o incrÍvel mundo de gumball: quem poderÁ dizer que … · trata-se de um campo de estudos...

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O INCRÍVEL MUNDO DE GUMBALL: QUEM PODERÁ DIZER QUE ESSE MUNDO NÃO É INCRÍVEL? Ivan Jeferson Kappaun 1 , Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC 1 - INTRODUÇÃO Os Estudos Culturais abrem um vasto leque de possibilidades investigativas e múltiplos discursos. Ainda que criticado por não aludir a questões diretamente convencionadas à educação, o campo permite problematizar discursos correntes e recorrentes acerca de inúmeras concepções e percepções que estão ligadas de alguma forma à educação. O foco dos Estudos Culturais incide sobre políticas culturais, em problematizar relações de poder e processos de produção de conhecimento em educação. Os Estudos Culturais têm inaugurado novas formas de pensar, de problematizar e de investigar. Vinculado à Educação, coloca em pauta e discute a produtividade da cultura nos processos educativos em curso na sociedade hoje. Surge, então, o conceito de pedagogias culturais, desenvolvido como uma ferramenta teórica para problematizar a relação entre artefatos culturais e processos educativos. Neste trabalho proponho como tema a análise de episódios do desenho animado O incrível mundo de Gumball, como artefato cultural que discursa sobre docência. Assumo como objetivo problematizar a representação de professora no desenho animado O incrível mundo de Gumball, na perspectiva dos Estudos Culturais. Para tal, seleciono alguns episódios das três primeiras temporadas do seriado em que há alguma participação relevante da personagem secundária Senhorita Símio, professora do protagonista do desenho Gumball. Assim, os episódios selecionados foram O fim, O primata, O pedido de desculpas, A alegria e A mentira, de modo a problematizar a constituição de discursos acerca da representação de professor, que é mostrado como alguém dotado de grande desamor pela profissão docente e grande desprezo pelos alunos. Aponto a insistente associação entre educação e sofrimento, causando imensa alegria na personagem da professora no seriado. Este trabalho está organizado em seis seções, de modo que na primeira seção introduzo as linhas gerais da proposta que problematizo aqui. Na sequência, em Situando o campo Estudos Culturais, faço uma aproximação teórica com os Estudos Culturais em Educação, bem como 1 Mestrando em Educação PPGEdu/Unisc. Bolsistas PROSUP/Capes. E-mail: [email protected]

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O INCRÍVEL MUNDO DE GUMBALL: QUEM PODERÁ DIZER

QUE ESSE MUNDO NÃO É INCRÍVEL?

Ivan Jeferson Kappaun1, Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC

1 - INTRODUÇÃO

Os Estudos Culturais abrem um vasto leque de possibilidades investigativas e múltiplos

discursos. Ainda que criticado por não aludir a questões diretamente convencionadas à

educação, o campo permite problematizar discursos correntes e recorrentes acerca de inúmeras

concepções e percepções que estão ligadas de alguma forma à educação. O foco dos Estudos

Culturais incide sobre políticas culturais, em problematizar relações de poder e processos de

produção de conhecimento em educação. Os Estudos Culturais têm inaugurado novas formas

de pensar, de problematizar e de investigar. Vinculado à Educação, coloca em pauta e discute

a produtividade da cultura nos processos educativos em curso na sociedade hoje. Surge, então,

o conceito de pedagogias culturais, desenvolvido como uma ferramenta teórica para

problematizar a relação entre artefatos culturais e processos educativos.

Neste trabalho proponho como tema a análise de episódios do desenho animado O

incrível mundo de Gumball, como artefato cultural que discursa sobre docência. Assumo como

objetivo problematizar a representação de professora no desenho animado O incrível mundo de

Gumball, na perspectiva dos Estudos Culturais. Para tal, seleciono alguns episódios das três

primeiras temporadas do seriado em que há alguma participação relevante da personagem

secundária Senhorita Símio, professora do protagonista do desenho – Gumball. Assim, os

episódios selecionados foram O fim, O primata, O pedido de desculpas, A alegria e A mentira,

de modo a problematizar a constituição de discursos acerca da representação de professor, que

é mostrado como alguém dotado de grande desamor pela profissão docente e grande desprezo

pelos alunos. Aponto a insistente associação entre educação e sofrimento, causando imensa

alegria na personagem da professora no seriado.

Este trabalho está organizado em seis seções, de modo que na primeira seção introduzo

as linhas gerais da proposta que problematizo aqui. Na sequência, em Situando o campo Estudos

Culturais, faço uma aproximação teórica com os Estudos Culturais em Educação, bem como

1 Mestrando em Educação – PPGEdu/Unisc. Bolsistas PROSUP/Capes. E-mail: [email protected]

acerca do conceito de pedagogias culturais. Em O incrível mundo de Gumball, apresento a série

animada, bem como os personagens que compõem o elenco principal, de modo a sugestionar

possibilidades de análises que o desenho oferece. Na seção Quem poderá dizer que esse mundo

não é incrível?, efetivo uma análise que procura estabelecer, na perspectiva dos Estudos

Culturais, algumas considerações acerca da constituição de professor e de docência a partir da

personagem Senhorita Símio – que é literalmente um símio. Isso, a partir da assistência e análise

dos episódios selecionados, listados anteriormente. Na quinta seção, Discussões finais, teço

algumas reflexões acerca do que me foi possível pensar a partir do que objetivei neste trabalho.

O encerramento é feito com a listagem das referências que me ajudaram a pensar um pouco

mais acerca de como recebemos os discursos sobre educação veiculados pela mídia.

2 - SITUANDO O CAMPO ESTUDOS CULTURAIS.

Inicialmente, os Estudos Culturais abarcam discursos múltiplos e podem assumir

diversas trajetórias investigativas. Trata-se de um campo de estudos conturbado, controverso e

alvo de duras críticas, sobretudo em relação ao distanciamento de questões que foram

convencionados como mais pertinentes ao campo da educação. De fato, o foco prioritário dos

Estudos Culturais em Educação incide sobre questões vinculadas a políticas culturais.

Entretanto, a articulação entre Estudos Culturais e Educação permitiu realizar ações

investigativas que envolveram vários campos do conhecimento, o que intensificou

problematizações acerca de questões de poder e processos de produção de conhecimentos em

educação.

Costa, Silveira e Sommer (2003), contextualizam os Estudos Culturais, que surgem em

decorrência do movimento de grupos sociais interessados em se apropriar de instrumentos

conceituais, de saberes que advém da leitura de mundo, resistindo aos que se interpõem, de

modo a democratizar as oportunidades pautadas na educação de livre acesso. Uma educação

em que pessoas comuns tivessem seus saberes respeitados e valorizados, bem como seus

interesses contemplados. Inicialmente, o projeto inicial dos Estudos Culturais britânicos

propunha pensar as implicações da extensão do termo ‘cultura’, de modo a incluir a participação

e significações das pessoas comuns. Pessoas excluídas em uma perspectiva elitista de cultura.

Ainda, de acordo com Costa, Silveira e Sommer (2003), desde o seu início, os Estudos

Culturais se configuram como espaços alternativos. Espaços de enfrentamento às tradições

elitistas, que ainda busca hierarquizar a distinção entre alta cultura e cultura de massa, entre

cultura erudita e cultura popular. Nesta perspectiva erudita, a cultura é entendida como a

expressão máxima do humano, o melhor que se pensou sobre o mundo. Em contraponto, a

cultura popular é tida como supostamente menos importante, com manifestações menores sem

relevância. No entanto, não pode-se entender a cultura como acumulação de saberes

intelectuais, estéticos, espirituais, mas compreendida levando-se em conta tudo que está

associado a ela e como ela se manifesta na constituição dos aspectos da via social.

Vale destacar que, por ser um campo recente, muitas são as ações investigativas que

podem ser empreendidas a partir da infinidade de problematizações que os Estudos Culturais

permitem. Convém apontar que isto não significa que o campo abarque tudo e/ou qualquer

coisa. Não podemos assumir esta perspectiva. Os Estudos Culturais têm inaugurado novas

formas de pensar, de problematizar e de investigar. Vinculado à Educação, coloca em pauta e

discute a produtividade da cultura nos processos educativos em curso na sociedade hoje.

Abrem-se para entender de forma mais ampla, diferente, complexa e plurifacetada a educação,

os sujeitos, assim como as fronteiras e limites de possibilidades do campo.

Assim, de acordo com Costa e Wortmann (2016), discursos e artefatos considerados

como pedagógicos – livros didáticos, revistas pedagógicas, programas e projetos educativos, a

seriação escolar, a arquitetura da escola – são problematizados. Mas as problematizações se

ampliam e novos objetos de estudo são ativados sob a perspectiva cultural, tais como a merenda

escolar, o cuidado na educação infantil, a avaliação, o recreio, o que permitiu realizar análises

considerando-as como produtoras de significados. Práticas entendidas como imersas em redes

de poder e verdade, em legitimação de discursos dominantes, onde se constituem representações

de criança, de menino e de menina, de estudante, de professores e professoras, de trabalho

docente, enfim, de educação. Outro viés, ainda em concordância com Costa e Wortamnn

(2016), diz respeito às pedagogias culturais, que consideram pedagógico todos aqueles lugares

onde o poder é organizado e difundido. Incluem-se bibliotecas, TV, jornais, cinema, mídia

jornalística, propagandas, jogos, histórias em quadrinhos, desenhos animados etc. Lugares onde

são constituídas e propagadas uma grande variedade de ensinamentos, entre eles em educação.

São ensinamentos sobre o bem e o mal, sobre o que é ser mulher, índio, o que é corpo, arte,

tecnologia, sobre o que for adequado para sustentar discursos empoderados de dominação. As

autoras também destacam que nessas lições é comum estabelecer o que é tido como normal e,

ao mesmo tempo, sinalizam para o que é desviante, o certo sinaliza para o que é errado. Tudo

isso em um contexto marcado por questões culturais em que tudo é naturalizado, mostrado

como moderno e atual, ou seja, onde todas as coisas estão em seus devidos lugares e é assim

que deve ser. Não para os Estudos Culturais, que irão problematizar justamente aquilo que ‘está

em seu lugar’, tensionar as relações estabelecidas e convencionadas de poder, enfim, questionar

aquilo que não é questionado.

Cabe destacar, conforme Costa, Silveira e Sommer (2003), que há pontos distintivos dos

Estudos Culturais, que configuram esse campo de estudo. Uma das premissas é mostrar as

relações entre poder e práticas culturais, em como o poder atua para modelar estas práticas.

Estuda a cultura de forma a perceber e compreender a complexidade que ocorre no interior dos

contextos sociais e políticos. A cultura sempre tem uma duplicidade funcional, ao assumir ser

objeto de estudo e o local da ação e da crítica política. Outro fator é que os Estudos Culturais

tentam expor e reconciliar a divisão do conhecimento entre quem conhece e o que é conhecido.

Por fim, o campo assume o compromisso com uma avaliação moral da sociedade moderna com

uma linha de ação política, de modo que são assumidas estratégias de articular ações

interventivas no interior de formações específicas, organizações ou contextos sociais.

Agora, retomo aqui a discussão acerca das pedagogias culturais, termo mencionado

anteriormente. É sugestivo pensar que a aproximação entre Educação e Estudos Culturais

tenham possibilitado subsídios teóricos para a inserção da pedagogia nas relações de

significação entre cultura, política e poder. Costa e Wortmann (2016) sinalizam para o fato de

que no hibridismo que marcou as concepções e tendências teóricas surgiu e disseminou-se o

conceito de pedagogias culturais, desenvolvido como uma ferramenta teórica para

problematizar a relação entre artefatos culturais e processos educativos.

De fato, o conceito de pedagogias culturais abriu novas possibilidades de investigação

em educação. “Parece residir neste ponto a potência do conceito: evidenciar novos modos de

ver e pensar a pedagogia para nos dizer sobre saberes, sobre outras experiências e diversificados

processos que nos educam e nos fazem ser quem somos”. (ANDRADE, COSTA, 2015, p. 63).

Wortmann, Costa e Silveira (2015), dizem que o conceito de pedagogias culturais foi

adotado para abarcar a multiplicidade de processos educativos que estão em dinâmica, além

daqueles espaços institucionalizados e historicamente convencionados em relação ao ato de

educar. Para atender a esse pressuposto, qualquer instituição ou dispositivo cultural que esteja

envolto com relações de poder é considerado por ou como pedagogia cultural.

Nas articulações entre Estudos Culturais, Educação e outros campos do saber e do

conhecimento, não se tem por objetivo a criação de outras disciplinas. As articulações envolvem

um processo de inventar conexões entre elementos aparentemente não similares, ou que

pareçam estar cindidos, pela desarticulação de conexões existentes ou pela instauração de novas

conexões. Todas as articulações mencionadas e considerações acerca da multiplicidade de

possibilidades que as hibridações do campo permitem, penso que é latente a necessidade de

mais investidas investigativas em Estudos Culturais, sobretudo em Educação. Pensar isso me

conduziu e me autorizou a realizar ações investigativas que evocam uma multiplicidade de

campos de saber, entre eles a análise de desenhos animados.

Assim, proponho algumas considerações acerca da representação de professora no

desenho animado O incrível mundo de Gumball. Proponho pensar como são constituídos os

discursos acerca da figura de professor no programa em questão e quais implicações e

articulações educativas são postas. Para isso, foram considerados episódios das três primeiras

temporadas do desenho, nos quais a personagem da professora (Senhorita Símio) aparece de

forma mais emblemática.

3 - O INCRÍVEL MUNDO DE GUMBALL

De acordo com o site de pesquisas Wikipédia (2016), O Incrível Mundo de Gumball é

uma série de desenho animado criada por Ben Bocquelet, para o Cartoon Network. A série foi

exibida pela primeira vez em 3 de maio de 2011 e gira em torno de Gumball Watterson, um

gato azul de 12 anos de idade, que frequenta a escola secundária na cidade fictícia de Elmore.

Juntamente com seu irmão adotivo – um peixe com pernas – Darwin, Gumball frequentemente

se vê envolvido em muitas confusões pela cidade. Além dos dois personagens, a família é

composta pelos pais de Gumball, Nicole e Ricardo, uma gata azul e um coelho rosa,

respectivamente, e a irmã caçula Anaís, uma coelhinha rosa. Completam a série vários outros

personagens secundários. Ben Bocquelet baseou vários personagens da série em personagens

rejeitados de seu trabalho comercial anterior e assumiu como premissa fazer uma mistura de

série familiar e série colegial.

Uma característica única da série é a não adoção de um estilo único. Os personagens são

desenhados e animados usando diferentes estilos e técnicas (estilizado com animação feita à

mão, fantoches, stop-motion2, etc.). O desenho está em exibição em sua quarta temporada, mas

já foram anunciadas mais duas temporadas, todas com 40 episódios. Excetua-se a primeira, com

36 episódios.

Aqui, o foco de análise incidirá sobre a personagem Senhorita Símio, professora na

Elmore High School. Optei por fazer alguns apontamentos sobre os personagens que compõem

a família de Gumball para sinalizar a gama de possibilidades investigativas que o desenho

oferece. Problematizações acerca da constituição de irmão e de irmã, de pai e de mãe, de filho

e filha, de marido e de esposa, enfim, de família. Isso, sem contar as inúmeras possibilidades

de reflexão que o contexto escolar desenhado na série também oferece. Mas o recorte

investigativo aqui será a constituição da figura docente que é assumida e discursada pela

personagem da professora.

Como aponta o site Gumballwiki (2016), Senhorita Símio aparece sempre muito mal-

humorada, e não parece se importar com seus alunos, sobretudo Gumball e Darwin, a quem

odeia com ardor. Ela é uma babuína cruel e sádica, que sente prazer em ver seus alunos

sofrerem, além de ser mentirosa. Ela é professora por muitos anos (contados aos milhares),

trabalho que odeia. Quando fica enfurecida, assume sua natureza animal e se comporta como

um primata agressivo.

Na sequência, farei algumas considerações acerca das aparições da personagem

Senhorita Símio em alguns episódios. Em virtude de, atualmente, a quarta temporada estar em

exibição, considerei os episódios das três primeiras temporadas. Ainda, por ser uma

personagem secundária, poucos são os episódios em que a Senhorita Símio tem participação

mais efetiva na série. Entretanto, em vários outros tem rápidas aparições, geralmente tomando

café, em xícaras que manifestam frases ou imagens desagradáveis.

4 - QUEM PODERÁ DIZER QUE ESSE MUNDO NÃO É INCRÍVEL?

Por O incrível mundo de Gumball ser um desenho animado televisionado, convido

Fernandes e Oswald (2005) a me ajudarem a pensar a relação de recepção ativa e a produção

de sentidos desempenhado pela criança ao receber o que está em exibição na televisão.

Primeiramente, é importante pensar que a integração entre “os fenômenos da comunicação e da

2 Stop-motion é uma técnica de animação feita quadro a quadro a partir de fotografias, que são passadas

rapidamente e sugerem movimento.

cultura, recusa a noção da passividade do sujeito, entendendo que as mediações no uso dos

meios permitem que a recepção dos sujeitos se constitua como produção lógica de cultura”.

(FERNANDES, OSWALD, 2005, p. 26).

Também é salutar para o que estou propondo, assim como para Fernandes e Oswald

(2005) ao analisarem a preferência de crianças de escolas públicas e privadas em assistirem

desenhos animados sozinhas ou acompanhadas de adultos, a negação da noção de recepção

passiva. Tal visão condena a televisão por aculturar a criança, onde a defesa da infância se dá

pela proibição ou pelo controle dos programas que a criança assiste, ou seja, vilaniza o meio de

comunicação. Penso a criança como um receptor ativo que, na articulação entre meios de

comunicação e cultura, produz significações que irão influenciar em seu destino. Em função

disso, lembro-me como fiquei assombrado na primeira vez que assisti, juntamente com meu

filho, a um episódio da série aqui discutida. Ao ver a representação de professora na

personagem Senhorita Símio, foi possível verificar uma série de estereotipias que são

engessadas e perpetuadas por discursos que fazem a manutenção de formas de pensar a figura

do professor. Isso, em consequência, fomenta formas de ser aluno, o que cria uma

superficialização de relações condicionada por um discurso posto e pouco ou nada

problematizado. As relações vão se naturalizando.

No episódio 05 da primeira temporada – O fim – a professora Senhorita Símio faz uma

breve aparição, mas de forma marcante. Logo no início do episódio, anuncia para a turma uma

prova surpresa e, com as manifestações de descontentamento e expressões de pavor dos alunos,

dá sonoras gargalhadas. Aqui, sinalizo para um discurso que põe a ideia de que o professor

assume como divertimento causar sofrimento aos alunos. Com isso, os próprios alunos podem

assumir uma postura de aguardar que, para único e exclusivo divertimento do professor, o

mesmo faça provas surpresas. A própria ideia de prova é estigmatizada como algo que cause

sofrimento. Em momento algum há sugestão de algum processo de aprendizagem.

Ainda na primeira temporada, selecionei o episódio de número 30 – O primata – que dá

atenção especial para a personagem Senhorita Símio. Neste, a personagem se coloca o desafio

de conquistar o troféu de professora favorita, único troféu que ainda não havia ganho em 754

anos de premiação (ela participou de todas). No entanto, para efetivar a conquista precisa de

uma carta de recomendações de um aluno, mas percebe que não tem amigos e que precisará se

valer de mentiras e armações para conseguir o que quer. Com isso, começa a seguir Gumball

até conseguir que ele a ajude. Quando Gumball escreve a carta de recomendações para a

professora, ela chama todos da família Watterson de trouxas. Nicole e toda a família inicia uma

perseguição de carro para recuperar a carta. Gumball e Darwin tentam dialogar sobre o valor

da amizade, mas Símio diz ter tudo que precisa – a carta. A perseguição leva a babuína à beira

de um precipício, onde precisa escolher entre a amizade das crianças e a carta. Ela escolhe a

carta e cai. O episódio termina com a Senhorita Símio em uma cadeira de rodas, toda enfaixada

e engessada, coloca o troféu na prateleira e diz “Valeu o sacrifício”.

Neste episódio, aponto para um discurso que sinaliza o professor como alguém sem

escrúpulos e moral, com idade indeterminada por ser muito velho. Reforça e sustenta uma ideia

de que o docente age e se articula como alguém que não tem vida própria e sua única perspectiva

é provocar sofrimento aos alunos. Penso que isso reforça uma ideia de que o professor assume

um determinado aluno para prejudica-lo propositadamente. Aponto isso apoiado em minha

experiência empírica como professor na educação básica. Não foram poucas as vezes em que

ouvi comentários de alunos que sugeriam que determinados professor os ‘perseguiam’. Além

disso, também sugere que o professor é alguém sem vida social e sua vida se resume ao trabalho.

Da segunda temporada, selecionei o episódio número 11 – O pedido de desculpas –

também dedicado à professora. Neste, Senhorita Símio fica com o vestido preso e suas nádegas

ficam a mostra, o que causa repugnância em seus alunos. Gumball e Darwin tentam contar para

ela, mas acabam na sala do diretor. O diretor percebe o que aconteceu e libera os meninos, além

de dizer que Símio deve um pedido de desculpas para Gumball e Darwin. Entretanto, ela surta

e destrói a sala do diretor, num comportamento animalesco e raivoso de um primata. Inclusive

sua postura corporal assume as características de um macaco. A partir disso, passa a vigiar os

meninos e tenta pega-los. Primeiro, chama os pais por falsificação de assinatura, mas a

assinatura não é falsa. Novamente tem surto e destrói a sala do diretor. Depois tenta acusar os

meninos de roubo, mas também falha. Na sequência, induz Gumball e Darwin a brigarem, mas

a briga não acontece. Tem novo surto. Depois, tenta criar falsas evidências, pichando o banheiro

e assinando o nome dos meninos, mas novamente é descoberta por estar suja de tinta. A

obsessão da Senhorita Símio começa a afetar seu relacionamento com o diretor (há um romance

entre os dois). Por fim, Gumball e Darwin resolvem cometer um delito para ajudar a professora,

por piedade. Picham o carro do diretor e são pegos pela professora, que estampa um sorriso.

Pedem para assinar a pichação para que ela não seja incriminada erroneamente e Símio percebe

que a ação foi proposital para salvar seu emprego, reputação e namoro. Assim, a professora

tenta limpar o carro e pede que os meninos saiam dali. Eles saem, mas antes ela pede desculpas,

ainda que em sussurros.

Novamente, a representação de professora assume contornos embaçados, uma vez que

reforça a ideia de que o professor é aquele que sabe e não pode estar errado. A personagem

Senhorita Símio dedica seus esforços em incriminar Gumball e Darwin para provar que ela não

está errada. Mesmo quando percebe seu erro, pede desculpas em sussurros para que mais

ninguém a veja. Tal recurso aponta para uma visão de que o professor deve ser infalível. Em

minha trajetória docente, muitos foram os momentos em que admiti não saber determinadas

questões, mas que procuraria saber. Muitas também foram as vezes em que fui questionado

pelos alunos sobre não saber, pois em algumas concepções de professor, o mesmo ‘sabe tudo’.

Inclusive, alguns alunos ficam chocados quando lhes é revelado o quanto a profissão docente

exige constante estudo. Para muitos, depois de concluída a graduação, o professor não precisa

mais se preocupar em estudar, pois tudo que deveria aprender o fez no curso de formação.

Então, vejo na representação de professor um reforçador de estigmas que os professores

carregam e, que em alguns casos, é assumida como verdade. Como se existisse uma verdade.

No episódio não há, em momento algum, sugestão de aprendizagem praticado em aula, ainda

que muitos sejam os discursos e as articulações educativas permeadas pelo desenho animado.

Reforça a ideia de que o professor não possui vida extraclasse, além de que a educação não

parece ter a menor importância, pois a personagem da professora dedica o dia todo, e não faz

outra coisa, a incriminar seus alunos.

Em relação a terceira temporada, faço alguns apontamentos acerca dos episódios

número 4 e 26 – A alegria e A mentira. No primeiro, Gumball e Darwin acordam de mal humor,

mas melhoram depois de receberem um abraço de seu pai. Vão para a escola, e lá a Senhorita

Símio garante que todos estejam tristes, isso a faz se sentir bem. Comenta: “Eu adoro o cheiro

de desespero na segunda de manhã”. Mas sua satisfação é estragada por Gumball e Darwin, que

estão radiantes. Senhorita Símio desconfia que há um vírus de alegria se espalhando pela escola,

mas não é levada à sério e se dedica a provar sua teoria. Leva os meninos para a enfermaria,

para serem examinados e diagnosticados como doentes. Então todos começam a virar zumbis

e espalham o vírus por toda a escola. Símio descobre que a cura é uma música, mas não

consegue chegar aos autofalantes e também é contaminada.

No segundo episódio, Gumball e Darwin, estão deprimidos por ser janeiro e inventam

um feriado: a esquisidata. A Senhorita Símio tenta provar que realmente não há nada de bom

em janeiro e que o feriado não existe. Então surge a voz do narrador, que diz: “Foi assim que a

senhorita Símio soube o que fazer: demonstrar como era uma estraga prazer”. Enquanto isso, o

rosto da professora assume uma aparência diabólica. Gumball se vê em apuros quando percebe

que todos estão comemorando a esquisidata e aguardando os presentes do esquisitão, que não

passam de invenções suas. Enquanto isso, a Senhorita Símio está o observando, inclusive em

sua casa, à noite. Gumball e Anaís decidem entregar presentes para todos da cidade de Elmore,

mas são flagrados pela Símio quando entregam o último presente, para Darwin. Gumball então

confessa que inventou tudo, mas todos o agradecem por ajudar janeiro a passar mais

alegremente.

O que percebo nestes dois episódios considerados é um reforço das representações já

mencionadas de professor. Em A alegria, a professora dedica seus esforços em provar que está

certa e não mede consequências ao o fazer. Novamente é incutida a ideia de que causar

sofrimento aos alunos é um princípio da docência. Não difere em A mentira, quando a

personagem Senhorita Símio também quer provar que está certa e, como se não tivesse outras

atividades a não ser as ligadas a escola, segue e espiona Gumball com uma câmera fotográfica

para produzir as provas necessárias.

5 - DISCUSSÕES FINAIS

Faço agora algumas considerações que gosto de pensar inconclusivas, visto a

multiplicidade de possibilidades de análise que podem ser realizadas acerca da constituição de

discursos sobre docência, professor, escola, aluno que são veiculados no desenho animado

considerado. Na perspectiva dos Estudos Culturais, ativei algumas possibilidades para pensar a

constituição de discursos sobre professor e sobre docência a partir da série O incrível mundo de

Gumball.

O incrível mundo de Gumball se pretende uma série que junta contexto escolar e

familiar. Entretanto, em muitos episódios que se passam na escola, muito pouco são feitas

referências à aprendizagem. Ao contrário, as aulas são sempre mostradas como chatas e

tediosas, além de serem consideradas pelos alunos como inúteis e desnecessárias. Gumball e

Darwin quase nunca querem ir para a escola e fazem de tudo para escapar deste suplício. A

professora geralmente é vista tomando café e o diretor da escola é mostrado como alguém que

não sabe o que está fazendo. O próprio personagem do diretor ninguém consegue definir o que

é exatamente, pois parece um monte de cabelo. Esses fatores vão constituindo discursos que

criam e sustentam ideias estereotipadas acerca de aluno, de aula, de diretor etc.

Como enfatizei a percepção de professor, o fato da Senhorita Símio aparecer com

frequência tomando café, geralmente de mal humor, contente em provocar sofrimento nos

alunos, gera discursos que vilanizam a figura do professor e legitimam pensamentos que

associam o ir à escola com sofrimento e com descompromisso do docente pela profissão. Falas

da personagem manifestando desprezo pela docência e pelos alunos também são recorrentes

como, ao escutar o sinal de término da aula, diz: “Acabou meu turno, agora não preciso mais

fingir que me importo com a educação de vocês”. Internaliza certo desprezo pela escola e sugere

que aula e prazer não são compatíveis. Enfraquecem concepções de educação, uma vez que

várias foram as situações em que me vi, em sala de aula, responder a provocações e provações

dos alunos feitas a partir de concepções retiradas de desenhos animados. A partir destas

reflexões, penso que programas infantis televisionados são potenciais constituintes de cultura e

agem fortemente nas concepções e ações em educação.

Não tenho pretensão em assumir um discurso que vilaniza e despreza a série de

animação. Muitas outras concepções acerca de amizade, de amorosidade, de lealdade, de

responsabilidade, entre outras, são ativadas pelo desenho animado. Por ser uma personagem

secundária, a Senhorita Símio não aparece com regularidade nos episódios, não definindo com

isso uma perspectiva que prioriza um discurso que subvaloriza a educação e a imagem de

professor. Acredito que o desenho perpetua a imagem de megera de professora. Se apresenta

como um elemento discursivo sobre a identidade de professora como uma pessoa infeliz,

sozinha e malvada. Encerro aqui minhas considerações escritas, mas não encerro meus

questionamentos e problematizações acerca do tema.

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