vida
ao que é morto, o pretender ser
encorajado pelo que é funesto
ou espectral. É por isso que no
filme Lara Croft: Tomb
Raider, antes de entrar em
certo templo cambojano onde
as estátuas ganham vida, um
dos personagens fala a respeito
de entrar "no ventre da besta".
A incapacidade de distinguir
entre um ser vivente e uma
estátua é uma característica,
digamos, da idolatria;
precisamente o que está por
trás da história de Medusa. De
outro lado, a idolatria tem um
caráter hipnótico e contagioso,
mais ou menos como uma
profecia autorrealizável: se
você trata uma pessoa como
menos que humana, como um
espectro sem vida, essa pessoa
passa a se aproximar dessa
expectativa; o que lembra a
lição de etiqueta segundo a
qual "a pessoa que não sai do
lugar-comum força os outros a
se sentir míseros".
O efeito do olhar de medusa
tornando as coisas estátuas,
portanto, significa tornar tudo
superficial e estéril, por
exemplo como um lugar-
comum cadavérico. Dizer que
esse olhar torna tudo estátua é
o mesmo que dizer que esse
olhar projeta sobre as coisas a
bifurcação profanadora de
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto".
O mar se associa a isso porque
a inconsistência de forma das
águas se associa à
inconsistência do "império de
ferro", os pés de ferro
inconsistentemente misturados
ao barro. As águas são a
multiplicidade superficial em
aparência apartada de um
princípio unificador; assim
como os lugares-comuns
degradantes dos quais não se
consegue sair parecem
apartados da situação de
discurso.
A profecia a respeito de uma
situação em que ninguém pode
comprar ou vender sem a
marca da besta significa
precisamente uma situação de
pandêmica e mútua
transformação das pessoas em
"estátuas" pelo efeito-medusa.
É isso sugerido na
equivalência do número da
besta, do nome da besta e da
sua imagem, como marca-
requisito para se comprar e
vender; significando a
indistinção entre essas três
coisas, como a indistinção
entre signo, significado e
referente/objeto real.
Aqui está o plot twist: a Bruxa
de Blair, à luz disso, está entre
nós. Ela é Medusa. O filme
The Blair Witch Project
(1999) baseou o seu curioso ou
significativo marketing boca-
a-boca na indistinção faceira
entre a história de terror e a
realidade; como se o filme
fosse uma gravação ou
documentário verídico antes
que uma criação de
mentirinha. Essa indistinção
entre ficção e realidade é
alusiva da indistinção entre a
estátua e o ser vivente; é uma
característica da idolatria. O
sentido do filme é
precisamente sugerir
alegoricamente a danação da
alma, como "Entrevista com o
Vampiro".
Os antiperenialistas são
medusas.
Capítulo V - Antiperenialismo
e proto-marxismo
A diferença entre "proto" e
"tardo" é a diferença entre o
bebê na barriga e o velho;
sábio ou não.
Uma outra maneira de explicar
seria a diferença entre se
interessar por uma garotinha
israelense falando em inglês
com carregado e fofo sotaque,
de um lado; e de outro se dar
conta, após décadas de casado
consigo, que ela é uma
megera. Esse exemplo cansado
(para não dizer excêntrico)
vem da influência de baladas
étnicas. Deixemo-lo.
O marxismo tem lá as suas
influências remotas. Que uma
delas seja o neoplatonismo, e
que tal pareça à primeira vista
excêntrico, eu deixo a outrem
julgar. Foi Leszek Kolakowski
quem o propôs.
Para os de mentalidade
marxista o mundo é bifurcado
em "mundo como ideia" e
"mundo como rapto", o que
pode ser visto pela
correspondência entre isso e as
categorias da "superestrutura"
(a ideologia pretextual) e da
"infraestrutura" (o que esse
pretexto desejaria esconder).
Essa ideia veio de algum
lugar.
Certa tese que parece ter
origem neoplatônica é a de que
Deus fez o mundo porque
precisava dele para se realizar
ou aperfeiçoar, de outro modo
o mundo não teria sido feito
ou não teria razão de ser. Isso
opõe o intelecto criador
tomado de modo
comparativamente pejorativo
(mundo como ideia), a uma
natureza cuja função é elevar o
criador e desvelar o real
(mundo como rapto). Assim,
surgem dois deuses em
disputa, porque surgem dois
princípios distintos da
divindade.
Essa disputa também pode ser
descrita como a disputa entre a
concepção ("mundo como
ideia") e a impressão ("mundo
como rapto"). Ora, a
valorização da impressão, em
detrimento da concepção,
significa a valorização das
coisas vistas de fora ou de
modo superficial (exoterismo),
em detrimento das coisas vista
desde "dentro" (esoterismo).
Quanto mais superficial mais
acessível e popularizável, daí o
igualitarismo das classes
baixas defendido pelo
marxismo; e a expectativa de
que as classes baixas devem
tomar o poder.
O marxismo, no entanto, não
se apega só à impressão, como
se teria feito ante a israelense
matreira; ele também usa a
valorização da concepção, do
discurso, das ideias, desde que
submissos aos fins da
impressão, da coletividade ou
classe social; como a criação,
daquela tese neoplatônica, se
usa do intelecto divino para
aperfeiçoar o divino.
O efeito disso é uma contínua,
e ademais pendular, promoção
do efeito-medusa; o sugar
concepção ou "vida" das
coisas, tornadas estátuas.
Por exemplo, é a submissão da
concepção, tornada pejorativa,
à impressão, o motivo de um
autor como Albert Pike (ele
imbuído de ideais
esquerdistas) transmitir os
mais sutis, complicados e
refinados conhecimentos no
mesmo escrito em que faz a
panfletagem mais descarada
possível em favor do
igualitarismo e da negação da
autoridade do clérigo (eu falo
do livro Morals and Dogma, é
claro). Se trata dum confuso
morde e assopra cujo
previsível resultado, e
implícito convite inadvertido,
é a promoção do efeito-
medusa, o projetar sobre
conhecimentos legítimos uma
falsa, esvaziada e petrificada
interpretação improvisada,
impressão de momento.
A inversão hierárquica
popularizadora, entre
concepção e impressão,
explica todo tipo de fenômeno
do séc. XIX, inclusive o
espiritismo e o teosofismo, que
influenciaram o marxismo.
Essa inversão; a bifurcação do
dogma (mundo como ideia e
como rapto) e o efeito-medusa,
são todos diferentes lados da
tirania. E do antiperenialismo.
Note-se ademais, que o morde
e assopra pikeano é uma das
origens remotas da ideologia
de que "se deve obedecer o
clérigo, mas não há nem deve
haver nenhum clérigo à mão".
A mentalidade que promove
essa ideologia sob o pretexto
de combater "subjetivismo" e
"intelectualismo" desviantes é
apenas panfletagem ocultista
inadvertida.
Capítulo VI -
Antiperenialismo e Santo
Tomás
Porque Santo Tomás de
Aquino era um clérigo célebre,
o antiperenialista não pode se
furtar a lidar com ele ( em
"homenagem" funesta)
transformando-o em uma
estátua.
Haverá tempo para chorar e
lamentar, e ranger os dentes
aos soluços, a deixar rolar
sobre as faces lágrimas; por
causa de tais profanações.
Haverá tempo para bramir e
gemer, arrimar contra objetos
e paredes, e assombrar ante a
inconsciência torpe que sorri
no entorno. E se não queres
continuar a me acompanhar,
mas insistes em parar pesaroso
(se é que o fazes), deixa-me
tomar a harpa e a voz, diante
da Cidade em chamas,
enquanto choras.
Eu também choro, um pouco,
no canto do olho, a gota
congelando antes de vir
abaixo, o peito esvaziando
débil para não soluçar com
gosto; porque o show tem de
continuar; e cada ator deve
tomar o seu quinhão. A minha
balada atrapalha o coro alheio,
é étnica, mas isso faz pouco
efeito; estão todos bêbados, a
dissonância é o ar que
respiram.
O ar que se respira na Summa
Theologica de Santo Tomás é
a ideia de que todas as coisas
estão em Deus, e Deus está em
todas as coisas. Os que
desprezam a concepção, em
prol da impressão, tratarão
com profundo respeito essa
ideia, em público; mas no
fundo dão uma figa pra ela; e
estão pouco se lixando para se
é verdadeira ou não, não se
interessam o suficiente para
ajuizá-lo. Os raciocínios
tomistas a respeito, para o
íntimo dos antiperenialistas,
equivalem em esquisitice ao
Duque de Anjou se travestir de
cortesã fogosa, com direito a
leque, espartilho, pó de arroz e
risadinhas histriônicas. Na
melhor das hipóteses, o ponto
de vista tomista afasta o
antiperenialista sem que ele
chegue a cristalizar essa
impressão negativa; e o
tomismo se vê reduzido,
assim, a um repertório de
sacadas elegantes vistas de
fora, como o duque antes da
sua aversiva "transformação
de cinderela".
Por causa do seu malquerer à
concepção, o antiperenialista
não terá nenhuma
familiaridade com raciocinar
empregando concepções
clássicas, como as noções de
"diferença específica",
"definição", "propriedade",
"acidente", "gênero", "relação"
etc. Quando ele tem alguma
ideia do que são essas coisas
ele seja as trata como semi-
frivolidades teatrais ("mundo
como ideia"), às quais deve
alguma coisa na medida em
que é devedor das aparências;
ou, no menos degradado dos
casos, ele trata essas
concepções como passíveis de
ser empregadas de modo mais
ou menos convencional; ora
sim, ora não; o hiato entre os
dois casos sendo preenchido
pela impressão, pelo efeito-
medusa. Isso desde já sugere a
incapacidade de admitir "A
respeito disso e daquilo, estou
aquém, não posso julgar"; uma
admissão que, dita da boca
para fora, pode muito bem
esconder o efeito-medusa à
plena vista. Esse esconder à
plena vista a própria
ignorância, ademais, pode
tomar diversas formas.
Mas voltemos ao tomismo,
que afinal é preciso vez ou
outra respirar um pouco. Ora,
Deus estar nas coisas, e elas
nEle; se expressa, por
exemplo, na tese tomista de
em Deus não haver distinção
entre essência e acidente. Se
alguém é um homem
(essência), não segue que é
brasileiro (acidente). Em Deus
essa distinção não existe.
Consequentemente, porque,
seguindo Santo Tomás, as
coisas existem na medida em
que se assemelham a Deus
(embora não possa existir
medida de comparação entre
as coisas criadas e Deus), a
coadunação entre essência e
acidente, a unidade subjacente
entre essência e acidente, é um
reflexo ou uma semelhança em
relação à análoga unidade ou
indistinção entre essência e
acidente em Deus.
No tomismo é distinguido
entre ato e potência. Por
exemplo, se eu toco harpa
pesaroso, e desejaria chorar,
meu choro existe em potência.
Se eu entoo uma canção triste
enquanto sinto o calor e o
crepitar das chamas à volta, a
canção é em parte ato, em
parte potência, porque é em
parte cantada e em parte ainda
resta ser cantada. Dessas
considerações decorre que o
fato de em Deus não existir
distinção entre essência e
acidente está ligado ao fato de
em Deus, segundo propõe o
tomismo, não existir potência
mas só ação. Deus não precisa
aguardar o fim da canção para
cantá-la ou ouvi-la, nem muito
menos precisa aguardar para
poder manifestar pesar. Assim,
a essência corresponde à
"ação" (porque a essência é
comparativamente mais real,
como a ação), o acidente à
potência (porque o acidente é
comparativamente mais irreal,
como a potência); a distinção
entre esses dois pares não
existindo em Deus por
motivos aproximados, embora
esses dois pares não tenham
uma definição coincidente.
Eu não insisto em detalhar
esses pontos seja porque o
leitor quiçá me imaginar
(projetivamente) com um
leque na mão é de mau tom, e
eu não quero cansar a sua
beleza; seja porque o leitor
pode ler a Summa Theologica
a qualquer momento e lá achar
a insistência nessas noções
católicas outrora mais
ordinárias.
O ponto é que dessas
considerações segue que a
doutrina dogmática
corresponde mais ao "ato" e à
"essência", enquanto a
doutrina moral corresponde
mais à "potência" e ao
"acidente"; e que por isso
existe entre dogma e moral
uma unidade subjacente,
tornando dogma e moral
termos relativos, como "pai"
em relação a "filho".
Isso é significado na epístola 1
João 5:8 pelas "três
testemunhas terrestres",
"espírito", "água" e "sangue".
Essa divisão a passagem
indica em paralelismo com as
três pessoas divinas, Pai,
Verbo (Filho) e Espírito Santo,
nessa ordem. Ora, essa mesma
divisão tem certa
correspondência com a divisão
dos catecismos em "doutrina
teológica", "doutrina
sacramental" e "doutrina
moral", divisão que se
apresenta nessa mesma ordem,
a mesma da epístola. As três
testemunhas terrestres "são
um"; consequentemente a
doutrina teológica e a doutrina
moral "são um" em um sentido
subjacente; porque são uma
espécie de projeção terrestre
das Três Pessoas celestes (que
são idênticas em essência) na
Sua mútua relação.
Segundo a Carta a Flaviano
(Concílio de Calcedônia) as
três testemunhas terrestres,
"espírito da santificação",
"água do batismo" e "sangue
da redenção" são termos
relativos, se você tem uma,
tem as demais, em um elo
inseparável. A mesma coisa
Santo Agostinho diz das
pessoas divinas, que são
termos relativos. Se você não
tem o Pai, não tem o Filho, se
você tem o Pai, tem o Filho.
Se você não tem o Espírito
Santo não tem o Pai nem o
Filho, e vice-versa etc.
Consequentemente, se você
não tem a moral não tem o
dogma, e se não tem o dogma,
não tem a moral, uma coisa se
prolonga na outra
subjacentemente, os dois
termos são mutuamente
conversíveis.
A unidade subjacente entre
dogma e moral também é
significada pela propriedade
das três doutrinas; "teológica";
"sacramental"; "moral". Na
doutrina teológica há "coisa
significada", "significado" e
"signo". O significado (o que
se intencionou dizer) é uma
tensão ou intermediação entre
"coisa significada" e "signo".
Na doutrina sacramental há
"fórmula", "intenção" e
"matéria". Por exemplo, em
um dos sacramentos, o
batismo, certas palavras são a
"fórmula", a "intenção" é o
emprego da fórmula com a
intenção de batizar, e a matéria
é a água. A intenção, mesmo
etimologicamente, significa
"tensão" e "intermediação". Na
doutrina moral há "preceito",
"esforço" e "circunstância"; o
esforço sendo a intermediação
entre o preceito e a
circunstância. Similarmente, a
doutrina sacramental é uma
tensão ou intermediação entre
a doutrina teológica e a
doutrina moral.
A passagem em João 14:6
("Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida") também
guarda correspondência com 1
João 5:8 e as três testemunhas
terrestres (espírito, água e
sangue) em paralelismo com
as testemunhas celestes (Pai,
Verbo e Espírito Santo),
inclusive porque é uma
passagem sobre as pessoas
divinas serem termos relativos
(se você tem um tem outro). O
"caminho" corresponde a
"água" (doutrina sacramental),
a "verdade" ao "espírito"
(doutrina teológica), a "vida"
ao "sangue" (doutrina moral).
Teologia, sacramentos e moral
também correspondem a
"todas as coisas" serem vindas
de Deus, serem através de
Deus, e serem em Deus
(Romanos 11:36, passagem
que usa essa mesma ordem).
Também correspondem a "fé,
esperança e caridade" (1
Coríntios 13:13); sendo
significativo que o Espírito
Santo tradicionalmente se
associa à caridade, segundo o
Catecismo de Trento.
Essas correspondências
tornam mais significativo que
o Credo preconize a enfática
importância do Espírito Santo
através do artigo que diz
"Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá vida" etc. O
Espírito Santo corresponde à
doutrina moral, e isso está
ligado ao fato de que se está
imerso nele (Romanos 11:36),
como se está imerso na vida
(João 14:6), o experimentar a
caridade (1 Coríntios 13:13)
sendo o experimentar estar
imerso em algo não
perfeitamente abarcado. O
Espírito Santo, entretanto, por
ser principiado pelo Pai (que
correspondente à doutrina
teológica) se associa
precisamente à noção da
divindade sob o aspecto de
Deus doar vida através da
doação de possibilidades
concepcionais que são
comparativamente mais
pressentidas do que abarcadas.
É precisamente essa a natureza
da doutrina moral. Isso pode
ser visto, ademais, pelo fato de
certa lenda sobre Santo
Antônio de Pádua indicar que
um frade franciscano deixou
de todo de ser confrontado por
tentações depois de Santo
Antonio soprar sobre ele
dizendo "Recebe o Espírito
Santo!". O frade deixou de ser
tentado sem entender por que,
inteiramente, em um sentido
concepcional, mas
pressentindo o por quê.
Como o ato divino (segundo o
tomismo) principia as coisas
potenciais, sem que Deus
tenha qualquer coisa de
potencial; o domínio moral é
uma projeção do domínio
teológico, sem que os dois
domínios sejam coincidentes.
Em todo caso, esses domínios
são relativos um ao outro, e
porque o domínio teológico
principia, o moral é
principiado, eles possuem uma
unidade subjacente, como a
essência e o acidente.
Feita toda essa explicação; em
intervalo no qual o leitor que
tiver chorado em vez de
entender terá feito bem mais
que a maioria; é possível fazer
observações retrospectivas
surpreendentes.
Já foi mencionada a tese
neoplatônica de que Deus é
aperfeiçoado pela natureza; e
na esteira disso, a natureza ou
a criatura se torna uma espécie
de princípio em competição
com Deus, uma segunda
divindade. Também foi
mencionado que decorre disso
a expectativa de que a
impressão (que corresponde à
natureza) compete com a
concepção (que corresponde
ao intelecto divino criador),
com o resultado de que a
multidão passa a competir com
o clérigo a respeito de quem
deve dirigir e governar.
Ora, dogma e moral
correspondem,
adicionalmente, a concepção e
impressão. Essa inversão
neoplatônica, portanto, faz
decorrer a tentativa de colocar
a moral como um domínio que
principia o dogma, ou tem
certa independência em
relação a ele, que compete
com ele ao ponto de a sua
inferioridade hierárquica e
dependência não ser evidente.
É por meio desse mecanismo
que o protestantismo cortou o
inequívoco cordão umbilical
entre fé e moral, promovendo
uma confusa ou dúbia
independência entre a
profissão de fé (concepção) e a
moral (impressão).
É significativo, a esse respeito,
que Albert Pike tenha
intitulado seu livro clássico
"Morals and Dogma",
sugerindo o colocar a doutrina
moral como competidora da
concepção sutil em prioridade.
A independência da doutrina
moral é um dos ingredientes
do igualitarismo moderno, o
que pode ser visto em que a
doutrina moral é mais
acessível, e o cortar os laços
entre ela e o dogma
conveniente a uma
mentalidade que quer boicotar
o clérigo, o indivíduo
contemplativo; e todo traço de
esoterismo que o clérigo traz à
mesa.
Curiosamente, a ideia da
unidade subjacente entre
dogma e moral pode muito
bem ser combatida pelo
antiperenialista com algum
abstratismo pejorativo ("em tal
e qual circunstância há ação
moral sem dogma subjacente
ou levado em consideração")
que bem ilustra a correlação
entre "mundo como ideia" e a
noção de "efeito-medusa"; já
que só é possível negar essa
unidade subjacente através de
um truque verbal, tudo quanto
dito acima corroborando essa
unidade de modo suficiente.
Não se trata de dizer, por
exemplo, que a pessoa que
peca faz uma falsa profissão
de fé ao ponto da má fé "em
ato" que separa da Igreja por
heresia. Mas é manifesto que a
pessoa que peca faz uma falsa
profissão de fé em potência; a
diferença entre dogma e moral
correspondendo precisamente
àquela que existe entre ato e
potência.
Se batendo em favor da
independência da moral em
relação ao dogma, e não
admitindo senão uma relação
mais ou menos "retroativa", ou
costurada de fora pela mente
(mundo como ideia); o
antiperenialista não tem o
hábito de examinar a própria
conduta moral à luz de
concepções que escapem a
alguma convenção ou
estereótipo. O que o
antiperenialista entende por
moral, portanto, é a convenção
estereotípica, tudo mais sendo
profano; o que faz do
antiperenialismo algo muito
parecido com o
protestantismo, na medida em
que o protestantismo não raro
se vê reduzido, segundo se diz,
a uma espécie de ética secular
ou cívica. Esse tipo de moral
não tem nada a ver com o
domínio religioso ou
sobrenatural.
Capítulo VII -
Antiperenialismo, zahirismo e
a New Age
Uma história sobre homens
que tomam café da manhã com
estátuas, e papeiam com elas
rotineiramente, é uma história
suja como um filme de terror.
É precisamente esse o papel
ingrato no qual eu me coloco
ao falar dos antiperenialistas.
Quem fala mal dos outros
parece malicioso e invejoso;
quem dá más notícias parece
odioso (no melhor dos casos
malcriado); quem aconselha o
que necessita conselho parece
enfadonho e importuno; quem
anatematiza hereges parece um
"narcisista das pequenas
diferenças". Tudo isso é
verdade, e longe de mim negar
que o efeito provável-aparente
do meu estudo é o mais solene
fracasso e esquecimento; na
melhor das hipóteses um
linchamento público com
direito a pontapés no traseiro,
por inimigos com o ímpeto
extasiado de uma pessoa para
quem não existe um amanhã.
Seja como for, eu tenho a
palavra e o deserto; nada mais
sendo necessário para dizer a
verdade. Eu tenho tudo que
preciso, tudo o que almejo. As
crianças celebrem a própria
dourada juventude no pátio,
enquanto sofro uma morte
dourada cá no aposento, e esse
é o uso do mundo.
O zahirismo é uma doutrina
islâmica, tomada como
heterodoxa em alguns círculos,
e significa a ideia de que a
leitura estrita, com valor de
superfície (face value), é a
única leitura legítima de um
texto sagrado. Essa premissa
supõe que se Deus houvesse
de propor camadas de sentido
adicionais, ele as proporia em
um texto adicional; procurar
um fundo por trás do texto é
estéril e presunçoso. O
zahirismo, portanto, significa a
indistinção entre texto
profano/ordinário e texto
sagrado, correspondendo à
indistinção entre impressão e
concepção.
Os antiperenialistas são
"zahiristas", é claro.
Cabe acrescentar que Santo
Tomás propunha que as
escrituras sagradas têm como
propriedade multiplicidade de
sentido (sem ocasionar
equívoco), e que dos quatro
sentidos principais o sentido
alegórico, principalmente,
tende a se prolongar
indefinidamente em camadas
adicionais; enquanto os
antiperenialistas, de sua vez,
tendem a valorizar o sentido
literal, e desprezar toda outra
camada; quando menos não
têm qualquer objeção ou
alarme provável a quem
propõe desprezar toda outra
camada.
Não havendo para esses
indivíduos nenhuma distinção
significativa entre a linguagem
sagrada e a linguagem profana
(no melhor dos casos nenhuma
clareza significativa a
respeito), a diferença entre as
duas coisas tem de se basear
em uma espécie de convenção.
Dar importância ao
simbolismo bíblico como algo
guardando um tesouro sutil, é
para os tais o sinal de uma
frivolidade, a despeito, por
exemplo, da Summa
Theologica, Pars Prima,
Questão 2, Artigo 9, Resposta
à Objeção 2: “O próprio
esconder a verdade em figuras
é útil para o exercício das
mentes
pensativas/responsáveis e
como defesa contra o
ridicularizar dos ímpios, de
acordo com as palavras ‘Não
dê aquilo que é santo aos cães’
(Mateus 7:6).”
Esse caráter convencional do
valor das escrituras faz que
não se dê muita importância --
senão uma condicionada à
convenção -- ao conteúdo do
que se diz, do que quem quer
que seja diz; faz com que o
hábito de agir assim pareça um
modelo de maturidade.
Semelhantemente, as seitas da
Nova Era são conhecidas,
desde a visão olavista, por
empregar a razão contra as
doutrinas religiosas de fora, e
internamente não ligar para
prestar contas à razão, como se
o emprego da razão tivesse um
valor meramente
convencional.
O curioso é que o zahirismo
deveria ser um se fiar na letra
da escritura, não um desprezá-
la. Este, porém, parece ser o
preço a se pagar por tornar as
escrituras tão superficiais
quanto a adquirir uma textura
quebradiça. O recurso usado
para preencher os espaços
entre as rachaduras é o
sentimento. O capricho
sentimental de hoje substitui o
silogismo de ontem. As
manhas e queixas confusas
aposentam os tratados
aristotélicos de lógica.
É na esteira disso que surgem
acusações de heresia sem
nenhum conteúdo herético;
sem nenhum conteúdo de
todo; e o alardear mentiras
sem a capacidade de as
distinguir claramente da
realidade, ou responder por
elas; alardear mentiras por
meio de dizeres subliminares,
e por isso tanto mais capciosos
e de difícil exame. É possível
se escandalizar porque alguém
compara a religião católica
com uma outra, sem isso
implicar a proposta de uma
coincidência, ou de algum
indiferentismo religioso;
quando o reconhecer que uma
religião é uma religião, falsa
ou não, é já necessariamente
uma comparação. É possível
acusar alguém de heresia por
defender que um herege não
tinha tal ou qual defeito alheio
à sua heresia; mas uma outra
falta, não importa se mais ou
menos grave. Se eu digo
"Aquele herege não roubou
pirulito da criança, mas a
esbofeteou", eu estou aderindo
à heresia dele, e de modo
cafajeste. Não há diferença
significativa entre dizer "O
muçulmano é monoteísta" e
fazer as cinco preces diárias do
islã. Não é possível mais
distinguir a essência do
acidente, o que se disse e o
que se sente que foi dito; em
uma espécie de paródia
demoníaca da indistinção
tomista entre essência e
acidente em Deus; uma
paródia que essas hipérboles
capciosamente dão a
impressão ser mais exagerada
que real; pois se trata menos
de hipérboles do que de
exemplos por um mero acaso
mais imunes a uma convenção
ou expectativa pejorativas.
Em certos meios sociais
antiperenialistas a única
maneira de ser ortodoxo é
submeter a própria percepção
e sentimentos à atmosfera
social em torno, e na prática se
submeter ao indivíduo em
destaque no meio social; o
qual é não raro o que menos se
assemelha a um clérigo; é
alguém que, isto sim, se
assemelha a um xamã, i.e. um
indivíduo que abriu mão da
gratificação intelectual para
melhor produzir ou sentir um
efeito psíquico, o efeito-
medusa e a auto-petrificação;
inclusive um indivíduo que,
como se diz em inglês, "will
go the extra mile" para não ter
de se endereçar
intelectualmente àquilo a que
pode se endereçar com o uso
de um truque ou distração.
A inclinação coletivista em
questão torna indistintas não
apenas essência e acidente em
afirmações doutrinais, mas
íntimo e exterior, "eu" e "ele",
subentendendo inclusive a
expectativa de antever, ou até
conhecer telepaticamente e em
detalhes, hábitos privados e
pensamentos alheios, como
alguém que tivesse uma
faculdade mística. Não é
possível impedir que isso
aconteça depois de abolida a
distinção entre "superfície" e
"fundo".
A Igreja Católica deveria ser
"universal" porque os seus
membros são unidos pela
intermediação da concepção, e
pela intermediação daqueles
que personificam a concepção
(os clérigos). A inclinação
antiperenialista, a intermediar
a relação de "fiéis" pelo
sentimento em detrimento da
concepção, pode muito bem
vir de par com o mais
hipócrita desprezo pela
dignidade do clérigo, pode vir
de par com o usar o clérigo
como mero carimbador
inadvertido de algo que se
decidiu preconizar.
A indistinção entre
"superfície" e "fundo",
ademais, se expressa na mais
perfeita indiferença e mal-
disfarçada incompreensão do
Segundo Mandamento,
Mandamento que implica o
esforço pela acuidade e pelo
cuidado no uso de nomes
sagrados, como "Deus". A
reverência pelo nome sagrado,
qualquer que seja o objeto
sagrado, significa o
reconhecimento de que por
trás da superfície do nome há
algo grave e profundo que o
nome deve necessariamente
evocar, sob pena de se padecer
em patética e funesta cegueira.
O Segundo Mandamento se
prolonga em todos os demais
dos Dez Mandamentos, porque
todos supõem "superfície" e
"fundo", e é o elo entre os
demais e o polo
comparativamente mais
concepcional do Primeiro (a
honra a Deus, a aversão à
petrificação idólatra que faz
desaparecer a dimensão
concepcional e divina no seu
sentido ilimitado). Assim, o
Catecismo de Trento ensina
que o Segundo Mandamento é
o Primeiro Mandamento, de
certo modo; isso significando
uma alusão à unidade
subjacente entre concepção e
impressão, dogma e moral,
entre o Espírito Santo e a
vida.
Capítulo VIII -
Antiperenialismo e "o
problema final"
Me parece que se destaca em
certas obras da literatura
americana um tema. Digamos
que ele seja o problema central
do mundo contemporâneo.
Esse é o tema de que a
influência do clérigo (a
influência da concentração
concepcional) não pode
alcançar os servos, as pessoas
espiritualmente mais
periféricas.
Por exemplo, no conto "Daisy
Miller", de Henry James, se
trata de uma estranha história a
respeito de como o caráter
americano, retratado
alegoricamente, pode chocar
os europeus. Os europeus
acharam estranho na moça
americana Daisy Miller que
ela parecesse uma namoradeira
desajuizada, sem recato, e ao
mesmo tempo fosse seguro
que ela era uma pessoa muito
casta e inocente. Isso sugere
uma atmosfera na qual o
estereótipo, a superfície, se
sobrepõe à intenção autêntica
justamente porque a intenção é
estéril, não foi "fecundada", o
que guarda paralelismo com o
fato de o narrador, o Sr.
Winterborne, não ter a menor
intenção amorosa significativa
para com a moça, e ser um
libertino. O recato de fundo, e
a libertinagem de superfície,
da parte da moça, se contrasta
com o recato de superfície, e
libertinagem de fundo, do
rapaz.
A recusa do clérigo
(representado pelo masculino)
a alcançar o mundo secular
(representado pelo feminino)
significa a presença ou atuação
espectral de um clero nominal,
na falta de um clero autêntico.
O livro de Lyman Frank
Baum, O Mágico de Oz, repete
o mesmo tema. O "grande e
poderoso" Oz, chefe de
Emerald City, representa o
clérigo nominal que não é
clérigo autenticamente, e,
portanto, só em um sentido
residual e duvidoso pode opor-
se às bruxas (que representam
o aspecto negativo ou
degenerado do mundo
secular).
Semelhantemente, em "As
Aventuras de Huckleberry
Finn", romance de Mark
Twain. A descida pelo rio
Mississippi de Huckleberry
(uma criança travessa) e Jim
(um escravo fugitivo de pouca
instrução); essa fuga
representa o servo, o leigo
deixado à própria sorte. Essa
descida, como as pernas de
ferro da estátua de
Nabucodonosor
desembocando em pés de ferro
misturado a barro, desemboca
no encontro com uma dupla de
charlatães (que representam os
tiranos, a usurpação de um
papel nobre pelo servo). É
significativo que o
personagem, nessa história,
que corresponde ao clérigo, é
o menino chamado Tom
Sawyer; que aparece no final e
rouba a cena de modo
fantástico. Sawyer está
interessado em colaborar com
o bem-estar de Huckleberry e
Jim, e ele o faz criando e
explorando, mesmo de modo
cômico, possibilidades de ação
(concentração concepcional).
Isso sugere que qualquer
intervenção autêntica do
clérigo na sociedade
americana possui um caráter
cômico e imaturo; decisivo
mas discreto, assim como
aquilo que é cômico é por
definição mais sutil do que
direto, isto é, é uma
insinuação. Da mesma
maneira, em O Mágico de Oz
o papel sacerdotal e nobre é
desempenhado por noviços
político cômicos, isto é,
Dorothy e seus companheiros.
Esse mesmo tema está na
história trágica de Scott
Fitzgerald, O Grande Gatsby.
Tom Buchanan, marido de
Daisy, corresponde ao mágico
de Oz, ele tem uma posição de
prestígio e nobreza nominais,
mas é um tirano. O
pretendente rival do Sr.
Buchanan é Gatsby, que
corresponde às bruxas de Oz,
porque Gatsby representa uma
espécie de insubordinação do
mundo secular, do leigo,
deixado com a tarefa de
governar a própria sorte desde
a própria inferioridade. Os
dois são tiranos, eles são dois
lados da mesma moeda,
precisamente conforme a
imagem dual "do lobo em pele
de ovelha", e é por isso que a
atuação sutil e cômica do
clérigo (o aspirante a escritor
Nick Carraway), é ambígua
em se fazer, de modo
corrompido, colaboradora de
um ou outro.
O mesmo tema é explorado no
livro Inferno, de Dan Brown.
O Prof. Langdon corresponde
ao clérigo, a agente
governamental Elizabeth
Sinskey corresponde ao
mundo secular; eles se terem
separado quando jovens em
vez de se casarem significa
precisamente o deixar o
mundo secular à própria sorte;
principalmente se o contexto é
uma degeneração
civilizacional que faz surgir
tiranos ou "bruxas" como
Bertrand Zobrist. O principal
tema dos romances do Sr.
Brown parece ser o do
intelectual (ou clérigo) imerso
em um mundo dividido nas
categorias de Bruno Tolentino,
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto".
Feitas essas explicações,
parece manifesto que elas
tornam o drama americano
muito parecido com o drama
do mundo islâmico. A
principal característica do islã,
segundo René Guénon (que foi
um sheikh), é a separação
enfática entre exoterismo e
esoterismo, e portanto entre o
ponto de vista do leigo (mundo
secular) e do "clérigo" (mundo
contemplativo). O islã é uma
tentativa de mitigar esse não
casamento entre o mundo
secular e o mundo clerical;
precisamente o que a cultura
hollywoodiana, com o seu
repertório sem fim de
simbolismos tradicionais
discretos, faz pelos EUA.
Hollywood etc. discute coisas
profundas aos olhos de todos,
sem que quase ninguém entre
nas discussões ou as
acompanhe, e todo mundo fica
contente.
Essa mitigação, entretanto,
parece vir com um preço, que
é a mistura marginal ou não
total, entre o simbolismo que
reformula o sentido das coisas
("mundo como ideia") e o
simbolismo que reformula o
sentido das emoções ("mundo
como rapto"). Um exemplo do
primeiro é o seriado Avatar
(que reformula o sentido da
divisão da sociedade em
castas, chamando as castas de
"as quatro nações"); um
exemplo do segundo é o filme
Deadpool, que parece
reconhecer a ficção das coisas
na própria narrativa, para
melhor propor a reformulação
fictícia das emoções,
colocando o escândalo e o
desespero como mais real ou
significativo do que a
serenidade e a esperança.
A reformulação das coisas
corresponde ao ferro nos pés
da estátua de Nabucodonosor,
a reformulação dos
sentimentos corresponde ao
barro. Essa mistura entre ferro
e barro também parece
corresponder à mistura entre
"direita" e "esquerda", no
mundo contemporâneo.
Também corresponde às cores
púrpura e escarlata (esta não
por coincidência a cor de
Deadpool) da vestimenta de
Babilônia, a grande.
Essa dinâmica significa
precisamente que aquilo que
não puder ser explicado ou
preenchido com concepção,
será preenchido com algum
truque ou alguma distração
sentimental, precisamente o
problema do antiperenialismo.
Enquanto o símbolo (a
reformulação das coisas) faz
as pessoas tenderem à
compreensão de um sentido de
fundo (ato e essência), o
sentimentalismo (a
reformulação dos sentimentos)
faz as pessoas tenderem à
impressão e à superfície
(potência e acidente). O jogar
com símbolo (concepção) e
sentimentalismo (impressão) é
todo o sentido da obra
maçônica de Albert Pike, um
autor americano clássico.
A pergunta a respeito de como
escapar a essa bifurcação entre
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto", o jogo pejorativo
entre símbolo e
sentimentalismo; é uma
pergunta à qual o catolicismo
deu lá a sua resposta clássica.
Por exemplo, na história de
Santa Maria do Egito.
Eu já contei histórias demais, é
verdade, e se o leitor está
cansado, imagine eu. Eu já
estava cansado alguns
capítulos atrás. Por isso
abandona as desculpas, vai
trazer uma xícara de café; se
for do teu gosto uma broa de
milho; e uma nesgazinha de
ânimo, como o bom soldado
que sei que és. Ou então
encerra a leitura sem ler a
última história nela; eu já
estou cansado demais para
debater.
A história de Maria é bem
conhecida, essa santa foi
louvada no Segundo Concílio
de Niceia, e a sua história
consta do livro de Alban
Butler sobre santos. Maria foi
uma prostituta em Alexandria,
Egito, nascida no século IV,
quando a Igreja Católica era
predominante. Ela se
arrependeu dos próprios
pecados e paixões violentas e
foi como arrebatada para o
deserto depois de tocada pela
Virgem Maria, passando
décadas em extraordinária e
miraculosa penitência,
desconhecida de todos. Mais
ou menos ao fim de sua vida
um abade chamado Zózimo a
encontrou quando ele, Zózimo,
fazia uma espécie de
peregrinação quaresmal.
Zózimo estava confuso por
causa da sensação que havia
algum tempo tinha de que ele
se tornara perfeito com
religioso, uma sensação
correspondente ao "mundo
como ideia". O ter sido
arrebatada pela confusão do
arrependimento, da parte de
Maria, e vagarosamente
aprendido a dissipar a força
dos ataques das tentações, de
outro lado, corresponde ao
"mundo como rapto".
O ter (em um encontro
seguinte) atravessado o rio
andando sobre as águas, de um
banco a outro, para chegar a
Zózimo e receber a eucaristia;
da parte de Maria; é um
símbolo justamente para a
travessia da dissipação da
dualidade entre "mundo como
ideia" e "mundo como rapto",
as águas significando as
aparências sem forma fixa que
assombram o caminho. Não é
a natureza que principia ou
cria o divino, como propunha
a tese neoplatônica, mas é
Deus quem, por intermédio do
domínio das impressões
(natureza) principia, cria e
aperfeiçoa as criaturas, e
revela a si no fundo das
impressões. O constante estar
atento às suas culpas, de
Maria, foi uma espécie de
martírio pelo qual Deus fez da
estátua na qual Maria tinha se
tornado um ser vivente de
novo. Consequentemente, a
concentração concepcional
tem como fundo substancial
ou vital o martírio, e a
mitigação do martírio consiste
precisamente em uma
atenuação corruptora da
concentração concepcional.
No jogo para lidar com o
nefasto antiperenialismo, e
demais erros que assolam a
Igreja Católica e a causa de
Deus, ganha quem for capaz
de olhar para a verdade
dolorosa e salvífica, quem for
capaz de encarar o martírio do
testemunho. Isso requer um
milagre, em um mundo que
acomoda marginalmente o
sentimentalismo como quem
promove o ar que respira.
Se é necessário um milagre, a
pergunta que se impõe é
"Acaso vou eu rezar por ele?"