o mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma...

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Prefácio O mundo dá voltas, o aparente amigo de hoje às vezes se torna o inimigo de amanhã, e vice-versa. Eu escrevo contra mortais inimigos que desejariam passar por amigos da causa romana. Escrevo, em parte, contra pessoas cujo desrespeito ostensivo pela revelação cristã em muito ultrapassa a sujeira dos prostíbulos e dos convencionais esgotos morais mundanos. Entretanto, o sentimentalismo hipnótico por trás desse exército de

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Page 1: O mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma espécie de "aventura" na qual eu estou imerso historicamente; como a então relativa

Prefácio

O mundo dá voltas, o aparente

amigo de hoje às vezes se

torna o inimigo de amanhã, e

vice-versa. Eu escrevo contra

mortais inimigos que

desejariam passar por amigos

da causa romana. Escrevo, em

parte, contra pessoas cujo

desrespeito ostensivo pela

revelação cristã em muito

ultrapassa a sujeira dos

prostíbulos e dos

convencionais esgotos morais

mundanos. Entretanto, o

sentimentalismo hipnótico por

trás desse exército de

Page 2: O mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma espécie de "aventura" na qual eu estou imerso historicamente; como a então relativa

fantasmas que uivam

orgulhosos; e proclamam da

boca para fora a seriedade da

própria perversa loucura; esse

sentimentalismo também fora

mais ou menos o meu, qual um

selo inexorável que marca o

homem contemporâneo.

Eu me dirijo a um assunto em

relação ao qual uma

convenção tirânica se meteu

para bagunçar e avacalhar. A

verdade não tem soberania

para o antiperenialista, e de tal

modo é essa farsa bem-

sucedida em desrespeitar a

verdade e escandalizar, que a

minha intentada clarificação é

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mais a consideração de um

dever, o procurar gemer sede e

fome de justiça, do que saciá-

las.

O estudo da heresia

antiperenialista é um dos mais

interessantes que jamais fiz,

talvez o mais interessante de

todos, em parte porque é uma

espécie de "aventura" na qual

eu estou imerso

historicamente; como a então

relativa novidade espírita que

nos seus dias Max Stirner

levava tão a sério. Os filmes

do Indiana Jones, entretanto,

talvez sejam suficientes para

indicar que assistir como mero

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expectador a aventuras

excitantes é bem menos

perigoso do que experimentá-

las em carne e osso.

Eu quero me ater ao essencial,

e quanto possível ao mais

sucinto descrever (sem

mergulhar na indignação que o

assunto merece), para não

suceder que me venha o que

ocorreu com Jean Racine ao

escrever contra os vícios da

sua alma mater, Port Royal;

isto é, para que não me venha

que o "escrito faça bem ao

intelecto, e mal ao coração",

quando o contato com o

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nefasto antiperenialismo já me

fez mal o bastante.

Eu também sou forçado a fazer

uma digressão, não biográfica

como John Henry Newman na

sua resposta clássica ao ataque

de Charles Kingsley, mas de

tipo estritamente filosófico. Eu

não confio na boa vontade da

audiência, nem me dá

esperança essa boa vontade ao

cabo da exposição -- como

Newman confiou que haveria

para si --, afinal, eu não sou

Newman, a minha audiência

não é de cavalheiros ingleses,

nem saí do estado de rabugens

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de pessimismo no qual estou

metido.

Possa este escrito, pois, servir

como o testemunho de

encontro a vaias e cusparadas,

pancadas e dar de costas

coberto de desdém, para que

eu de minha vez possa cobrir

um domínio interior já não

mais perturbado pelo

escândalo, mas na resignação

esteja consolado com a

verdade. Possa eu chorar só

meu choro ante o incêndio de

Roma, enquanto os outros

cantam e tocam harpa, ou

passeiam como se fosse any

other tuesday.

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Capítulo I - Um olhar casual

sobre o antiperenialismo.

No seu estudo do espiritismo,

também em outros escritos, o

fundador da escola

perenialista, René Guénon, faz

questão de destacar a

importância de desdenhar

(acaso eu disse "desdenhar"?)

o sucesso no proselitismo, o

priorizar o proselitismo; ele

faz questão de enxergar nessas

coisas ilusória vantagem.

Ganhar adeptos não é o mais

importante, segundo Guénon.

Ganhar adeptos em grande

número, mas com baixa

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qualidade, lhe parecia uma

falta de senso talvez ainda

mais excêntrica do que a áurea

que se atribui ao filme "The

Room".

A pessoa familiarizada com a

obra de Guénon certamente

veria a panfletagem e a

exposição midiática de um

grupo como "Jews for Jesus"

com um frio na espinha, com

medo; tão profunda e

extensivamente o metafísico

francês se deu ao trabalho de

mostrar no proselitismo uma

cilada mortífera para a saúde

da alma. O conhecimento vem

primeiro, a ação política que

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angaria adeptos (em

comparação) é um acidente de

percurso, uma nota de rodapé

que o editor insere de orelhada

e à guisa de um afterthought

fogoso; uma nota de rodapé a

que o autor diz "Por que não?"

para logo voltar o rosto a um

assunto mais interessante .

Ora, mesmo diante do fato de

René Guénon ter expresso seu

ponto de vista em semelhantes

termos, o filósofo Olavo de

Carvalho, repetida e

convictamente, pareceu ter

proposto que o aspecto mais

crucial, mais real, do esforço

guenoniano (portanto da obra

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intelectual de René Guénon) é

a promoção velada do avanço

islâmico. Perguntar a diferença

entre a promoção do avanço

islâmico e uma promoção do

proselitismo islâmico me

parece quase desnecessário, já

que nos dois casos se trata de

que um efeito visado idêntico,

ou uma técnica apenas, é a

"chave interpretativa de tudo o

que ele estava fazendo".

Certamente o alardear isso, do

Prof. Olavo, sem indicar

explicitamente a tensão

interpretativa subjacente nessa

acusação (mas fazendo boca

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de siri a tal), é extraordinário o

suficiente para fazer pensar.

Eu não sei se eu e o Prof.

Olavo lemos o mesmo René

Guénon; mas eu estou seguro

de que o sujeito que li

acreditava que o grande

problema da modernidade é a

redução de tudo à técnica;

também a dissipação da

modernidade (por si tomada

como boa) vindo da submissão

inversa da técnica à teoria. O

Guénon que li é um camarada

que talvez até batesse boca

com esse outro indivíduo, que

dedicou toda a sua vida à

produção de um efeito (isto é,

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à aplicação de uma técnica),

não fosse o fato de a aversão à

técnica vir de par, parece, com

evitar bater boca com

estranhos.

Ora, o Olavo de Carvalho

inverter o sentido do ponto de

vista guenoniano, colocando a

técnica em cima, a teoria em

baixo, não parece ser fruto de

um bobinho mal-entendido

provável, como aqueles das

histórias da Jane Austen.

Sobretudo pela maneira

infensa a maiores explicações,

sugerindo que a reação de

estupefação incitaria no

melhor dos casos um despeito

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paternal, parece mais um mal-

entendido das histórias da

Bruxa de Blair, as quais,

ademais, têm a desvantagem

de não terminar com um final

feliz. Supondo-se fosse

verdade que décadas atrás

Olavo construiu uma ritual

"barca egípcia" para habitar o

espaço sideral, conforme

alegam detratores, tal não seria

mais sugestivo da manipulação

mítica vinda de uma mulher

que sobrevoa os céus numa

vassoura, do que a

supramencionada inversão do

guenonismo.

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Cair no encanto de "feiticeiros

sinistros" de modo episódico

("a barca egípcia") é temível;

cair no encanto continuamente

(como os detratores do Olavo,

os quais eu não sou baixo o

bastante para identificar como

os irmãos Velasco) é mais

temível ainda; mas o

verdadeiro boogie man das

histórias de terror, o mais

sádico hálito de narrativa

funesta, é a ideia de ser

paciente de um encantamento

negro sem que ninguém o note

nunca, exceto a mão

enverrugada que manipula

tudo no fundo

(antiperenialismo).

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A fala olavista contra Guénon

parece sugerir Mateus 7:13-24

("Pelos seus frutos os

conhecereis"); porque o fruto

secular do guenonismo foi a

islamização do mundo. O

raciocínio por trás disso,

entretanto, é um emprego da

lógica dos sinais ("onde há

fumaça há fogo"). É análogo

ao alegar contra o Rei Luiz IX,

de célebre santidade e

prestígio, que a sua vida foi

um fracasso por causa das

Cruzadas que ele lançou, numa

das quais terminou sua vida;

eventos de rara e multifacetada

tragédia ou desapontamento.

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Ademais, esse raciocínio

olavista, estivesse correto, não

sanaria o mistério que está em

comparar o que falam Olavo e

Guénon.

Ora, todo esse capítulo de

Mateus é uma transposição

"prática" da alegoria da estátua

de Nabucodonosor (Daniel

2:36); a "cabeça de ouro" da

estátua (que corresponde ao

primeiro dos quatro cavaleiros

do apocalipse, Apocalipse 6:2)

significando a vida

contemplativa e uma etapa

inicial "de ouro" ou

relativamente paradisíaca, na

qual não pode ser claro o que é

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o sentido mais fundo e o que

um sinal externo (a distinção

entre bem e mal do fruto

proibido no paraíso), por isso a

ordem de "não julgar para não

ser julgado" (Mateus 7:1). A

segunda parte da estátua, os

braços de prata, corresponde

ao Segundo Cavaleiro, e

significa a nobreza ou a vida

de ação, daí o encorajar de

Cristo à ação, "pedir, buscar,

bater" (Mateus 7:7). A barriga

e as coxas de bronze da estátua

correspondem ao Terceiro

Cavaleiro, que significa a vida

que se baseia na compreensão

e promoção do domínio

econômico; o domínio

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econômico se definindo como

aquele domínio no qual o

inacessível e o acessível, o

secreto e o midiático (como o

dinheiro), são simultâneos; daí

que Cristo fale a respeito dos

portões estreito e largo

(Mateus 7:13). As pernas da

estátua, de ferro,

correspondem ao Quarto

Cavaleiro, que significa a vida

de servo, o modo mais inferior

de vida. É por isso que o

contexto de "pelos frutos os

conhecereis" (Mateus 7: 16) é

a ideia de lobos em pele de

ovelha, porque a ovelha

simboliza o servo, o lobo a

concupiscência pejorativa que

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pode aflorar no servo por

causa da sua tendência para

baixo; o que pode ser visto

pelo fato de a palavra "tirano"

significar, etimologicamente,

uma pessoa de origem inferior

que pretende ser um príncipe;

e é sabido que o maior clichê

dos tiranos é atender a

concupiscências baixas. É

nesse contexto que é dito

"Pelos frutos os conhecereis" .

Quando se tiver passado pelos

três desafios anteriores, e

terminado por achar o

caminho estreito no labirinto

dos desafios espirituais, aí

então se pode julgar outrem

desde os seus frutos.

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Similarmente, depois de se ter

passado pelos caminhos no

labirinto da obra guenoniana, e

se ter atinado com a passagem

secreta, o caminho estreito

interno que é a chave-mestra

para interpretar o conjunto, aí

então se pode julgar o que é o

que pelos frutos. A mesma

coisa com a biografia de São

Luiz IX etc., inclusive porque

não é possível julgar um

homem sem julgar o seu

coração, e o "fruto proibido"

localizado "no centro do

jardim" significava

precisamente o coração do

paraíso.

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O fato mesmo de que o juízo

tecido contra o Guénon deixa

intocada a relação entre a

aversão guenoniana ao

proselitismo, e o efeito

proselitista atribuído; por ora

sirva como sinal de que o

célebre filósofo se perdeu no

labirinto.

Em resposta a tais

considerações a reação

previsível do Prof. Olavo

certamente será me dar um

beijinho terno na fronte e um

toque carinhoso nas costas,

talvez até um tapinha de "go

get them, tiger!" no traseiro.

Pois deixemos essa imagem de

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certo bom agouro, e passemos

a um personagem mais.

O René Guénon se notabilizou

por aprovar a divisão da

sociedade em castas, como nos

moldes da sociedade medieval;

batendo-se precisamente pela

aprovação da superioridade ou

autoridade do clérigo sobre os

demais. Esse é o ponto de vista

do Direito Canônico católico,

e se pode dizer que assim

como o Talmude é comprido e

persistente no falar de

preceitos do sábado (para usar

um eufemismo), o Direito

Canônico parece ser comprido

e persistente no dar ao clérigo

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uma posição de autoridade e

privilégio.

Que o Sr. Orlando Fedeli, um

dos heróis do

antiperenialismo, fosse capaz

de mais ou menos ver que a

Igreja privilegia o clérigo, não

significa que fosse ele próprio

um clérigo. Com efeito, esse

homem, que era tido por um

campeão da ortodoxia, só

podia falar do ponto de vista

de alguém que obedece o

clérigo, sem a pretensão de o

contradizer ou o julgar (como

ele mesmo sugeriu em certas

ocasiões). Consequentemente,

toda pretensão do seu Fedeli a

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ler o Direito Canônico do

ponto de vista clerical seria

extravagante; seria como um

eunuco, durante um banquete

no palácio de Xerxes, a

esbofetear a mão (à cata de

comida) do imperador, e ralhar

para que o imperador a vá

lavar.

Às vezes por trás da

humildade enfática dos

vassalos há uma afetação de

autoridade. Para o vassalo

deixado à própria sorte todo

mundo mais é um potencial

lacaio usurpador e tirânico.

Assim, o seu Fedeli fez da

subordinação da autoridade

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secular à autoridade intelectual

(característica do guenonismo)

uma defesa da insubordinação

caprichosa em relação ao

clérigo; quando na verdade

essa subordinação é

precisamente correspondente à

subordinação do leigo (mundo

secular) ao clérigo (mundo

contemplativo). Que o Direito

Canônico privilegia a pessoa

contemplativa, pessoa que por

ser contemplativa se aproxima

da condição clerical, e que é

esse o sentido da submissão

normativa ao clérigo, pode ser

visto em que o Codex Iuris

Canonici de 1917 dá ao autor

célebre de livros em defesa da

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fé basicamente a dispensa

automática para se casar com

mulher, quando haja

impedimentos eclesiásticos, e

a título de privilégio

concedido gratamente.

Similarmente, São Jerônimo

celebrou um leigo nominal, o

mártir e filósofo Apolônio

(senador na antiguidade pagã

romana), como uma

autoridade canônica. O

propósito do Direito Canônico

é tirar a autoridade, na Igreja,

das mãos de leigos como

Fedeli etc., e colocar nas mãos

de pessoas dedicadas à

contemplação, e na medida em

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que sejam dedicadas à

contemplação.

Logo, ver no

guenonismo (com o seu

ostensivo clericalismo) um

"intelectualismo" pejorativo

ou "subjetivismo" oposto à

autoridade religiosa, e

ameaçador dela, é quase como

dizer que todo mundo tem que

obedecer o clérigo mas não há

nenhum clérigo à mão, ou não

deve haver; uma tese que,

mesmo tendo uma

questionável aparência de

sensatez, é estranhamente

verdadeira hoje.

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Das argumentações contra o

perenialismo, talvez a mais

clássica e, se sugere,

arrasadora, é aquela que

chama atenção para a tese dita

perenialista de haver, por trás

das diversas religiões, um

esoterismo sapiencial

primordial que as compreende

e aperfeiçoa. Fosse verdadeira

essa tese, se argumenta, o

cristianismo seria uma forma

inferior de espiritualidade; do

que decorre que o

perenialismo supõe o desprezo

pelo cristianismo, e por isso

mesmo a sua negação. Se a

argumentação não é feita

precisamente nesses termos,

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ou nessa exata intenção

aparente, importa pouco, a

exatidão ou cautela

interpretativa só podendo ser

gabada por antiperenialistas no

fazer seus escrutinadores

olharem de soslaio com

tensão.

Quando se vê, pois, os

olhinhos brilhantes de André

Abdelnor, palestrando no

Centro Dom Bosco etc., ao

alardear a arrasadora

argumentação; faz corar o fato

de que a separação entre

exoterismo e esoterismo, nas

religiões, nada mais é do que

um truísmo muito batido,

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como beber vinho em bodas.

A rejeição dessa separação

entre exoterismo e esoterismo

equivale, analogicamente, ao

sonso não distinguir entre o

sofista especializado em

retórica, de um lado, e o

filósofo mais interessado em

investigações íntimas, de

outro. Diferenciar Górgias e

Sócrates não é muito difícil;

basta se perguntar quem tinha

dinheiro o suficiente para

pagar por uma estátua de ouro

maciço em homenagem

própria. Ora, porque essa

separação existe, o fundo

menos visível ou mais sutil da

doutrina cristã compreende

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todas as concepções das

demais religiões, mais ou

menos como a virtude supõe a

compreensão tanto de si

mesma como da sua

degeneração, defectiva ou

viciosa. Se eu sei o que é a

generosidade eu também sei o

que é a avareza ou a

prodigalidade. Mesmo uma

seita ostensivamente maligna

guarda latente um fundo

benéfico, como a substituição

carnavalesca da esperança pelo

desespero guarda latente a sua

restauração, bastando inverter

a inversão especulativamente.

Toda sombra existente foi

projetada pelo que não é uma

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sombra; algo que os

antiperenialistas parecem

acreditar que é altamente

duvidoso.

Talvez parecerá que estou

errado e não entendo de óptica

o suficiente para fazer essa

última analogia. Touché...

Talvez eu possa substituir o

último ponto, então, pela

observação de que na Summa

Theologica, Pars Prima,

Questão 2, Artigo 10, Santo

Tomás cita o Papa São

Gregório I a respeito de como

as sagradas escrituras

“enquanto descrevem um fato

[exoterismo], revelam um

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mistério [esoterismo]”. Alguns

dirão que a dupla categoria

(exoterismo e esoterismo) não

se aplica a essa discussão,

porque o "esoterismo" é

definido por alguns como

aquilo que é escondido, em

religiões não católicas, de

modo mais radical do que

qualquer coisa no catolicismo.

Um pouco de reflexão,

entretanto, basta para

demonstrar que essa última

objeção é apenas semântica, e

que não se endereça a como o

perenialismo articula essas

noções.

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Todas essas argumentações

antiperenialistas são bolhas de

sabão, de um tipo muito tosco

por sinal. Uma vez bem

explicadas elas são suficientes,

a uma pessoa sã, para atinar

que não se trata de uma

discussão respeitável no qual

duas partes entram de boa fé, e

mais ou menos em pé de

igualdade, para usar um jargão

olavista. Tomar a situação

assim seria se deixar

hipnotizar abjetamente. Resta,

pois, descobrir o que está atrás

dessa sombra estranha.

Capítulo II - O princípio do

antiperenialismo

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O princípio do

antiperenialismo pode ser

associado à já mencionada

estátua de Nabucodonosor.

Cabeça de ouro, braços de

prata, barriga e coxas de

bronze, pernas de ferro, e pés

misturados a ferro e barro

(nessa mistura a ovelha

corresponderia ao ferro, o

lobo, supõe-se, ao barro).

Digamos que esse curso, do

ouro ao ferro etc., possa se

expressar tanto na escala

histórica maior, quanto na vida

de um indivíduo. Ele

corresponde de algum modo

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aos discursos poético (ouro),

retórico (prata), dialético

(bronze) e lógico (ferro).

Uma pessoa atenta deve notar

que do discurso poético para o

discurso lógico, o discurso fica

cada vez mais extensivo. A

poesia é mais concentrada do

que a prosa, os livros de poesia

mais finos do que os ensaios

acadêmicos. Cada verso de um

poema parece sugar e prender

a atenção, como a força da

gravidade, enquanto as

páginas de prosa podem ser

lidas com bem maior distração

e dispersão. O que aconteceu

com o sentido concentrado, da

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poesia para a prosa? Esse

sentido se tornou mais

escondido da consciência,

como quando um rapaz finge

para si mesmo que uma garota

não está interessada nele, para

não ter de lidar com as

consequências disso.

A negação máxima dessa

concentração (o "império de

ferro e barro", como oposto ao

"império de ouro") é

precisamente o que está

envolvido, quando se trata do

antiperenialismo. A mistura do

ferro com o barro, nos pés,

assinala a essencial

incongruência do "império de

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ferro", e o estar fadado a ser

esmagado por esse calcanhar

de aquiles. Quanto mais

puramente lógico um discurso,

mais quebradiço e

inconsistente, mais cheio de

hiatos que não se deixam

preencher, porque o mundo é

diferente de um livro

demonstrativo, para os homens

forçados a falar do mundo.

A coisa pode ser vista desde

um ponto de vista mais

palpável. Carrol Quigley dizia

que "dinheiro é dívida",

justamente significando que se

você não entende o motivo

mais secreto ou complicado

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para uma situação econômica

funcionar e se renovar (um

negócio), você pode perder

muito dinheiro; logo, você não

quer o dinheiro, mas sim

entender como bem investi-lo

(caminho estreito), o que é

algo completamente diferente.

O passar do "império de

bronze" para o "império de

ferro" significa precisamente

que você tem o dinheiro, as

frutas -- outrora reais mas

tornadas frutas de cerâmica

por um feitiço -- que parecem

suculentas; mas não pode

gastar o dinheiro (reverter o

feitiço e comer as frutas). A

ideia popularmente familiar de

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que os impérios caem no meio

do seu apogeu significa apenas

isso, e nada mais.

A dispersão significada pelo

curso da estátua explica a

história da arca de Noé: a

civilização (significada pelas

águas diluviais) cresceu

demais, a concentração inicial,

significada pela arca, não;

porque a concentração não

pode deixar de ser o que é.

Eu desejaria bem-receber a

entropia para dentro do jargão

religioso, como a arca bem

recebeu os animais.

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Capítulo III - O

antiperenialismo e a

bifurcação do dogma

Por que o "império de ferro"

se associa, simultaneamente,

ao servo e ao discurso lógico?

A pergunta é cabível porque,

afinal, a lógica sugere certo

elitismo. No caso, a palavra

mais acertada seria

"esnobismo", o que,

significando "ausência de

nobreza", bem casa com o que

foi dito sobre o fundo comum

do servo e do tirano.

O tirano tem a lógica a seu

favor como alguém tem na

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mão um saquinho de chup-

chup quase inteiramente

sugado de suco, ficando só o

gelo sem sabor. O que o tirano

tem na mão é, obviamente, um

espectro ou túmulo, em vez do

discurso sadio. Que esse

espectro pareça quebradiço e

precário, como já foi sugerido,

tem a ver com esse espectro

ser uma superstição.

Assim, como eu notei alhures,

a tirania se notabiliza por

tornar as leis ou fórmulas

discursivas supersticiosas e

fantasmagóricas. Essa

característica é

necessariamente simultânea a

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um estado de "intoxicação" ou

embriaguez moral, às vezes a

literal promoção da

embriaguez. Tal embriaguez,

de sua vez, é como uma

experiência de rapto; daí que

Bruno Tolentino tenha

insistido como fez no

problema do mundo repartido

em "mundo como ideia"

(superstição) e "mundo como

rapto" (embriaguez);

experiências que são realmente

dois lados da mesma moeda,

como ter de gastar dinheiro e

passear.

O mundo do antiperenialista é

um mundo de contínua

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superstição, de esnobe e

contínua pretensão no domínio

discursivo, o fundo disso tudo

sendo uma embriaguez

figurativa menos lisonjeira que

a literal.

Essa bifurcação em "mundo

como ideia" e "mundo como

rapto" é projetada sobre o

dogma religioso,

desembocando em uma

profanação da doutrina

sagrada, a qual por definição

não é nem supersticiosa, nem

embotadora.

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Capítulo IV - O

antiperenialismo e o efeito-

medusa

Que mais cabe para aliviar (de

mentirinha) toda essa

seriedade, do que falar de

mulher? Medusa era capaz de

tornar as pessoas estátuas. Ela

nem sempre foi assim. Se

tornou a moça um monstro

quando a deusa Atena a

amaldiçoou, e a deusa a

amaldiçoou porque Medusa foi

violada pelo deus dos mares,

Poseidon, no Templo de

Atena. A história certamente

não é o cup of tea do leitor da

Jane Austen. Talvez, até,

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Medusa tenha se tornado a

Bruxa de Blair que nós

"conhecemos e amamos", se

vingando pelos séculos, nos

outros, do mal que fizeram

nela. Há pessoas que perdem a

cabeça mas não perdem a

chacota.

Eu escrevo cansado, talvez

porque tenha perdido a beleza

juvenil e pretenda ter ganhado

como troco alguma sabedoria

de velho. O velho vê todos os

tempos, porque passou por

todos, e é assim que a história

de Medusa passa a se

assemelhar, estranhamente,

com a história da besta

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apocalíptica. A besta vem do

mar, ela é a mesma coisa que

as "muitas águas" sobre as

quais Babilônia, a meretriz

alegórica, se senta. Ao mesmo

tempo, a imagem da besta (em

suma, a sua estátua)

ganha vida. Eu tenho ainda

uma outra semelhança anciã,

conquanto mais recente, a

propor: no filme Entrevista

com o Vampiro, baseado em

um romance, o protagonista

Louis é jogado no mar, antes

de virar um vampiro. E a sua

primeira experiência

significativa ao ser

transformado é ser capaz de

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ver nas estátuas o mover dos

olhos, ou o mover facial.

A pergunta, então, é: o que o

mar tem a ver com estátuas ou

imagens?

Nas três histórias; Medusa;

Apocalipse; vampiro; se trata

de uma espécie de alegoria

para o tema da danação da

alma.

É precisamente essa umas das

conotações da alegoria da

estátua de Nabucodonosor.

Inclusive, Nabucodonosor e

seu império babilônico são a

origem da alegoria da besta

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sobre a qual Babilônia senta.

A estátua de Nabucodonosor e

a besta podem ser vistas como

a mesma coisa. A estátua se

associa à idolatria, por isso o

filho de Nabucodonosor se deu

mal, conforme narra o Livro

de Daniel, por idolatrar ídolos

feitos dos mesmos materiais

que compõem a estátua; ouro,

prata, bronze, ferro; além de

ídolos de madeira e pedra.

Essa idolatria significa se fiar

no que é de criação humana,

como uma estátua, em

oposição ao se fiar no que é de

criação divina, como a

alegórica rocha "não cortada

por mãos" que esmaga a

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estátua de Nabucodonosor e se

transforma em uma montanha.

O "ganhar vida" da imagem da

besta, bem como o mover de

olhos da estátua no filme sobre

vampiro, são uma alegoria

para a idolatria, o atribuir vida

ao que é morto, o pretender ser

encorajado pelo que é funesto

ou espectral. É por isso que no

filme Lara Croft: Tomb

Raider, antes de entrar em

certo templo cambojano onde

as estátuas ganham vida, um

dos personagens fala a respeito

de entrar "no ventre da besta".

A incapacidade de distinguir

entre um ser vivente e uma

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estátua é uma característica,

digamos, da idolatria;

precisamente o que está por

trás da história de Medusa. De

outro lado, a idolatria tem um

caráter hipnótico e contagioso,

mais ou menos como uma

profecia autorrealizável: se

você trata uma pessoa como

menos que humana, como um

espectro sem vida, essa pessoa

passa a se aproximar dessa

expectativa; o que lembra a

lição de etiqueta segundo a

qual "a pessoa que não sai do

lugar-comum força os outros a

se sentir míseros".

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O efeito do olhar de medusa

tornando as coisas estátuas,

portanto, significa tornar tudo

superficial e estéril, por

exemplo como um lugar-

comum cadavérico. Dizer que

esse olhar torna tudo estátua é

o mesmo que dizer que esse

olhar projeta sobre as coisas a

bifurcação profanadora de

"mundo como ideia" e "mundo

como rapto".

O mar se associa a isso porque

a inconsistência de forma das

águas se associa à

inconsistência do "império de

ferro", os pés de ferro

inconsistentemente misturados

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ao barro. As águas são a

multiplicidade superficial em

aparência apartada de um

princípio unificador; assim

como os lugares-comuns

degradantes dos quais não se

consegue sair parecem

apartados da situação de

discurso.

A profecia a respeito de uma

situação em que ninguém pode

comprar ou vender sem a

marca da besta significa

precisamente uma situação de

pandêmica e mútua

transformação das pessoas em

"estátuas" pelo efeito-medusa.

É isso sugerido na

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equivalência do número da

besta, do nome da besta e da

sua imagem, como marca-

requisito para se comprar e

vender; significando a

indistinção entre essas três

coisas, como a indistinção

entre signo, significado e

referente/objeto real.

Aqui está o plot twist: a Bruxa

de Blair, à luz disso, está entre

nós. Ela é Medusa. O filme

The Blair Witch Project

(1999) baseou o seu curioso ou

significativo marketing boca-

a-boca na indistinção faceira

entre a história de terror e a

realidade; como se o filme

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fosse uma gravação ou

documentário verídico antes

que uma criação de

mentirinha. Essa indistinção

entre ficção e realidade é

alusiva da indistinção entre a

estátua e o ser vivente; é uma

característica da idolatria. O

sentido do filme é

precisamente sugerir

alegoricamente a danação da

alma, como "Entrevista com o

Vampiro".

Os antiperenialistas são

medusas.

Capítulo V - Antiperenialismo

e proto-marxismo

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A diferença entre "proto" e

"tardo" é a diferença entre o

bebê na barriga e o velho;

sábio ou não.

Uma outra maneira de explicar

seria a diferença entre se

interessar por uma garotinha

israelense falando em inglês

com carregado e fofo sotaque,

de um lado; e de outro se dar

conta, após décadas de casado

consigo, que ela é uma

megera. Esse exemplo cansado

(para não dizer excêntrico)

vem da influência de baladas

étnicas. Deixemo-lo.

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O marxismo tem lá as suas

influências remotas. Que uma

delas seja o neoplatonismo, e

que tal pareça à primeira vista

excêntrico, eu deixo a outrem

julgar. Foi Leszek Kolakowski

quem o propôs.

Para os de mentalidade

marxista o mundo é bifurcado

em "mundo como ideia" e

"mundo como rapto", o que

pode ser visto pela

correspondência entre isso e as

categorias da "superestrutura"

(a ideologia pretextual) e da

"infraestrutura" (o que esse

pretexto desejaria esconder).

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Essa ideia veio de algum

lugar.

Certa tese que parece ter

origem neoplatônica é a de que

Deus fez o mundo porque

precisava dele para se realizar

ou aperfeiçoar, de outro modo

o mundo não teria sido feito

ou não teria razão de ser. Isso

opõe o intelecto criador

tomado de modo

comparativamente pejorativo

(mundo como ideia), a uma

natureza cuja função é elevar o

criador e desvelar o real

(mundo como rapto). Assim,

surgem dois deuses em

disputa, porque surgem dois

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princípios distintos da

divindade.

Essa disputa também pode ser

descrita como a disputa entre a

concepção ("mundo como

ideia") e a impressão ("mundo

como rapto"). Ora, a

valorização da impressão, em

detrimento da concepção,

significa a valorização das

coisas vistas de fora ou de

modo superficial (exoterismo),

em detrimento das coisas vista

desde "dentro" (esoterismo).

Quanto mais superficial mais

acessível e popularizável, daí o

igualitarismo das classes

baixas defendido pelo

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marxismo; e a expectativa de

que as classes baixas devem

tomar o poder.

O marxismo, no entanto, não

se apega só à impressão, como

se teria feito ante a israelense

matreira; ele também usa a

valorização da concepção, do

discurso, das ideias, desde que

submissos aos fins da

impressão, da coletividade ou

classe social; como a criação,

daquela tese neoplatônica, se

usa do intelecto divino para

aperfeiçoar o divino.

O efeito disso é uma contínua,

e ademais pendular, promoção

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do efeito-medusa; o sugar

concepção ou "vida" das

coisas, tornadas estátuas.

Por exemplo, é a submissão da

concepção, tornada pejorativa,

à impressão, o motivo de um

autor como Albert Pike (ele

imbuído de ideais

esquerdistas) transmitir os

mais sutis, complicados e

refinados conhecimentos no

mesmo escrito em que faz a

panfletagem mais descarada

possível em favor do

igualitarismo e da negação da

autoridade do clérigo (eu falo

do livro Morals and Dogma, é

claro). Se trata dum confuso

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morde e assopra cujo

previsível resultado, e

implícito convite inadvertido,

é a promoção do efeito-

medusa, o projetar sobre

conhecimentos legítimos uma

falsa, esvaziada e petrificada

interpretação improvisada,

impressão de momento.

A inversão hierárquica

popularizadora, entre

concepção e impressão,

explica todo tipo de fenômeno

do séc. XIX, inclusive o

espiritismo e o teosofismo, que

influenciaram o marxismo.

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Essa inversão; a bifurcação do

dogma (mundo como ideia e

como rapto) e o efeito-medusa,

são todos diferentes lados da

tirania. E do antiperenialismo.

Note-se ademais, que o morde

e assopra pikeano é uma das

origens remotas da ideologia

de que "se deve obedecer o

clérigo, mas não há nem deve

haver nenhum clérigo à mão".

A mentalidade que promove

essa ideologia sob o pretexto

de combater "subjetivismo" e

"intelectualismo" desviantes é

apenas panfletagem ocultista

inadvertida.

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Capítulo VI -

Antiperenialismo e Santo

Tomás

Porque Santo Tomás de

Aquino era um clérigo célebre,

o antiperenialista não pode se

furtar a lidar com ele ( em

"homenagem" funesta)

transformando-o em uma

estátua.

Haverá tempo para chorar e

lamentar, e ranger os dentes

aos soluços, a deixar rolar

sobre as faces lágrimas; por

causa de tais profanações.

Haverá tempo para bramir e

gemer, arrimar contra objetos

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e paredes, e assombrar ante a

inconsciência torpe que sorri

no entorno. E se não queres

continuar a me acompanhar,

mas insistes em parar pesaroso

(se é que o fazes), deixa-me

tomar a harpa e a voz, diante

da Cidade em chamas,

enquanto choras.

Eu também choro, um pouco,

no canto do olho, a gota

congelando antes de vir

abaixo, o peito esvaziando

débil para não soluçar com

gosto; porque o show tem de

continuar; e cada ator deve

tomar o seu quinhão. A minha

balada atrapalha o coro alheio,

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é étnica, mas isso faz pouco

efeito; estão todos bêbados, a

dissonância é o ar que

respiram.

O ar que se respira na Summa

Theologica de Santo Tomás é

a ideia de que todas as coisas

estão em Deus, e Deus está em

todas as coisas. Os que

desprezam a concepção, em

prol da impressão, tratarão

com profundo respeito essa

ideia, em público; mas no

fundo dão uma figa pra ela; e

estão pouco se lixando para se

é verdadeira ou não, não se

interessam o suficiente para

ajuizá-lo. Os raciocínios

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tomistas a respeito, para o

íntimo dos antiperenialistas,

equivalem em esquisitice ao

Duque de Anjou se travestir de

cortesã fogosa, com direito a

leque, espartilho, pó de arroz e

risadinhas histriônicas. Na

melhor das hipóteses, o ponto

de vista tomista afasta o

antiperenialista sem que ele

chegue a cristalizar essa

impressão negativa; e o

tomismo se vê reduzido,

assim, a um repertório de

sacadas elegantes vistas de

fora, como o duque antes da

sua aversiva "transformação

de cinderela".

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Por causa do seu malquerer à

concepção, o antiperenialista

não terá nenhuma

familiaridade com raciocinar

empregando concepções

clássicas, como as noções de

"diferença específica",

"definição", "propriedade",

"acidente", "gênero", "relação"

etc. Quando ele tem alguma

ideia do que são essas coisas

ele seja as trata como semi-

frivolidades teatrais ("mundo

como ideia"), às quais deve

alguma coisa na medida em

que é devedor das aparências;

ou, no menos degradado dos

casos, ele trata essas

concepções como passíveis de

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ser empregadas de modo mais

ou menos convencional; ora

sim, ora não; o hiato entre os

dois casos sendo preenchido

pela impressão, pelo efeito-

medusa. Isso desde já sugere a

incapacidade de admitir "A

respeito disso e daquilo, estou

aquém, não posso julgar"; uma

admissão que, dita da boca

para fora, pode muito bem

esconder o efeito-medusa à

plena vista. Esse esconder à

plena vista a própria

ignorância, ademais, pode

tomar diversas formas.

Mas voltemos ao tomismo,

que afinal é preciso vez ou

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outra respirar um pouco. Ora,

Deus estar nas coisas, e elas

nEle; se expressa, por

exemplo, na tese tomista de

em Deus não haver distinção

entre essência e acidente. Se

alguém é um homem

(essência), não segue que é

brasileiro (acidente). Em Deus

essa distinção não existe.

Consequentemente, porque,

seguindo Santo Tomás, as

coisas existem na medida em

que se assemelham a Deus

(embora não possa existir

medida de comparação entre

as coisas criadas e Deus), a

coadunação entre essência e

acidente, a unidade subjacente

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entre essência e acidente, é um

reflexo ou uma semelhança em

relação à análoga unidade ou

indistinção entre essência e

acidente em Deus.

No tomismo é distinguido

entre ato e potência. Por

exemplo, se eu toco harpa

pesaroso, e desejaria chorar,

meu choro existe em potência.

Se eu entoo uma canção triste

enquanto sinto o calor e o

crepitar das chamas à volta, a

canção é em parte ato, em

parte potência, porque é em

parte cantada e em parte ainda

resta ser cantada. Dessas

considerações decorre que o

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fato de em Deus não existir

distinção entre essência e

acidente está ligado ao fato de

em Deus, segundo propõe o

tomismo, não existir potência

mas só ação. Deus não precisa

aguardar o fim da canção para

cantá-la ou ouvi-la, nem muito

menos precisa aguardar para

poder manifestar pesar. Assim,

a essência corresponde à

"ação" (porque a essência é

comparativamente mais real,

como a ação), o acidente à

potência (porque o acidente é

comparativamente mais irreal,

como a potência); a distinção

entre esses dois pares não

existindo em Deus por

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motivos aproximados, embora

esses dois pares não tenham

uma definição coincidente.

Eu não insisto em detalhar

esses pontos seja porque o

leitor quiçá me imaginar

(projetivamente) com um

leque na mão é de mau tom, e

eu não quero cansar a sua

beleza; seja porque o leitor

pode ler a Summa Theologica

a qualquer momento e lá achar

a insistência nessas noções

católicas outrora mais

ordinárias.

O ponto é que dessas

considerações segue que a

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doutrina dogmática

corresponde mais ao "ato" e à

"essência", enquanto a

doutrina moral corresponde

mais à "potência" e ao

"acidente"; e que por isso

existe entre dogma e moral

uma unidade subjacente,

tornando dogma e moral

termos relativos, como "pai"

em relação a "filho".

Isso é significado na epístola 1

João 5:8 pelas "três

testemunhas terrestres",

"espírito", "água" e "sangue".

Essa divisão a passagem

indica em paralelismo com as

três pessoas divinas, Pai,

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Verbo (Filho) e Espírito Santo,

nessa ordem. Ora, essa mesma

divisão tem certa

correspondência com a divisão

dos catecismos em "doutrina

teológica", "doutrina

sacramental" e "doutrina

moral", divisão que se

apresenta nessa mesma ordem,

a mesma da epístola. As três

testemunhas terrestres "são

um"; consequentemente a

doutrina teológica e a doutrina

moral "são um" em um sentido

subjacente; porque são uma

espécie de projeção terrestre

das Três Pessoas celestes (que

são idênticas em essência) na

Sua mútua relação.

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Segundo a Carta a Flaviano

(Concílio de Calcedônia) as

três testemunhas terrestres,

"espírito da santificação",

"água do batismo" e "sangue

da redenção" são termos

relativos, se você tem uma,

tem as demais, em um elo

inseparável. A mesma coisa

Santo Agostinho diz das

pessoas divinas, que são

termos relativos. Se você não

tem o Pai, não tem o Filho, se

você tem o Pai, tem o Filho.

Se você não tem o Espírito

Santo não tem o Pai nem o

Filho, e vice-versa etc.

Consequentemente, se você

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não tem a moral não tem o

dogma, e se não tem o dogma,

não tem a moral, uma coisa se

prolonga na outra

subjacentemente, os dois

termos são mutuamente

conversíveis.

A unidade subjacente entre

dogma e moral também é

significada pela propriedade

das três doutrinas; "teológica";

"sacramental"; "moral". Na

doutrina teológica há "coisa

significada", "significado" e

"signo". O significado (o que

se intencionou dizer) é uma

tensão ou intermediação entre

"coisa significada" e "signo".

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Na doutrina sacramental há

"fórmula", "intenção" e

"matéria". Por exemplo, em

um dos sacramentos, o

batismo, certas palavras são a

"fórmula", a "intenção" é o

emprego da fórmula com a

intenção de batizar, e a matéria

é a água. A intenção, mesmo

etimologicamente, significa

"tensão" e "intermediação". Na

doutrina moral há "preceito",

"esforço" e "circunstância"; o

esforço sendo a intermediação

entre o preceito e a

circunstância. Similarmente, a

doutrina sacramental é uma

tensão ou intermediação entre

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a doutrina teológica e a

doutrina moral.

A passagem em João 14:6

("Eu sou o Caminho, a

Verdade e a Vida") também

guarda correspondência com 1

João 5:8 e as três testemunhas

terrestres (espírito, água e

sangue) em paralelismo com

as testemunhas celestes (Pai,

Verbo e Espírito Santo),

inclusive porque é uma

passagem sobre as pessoas

divinas serem termos relativos

(se você tem um tem outro). O

"caminho" corresponde a

"água" (doutrina sacramental),

a "verdade" ao "espírito"

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(doutrina teológica), a "vida"

ao "sangue" (doutrina moral).

Teologia, sacramentos e moral

também correspondem a

"todas as coisas" serem vindas

de Deus, serem através de

Deus, e serem em Deus

(Romanos 11:36, passagem

que usa essa mesma ordem).

Também correspondem a "fé,

esperança e caridade" (1

Coríntios 13:13); sendo

significativo que o Espírito

Santo tradicionalmente se

associa à caridade, segundo o

Catecismo de Trento.

Essas correspondências

tornam mais significativo que

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o Credo preconize a enfática

importância do Espírito Santo

através do artigo que diz

"Creio no Espírito Santo,

Senhor que dá vida" etc. O

Espírito Santo corresponde à

doutrina moral, e isso está

ligado ao fato de que se está

imerso nele (Romanos 11:36),

como se está imerso na vida

(João 14:6), o experimentar a

caridade (1 Coríntios 13:13)

sendo o experimentar estar

imerso em algo não

perfeitamente abarcado. O

Espírito Santo, entretanto, por

ser principiado pelo Pai (que

correspondente à doutrina

teológica) se associa

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precisamente à noção da

divindade sob o aspecto de

Deus doar vida através da

doação de possibilidades

concepcionais que são

comparativamente mais

pressentidas do que abarcadas.

É precisamente essa a natureza

da doutrina moral. Isso pode

ser visto, ademais, pelo fato de

certa lenda sobre Santo

Antônio de Pádua indicar que

um frade franciscano deixou

de todo de ser confrontado por

tentações depois de Santo

Antonio soprar sobre ele

dizendo "Recebe o Espírito

Santo!". O frade deixou de ser

tentado sem entender por que,

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inteiramente, em um sentido

concepcional, mas

pressentindo o por quê.

Como o ato divino (segundo o

tomismo) principia as coisas

potenciais, sem que Deus

tenha qualquer coisa de

potencial; o domínio moral é

uma projeção do domínio

teológico, sem que os dois

domínios sejam coincidentes.

Em todo caso, esses domínios

são relativos um ao outro, e

porque o domínio teológico

principia, o moral é

principiado, eles possuem uma

unidade subjacente, como a

essência e o acidente.

Page 84: O mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma espécie de "aventura" na qual eu estou imerso historicamente; como a então relativa

Feita toda essa explicação; em

intervalo no qual o leitor que

tiver chorado em vez de

entender terá feito bem mais

que a maioria; é possível fazer

observações retrospectivas

surpreendentes.

Já foi mencionada a tese

neoplatônica de que Deus é

aperfeiçoado pela natureza; e

na esteira disso, a natureza ou

a criatura se torna uma espécie

de princípio em competição

com Deus, uma segunda

divindade. Também foi

mencionado que decorre disso

a expectativa de que a

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impressão (que corresponde à

natureza) compete com a

concepção (que corresponde

ao intelecto divino criador),

com o resultado de que a

multidão passa a competir com

o clérigo a respeito de quem

deve dirigir e governar.

Ora, dogma e moral

correspondem,

adicionalmente, a concepção e

impressão. Essa inversão

neoplatônica, portanto, faz

decorrer a tentativa de colocar

a moral como um domínio que

principia o dogma, ou tem

certa independência em

relação a ele, que compete

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com ele ao ponto de a sua

inferioridade hierárquica e

dependência não ser evidente.

É por meio desse mecanismo

que o protestantismo cortou o

inequívoco cordão umbilical

entre fé e moral, promovendo

uma confusa ou dúbia

independência entre a

profissão de fé (concepção) e a

moral (impressão).

É significativo, a esse respeito,

que Albert Pike tenha

intitulado seu livro clássico

"Morals and Dogma",

sugerindo o colocar a doutrina

moral como competidora da

concepção sutil em prioridade.

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A independência da doutrina

moral é um dos ingredientes

do igualitarismo moderno, o

que pode ser visto em que a

doutrina moral é mais

acessível, e o cortar os laços

entre ela e o dogma

conveniente a uma

mentalidade que quer boicotar

o clérigo, o indivíduo

contemplativo; e todo traço de

esoterismo que o clérigo traz à

mesa.

Curiosamente, a ideia da

unidade subjacente entre

dogma e moral pode muito

bem ser combatida pelo

antiperenialista com algum

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abstratismo pejorativo ("em tal

e qual circunstância há ação

moral sem dogma subjacente

ou levado em consideração")

que bem ilustra a correlação

entre "mundo como ideia" e a

noção de "efeito-medusa"; já

que só é possível negar essa

unidade subjacente através de

um truque verbal, tudo quanto

dito acima corroborando essa

unidade de modo suficiente.

Não se trata de dizer, por

exemplo, que a pessoa que

peca faz uma falsa profissão

de fé ao ponto da má fé "em

ato" que separa da Igreja por

heresia. Mas é manifesto que a

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pessoa que peca faz uma falsa

profissão de fé em potência; a

diferença entre dogma e moral

correspondendo precisamente

àquela que existe entre ato e

potência.

Se batendo em favor da

independência da moral em

relação ao dogma, e não

admitindo senão uma relação

mais ou menos "retroativa", ou

costurada de fora pela mente

(mundo como ideia); o

antiperenialista não tem o

hábito de examinar a própria

conduta moral à luz de

concepções que escapem a

alguma convenção ou

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estereótipo. O que o

antiperenialista entende por

moral, portanto, é a convenção

estereotípica, tudo mais sendo

profano; o que faz do

antiperenialismo algo muito

parecido com o

protestantismo, na medida em

que o protestantismo não raro

se vê reduzido, segundo se diz,

a uma espécie de ética secular

ou cívica. Esse tipo de moral

não tem nada a ver com o

domínio religioso ou

sobrenatural.

Capítulo VII -

Antiperenialismo, zahirismo e

a New Age

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Uma história sobre homens

que tomam café da manhã com

estátuas, e papeiam com elas

rotineiramente, é uma história

suja como um filme de terror.

É precisamente esse o papel

ingrato no qual eu me coloco

ao falar dos antiperenialistas.

Quem fala mal dos outros

parece malicioso e invejoso;

quem dá más notícias parece

odioso (no melhor dos casos

malcriado); quem aconselha o

que necessita conselho parece

enfadonho e importuno; quem

anatematiza hereges parece um

"narcisista das pequenas

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diferenças". Tudo isso é

verdade, e longe de mim negar

que o efeito provável-aparente

do meu estudo é o mais solene

fracasso e esquecimento; na

melhor das hipóteses um

linchamento público com

direito a pontapés no traseiro,

por inimigos com o ímpeto

extasiado de uma pessoa para

quem não existe um amanhã.

Seja como for, eu tenho a

palavra e o deserto; nada mais

sendo necessário para dizer a

verdade. Eu tenho tudo que

preciso, tudo o que almejo. As

crianças celebrem a própria

dourada juventude no pátio,

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enquanto sofro uma morte

dourada cá no aposento, e esse

é o uso do mundo.

O zahirismo é uma doutrina

islâmica, tomada como

heterodoxa em alguns círculos,

e significa a ideia de que a

leitura estrita, com valor de

superfície (face value), é a

única leitura legítima de um

texto sagrado. Essa premissa

supõe que se Deus houvesse

de propor camadas de sentido

adicionais, ele as proporia em

um texto adicional; procurar

um fundo por trás do texto é

estéril e presunçoso. O

zahirismo, portanto, significa a

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indistinção entre texto

profano/ordinário e texto

sagrado, correspondendo à

indistinção entre impressão e

concepção.

Os antiperenialistas são

"zahiristas", é claro.

Cabe acrescentar que Santo

Tomás propunha que as

escrituras sagradas têm como

propriedade multiplicidade de

sentido (sem ocasionar

equívoco), e que dos quatro

sentidos principais o sentido

alegórico, principalmente,

tende a se prolongar

indefinidamente em camadas

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adicionais; enquanto os

antiperenialistas, de sua vez,

tendem a valorizar o sentido

literal, e desprezar toda outra

camada; quando menos não

têm qualquer objeção ou

alarme provável a quem

propõe desprezar toda outra

camada.

Não havendo para esses

indivíduos nenhuma distinção

significativa entre a linguagem

sagrada e a linguagem profana

(no melhor dos casos nenhuma

clareza significativa a

respeito), a diferença entre as

duas coisas tem de se basear

em uma espécie de convenção.

Page 96: O mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma espécie de "aventura" na qual eu estou imerso historicamente; como a então relativa

Dar importância ao

simbolismo bíblico como algo

guardando um tesouro sutil, é

para os tais o sinal de uma

frivolidade, a despeito, por

exemplo, da Summa

Theologica, Pars Prima,

Questão 2, Artigo 9, Resposta

à Objeção 2: “O próprio

esconder a verdade em figuras

é útil para o exercício das

mentes

pensativas/responsáveis e

como defesa contra o

ridicularizar dos ímpios, de

acordo com as palavras ‘Não

dê aquilo que é santo aos cães’

(Mateus 7:6).”

Page 97: O mundo dá voltas, o aparente desejariam passar por amigos ... · todos, em parte porque é uma espécie de "aventura" na qual eu estou imerso historicamente; como a então relativa

Esse caráter convencional do

valor das escrituras faz que

não se dê muita importância --

senão uma condicionada à

convenção -- ao conteúdo do

que se diz, do que quem quer

que seja diz; faz com que o

hábito de agir assim pareça um

modelo de maturidade.

Semelhantemente, as seitas da

Nova Era são conhecidas,

desde a visão olavista, por

empregar a razão contra as

doutrinas religiosas de fora, e

internamente não ligar para

prestar contas à razão, como se

o emprego da razão tivesse um

valor meramente

convencional.

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O curioso é que o zahirismo

deveria ser um se fiar na letra

da escritura, não um desprezá-

la. Este, porém, parece ser o

preço a se pagar por tornar as

escrituras tão superficiais

quanto a adquirir uma textura

quebradiça. O recurso usado

para preencher os espaços

entre as rachaduras é o

sentimento. O capricho

sentimental de hoje substitui o

silogismo de ontem. As

manhas e queixas confusas

aposentam os tratados

aristotélicos de lógica.

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É na esteira disso que surgem

acusações de heresia sem

nenhum conteúdo herético;

sem nenhum conteúdo de

todo; e o alardear mentiras

sem a capacidade de as

distinguir claramente da

realidade, ou responder por

elas; alardear mentiras por

meio de dizeres subliminares,

e por isso tanto mais capciosos

e de difícil exame. É possível

se escandalizar porque alguém

compara a religião católica

com uma outra, sem isso

implicar a proposta de uma

coincidência, ou de algum

indiferentismo religioso;

quando o reconhecer que uma

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religião é uma religião, falsa

ou não, é já necessariamente

uma comparação. É possível

acusar alguém de heresia por

defender que um herege não

tinha tal ou qual defeito alheio

à sua heresia; mas uma outra

falta, não importa se mais ou

menos grave. Se eu digo

"Aquele herege não roubou

pirulito da criança, mas a

esbofeteou", eu estou aderindo

à heresia dele, e de modo

cafajeste. Não há diferença

significativa entre dizer "O

muçulmano é monoteísta" e

fazer as cinco preces diárias do

islã. Não é possível mais

distinguir a essência do

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acidente, o que se disse e o

que se sente que foi dito; em

uma espécie de paródia

demoníaca da indistinção

tomista entre essência e

acidente em Deus; uma

paródia que essas hipérboles

capciosamente dão a

impressão ser mais exagerada

que real; pois se trata menos

de hipérboles do que de

exemplos por um mero acaso

mais imunes a uma convenção

ou expectativa pejorativas.

Em certos meios sociais

antiperenialistas a única

maneira de ser ortodoxo é

submeter a própria percepção

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e sentimentos à atmosfera

social em torno, e na prática se

submeter ao indivíduo em

destaque no meio social; o

qual é não raro o que menos se

assemelha a um clérigo; é

alguém que, isto sim, se

assemelha a um xamã, i.e. um

indivíduo que abriu mão da

gratificação intelectual para

melhor produzir ou sentir um

efeito psíquico, o efeito-

medusa e a auto-petrificação;

inclusive um indivíduo que,

como se diz em inglês, "will

go the extra mile" para não ter

de se endereçar

intelectualmente àquilo a que

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pode se endereçar com o uso

de um truque ou distração.

A inclinação coletivista em

questão torna indistintas não

apenas essência e acidente em

afirmações doutrinais, mas

íntimo e exterior, "eu" e "ele",

subentendendo inclusive a

expectativa de antever, ou até

conhecer telepaticamente e em

detalhes, hábitos privados e

pensamentos alheios, como

alguém que tivesse uma

faculdade mística. Não é

possível impedir que isso

aconteça depois de abolida a

distinção entre "superfície" e

"fundo".

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A Igreja Católica deveria ser

"universal" porque os seus

membros são unidos pela

intermediação da concepção, e

pela intermediação daqueles

que personificam a concepção

(os clérigos). A inclinação

antiperenialista, a intermediar

a relação de "fiéis" pelo

sentimento em detrimento da

concepção, pode muito bem

vir de par com o mais

hipócrita desprezo pela

dignidade do clérigo, pode vir

de par com o usar o clérigo

como mero carimbador

inadvertido de algo que se

decidiu preconizar.

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A indistinção entre

"superfície" e "fundo",

ademais, se expressa na mais

perfeita indiferença e mal-

disfarçada incompreensão do

Segundo Mandamento,

Mandamento que implica o

esforço pela acuidade e pelo

cuidado no uso de nomes

sagrados, como "Deus". A

reverência pelo nome sagrado,

qualquer que seja o objeto

sagrado, significa o

reconhecimento de que por

trás da superfície do nome há

algo grave e profundo que o

nome deve necessariamente

evocar, sob pena de se padecer

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em patética e funesta cegueira.

O Segundo Mandamento se

prolonga em todos os demais

dos Dez Mandamentos, porque

todos supõem "superfície" e

"fundo", e é o elo entre os

demais e o polo

comparativamente mais

concepcional do Primeiro (a

honra a Deus, a aversão à

petrificação idólatra que faz

desaparecer a dimensão

concepcional e divina no seu

sentido ilimitado). Assim, o

Catecismo de Trento ensina

que o Segundo Mandamento é

o Primeiro Mandamento, de

certo modo; isso significando

uma alusão à unidade

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subjacente entre concepção e

impressão, dogma e moral,

entre o Espírito Santo e a

vida.

Capítulo VIII -

Antiperenialismo e "o

problema final"

Me parece que se destaca em

certas obras da literatura

americana um tema. Digamos

que ele seja o problema central

do mundo contemporâneo.

Esse é o tema de que a

influência do clérigo (a

influência da concentração

concepcional) não pode

alcançar os servos, as pessoas

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espiritualmente mais

periféricas.

Por exemplo, no conto "Daisy

Miller", de Henry James, se

trata de uma estranha história a

respeito de como o caráter

americano, retratado

alegoricamente, pode chocar

os europeus. Os europeus

acharam estranho na moça

americana Daisy Miller que

ela parecesse uma namoradeira

desajuizada, sem recato, e ao

mesmo tempo fosse seguro

que ela era uma pessoa muito

casta e inocente. Isso sugere

uma atmosfera na qual o

estereótipo, a superfície, se

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sobrepõe à intenção autêntica

justamente porque a intenção é

estéril, não foi "fecundada", o

que guarda paralelismo com o

fato de o narrador, o Sr.

Winterborne, não ter a menor

intenção amorosa significativa

para com a moça, e ser um

libertino. O recato de fundo, e

a libertinagem de superfície,

da parte da moça, se contrasta

com o recato de superfície, e

libertinagem de fundo, do

rapaz.

A recusa do clérigo

(representado pelo masculino)

a alcançar o mundo secular

(representado pelo feminino)

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significa a presença ou atuação

espectral de um clero nominal,

na falta de um clero autêntico.

O livro de Lyman Frank

Baum, O Mágico de Oz, repete

o mesmo tema. O "grande e

poderoso" Oz, chefe de

Emerald City, representa o

clérigo nominal que não é

clérigo autenticamente, e,

portanto, só em um sentido

residual e duvidoso pode opor-

se às bruxas (que representam

o aspecto negativo ou

degenerado do mundo

secular).

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Semelhantemente, em "As

Aventuras de Huckleberry

Finn", romance de Mark

Twain. A descida pelo rio

Mississippi de Huckleberry

(uma criança travessa) e Jim

(um escravo fugitivo de pouca

instrução); essa fuga

representa o servo, o leigo

deixado à própria sorte. Essa

descida, como as pernas de

ferro da estátua de

Nabucodonosor

desembocando em pés de ferro

misturado a barro, desemboca

no encontro com uma dupla de

charlatães (que representam os

tiranos, a usurpação de um

papel nobre pelo servo). É

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significativo que o

personagem, nessa história,

que corresponde ao clérigo, é

o menino chamado Tom

Sawyer; que aparece no final e

rouba a cena de modo

fantástico. Sawyer está

interessado em colaborar com

o bem-estar de Huckleberry e

Jim, e ele o faz criando e

explorando, mesmo de modo

cômico, possibilidades de ação

(concentração concepcional).

Isso sugere que qualquer

intervenção autêntica do

clérigo na sociedade

americana possui um caráter

cômico e imaturo; decisivo

mas discreto, assim como

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aquilo que é cômico é por

definição mais sutil do que

direto, isto é, é uma

insinuação. Da mesma

maneira, em O Mágico de Oz

o papel sacerdotal e nobre é

desempenhado por noviços

político cômicos, isto é,

Dorothy e seus companheiros.

Esse mesmo tema está na

história trágica de Scott

Fitzgerald, O Grande Gatsby.

Tom Buchanan, marido de

Daisy, corresponde ao mágico

de Oz, ele tem uma posição de

prestígio e nobreza nominais,

mas é um tirano. O

pretendente rival do Sr.

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Buchanan é Gatsby, que

corresponde às bruxas de Oz,

porque Gatsby representa uma

espécie de insubordinação do

mundo secular, do leigo,

deixado com a tarefa de

governar a própria sorte desde

a própria inferioridade. Os

dois são tiranos, eles são dois

lados da mesma moeda,

precisamente conforme a

imagem dual "do lobo em pele

de ovelha", e é por isso que a

atuação sutil e cômica do

clérigo (o aspirante a escritor

Nick Carraway), é ambígua

em se fazer, de modo

corrompido, colaboradora de

um ou outro.

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O mesmo tema é explorado no

livro Inferno, de Dan Brown.

O Prof. Langdon corresponde

ao clérigo, a agente

governamental Elizabeth

Sinskey corresponde ao

mundo secular; eles se terem

separado quando jovens em

vez de se casarem significa

precisamente o deixar o

mundo secular à própria sorte;

principalmente se o contexto é

uma degeneração

civilizacional que faz surgir

tiranos ou "bruxas" como

Bertrand Zobrist. O principal

tema dos romances do Sr.

Brown parece ser o do

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intelectual (ou clérigo) imerso

em um mundo dividido nas

categorias de Bruno Tolentino,

"mundo como ideia" e "mundo

como rapto".

Feitas essas explicações,

parece manifesto que elas

tornam o drama americano

muito parecido com o drama

do mundo islâmico. A

principal característica do islã,

segundo René Guénon (que foi

um sheikh), é a separação

enfática entre exoterismo e

esoterismo, e portanto entre o

ponto de vista do leigo (mundo

secular) e do "clérigo" (mundo

contemplativo). O islã é uma

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tentativa de mitigar esse não

casamento entre o mundo

secular e o mundo clerical;

precisamente o que a cultura

hollywoodiana, com o seu

repertório sem fim de

simbolismos tradicionais

discretos, faz pelos EUA.

Hollywood etc. discute coisas

profundas aos olhos de todos,

sem que quase ninguém entre

nas discussões ou as

acompanhe, e todo mundo fica

contente.

Essa mitigação, entretanto,

parece vir com um preço, que

é a mistura marginal ou não

total, entre o simbolismo que

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reformula o sentido das coisas

("mundo como ideia") e o

simbolismo que reformula o

sentido das emoções ("mundo

como rapto"). Um exemplo do

primeiro é o seriado Avatar

(que reformula o sentido da

divisão da sociedade em

castas, chamando as castas de

"as quatro nações"); um

exemplo do segundo é o filme

Deadpool, que parece

reconhecer a ficção das coisas

na própria narrativa, para

melhor propor a reformulação

fictícia das emoções,

colocando o escândalo e o

desespero como mais real ou

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significativo do que a

serenidade e a esperança.

A reformulação das coisas

corresponde ao ferro nos pés

da estátua de Nabucodonosor,

a reformulação dos

sentimentos corresponde ao

barro. Essa mistura entre ferro

e barro também parece

corresponder à mistura entre

"direita" e "esquerda", no

mundo contemporâneo.

Também corresponde às cores

púrpura e escarlata (esta não

por coincidência a cor de

Deadpool) da vestimenta de

Babilônia, a grande.

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Essa dinâmica significa

precisamente que aquilo que

não puder ser explicado ou

preenchido com concepção,

será preenchido com algum

truque ou alguma distração

sentimental, precisamente o

problema do antiperenialismo.

Enquanto o símbolo (a

reformulação das coisas) faz

as pessoas tenderem à

compreensão de um sentido de

fundo (ato e essência), o

sentimentalismo (a

reformulação dos sentimentos)

faz as pessoas tenderem à

impressão e à superfície

(potência e acidente). O jogar

com símbolo (concepção) e

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sentimentalismo (impressão) é

todo o sentido da obra

maçônica de Albert Pike, um

autor americano clássico.

A pergunta a respeito de como

escapar a essa bifurcação entre

"mundo como ideia" e "mundo

como rapto", o jogo pejorativo

entre símbolo e

sentimentalismo; é uma

pergunta à qual o catolicismo

deu lá a sua resposta clássica.

Por exemplo, na história de

Santa Maria do Egito.

Eu já contei histórias demais, é

verdade, e se o leitor está

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cansado, imagine eu. Eu já

estava cansado alguns

capítulos atrás. Por isso

abandona as desculpas, vai

trazer uma xícara de café; se

for do teu gosto uma broa de

milho; e uma nesgazinha de

ânimo, como o bom soldado

que sei que és. Ou então

encerra a leitura sem ler a

última história nela; eu já

estou cansado demais para

debater.

A história de Maria é bem

conhecida, essa santa foi

louvada no Segundo Concílio

de Niceia, e a sua história

consta do livro de Alban

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Butler sobre santos. Maria foi

uma prostituta em Alexandria,

Egito, nascida no século IV,

quando a Igreja Católica era

predominante. Ela se

arrependeu dos próprios

pecados e paixões violentas e

foi como arrebatada para o

deserto depois de tocada pela

Virgem Maria, passando

décadas em extraordinária e

miraculosa penitência,

desconhecida de todos. Mais

ou menos ao fim de sua vida

um abade chamado Zózimo a

encontrou quando ele, Zózimo,

fazia uma espécie de

peregrinação quaresmal.

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Zózimo estava confuso por

causa da sensação que havia

algum tempo tinha de que ele

se tornara perfeito com

religioso, uma sensação

correspondente ao "mundo

como ideia". O ter sido

arrebatada pela confusão do

arrependimento, da parte de

Maria, e vagarosamente

aprendido a dissipar a força

dos ataques das tentações, de

outro lado, corresponde ao

"mundo como rapto".

O ter (em um encontro

seguinte) atravessado o rio

andando sobre as águas, de um

banco a outro, para chegar a

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Zózimo e receber a eucaristia;

da parte de Maria; é um

símbolo justamente para a

travessia da dissipação da

dualidade entre "mundo como

ideia" e "mundo como rapto",

as águas significando as

aparências sem forma fixa que

assombram o caminho. Não é

a natureza que principia ou

cria o divino, como propunha

a tese neoplatônica, mas é

Deus quem, por intermédio do

domínio das impressões

(natureza) principia, cria e

aperfeiçoa as criaturas, e

revela a si no fundo das

impressões. O constante estar

atento às suas culpas, de

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Maria, foi uma espécie de

martírio pelo qual Deus fez da

estátua na qual Maria tinha se

tornado um ser vivente de

novo. Consequentemente, a

concentração concepcional

tem como fundo substancial

ou vital o martírio, e a

mitigação do martírio consiste

precisamente em uma

atenuação corruptora da

concentração concepcional.

No jogo para lidar com o

nefasto antiperenialismo, e

demais erros que assolam a

Igreja Católica e a causa de

Deus, ganha quem for capaz

de olhar para a verdade

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dolorosa e salvífica, quem for

capaz de encarar o martírio do

testemunho. Isso requer um

milagre, em um mundo que

acomoda marginalmente o

sentimentalismo como quem

promove o ar que respira.

Se é necessário um milagre, a

pergunta que se impõe é

"Acaso vou eu rezar por ele?"