o judiciario, a justica e a excecao como regra

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O JUDICIÁRIO, A JUSTIÇA E A EXCEÇÃO COMO REGRA Carlo Romani 1 “O Estado subsiste enquanto o direito recua. A existência do Estado conserva sua incontestável superioridade sobre a validade da norma jurídica” (Carl Schmitt, Teologia política, 1922). Será possível modificar esta lógica? A norma jurídica não é estranha à formação do Estado, pelo contrário, ela é uma instituição sócio-histórica resultante dessa formação. Contudo, para o jurista alemão, o Estado não pode confundir-se com a ordem jurídica, ele lhe é incontestavelmente superior porque por “razão de estado” teria o direito à auto- conservação. A defesa jurídica que Schmitt fez da manutenção de mecanismos constitucionais que permitissem a supressão temporária e excepcional dos direitos civis na ordenação jurídica da nascente República de Weimar ao término do II Reich, é bom frisar, foi valida também, em maior ou menor grau, para todos os estados nacionais que se auto-proclamaram democráticos. No Brasil republicano esse mecanismo foi usado em inúmeras situações: na decretação do AI-5, no golpe de 64, durante o Estado novo, ou no estado de sítio de Arthur Bernardes, entre outras. A aparente contradição entre um estado de direito constitucional e mecanismos internos a ele que lhe permitem, excepcionalmente, a supressão da ordem vigente, não é um fato sequer discutido entre os três poderes, em tese, independentes, quando o problema trata da defesa do Estado. Mas, não é a possibilidade de se decretar o estado de exceção numa situação de excepcionalidade, o problema aqui proposto. Partimos da premissa de Schmitt porque ela se presta para um entendimento, em perspectiva histórica, do porque do enorme distanciamento entre a maior parte da sociedade brasileira em relação ao Poder Judiciário, e por extensão, em relação à justiça formal. Nosso problema pode ser formulado nos termos de que, para as instituições do estado brasileiro foi um tipo de conduta excepcional em relação à maior parte da população que organizou as regras de 1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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Page 1: O Judiciario, a justica e a excecao como regra

O JUDICIÁRIO, A JUSTIÇA E A EXCEÇÃO COMO REGRA

Carlo Romani1

“O Estado subsiste enquanto o direito recua. A existência do Estado conserva sua

incontestável superioridade sobre a validade da norma jurídica” (Carl Schmitt, Teologia

política, 1922).

Será possível modificar esta lógica? A norma jurídica não é estranha à formação do

Estado, pelo contrário, ela é uma instituição sócio-histórica resultante dessa formação.

Contudo, para o jurista alemão, o Estado não pode confundir-se com a ordem jurídica, ele

lhe é incontestavelmente superior porque por “razão de estado” teria o direito à auto-

conservação. A defesa jurídica que Schmitt fez da manutenção de mecanismos

constitucionais que permitissem a supressão temporária e excepcional dos direitos civis

na ordenação jurídica da nascente República de Weimar ao término do II Reich, é bom

frisar, foi valida também, em maior ou menor grau, para todos os estados nacionais que

se auto-proclamaram democráticos. No Brasil republicano esse mecanismo foi usado em

inúmeras situações: na decretação do AI-5, no golpe de 64, durante o Estado novo, ou no

estado de sítio de Arthur Bernardes, entre outras. A aparente contradição entre um estado

de direito constitucional e mecanismos internos a ele que lhe permitem,

excepcionalmente, a supressão da ordem vigente, não é um fato sequer discutido entre os

três poderes, em tese, independentes, quando o problema trata da defesa do Estado.

Mas, não é a possibilidade de se decretar o estado de exceção numa situação de

excepcionalidade, o problema aqui proposto. Partimos da premissa de Schmitt porque ela

se presta para um entendimento, em perspectiva histórica, do porque do enorme

distanciamento entre a maior parte da sociedade brasileira em relação ao Poder

Judiciário, e por extensão, em relação à justiça formal. Nosso problema pode ser

formulado nos termos de que, para as instituições do estado brasileiro foi um tipo de

conduta excepcional em relação à maior parte da população que organizou as regras de

1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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convívio social ao longo de nossa história. Por isso, a expressão ‘exceção permanente’,

cunhada por Schmitt, nos parece apropriada para entendermos juridicamente a relação

histórica criada entre o Estado e a maior parte da população brasileira.

A exceção tem sido a regra para a condução dos conflitos que atingem a esmagadora

maioria da sociedade brasileira desde os tempos de colônia e de Império quando o poder

soberano do rei, de fato e de direito governava. Em perspectiva sócio-histórica podemos

afirmar sem erro que a sociedade brasileira constituiu-se numa divisão intestina

estruturada pela escravidão (Alencastro, 2000). O passado escravista perdurou para os

afro-descendentes (aproximadamente metade da população nacional) mesmo após o novo

ordenamento jurídico republicano nos termos de uma sistema de exceção que na prática

se tornou regra. Disso resulta o fato de que na pesquisa feita pelo CPDOC/ISER em

1997, 67 % dos entrevistados afirmarem que a justiça trata os negros de modo desigual.

Do mesmo modo, a formação patrimonialista do estado repercutiu na incapacidade quase

congênita do conjunto da sociedade em separar o público do privado (Faoro, 2000): desde

o presidente que declarou publicamente não ver problema no parlamentar em missão de

estado levar sua esposa como acompanhante a Paris, até o dono do bar que estende seu

negócio na calçada e rua afora. Essas pequenas exceções cotidianas, na verdade,

funcionam como regra nas relações entre público e privado, indivíduo e coletivo, e não

somente interferem nas nossas noções de direito e nossa compreensão de cidadania como

efetivamente a estruturam. Ao serem questionados em quais condições achavam justa a

instalação de escutas telefônicas pela polícia federal, os entrevistados da pesquisa

realizada pela FGV / IPESPE em 2007 para o Conselho Nacional de Justiça responderam

positivamente a quase todas as situações, menos aquela que envolvia combate à

sonegação fiscal. Para essa situação, somente 8% dos entrevistados concordaram com a

investigação federal. O fato da sonegação do fisco não ser percebida como um problema

para a maioria da população, enfraquece a própria possibilidade de efetivação da

cidadania. Disso resulta que quanto mais poder se têm, mais poder se têm para utilizar o

público, inclusive o judiciário, em benefício do privado,

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Mesmo que o discurso constitucional transpareça uma hipotética igualdade perante a lei,

na prática não é assim que funciona o ordenamento jurídico do estado brasileiro e,

principalmente, não é assim que ele é percebido pela população. Numa sociedade

capitalista, evidentemente, o poder quase que se confunde com o poder econômico. Num

estado capitalista, cujo ordenamento jurídico na prática atuou historicamente no sentido

do impedimento e do distanciamento do acesso dos mais pobres aos seus hipotéticos

direitos constitucionais, as forças do mercado tendem a criar desequilíbrios sociais de

grande magnitude. Em parte, isso explica a abissal desigualdade social brasileira

expressa em uma enorme estratificação social que com o tempo passou a ser naturalizada

e a se reproduzir indefinidamente, levando, em determinados locais, à construção de

verdadeiros muros de segregação social a exemplo dos existentes na faixa de Gaza. Isso

se reflete na percepção de 95% dos entrevistados da pesquisa CPEDOC/ISER, para quem

o judiciário favorece os mais ricos. Não por acaso, a honestidade e a imparcialidade

foram os indicadores de pior resultado na pesquisa efetuada pelo IPEA em 2010 sobre a

falta de confiança da população brasileira em relação à justiça (com notas de 1,17 e 1,18

numa escala de zero a 4).

Isso nos leva a discutir como foi tratado historicamente o conflito entre o capital e o

trabalho. Até a primeira regulamentação do trabalho em sua disputa contra o capital

resultou, paradoxalmente, de um ato de exceção durante o estado corporativo varguista.

Não que a CLT tenha sido apenas uma concessão estatal aos trabalhadores, uma vez que

ela coroou três décadas de intensa luta dos trabalhadores pela conquista de direitos.

Mesmo sendo avaliada pela população como a justiça que lhe é mais favorável, a justiça

do trabalho também foi resultado de uma imposição autoritária de um Estado que

resolveu trazer para si a solução do conflito ao estabelecer a tutela sobre os trabalhadores,

retirando-lhes, assim, a autonomia sindical (Paoli, 1993). Assim, para uma sociedade

historicamente submetida a um tratamento jurídico diferenciado, fundada na desigualdade

social somada à desigualdade étnica, na qual o poder, notadamente o econômico,

claramente faz valer sua vontade, é natural que o trabalho, entendido em sua forma

primária do trabalho braçal, seja visto como algo indigno e reservado aos inferiores,

herança de escravos, uma atividade cujos indivíduos mais espertos na primeira

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oportunidade buscam abandonar. Evidentemente, a maioria não escapa da condição

subalterna do trabalho e na medida em que a economia capitalista foi se tornando mais

complexa, as relações entre capital e trabalho também se tornaram cada vez mais

conflituosas. Como o país estruturou-se sobre um estado de exceção, a questão social

sempre foi tratada como um “caso de polícia” para usarmos a notória expressão atribuída

a Washington Luís, quando secretário de segurança pública de São Paulo, antes dele se

tornar presidente da República. Isso deve ser entendido na forma de que o conflito social

trabalhista, como todo conflito inter-classista, sempre foi tratado pelo Estado como um

tipo de conflito criminal.

À exceção da justiça do trabalho, que com a implantação da CLT foi a mais procurada

pelas classes baixas para reclamar seus direitos, desde os primórdios da formação do

Estado nacional a população comum praticamente ignorou a possibilidade de recorrer à

justiça para solucionar seus conflitos. Num dos primeiros trabalhos realizados sobre a

questão do acesso à justiça para os setores mais pobres da população, ao estudar a luta

pela moradia em uma favela carioca na década de 1970, Boaventura de Sousa Santos

(1977) foi conclusivo sobre a “impossibilidade de acesso à justiça” para essa parcela da

população. Em retrospectiva histórica, pelo menos até a década de 1980, quando com o

fim da ditadura militar começamos a observar um prenúncio de democratização no

judiciário, por exemplo, com os juizados de “pequenas causas”, para a população comum

a justiça sempre foi outra. Quem surgia aos olhos da população como poder, ordem e

justiça, era a policia. E surgia de dois modos distintos. O mais evidenciado pelos

pesquisadores, através da arbitrariedade, da perseguição e da execução sumária, ou seja,

na forma do exercício da justiça com as próprias mãos, confirmando a regra da exceção

(Pinheiro, 1979). Contudo, com uma investigação nas delegacias de polícia no Recife,

Luciano Oliveira (1985) apresentou uma outra verdade, óbvia, mas até então pouco

pesquisada. Se nas situações de conflito inter-classista verificava-se a ação do poder

opressor da policia, confinando os mais pobres em seus guetos, nas situações que

envolviam conflitos intra-classes de menor monta, a policia, o delegado, surgiam como as

únicas instâncias acessíveis do Estado para se reclamar justiça. Do ponto de vista

histórico, isso era legalmente aceito pelo Código Criminal do Império e continuou prática

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corriqueira durante a República. O delegado de polícia cumpria, assim, para a maioria da

população, o papel que deveria ser desempenhado pelo juiz. O papel do Judiciário como

promotor de justiça, dada sua inacessibilidade aos brasileiros mais pobres, ficava restrito

às classes mais abastadas.

O acesso ao judiciário para as classes ou camadas economicamente desfavorecidas do

Brasil, a chamada “democratização” do judiciário, somente começa a ser colocada em

pauta com o fim da ditadura militar em meados da década de 1980. Com a constituição

de 1988, cujos capítulos que tratam dos direitos dos índios e das populações tradicionais

trazem inusitados avanços, o judiciário torna-se um poder relativamente acessível aos

mais pobres. Contudo isso não se deu num passe de mágica. Ele foi resultado de uma luta

interna na sociedade, uma luta expressa através de movimentos sociais como o do MST,

que na impossibilidade dos indivíduos recorrerem à justiça, passou a acioná-la de forma

coletiva. O acesso coletivo à justiça protagonizado por esses novos atores sociais foi

decisivo para que o judiciário passasse a ter uma análise crítica de sua conduta.

Se quisermos perseguir uma relação jurídica de maior igualdade para o conjunto da

sociedade brasileira, o que deve ser feito para desfazer o novelo histórico de quase cinco

séculos que, como relatamos, ordena a conduta social de forma autoritária, clientelista,

classista e racista? Para Boaventura Santos, o caminho para essa mudança de ordem em

direção de maior igualdade somente se dará através de uma revolução democrática da

justiça (2007). Para o sociólogo português, essa revolução deve ser empreendida através

do confronto de dois campos distintos de luta. O primeiro, a que ele chama de campo

hegemônico, o dos poderes instituídos, tanto do estado como do capital, atua no sentido

de uma transformação da prática judicial que a torne mais ágil, mais competente, um

aprimoramento das técnicas e da infra-estrutura, mas não vislumbra um reordenamento

das forças sociais que possa ser efetivamente expresso em termos jurídicos. O outro

campo, o contra-hegemônico, mais abrangente, se daria através de uma luta para

provocar um desordenamento da estrutura jurídica atual e a emergência de uma outra

ordem mais equânime. Isso implicaria na efetiva participação da sociedade civil, tanto de

seus atores coletivos como os movimentos sociais e as organizações não-governamentais

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de todos os matizes, bem como na participação mais ativa do indivíduo comum,

ampliando sua consciência dele ser um sujeito de direito.

Não se trata de um movimento fácil, pois passa por uma reformulação, inclusive, da

própria formação dos bacharéis e dos magistrados, mais do que isso, passa pela

instauração de uma nova mentalidade judicial que desnaturalize as diferenças de qualquer

categoria (classe, raça, gênero) e institua a norma jurídica e não mais a exceção

schmittiana como regra de conduta e ordenamento do social. Tarefa titânica, por isso

mesmo, a importância decisiva de o Judiciário ter vontade ativa para poder realizá-la.

Bibliografia citada:

ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico

Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2

vol. Rio de Janeiro: Globo, 1991.

PAOLI, Maria Célia. Os direitos do trabalho e sua justiça: em busca das referências

democráticas. Revista USP, n. 19, 1993.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência do estado e classes populares. Dados, vol. 22, 1979.

SANTOS, Boaventura de S. The law and the oppressed: the construction and

reproduction of legality in Pasargada, Law & Society, Denver 12(1): 5-126, 1977.

SCHMITT, Carl. Teologia política, in A crise da democracia parlamentar. São Paulo:

Scritta, 1996.