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1 MARLI TEREZINHA WALKER O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL Cuiabá 2008

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MARLI TEREZINHA WALKER

O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá 2008

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MARLI TEREZINHA WALKER

O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários e Culturais

Orientador: Prof°. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá 2008

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Marli Terezinha Walker

O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA: INFERNO E PARAÍSO NA POÉTICA DO MST

Dissertação apresentada à defesa no Curso de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso.

Banca Examinadora:

_______________________________________ Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite – IL/UFMT

Presidente da Banca/ Orientador

_______________________________________ Profa. Dra. Franceli Melo– IL/UFMT

_______________________________________ Prof. Dr. Paulo Nolasco – FL/UFG

_______________________________________ Profa. Dr. Célia Maria Domingues da Rocha Reis – suplente – IL/UFMT

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A Deus, fonte de toda criação.

Parafraseando Adriane Rocha, a estas pessoas minha gratidão por me ajudarem

a bordar com fios de felicidade minha história.

Juca Laura Guido

Viviane Paulo Sesar

Presença de amor e amizade.

Luzia Rosana

Walnice

Presença de generosidade e do modelo a seguir.

Mário Cezar

Presença de confiança, serenidade e orientação segura.

Meus pais

Presença de terra firme, chão fecundo de amor e doação.

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Mapa de anatomia: o olho

O Olho é uma espécie de globo, é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. É um globo brilhante: parece cristal, é como um aquário com plantas finamente desenhadas: algas, sargaços, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.

Mas por dentro há outras pinturas, que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas.

O Olho é um teatro por dentro. E às vezes, sejam atores, sejam cenas, e às vezes, sejam imagens, sejam ausências, formam, no Olho, lágrimas.

(Cecília Meireles)

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

(Manoel de Barros)

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WALKER, Marli Terezinha. O imaginário da terra em Pátria Sem-Terra: inferno e paraíso na poética do MST. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientador: Mário Cezar Silva Leite. Cuiabá, Universidade Federal de Mato Grosso, 2008.

RESUMO

Esta dissertação investiga em que medida a temática da terra, expressa na poética de Adriane Rocha, ultrapassa o conjunto de ações culturais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil revelando um imaginário de matizes universais. Para tal, volta-se o olhar sobre o processo de constituição do MST, perfazendo o percurso histórico da formação do Movimento como grupo social irmanado em torno da luta pela reforma agrária no Brasil. No intuito de compreender essa construção reporta-se o olhar, também, para a história da ocupação das terras no Brasil. O desfecho desse processo caracteriza, contemporaneamente, a questão da exclusão social do homem do campo pelo latifúndio. Busca-se, então, além do arcabouço teórico e crítico sobre questões relacionadas à cultura, identidade, memória e literatura, uma leitura/literatura específica produzida pelos intelectuais e pensadores ligados ao MST. O referencial teórico sobre a Literatura comprometida com as questões sociais do país é revisitado, recaindo maior atenção sobre o processo expressivo do sujeito-de-enunciação lírico e a forma como se dá o deslocamento da temática do pólo-objeto para o pólo-sujeito. Essa discussão é colocada em relevo por trazer à tona um eu lírico que observa e ao mesmo tempo participa das enunciações expressas na lírica de Adriane Rocha. A análise dos poemas “Bandeira do MST”, “Acorda, pátria amada!” , “Aos sem-terra” , “Sem-terra” , “500 Anos amor maligno” , “500 Anos amor maligno II” , “Antes que racionais, animais” , “Futuro ameaçado”, “Terra e vida, terra é vida” , “Um novo Brasil é possível” , e “Esperança” da obra Pátria Sem-Terra, publicada no ano de 2004 pela Unemat Editora, Estado de Mato Grosso, permite entrever o eu lírico ultrapassar os limites internos da luta e da história do MST e alcançar proporções universais. Palavras-chave: Terra, Poesia, Imaginário.

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WALKER, Marli Terezinha. The Land Imaginary in Pátria Sem-Terra: hell and paradise in MST poetical. Master Thesis in Studies of Language. Supervisor: Mário Cezar Leite. Cuiabá, Universidade do Estado de Mato Grosso, 2008.

ABSTRACT

The actual research investigates in what measure the theme of the land, expressed in Adriane Rocha’s poetical goes beyond the set of cultural actions of the MST (Movement of the Ploughmen With no Land in Brazil) showing an imaginary of universal pattern. In order to get that, we observe the constitution process of MST, considering the historical way of the movement formation as a social group that is created around the fight for land ownership reformation in Brazil. In order to understand this construction, we also pay attention to the history of land ownership in Brazil. The end of this process characterizes, in contemporary days, the problem of the social exclusion of simple countrymen by the rich one (rich farmers who have a big land part). We search, beyond the critical theories about subjects connected to culture, identity, memory and literature, a specific reading/literature produced by intellectual and thinker people linked to MST. The theories about the literature that worries about social subjects in Brazil is revisited and pays more attention to the expressive process of the lyrical discourse subject and the way how the thematic goes from the object-pole to the subject-pole. This discussion is given emphasis because brings to the border one lyrical person who observes and, at the same time, takes part of discourses expressed into Adriane Rocha’s lyrical. The analysis of the poems: “Bandeira do MST” (MST Flag), “Acorda, pátria amada!” (Wake up, lovely motherland!), “ Aos sem-terra” (To Without Land People); “Sem-terra” (Without Land People), “500 anos amor maligno” (500 years malign love), “500 anos amor maligno II” (500 years malign love II), “ Antes que racionais, animais” (Before rational being, animals), “Futuro ameaçado” (Threaten Future), “Terra e vida, terra é vida” (Land and life, land is life), “Um novo Brasil é possível” (One new Brazil is possible), e “Esperança” (Hope) compiled into the work Pátria Sem-Terra published by UNEMAT Publishing , Mato Grosso State, in 2004. This work allows us to see the EU LIRICO trespass the internal limits of MST fights and history and reach universal proportions. Keywords: Land – Poesy – Imaginary

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SUMÁRIO Dedicatória................................................................................................................... ii Agradecimento ............................................................................................................ iii Epígrafe ...................................................................................................................... iv RESUMO .................................................................................................................... v ABSTRACT ............................................................................................................... vi INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 08 I – TERRA E HUMANIDADE: UMA HISTÓRIA DE (DES)ENCONTROS...... 16

1. Mistérios da Terra .......................................................................................... 16

1.1 Imagens do Paraíso ..........................................................................................19

1.2 O Paraíso decaído..............................................................................................24

1.3 Eco-espiritualidade: o Paraíso possível.............................................................26

2. Da colonização portuguesa ao assentamento: Estatuto do latifúndio.............28

2.1 Reforma agrária: a colonização tardia................................................................36

3. Memória e identidade: trajetos em construção................................................40

3.1 Mito, religiosidade e mística: caminhos de transcendência................................48

I I – A TRAJETÓRIA ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA CRIADORA DE

ADRIANE ROCHA ................................................................................................. 57

1. Literatura e função social ................................................................................ 57

2. Literatura e função ideológica ......................................................................... 62

3. Pátria Sem-Terra: Literatura e função total ................................................ 64

3.1 Geração de 30: poética do desengano ........................................................... 67

3.2 Arte engajada: poética do compromisso ....................................................... 71

4. Adriane Rocha e a poética da terra – uma trajetória de afetos ................. 73

4.1 O sujeito-de-enunciação lírico enuncia a trajetória ....................................... 76

I I I – O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA ........................ 82

1. Ser Humano e Ser Terra – o abraço imaginado ............................................82

1.2 Regimes diurno e noturno: a luta antitética e o retorno eufêmico .....................94

1.3 Poética do Imaginário: analogias e similitudes entre o lírico e místico..............96

2. Do inferno ao paraíso: a imaginação simbólica assenta esperanças...............99 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 123 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 126 Anexo A – Poemas/corpus ....................................................................................... 131 Anexo B – Carta/poema de Adriane Rocha .............................................................. 142 Anexo C – Conversa com o militante Noir Castelo Júnior ....................................... 148

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INTRODUÇÃO

A análise proposta consiste em observar em que medida os poemas selecionados

de Pátria sem-terra1, única publicação da poeta militante Adriane Rocha, permitem

entrever a relação mística estabelecida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra do Brasil entre o ser terra e o ser homem. O MST é constituído por um novo

sujeito social, o Sem Terra2, que se manifesta por meio da luta pela reforma agrária e

por mudanças sociais no Brasil e tem como estrutura de base a idéia de coletividade. Na

organização do Movimento, cartilhas, cadernos de formação, manifestos, encontros

regionais e nacionais direcionam e determinam as práticas da militância. Dentre as

diretrizes consideradas importantes na constituição da identidade individual e coletiva, a

mística, que compõe o conjunto de atos culturais vivenciados pelo grupo, caracteriza-se

como um dos elementos fundamentais. O resgate e a preservação da memória da

trajetória histórica do grupo constituem o suporte para a elaboração da identidade

individual e coletiva do sujeito sem-terra caracterizando, contemporaneamente, aquilo

que os intelectuais do Movimento denominam de nova história do MST.

Conforme ensina Caldart, essa nova história foi construída em torno de duas

dimensões nascentes do primeiro eixo de preocupação do MST em relação à cultura e

que se tornaram marcas fortes na mística do movimento, presentes desde o seu

nascimento até hoje: “os símbolos da luta e o resgate da memória de lutas anteriores”

(2004, p. 35). A construção identitária, individual e coletiva, costura-se por meio de um

fio seletivo que vai eleger os elementos constitutivos de significado para a memória do

Movimento amarrando, assim, os conceitos de Cultura, Memória e Identidade.

Para observar essa construção será mantido um diálogo constante entre a literatura

produzida pelos pensadores do Movimento Ademar Bogo (2001, 2005), João Pedro

Stédile (2005) e Mitsue Morissawa (2001) que, assim como Roseli Caldart (2004),

debruçaram-se sobre os aspectos que constituem a formação do MST, e as reflexões de

Alfredo Bosi (1992), Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (2000), Gilbert Durand (2002),

1 ROCHA, Adriane. Pátria Sem-Terra. Cáceres, MT: Unemat Editora, 2004. 71p. Os poemas selecionados encontram-se no anexo A. 2 O MST nunca utilizou em seu nome nem o hífen, nem o s, o que historicamente acabou produzindo um nome próprio, Sem Terra, que é também sinal de uma identidade construída com autonomia. O uso social do nome já alterou a norma referente à flexão de número, sendo hoje já consagrada a expressão os sem-terra (CALDART, 2004, p. 20 e 21. Grifo da autora).

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Ecléa Bosi (2003) Ulpiano Meneses (2004) e Renato Ortiz (2005) sobre cultura,

memória, desenraizamento e identidade.

Esse primeiro capítulo do trabalho perfaz, então, as pegadas da marcha histórica do

Movimento, considerando os símbolos já consagrados, o modo como foram elaborados

e como são mantidos e cultuados por meio da mística celebrada em todos os momentos

considerados decisivos na trajetória do povo Sem Terra. Para compreender essa marcha,

no entanto, é preciso remontar o período de ocupação do território brasileiro com a

intenção de verificar como se efetivou a distribuição das terras no Brasil. A travessia

desse percurso se justifica por implicar diretamente no desfecho das questões agrárias

contemporâneas, geradas ao longo de mais de quinhentos anos de história.

Assim, a terra constitui-se como tema arquetipal que ajuda a entender, a partir da

reflexão de Eliane Domingues (2007) sobre a religiosidade dos movimentos sociais no

campo, em que proporção a mística do MST se diferencia da prática religiosa

convencional. Os estudos de Mircea Eliade (1992, 2006) e Gilbert Durand (1988, 2002)

sobre símbolo, mito e ritual permitem associar o tempo e o espaço da manifestação

mística do MST ao “momento mítico da repetição do ato cosmogônico, o momento

concreto, no qual aconteceu a construção do mundo” (ELIADE, 1992, p. 28-29. Grifo

meu), reportando o imaginário da terra em Pátria Sem-Terra para uma história de

(des)encontros entre terra e humanidade.

Desse modo, considerando que a existência de uma terra paradisíaca povoou o

imaginário da humanidade durante os mais diversos períodos da história, o auxílio de

Franco Júnior (1998), Sérgio Buarque de Holanda (1996), Delumeau (1992, 1996,

2003) e Leonardo Boff (2000) torna-se relevante para entender em que proporção o

tema da luta pela terra ultrapassa as funções social e ideológica das enunciações líricas

de Adriane Rocha, deslizando o sentido do texto literário para os mitos do Paraíso

Perdido e do Eterno Retorno.

Partindo dessa proposição, o segundo capítulo do trabalho traz para o texto um

arcabouço teórico e crítico que ajuda a demarcar a trajetória estética na experiência

criadora de Adriane Rocha. A partir das reflexões de Fábio Lucas (1985), Antonio

Candido (1970, 2000, 2003, 2004, 2005), Alfredo Bosi (1992, 2000, 2001, 2003, 2006 ),

Roberto Schwarz (2000) e Luís Bueno (2007), observa-se como a literatura brasileira

manifesta textos originados de compromissos sociais, políticos e ideológicos dos

escritores. A partir da Geração de 30, esse tipo especial de lírica promove uma

aproximação entre literatura e sociedade, passando à Geração de 45 a mesma direção de

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objetividade que, conforme acentua Bosi, “ fizeram do texto um testemunho crítico da

realidade social, moral e política do país” (2006, p. 468).

Nesse sentido, discute-se, então, as funções social, ideológica e total da literatura

apontadas por Candido (2003), numa perspectiva que busca estabelecer os critérios de

análise como procedimento adequado à natureza do texto/corpus do trabalho. Essa

discussão traz à tona a mesclagem das funções da literatura presente na criação de

Adriane Rocha. À medida em que se observa a obra ultrapassar as fronteiras das

funções social e ideológica, dimensiona-se, por meio da função total, a situação

conflitiva em que se coloca o MST na luta pelo direito a terra aos desejos humanos

universais de retornar ao Paraíso Perdido. Esse processo se revela quando os elementos

técnicos da forma, pelos quais o poeta elabora sua obra, conduzem-no para além de suas

próprias crenças e, por um mecanismo semelhante ao do sonho, abre-se-lhe o

imaginário, campo através do qual ele manifesta o infinito de possibilidades da

linguagem poética.

Os símbolos reiterados pela imaginação criadora de Adriane Rocha situam as

enunciações do sujeito lírico tanto no campo do objeto que é enunciado quanto no

campo do sujeito que enuncia e é, também, objeto. Essa característica distingue a

produção literária da autora daquela já produzida no Brasil sobre a temática

essencialmente voltada para a relação homem-terra e os conflitos originados dessa

relação no decorrer da história da colonização até nossos dias.

Para dar suporte a essa discussão, chama-se ao texto a pesquisadora alemã Käte

Hamburguer, que postula em A lógica da criação literária (1986), uma “teoria da

enunciação” para analisar o gênero lírico. Conforme explica a autora, a estrutura sujeito-

objeto, na criação lírica, desloca-se do pólo-objeto para o pólo-sujeito, pois os

conteúdos que de algum modo se relacionam com o objeto não são dirigidos por ele,

apenas manifestam associações de sentido, significando que “as enunciações são

atraídas do pólo-objeto para o pólo-sujeito” e “é justamente este processo que produz a

forma de arte lírica, resultado “de uma ordem entre os enunciados pelo sentido que o eu

lírico a eles quer imprimir” (HAMBURGER, 1986, p. 179).

Esse diálogo se estenderá, no terceiro capítulo, aos estudos de Maria Zaira Turchi

que propõe em sua Literatura e Antropologia do Imaginário (2003) a leitura do gênero

lírico a partir da teoria do enunciado elaborada por Hamburger. Os trabalhos de Turchi

confirmam que o lírico, na criação literária, tem seu lugar junto ao sistema de

enunciação da linguagem, pois “a força vivencial do sujeito da enunciação lírica, do eu-

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lírico, pode existir somente como um real e nunca como um fictício” , concorda Turchi

(2003, p. 61).

Nessa perspectiva, em conformidade com as proposições de Turchi, o trajeto

antropológico do mito vem juntar-se aos dois eixos norteadores do pensamento de

Gilbert Durand para complementar a investigação das relações entre imaginário e

literatura, no terceiro capítulo deste trabalho. Para isso, será necessário recorrer,

paralelamente, aos estudos de Bachelard, para quem “o imaginário é o dinamismo

criador, a potência poética das imagens, enfim, a potência da palavra humana que

emerge do inconsciente coletivo” (apud TURCHI, 2003, p. 21).

Assim, as forças social e mítica que emanam da linguagem criadora de Adriane

Rocha, considerando o campo vivencial em que o sujeito-de-enunciação lírico está

inserido, conduzem a análise para o trajeto dAs estruturas antropológicas do imaginário

(2002) proposto por Gilbert Durand. Essas estruturas constituem-se em aparato teórico

para delimitar, a partir do método de convergência, os dois grandes eixos dos trajetos

antropológicos dos símbolos, o regime diurno e o noturno das imagens.

Com base no método elaborado por Durand, será possível, então, verificar como o

sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra manifesta a dimensão poética do

símbolo que representa o desejo de um sujeito coletivo, também, a partir das dimensões

cósmica e onírica. Essas duas dimensões do símbolo, unificadas à primeira, isto é, à

linguagem poética, revelam um universo simbólico carregado de sentidos produzidos

pelas imagens que o sujeito-de-enunciação lírico enuncia, permitindo verificar as

constelações recorrentes derivadas de um mesmo tema arquetipal.

A terra e o sem-terra, pólo-objeto das enunciações, revestem-se de significados que

transitam para o pólo-sujeito, o eu lírico, que, por sua vez, transcende simbolicamente o

seu mundo. Por isso, ensina Durand, a inspiração simbólica pretende ser o despertar do

espírito para além da letra sob pena de morrer, assegurando como virtude essencial do

símbolo a característica de manter, “no seio do mistério pessoal, a presença mesma da

transcendência” (1988, p. 34).

Para compreender a força poética do símbolo e a manifestação de transcendência

que dele emana, Durand também dialoga com o mestre Bachelard, lembrando que para

o filósofo “a água, a terra, o fogo e o ar e todos os seus derivados poéticos são o lugar

mais comum desse império onde o imaginário vem se enxertar diretamente na sensação”

(DURAND, 1988, p. 69). Desta maneira, segue Durand, “a cosmologia não é do

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domínio da ciência, mas da poética filosófica: ela não é a visão do mundo, mas

expressão do homem, do sujeito humano no mundo” (DURAND, 1988, p. 69).

Sobre esse aspecto também Bosi entende “que o imaginário decorra da coexistência

de corpo e natureza; que ele mergulhe raízes no subsolo do Inconsciente” , conforme “a

hipótese central de um Gaston Bachelard, para quem é preciso descer aos modos da

Substância – a terra, o ar, a água, o fogo - , para aferrar o eixo natural de um quadro ou

de um símbolo poético” (BOSI, 2000, p. 24). Assim, se o símbolo nos revela um

mundo, “a simbólica fenomenológica explicita esse mundo que – de maneira antípoda

ao mundo da ciência – é eticamente primordial, dirigente de todas as descobertas

científicas do mundo” (BOSI, 2000, p. 24).

Em introdução à sua Leitura de Poesia, o crítico e historiador da literatura

brasileiro se reporta à experiência poético-filosófica de Gaston Bachelard que elabora

uma forma de perceber as imagens do poema capaz de abraçar corpo e historicidade,

matéria e significação, pois “na aliança de imagem e sentimento” como “ato fundante da

poesia, [...] chama para o campo da significação a imagem e o som, o corpo humano e a

matéria do cosmos” (BOSI, 2001, p. 42). O autor observa ainda que “a fantasia artística

é imaginação formal combinada com a imaginação material” , que “desdobra ao nosso

olhar atributos próprios da matéria viva, inconsciente, corpórea” (BOSI, 2001, p. 43).

Por isso, ao falar sobre a imagem, o escritor chama a atenção para a sensação visual,

pois o ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do céu, do mar e,

consequentemente, o perfil, a dimensão, a cor. Essa sensação permite entender a

imagem como “um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter,

juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (BOSI, 2001, p. 43).

Na reflexão do próprio Bachelard, “para a consciência que se exprime, o primeiro

bem é uma imagem, e os grandes valores dessa imagem estão em sua própria

expressão” (2003, p. 63). De maneira similar, também Paz (2006, p. 38) entende que a

imagem, enquanto figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com a imaginação

possui um valor psicológico, uma vez que, nesse sentido, as imagens são produtos

imaginários. Por isso, Durand retoma Bachelard para dizer que “o homem dispõe

inteiramente de dois e não de apenas um meio de transformar o mundo”; a objetividade

da ciência e a subjetivação da poesia e é essa última que, “através do poema, do mito, da

religião, acomoda o mundo ao ideal humano, à felicidade ética da espécie humana”

(apud DURAND, 1988, p. 66).

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Assim, a proposição que motiva esta análise apóia-se, também, na concepção

turchiana “de que mito e literatura relacionam-se como criações da humanidade que

atualizam, através de imagens, os arquétipos presentes no inconsciente coletivo” (2003,

p. 55-56). Como acentua Turchi, a analogia e a similitude, princípios que sustentam as

estruturas místicas do regime noturno, conduzem o lírico à intimidade dos seres e das

coisas e, por isso “a poesia, para penetrar a alma do mundo, dobra-se, multiplica-se,

encadeia-se, como no regime noturno místico, pelos caminhos da similitude e da

analogia” (2003, p. 59).

A partir da fenomenologia do fazer lírico, a análise proposta considera os

diferentes componentes do texto tanto como valores sociais quanto estruturas

lingüísticas. Os valores sociais não existem independentemente da linguagem, e a

estrutura lingüística do poema reside na organização das enunciações de um sujeito-de-

enunciação lírico. Desse modo, os valores sociais e estéticos convergem para o que

observou Benedito Nunes comentando Heidegger: “o poético extrai a sua capacidade

reveladora inesgotável do ser que solicita o pensamento, apelando para o dizer da

linguagem” (1992, p. 262).

Conduzida desse modo, a leitura dos poemas de Adriane Rocha traz à tona um

sujeito-de-enunciação lírico que enuncia o ser social e cósmico, irredutíveis entre si.

Nesse sentido, Gilbert Durand faz suas as palavras do mestre Bachelard para dizer que

“a fenomenologia do imaginário é, uma escola da ingenuidade que nos permite

ultrapassar todos os obstáculos do compromisso biográfico do poeta ou leitor, e colher o

símbolo em carne e osso, pois, não se lê poesia pensando em outra coisa” (1988, p. 67).

E, confluindo à colocação anterior de Bosi, diz ainda: “o leitor ingênuo, esse

fenomenólogo sem o saber, não é mais do que o lugar da ressonância poética, lugar que

é receptáculo fecundo, pois a imagem é semente e nos faz criar aquilo que vemos”

(DURAND, 2000, p. 67).

Dessa maneira, conclui Durand, se a razão e a ciência apenas unem os homens às

coisas, o que vai unir “os homens entre si, no nível da humildade das felicidades e penas

cotidianas da espécie humana, é essa representação afetiva, porque vivida, que constitui

o império das imagens” (1988, p. 106). E é então, nessa perspectiva,

que a antropologia do imaginário pode se constituir, antropologia que não tem apenas a finalidade de ser uma coleção de imagens, de metáforas e de temas poéticos. Mas que também deve ter a ambição de mostrar o quadro compositório das esperanças e temores da espécie

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humana, a fim de que cada um nele se reconheça e se revigore (DURAND, 1988, p. 106).

Por isso, acentua Durand, é preciso “saber fazer humildemente como Gaston

Bachelard: pedir esse suplemento da alma, essa autodefesa [...] ao devaneio que vela em

nossa noite” (1988, p. 107). Também Bosi, ao falar sobre o devaneio, apresenta-o como

“um pensamento vagabundo que se engendra no vão, no vazio, no nada”. E

complementa, “devanear é comprazer-se que o espírito erre à toa e povoe de fantasmas

um espaço ainda sem contornos. É o maginá do caboclo, sinônimo às vezes de cismar,

desde que sobrevenha a notação de estranheza e de receio” (BOSI, 2000, p. 27).

Configura-se, assim, a proposta metodológica que dará suporte à análise da seleção

dos poemas/corpus deste estudo. Considerando tanto as apreensões do domínio sócio-

histórico quanto do imaginário promovido por esse domínio, a leitura vai convergir para

as três dimensões do símbolo; a cósmica, a onírica e a poética. A observação da

dimensão cósmica do símbolo permitirá verificar em que medida os enunciados da lírica

rocheana deixam de ser expressão exclusiva do meio social/vivencial do sujeito-de-

enunciação lírico para ganhar dimensões universais. Esse universalismo reside na

dimensão onírica do símbolo, que remete as constelações imaginárias para o mito do

Eterno Retorno, da incessante caminhada humana em busca do Paraíso Perdido. A

dimensão poética do símbolo, isto é, a linguagem criadora, organiza o sentido dos

enunciados a partir do mitema “terra” , desvelando a imaginação literária que “vem de

algum modo associar-se a todas as felicidades de imagens, chamando o sujeito para as

alegrias imaginárias” (BACHELARD, 2003, p. 70). Se, conforme ensina Bachelard, a

imagem só pode ser estudada pela imagem, sonhando-se as imagens tal como elas se

acumulam no devaneio, então ela só poderá ser interpretada por meio do mito, que

como “ instrumento fundado também na essência metafórica da linguagem, [...] tem

menos poder de ferir as suscetibilidades do objeto pesquisado do que qualquer teoria

mais científica e racionalizante” (MARQUES, 2007, p. 208). Nesse sentido, a proposta

de análise conflui também para a leitura do lírico proposta por Hamburger de que “o

intérprete do poema responde à intenção do eu lírico: assim como este manifesta através

do contexto a sua intenção de ser compreendido como eu lírico, este contexto por sua

vez orienta a nossa experiência estética e interpretativa” (1986, p. 193). Dizendo a

mesma coisa em outras palavras: sem deixar de levar em conta as forças sociais e

ideológicas que alimentam o imaginário do sujeito-de-enunciação lírico vivencial, será

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preciso considerar em sua devida conta, também, a forma de ordenação criativa de

Pátria Sem-Terra que conduz, naturalmente, a elaboração de imagens simbólicas que

vêm amoldar-se a princípios de valor universal.

Amalgamando-se a esta proposta, os anexos, ao final do trabalho, apresentam,

além dos poemas/corpus deste estudo, a transcrição de uma conversa com o militante

sem-terra Noir Castelo Júnior, professor e líder comunitário do pré-assentamento Zumbi

dos Palmares II e, em destaque, uma carta/poema redigida por Adriane Rocha. A poeta

militante do MST apresenta a si e ao Movimento ao longo de seis páginas,

manifestando, à sua maneira, o sentimento que irmana os sem-terra em torno da luta

pelo direito de retornar à Terra, bem comum de toda humanidade.

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I – TERRA E HUMANIDADE: UMA HISTÓRIA DE (DES)ENCONTROS

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que

haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa.

(Pero Vaz de Caminha)

1. Mistérios da Terra

Para os integrantes do MST, a persistência na luta pelo direito a terra, por longos e

longos anos, não se explica apenas pela esfera racional, mas também por uma mística

que leva a lutar por algo mais que objetivos imediatos e dá força e sentido para a luta.

Ao falar sobre essa mística, Ademar Bogo3 dialoga com Leonardo Boff4, que explica

essa vivência como algo cultivado por todos os integrantes do movimento em todos os

momentos da sua trajetória e vivido pelo sem-terra como uma espécie de “mistério,

mysterion em grego, que provém de múein, que quer dizer perceber o escondido, o não

comunicado de uma realidade ou de uma intenção...” (BOGO, 2005, p. 38). Quando

esse mistério se manifesta, a imaginação adquire uma dimensão material, seja como

objeto físico, som, melodia ou corpo humano, manifestando a linguagem do sujeito que

se encontra no tempo histórico edificando com as mãos o que dizem os sentimentos.

Desse modo, os símbolos elaborados pelo MST representam algo que vai além da

manifestação material, inscrevendo-se numa perspectiva que estabelece relações com a

mística do Movimento.

Ao falar sobre os símbolos construídos pelo MST, Morissawa observa que a cruz

da Encruzilhada Natalino5, símbolo circunstancial, ou a Bandeira e o Hino do

3 Coordenador nacional de formação do MST, escritor e compositor do Hino do Movimento dos Sem-Terra� 4 Teólogo da libertação, escritor, professor e conferencista nos mais diferentes auditórios do Brasil e do estrangeiro, assessor de movimentos sociais de cunho popular libertador, como o Movimento dos Sem Terra e as comunidades eclesiais de base (CEB's), entre outros. Leonardo Boff faz “parte da Igreja que se envolveu diretamente com os sem-terra, aquela nascida do movimento da Teologia da Libertação, cujos vínculos sociais são também e marcadamente com os lutadores do povo” (CALDART, 2004, p. 46). 5 O acampamento na Encruzilhada Natalino, Estado do Rio Grande do Sul, é referência na história do MST por representar um marco de resistência dos sem terra no sul do país. Em 1980, quase três anos

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Movimento, símbolos permanentes, representam, sobretudo, “signos da unidade em

torno de um ideal” (2001, p. 209). Conforme a autora, a ciência ou arte do mistério ou o

tratado sobre coisas divinas ou espirituais ou, ainda, segundo o dicionário Aurélio, a

“ firme crença numa doutrina religiosa, filosófica, etc.”, no contexto dos sem-terra, é um

ato cultural em que suas lutas e esperanças são representadas. Desta maneira, na

“Encruzilhada Natalino, a cruz simbolizava em si mesma a fé cristã que unia os sem-

terra num momento crucial de sua luta. [...] Fé, esperança, dor e ânimo político estavam

reunidos naquela cruz” (MORISSAWA, 2001, p. 209).

Caldart, ao falar sobre a simbologia do movimento, observa que,

Do chapéu de palha das primeiras ocupações de terra ao boné vermelho das marchas pelo Brasil, os Sem Terra se fazem identificar por formas determinadas de luta, [...]. Ao mesmo tempo em que mantêm o jeito próprio dos pobres do campo, os sem-terra do MST vão construindo um jeito diferente, que se transforma, se pensa e se recompõe a cada passo da trajetória que lhes afirma como trabalhadores da terra, e como sujeitos da luta de classes. Os sem-terra de boné vermelho carregam em si os sem-terra do chapéu de palha, embora já não sejam mais os mesmos (2004, p. 44).

A bandeira vermelha do MST traz em seu centro um círculo branco sobreposto

com o mapa do Brasil, na cor verde, em que se destaca, em primeiro plano, a imagem de

um casal, cujo homem empunha um facão. Esse símbolo, a bandeira, é um dos

elementos permanentes da mística, assim como hinos e músicas que são cantados nos

momentos em que a mística se manifesta de forma mais intensa. A letra do Hino do

Movimento dos Sem Terra foi resultado de um concurso realizado em vários estados,

cujo vencedor foi Ademar Bogo. A música foi composta pelo professor da Escola de

Belas Artes da Universidade de São Paulo, Willy Correia de Oliveira e “a primeira

apresentação foi feita pelo Coralusp” (MORISSAWA, 2001, p. 210). Conforme o autor

do Hino, “a imaginação deverá adquirir uma encarnação material, seja como objeto

físico, som, melodia, corpo humano, etc.” (BOGO, 2000, p.84).

Desde as suas primeiras ocupações, os símbolos de representação da luta estão

presentes em todas as instâncias do Movimento. Nas invasões, nos acampamentos, nos

assentamentos, nas marchas pelas rodovias, nos jejuns e greves de fome, na ocupação de

depois da expulsão da reserva Nonoai, 600 famílias acamparam no local, reunindo cerca de 3 mil pessoas em barracos que se estendiam por quase 2 quilômetros à beira da estrada (MORISSAWA, 2001, p. 125).

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prédios públicos, nas vigílias e nas manifestações em grandes cidades. No dizer de um

integrante do Movimento, o resumo do que o sem-terra entende por mística:

Nas lutas sociais existem momentos de repressão que parecem ser o fim de tudo. Mas, aos poucos, como se uma energia misteriosa tocasse cada um, lentamente as coisas vão se colocando novamente e a luta recomeça com maior força. Essa energia que nos anima a seguir em frente é que chamamos de ‘mistério’ ou de ‘mística’ . Sempre que algo se move em direção a um ser humano para torná-lo mais humano, aí está se manifestando a mística. (MORISSAWA, 2001, p. 209)

Além da bandeira, do hino e do boné vermelho, outros símbolos como o facão, a

foice, a enxada e os frutos do trabalho representam a resistência e a identidade dos sem-

terra, constituindo o conjunto de símbolos do MST. Combinando palavra e conceito à

condição de vida que se estrutura através das relações entre as pessoas e as coisas no

mundo material, entre idéias e utopia no mundo ideal, “surge o que se caracteriza como

mistério ou o inexplicável, porém entendível e compreensível, que se apresenta como

identidade desta organização de um povo também em construção” (BOGO, 2000, p.

38).

Relembrando as críticas sofridas no passado em relação à mística do Movimento,

Bogo reitera a condição de unidade que o sem-terra atribui aos aspectos físico-material

e o espiritual, integrando essa dupla realidade. No entender do autor, há os que ainda

tentam tratar essa relação de forma separada, ou material, ou ideal. No entanto, para

Bogo “não basta estudar e compreender a realidade, é preciso compreendê-la no intuito

de transformá-la. Desse modo, todos os aspectos ideais fazem parte da realidade, devem

estar em condições de serem transformados” (2000, p. 40). Assim, a partir dessa

concepção, o sem-terra não se entende como sujeito puramente idealista. Julgando

compreender adequadamente os aspectos ideais da realidade, o Movimento se organizou

mantendo o respeito a determinadas aspirações e posições ideológicas. Por isso, quando

as críticas apontaram que a mística do MST caracterizava a organização como um

movimento religioso, o povo sem-terra contra-argumentou reafirmando a idéia de que o

ser humano não se constitui apenas de matéria, pois “tanto as necessidades materiais

quanto as necessidades ideais, constituem a consciência social da pessoa” (BOGO,

2000, p. 40).

A mística do MST surgiu de três fontes ou, jorro d’água, como prefere Bogo; a

vertente da natureza contemplativa da vida camponesa, a vertente musical e a vertente

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da devoção. Para compreender essa mística, no entanto, é preciso refazer o caminho

histórico que constituiu o Movimento. Nas palavras de João Pedro Stedile, “o debate

político em torno da necessidade de soluções para o problema agrário é historicamente

muito recente” (2005, p. 12). Embora, por outro lado, diz o autor, a demanda por

reforma agrária sempre foi um tema presente na história do Brasil. Segundo Morissawa

(2000, p. 120), a história do Movimento remonta o período das Ligas Camponesas

aniquiladas pelos militares em 1964. O Movimento é considerado, então, continuidade

dessas Ligas, pois o MST, tal como elas, constitui-se um movimento independente,

nascido no próprio interior das lutas que se travavam pela terra e porque defende uma

reforma agrária capaz de restituir o encontro do ser com a terra.

Nessa perspectiva, o reencontro do ser humano com o ser terra coloca os ideais do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil no percurso do imaginário em torno

da terra que acompanha a humanidade desde os mais remotos tempos. A busca pelo

paraíso perdido configura-se como o desejo original de retornar à terra das bem-

aventuranças, elo primordial rompido pela queda humana.

1.1 Imagens do Paraíso

O tema do paraíso terrestre sempre povoou o imaginário da humanidade nos

mais diversos períodos históricos. A crença na existência de um paraíso terreal

permeia textos, artísticos ou não, das mais variadas procedências e épocas. Um

interessante exemplo do mito da terra ideal onde se vivia entre rios de vinho e leite,

colinas de queijo e leitões assados que ostentavam uma faca espetada no lombo é

apresentado por Hilário Franco Júnior em Cocanha: várias faces de uma utopia

(1998). A versão brasileira da Cocanha, mais especificamente um folheto de cordel de

meados de século XX, remonta à versão francesa medieval e às versões holandesas

modernas. No dizer de Franco Júnior,

a Cocanha é um mosaico mítico formado por dezenas de peças de diversas procedências. Fragmentos manipulados de forma própria conforme a época e o local de cada versão. [...] Ela buscava superar, no plano do imagináiro, a pricipal dificuldade daquelas pessoas: a carestia alimentar. Por esta razão, o que tinha sido um traço dentre outros da Cocanha medieval, tornou-se elemento central, quase exclusivo da Cocanha moderna: a abundância (1998, p. 14).

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As mudanças de enfoque e de ênfase que as narrativas sobre a Cocanha

sofreram durante os séculos são atribuídas pelo autor ao fato de que, “no limite, toda

criação artística, literária e científica é um diálogo com criações anteriores, um

rearranjo de peças pré-existentes” (FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 16). No entanto, no

caso de temas de fundo mítico, essa tendência se acentua. Daí se explica o fato de a

Cocanha ter expressado, ao longo de pelo menos setecentos anos, os sonhos coletivos

de diferentes segmentos sociais. São Saruê foi o nome dado à Cocanha brasileira,

introduzida no nordeste, provavelmente, pelos relatos orais de invasores holandeses e

franceses. A transcrição das estrofes 11, 16 e 17 do folheto de cordel expressa bem as

imagens dessa terra paradisíaca:

Uma barra de ouro puro

servindo de placa, eu vi

com as letras de brilhante,

chegando mais perto eu li

dizendo: “ São Saruê”

é este lugar aqui.

As pedras de São Saruê

são de queijo e rapadura

as cacimbas são de café

já coado e com quentura,

de tudo assim por diante

existe grande fartura.

Galinha põe todo dia

em vez de ovo é capão

o trigo em vez de semente

bota cachadas de pão,

manteiga lá, cai das nuvens

fazendo ruma no chão.

Reportando-se ao imaginário sobre a existência de uma terra paradisíaca, Sérgio

Buarque de Holanda traz à tona, em prefácio à segunda edição de sua Visão do

paraíso: os motivos edêmicos no descobrimento e colonização do Brasil, um curioso

relato sobre “a teoria de que estava na América o Paraíso, e mais precisamente no

Brasil” (HOLANDA, 1996, p. xxi). O autor analisa minuciosamente vários escritos

produzidos no período das grandes navegações e revela a crença imperativa, à época,

na existência de um paraíso terreno. Em muitos textos compilados pelo pesquisador, o

Brasil é comparado ao Paraíso da terra em que Deus, como no jardim do Éden, pôs o

primeiro pai Adão. Essas imagens enlaçam os escritos perscrutados pelo autor à

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historia literária do ufanismo brasileiro verificado, por exemplo, nos versos de

Gonçalves Dias, produção em que o paisagismo e o canto do índio expressam “a ânsia

romântica de voltar às perdidas origens” (BOSI, 2006, p. 109). As imagens de um

imenso país verdejante, florido e fértil, o colorido, a bondade dos ares, a simplicidade e

inocência das gentes, sugeriam ao europeu a imagem de um paraíso terrestre. Ainda

sobre a Visão do paraíso, vale lembrar outra interessante passagem que dá conta de

uma idéia considerada simplista pelo autor, mas que acaba ocasionando a descoberta

das “grandes aluviões auríferas de Cuiabá e Mato Grosso, das mais avultadas que

registra a história das minas no Brasil” (HOLANDA, 1996, p. 102). No dizer do

crítico, em busca das míticas serras do Peru onde, segundo numerosos testemunhos,

despejavam-se muitas riquezas no lago que ia alimentar o São Francisco e outros rios,

as explorações rumo ao oeste acabaram conduzindo os europeus até as minas mato-

grossenses. Outro exemplo alusivo ao imaginário de motivos edênicos é descrito a

partir da carta de Nóbrega, destinada à sede do governo-geral, em agosto de 1549:

É muito sã e de bons ares, de tal maneira que, com ser a gente muita e ter muito trabalho, e haver mudado os mantimentos com que se criaram, adoecem muito poucos, se adoecem logo saram. É terra muito fresca, de inverno temperado, e o calor do verão não se sente muito. Tem muitas furtas e de diversas maneiras, e muito boas, e que têm pouca inveja às de Portugal. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e certamente eu nunca vi tapeçaria de Flandres tão formosa, nos quais andam animais de muitas diversas maneiras, dos quais Plínio nem escreveu nem soube. Tem muitas ervas de diverso olor e muito diferentes das de Espanha, e certamente bem diversas e formosas criaturas (HOLANDA, 1996, p. 244).

Desse modo, o tema paradisíaco permeia, desde cedo, o imaginário acerca da

terra brasileira. Ainda em 1502, Américo Vespúcio, considerado por Holanda narrador

mais sóbrio e objetivo do que Colombo, já contribuía para a formação do imaginário

edênico que se constituiu em torno da nova terra. Em carta redigida pelo navegador

italiano encontram-se passagens que retratam “a abundância e o viço das plantas e

flores nas matas, o suave aroma que delas emana, e ainda o sabor das frutas e raízes,

chegam a sugerir ao florentino a impressão da vizinhança do Paraíso Terreal”

(HOLANDA, 1996, p. 247).

Modernamente, também Jean Delumeau debruçou-se sobre o tema do paraíso

terrestre. Ao longo dos volumes Uma história do paraíso: o jardim das delícias (1992),

Mil anos de felicidade: uma história do paraíso (1997) e O que sobrou do paraíso

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(2003) o autor aborda, respectivamente, o que chama de três grandes temas: a nostalgia

do paraíso terrestre; a espera de um reino de felicidade realizado nesta terra e que

duraria um milênio; e, por fim, a esperança de uma alegria perfeita e sem declínio na luz

divina do além cristão. A propósito do tema da existência terrestre do paraíso, é o

primeiro volume da trilogia que dá conta da constituição do imaginário ocidental em

torno da realidade corpórea do paraíso.

Quanto à realidade histórica desse paraíso terrestre, a discussão em torno da sua

existência física parece ter encontrado nas palavras de Santo Agostinho o esteio para

sua confirmação. Enquanto alguns viam o lugar como uma realidade corpórea, outros

acreditavam apenas em uma realidade espiritual e, ainda, outros, em uma realidade

simultaneamente corpórea e espiritual. Agostinho resume em confissão que a terceira

opinião tem o seu favor. Nas palavras do bispo de Hispona: “agora Deus permitiu que

ao contemplar estes textos mais de perto, calcule, não sem razão, parece-me, que posso

também mostrar que eles foram escritos no sentido próprio e não no sentido alegórico”

(DELUMEAU, 1996, p. 27). Assim, por gerações e gerações da civilização ocidental,

essas palavras de Agostinho configuraram-se declarações infalíveis, contribuindo para

formar e moldar as convicções coletivas em torno da existência do paraíso na terra.

Embora boa parte dos escritos de navegadores e cronistas viajantes situasse o paraíso

terrestre para os lados do Oriente, ainda no século XVIII, um certo Pedro de Rates

Hanequim, que viveu durante mais de vinte anos no Brasil, afirmou estar o paraíso em

terras brasileiras, dizendo

que a árvore da ciência do bem e do mal ali subsistia e que o Amazonas e o São Francisco são dois dos quatro rios paradisíacos. Adão tinha sido criado por Deus na América, de onde tinha passado a pé enxuto para Jerusalém, tendo-se o mar aberto para ele como para os Hebreus ao fugir do Egito. Quanto ao Dilúvio, não tinha atingido o Brasil (DELUMEAU, 1996, p. 71).

A palavra “Brasil” , segundo Delumeau, ao contrário do que se acreditou durante

muito tempo, não provém da planta tintorial que dá um corante vermelho, o famoso

pau-brasil, “mas de um vocábulo irlandês, Hy Bressail ou O Brazil, que significa Ilha

Afortunada” (DELUMEAU, 1996, p. 128). Desse modo, essa designação contribuiu

para que se espalhasse pelo mundo a idéia de que o Paraíso poderia estar na América.

O jardim das delícias, onde viveram por breve instante Adão e Eva, configura-se

como um tema que alimenta o imaginário da humanidade por cerca de três milênios.

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Judeus e cristãos nunca puseram em dúvida o caráter histórico da narrativa do Gênesis

(2, 8-17) que descreve o jardim maravilhoso que Deus tinha feito surgir no Éden. A

imagem desse jardim celeste será reelaborada incessantemente pela imaginação poética

no decorrer dos tempos, estabelecendo paralelos e ligações, também, entre o jardim

sagrado da bíblia e os das outras religiões e civilizações. No dizer de Delumeau,

numerosas civilizações acreditaram num paraíso primordial onde haviam reinado a perfeição, a liberdade, a paz, a felicidade, a abundância, a ausência de coacção, de tensões e de conflitos. Os homens entendiam-se e viviam em harmonia com os animais. Comunicavam sem esforço com o mundo divino. Daí a profunda nostalgia na consciência coletiva – a do paraíso perdido mas não esquecido – o poderoso desejo de o reencontrar (1992, p. 12).

Desse modo, o imaginário da humanidade amalgama-se a toda uma plêiade de

poetas latinos e cristãos que nos séculos IV, V e VI evocavam o paraíso terrestre

associando-o aos dados do Gênesis bíblico.

Em conclusão ao terceiro volume, a pergunta de Delumeau, “Terei escrito, em

três volumes, uma história dos paraísos perdidos?” (2003, p. 507), revela, até certo

ponto, a impossibilidade de considerar o assunto estanque, bem como a angústia

humana diante da crença utópica na existência desse lugar. Essa dúvida de Delumeau

fundamenta-se no constante esgotamento do estoque de imagens traduzindo visões do

paraíso frente ao momento em que se publicava a Enciclopédia. O nascimento do

evolucionismo tomava à humanidade o direito de imaginar o paraíso corpóreo, como se

fizera durante tanto tempo. Por isso, no período da Renascença, a arte passa a ser o

lugar de sobrevivência das imagens de um tempo em que “o sobrenatural e o real

concreto da terra estiveram imbricados um no outro: o sobrenatural invadia o

cotidiano; inversamente, o mobiliário terrestre encontrava vasto espaço no mundo

celeste” (DELUMEAU, 1996, p. 507). A revolução científica dos novos tempos

condenou o paraíso à mesma categoria de todas as utopias, definindo o paraíso como

um não-lugar. Conforme conclusão do autor, a palavra paraíso designa não um lugar,

mas um futuro além da morte ou, mais precisamente, além da ressurreição. Assim, a

humanidade deve aceitar o vazio das representações relativas ao paraíso espiritual,

compensado pela esperança utópica de uma realização das bem-aventuranças do

mundo por vir. No entanto, essas bem-aventuranças também não passam de utopias,

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configurando um estreito laço com a utopia do paraíso. Desse modo, consola o autor, o

que resta à humanidade é a espera pela realização da profecia de Jesus que tornará

realidade os sonhos descritos por Mateus e Lucas no livro sagrado de que os que

choram serão consolados e os que têm fome e sede de justiça serão saciados. No dizer

do historiador, “o paraíso será a atualização desses sonhos loucos sem a presença dos

quais a vida na terra se transforma em inferno” (DELUMEAU, 1996, p. 508).

1.2 O paraíso decaído

A evolução no pensamento ocidental provocada pela nova astronomia, iniciada por

Copérnico, Kepler e Galileu, constantemente aprofundada até nossos dias, ocasionou

modificações profundas em torno do imaginário sobre o tema paradisíaco. Apesar de a

humanidade ainda sonhar com o jardim das delícias, encontra-se diante de uma dupla

evidência: “a do estilhaçamento do paraíso, porém, ao mesmo tempo, a da persistência

de uma esperança ligada a essa palavra” (DELUMEAU, 2003, p. 479). Por um lado, o

século XIX enfatizou, por meio de escritores inovadores, a vida dos eleitos no universo

paradisíaco e, por outro, a neo-escolática católica e protestante combateu essa

concepção. Assim, afastando o imaginário acerca da realidade do paraíso das certezas

clássicas, teólogos protestantes do século XX recusaram-se a manter as imagens e

noções paradisíacas que alimentaram a fé cristã ao longo dos séculos. Essa recusa

remete a questão do paraíso terreno para a idéia da corrupção do mundo e da natureza,

em conseqüência do Pecado e da Queda, deitando raízes nas Sagradas Escrituras.

Assim, por culpa do primeiro homem, não somente a espécie humana, mas toda a

criação geme e padece até hoje.

Sobre essa depravação do mundo, Holanda considera a própria instabilidade da

criação como hipótese para justificar as mudanças. Para o autor, essa depravação ou,

degradação teria origem na “privação da virtude que nele infundira o Senhor, em sua

glória primeira e virginal” (1996, p. 189). A transcrição a seguir revela a confluência

entre concepções históricas e doutrinas cristãs relativas ao declínio e à catástrofe

cósmica:

A visão clássica da história, que admitia essa decadência progressiva, fazendo preceder a Idade do Ouro à da Prata, do Bronze e do Ferro, que sucessivamente, e nessa ordem, se substituem uma à outra, entrosava-se sem dificuldade [...] na doutrina cristã da Queda e

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fornecia mesmo uma ampla estrutura para a teoria de um mundo que se deteriora cada vez mais em todas as suas partes. Ao lado disso, as Idéias ou Formas de Platão acham por onde inserir-se nas doutrinas relativas à catástrofe cósmica, pois confrontado com as normas ideais existentes em algum lugar, deste ou daquele modo, o nosso mundo, em constante declínio, será uma espécie de cópia esmaecida e degradada. A concepção de mal como privatio, de acordo com Santo Agostinho, que se funda, de fato, em Aristóteles, e ainda as noções aristotélicas sobre a oposição entre elementos contrários [...] são eminentemente adaptáveis às mesmas doutrinas (HOLANDA, 1996, p. 189).

Desse modo, a humanidade passa a conviver com uma melancolia pessimista do

peregrino errante destituído da possibilidade de encontrar assento num espaço

paradisíaco. No entanto, a fantasia em torno desse lugar sagrado circunscreveu-se em

todo um universo poético limitando, de certo modo, o imaginário humano a uma

continuidade apenas fictícia e fabulada do paraíso. Nesse sentido, Delumeau lembra

que o Romantismo, cultivando a melancolia da morte, representa uma etapa importante

na história ocidental por remeter ao luto e à eterna descoberta da morte, conformando

homens e mulheres a essa nova condição de vazio diante da bem-aventurança terrestre.

Instaurava-se, desse modo, “essa religião da saudade que hoje, na França, por exemplo,

celebra-se de fato no dia de Todos os Santos, que se tornou para os crentes e os

descrentes a festa dos mortos que amamos e o momento privilegiado da memória

familiar” (DELUMEAU, 2003, p. 497). No Brasil, país reconhecidamente cristão, essa

homenagem aos mortos acontece no dia dos Finados, feriado permanente no calendário

cristão brasileiro.

Essa inovação com relação aos mortos manifesta o advento de um período em que

o espaço cristão se destituía da iconografia paradisíaca milenar e por meio de um novo

impulso, mais afetivo e menos descritivo, instituía a comemoração dos entes queridos

desaparecidos. Diante desse quadro acerca do esvaziamento do imaginário sobre o

paraíso, cabe retomar, então, a questão formulada por Delumeau: “O que sobrou do

paraíso?” e respondê-la conforme sua própria conclusão: “a fé cristã continua a

responder: graças à ressurreição do Salvador, um dia todos nós nos daremos as mãos e

nossos olhos verão a felicidade” (2003, p. 508).

No entanto, cabe aqui uma outra questão sobre o possível conforto que essa fé

cristã estaria oferecendo à civilização moderna em relação à vida bem-aventurada na

terra, constantemente ameaçada pelas ações históricas do próprio homem. Estaria essa

fé dando conta de irmanar homens e mulheres em torno da preservação do imaginário

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do paraíso e, mais urgente, haveria uma explicação para a depravação/degradação da

Terra? A resposta vem do Teólogo e professor de Ética e Filosofia da Universidade

Estadual do Rio de Janeiro, Leonardo Boff. Para o seguidor da Teologia da Libertação,

a reversão do atual estado de degradação em que a terra e a humanidade se encontram

só será possível mediante um novo paradigma, que pede “uma nova linguagem, um

novo imaginário, uma nova política, uma nova pedagogia, uma nova ética, uma nova

descoberta do sagrado e um novo processo de individuação (espiritualidade)” (BOFF,

2000, p. 168). Esse processo implica a retomada da dignidade violada e perdida, que

pode significar a cura da Terra e o reencontro do caminho para o Sagrado. No entanto,

para retornar a esse caminho perdido, a humanidade dependeria de uma condição sine

qua non para reconciliar-se com a Terra.

1.3 Eco-espir itualidade: o paraíso possível

A condição apontada por Boff para retornar aos caminhos rumo à construção do

paraíso terreno consiste na

elaboração de uma verdadeira espiritualidade que consiga re-ligar todas as nossas experiências e nos ajude a firmar uma nova aliança com o criado e o Criador. Essa espiritualidade não será fruto das disquisições e belos achados de algum pensador, mas o resultado do espírito de toda uma época ou até de várias gerações. A natureza da espiritualidade impõe, portanto, humildade e despretensão quando falamos dela e queremos ajudar no seu surgimento (2000, p. 285).

A reflexão do autor baseia-se num raciocínio, aparentemente, bastante simples. Ao

falar sobre as mudanças na estrutura do pensamento ocidental causadas pelo progresso

da ciência, Boff cita como exemplo as revoluções ocorridas nas ciências físicas. As

revoluções, diz o teólogo, ocorrem como resposta a fenômenos novos que não podem

mais ser entendidos, explicados e enquadrados na compreensão até então vigente da

ciência. Então, por mais conservador que seja um cientista, deverá abandonar algumas

estruturas de compreensão já postas e projetar outras, novas, configurando novos

fenômenos. Caso isso não ocorra, o fenômeno permanecerá como problema. No

entanto, se um fenômeno surgir e não houver para ele explicação nem solução por meio

da compreensão tradicional, então se impõe a revolução.

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Do mesmo modo, extrapolando do campo da ciência para qualquer outro da

história humana, verifica-se a mesma lógica da necessidade de mudança de paradigma

quando um novo fenômeno emerge e solicita novas resoluções. Se o fenômeno

permanecer como problema, isto é, se não houver mudança na estrutura mental,

imposição de todo fenômeno, então, pela própria natureza e em nenhum momento pela

autoridade humana, ocorrerá a revolução. Porém, adverte o autor, “somente triunfará

aquela revolução que é resposta à necessidade imperiosa de mudanças sem as quais os

problemas persistem, as crises se aprofundam e as pessoas perdem a esperança e o

sentido de vida” (BOFF, 2000, p. 287). Por isso, a espiritualidade é o campo, por

excelência, da criatividade, do não controlado pela instituição ou pela comunidade

religiosa, razão pela qual as religiões institucionalizadas sempre temeram os homens

espirituais e místicos. No entanto, essa espiritualidade somente será revolucionária em

relação à retomada da construção do paraíso terreno se a humanidade lembrar-se que o

universo e a Terra não são resultado de sua criatividade nem fruto de sua vontade.

Assim, a revolução eco-espiritual consiste na redescoberta da humanidade sobre seu

lugar junto com outras espécies e não fora ou acima delas. Por fim, essa revolução cria

uma nova consciência, uma nova visão do universo e uma redefinição do ser humano no

cosmos e de suas práticas em relação a ele. Desse modo, explica Boff, “depois de

séculos de confronto com a natureza e de isolamento da comunidade planetária, o ser

humano está encontrando o seu caminho de volta para a sua casa comum, a grande, boa

e fecunda Terra” (BOFF, 2000, p. 167). Sendo a Terra um bem comum de todos é tarefa

também de todos empreender o desafio pedagógico dos tempos modernos e fazer a

revolução que funda a nova cosmologia, pois,

não podemos nos entender como seres separados da Terra; nem podemos permanecer na visão clássica que entende a Terra como um planeta inerte, um amontoado de solo e de água penetrados pelos 100 elementos que compõem todos os seres. Somos filhos e filhas da Terra, somos a própria Terra que se torna autoconsciente, a Terra que caminha, como dizia o grande poeta mestiço argentino Atahulpa Yupanqui, a Terra que pensa, a Terra que ama e a Terra que celebra o mistério do universo (BOFF, 2000, p. 185).

Uma vez reencontrado esse caminho, a humanidade poderá não apenas vislumbrar

essas imagens, mas também usufruir novamente do paraíso terreal. A mesma ecologia

que ensina a ver a unidade no processo cósmico ajuda também a entender questões

como esta: a energia primordial do momento do big-bang é a mesma que permitiu “o

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surgimento das flores, do arco-íris, dos colibris, da música de Vivaldi, da força profética

de Lutrher King ou de dom Helder Câmara ou da mística libertadora do bispo Desmond

Tutu e dom Pedro Casaldáliga” (BOFF, 2000, p. 73). Desse modo, abre-se para a

humanidade o imaginário do paraíso possível, aquele que poderá ser reconstruído sobre

os escombros da unidade cósmica.

Assim, a partir da breve exposição sobre o imaginário humano acerca da existência

de um paraíso terrestre, da depredação desse paraíso e da sua conseqüente

transformação e perda, cabe, então, diante da perspectiva de um paraíso possível,

considerar a história da Terra e sua distribuição no contexto brasileiro.

2. Da colonização portuguesa ao assentamento: Estatuto do latifúndio

Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos.

(Pero Vaz de Caminha)

Sem a pretensão de reelaborar amiúde a história da distribuição da terra no Brasil

e, concomitantemente, o processo de formação do MST, a retrospectiva que segue

sintetiza os fatos histórico-culturais determinantes à compreensão dos símbolos e da

mística desenvolvidos pelo grupo. Essa mística revela, entre outros aspectos, a

reelaboração das imagens do paraíso terreno mediante a revisão das posições do próprio

ser humano em relação ao ser Terra.

Ainda no ano de 1964, no dia 30 de novembro, “o Marechal Castelo Branco, [...]

promulgou a Lei n° 4.504, conhecida como Estatuto da Terra e que se constitui,

efetivamente, como a primeira lei brasileira de reforma agrária” (STEDILE6, 2005,

p.145). Esse Estatuto, embora gerado no seio da ditadura militar, representa o resultado

de um longo processo de luta de camponeses e de cidadãos comprometidos com a

reforma agrária. Ao falar sobre a questão agrária no Brasil, o autor lembra que em 1844,

Joaquim Nabuco já defendia a necessidade de reforma agrária, porém, a República

Velha foi apenas uma forma de as oligarquias manterem seus privilégios e o monopólio

da terra. Os debates sobre a questão são retomados após a II Guerra Mundial, quando,

6 João Pedro Stédile participa, desde 1979, das atividades da luta pela reforma agrária. É um dos fundadores do MST e, atualmente, membro da sua direção nacional. É autor de diversos livros sobre a questão agrária.

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“em 1946, o então senador Luiz Carlos Prestes apresentou, em nome da bancada do

PCB7, a primeira lei de reforma agrária ampla” (STEDILE, 2005, p. 146). Essa lei seria

arquivada após a cassação dos parlamentares do partido. A proposta apresentada, em

1954, pela bancada do PTB8, também não prosperou e tampouco vingou, em setembro

de 1963, o projeto de lei de reforma agrária proposto pelo então deputado federal

Leonel Brizola, com a colaboração de Paulo Schilling. Nesse período, que abrange os

anos de 1946 até 1964, todas as tentativas de buscar uma solução legal para a pressão

exercida pelos movimentos camponeses não alcançaram êxito. No entanto, é nesse

espaço de tempo que ocorre a criação de movimentos camponeses, articulados em

âmbito nacional e com consciência de classe em si e, finalmente, em 1963, a partir da

“criação dos sindicatos rurais que até então eram proibidos” (STEDILE, 2005, p. 147).

A questão é retomada em âmbito de legislação, por meio do Estatuto da Terra, em 1964.

Com o golpe Militar que destituiu Goulard, assume o governo o marechal Humberto Castelo Branco e em novembro do mesmo ano, edita o Estatuto da Terra. Considerando-se a época e as circunstâncias políticas de uma ditadura militar, o Estatuto da Terra foi considerado uma legislação progressista [...] (STEDILE, 2005, p. 147).

Entretanto, continua Stedile, a promessa de redemocratização foi esquecida e a

ditadura tornou-se mais violenta com seus opositores. Sobre a década seguinte, 1970,

Morissawa observa que representa, na história do Movimento, o período em que “se

estimulou a mecanização e modernização da lavoura, como parte da política agrária

introduzida no Brasil pela ditadura militar” num claro incentivo à “agricultura

capitalista” (2001, p. 120). Como conseqüência dessa política, Stedile lembra que o

Estatuto da Terra foi relegado ao esquecimento e foi retomado apenas por servir como

“ instrumento jurídico institucional tanto para a venda de terras públicas para grandes

empresas quanto para ampliação de projetos oficiais de colonização dirigidos aos

camponeses sem terra do Sul e do Nordeste” (2005, p. 151). Nesse contexto, vale

lembrar que, entre esses estados,

[...] o estado do Paraná foi marcado pela expulsão dos camponeses de suas terras numa escala nunca antes vista no Brasil. No prazo de dez anos, foram cerca de 100 mil pequenos proprietários rurais. Parceiros,

7 Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922. 8 Partido Trabalhista Brasileiro, fundado em 1945, por Getúlio Vargas.

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posseiros e arrendatários já sofriam um processo de expulsão devido à mecanização da agricultura. Para piorar a situação, a construção da Hidrelétrica Binacional de Itaipu levou à desapropriação de mais de 12 mil famílias de oito municípios do extremo oeste do estado (MORISSAWA, 2001, p. 121).

Desencadeia-se, então, o processo migratório para as fronteiras agrícolas, onde o

governo federal implantou projetos de colonização e a população agrícola das regiões

Sul, Sudeste e Nordeste foi incentivada a migrar para essas fronteiras. Desse modo, “os

assalariados do campo, os arrendatários e parceiros foram sendo expulsos dos

latifúndios” migrando, “principalmente, para Rondônia, Pará e Mato Grosso”

(MORISSAWA, 2001, p. 120). Para esse fim, foram abertas novas e extensas rodovias

em direção a Oeste; a BR-364, ligando Brasília – Cuiabá – Porto Velho, posteriormente

a Transamazônica, ligando Teresina a Itaituba e, finalmente, a Cuiabá – Santarém.

Atendendo aos interesses do projeto militar de colonização, essas rodovias foram

construídas para levar “os contingentes de sem-terra e, ao mesmo tempo, possibilitar o

deslocamento de mão-de-obra barata para a exploração da madeira, de minérios e

demais recursos naturais da Amazônia. Como dizia o general Médici, vamos levar gente

sem terra para uma terra sem gente” (STEDILE, 2005, p. 152).

Pelas rodovias do progresso, o povo sem-terra é transportado para regiões

desconhecidas e distantes daquelas em que nasceram e aprenderam a lida com a terra.

Esse processo promovido pelo capitalismo inicia o longo percurso de desenraizamento

do agricultor e o Estatuto da Terra, “que fora concebido no marco de uma política de

reforma agrária destinada a impulsionar o desenvolvimento do capitalismo, tem seu uso

limitado à privatização de terras públicas e programas de colonização” (STEDILE,

2005, p. 152).

Aos migrantes que atendiam ao chamado da Marcha para Oeste9 buscando a

inclusão social por meio da terra, restaram os assentamentos que podem ser

identificados como o lugar dos esquecidos. Picoli observa que essa política fomentou,

durante o período da ditadura, “a organização do modelo particular de distribuição de

terras, via empresas de especulação imobiliária, [...] sendo identificadas grandes áreas e

9 Sobre a Marcha para o Oeste, Hilda Gomes Dutra Magalhães diz, em sua História da literatura de Mato Grosso (2001, p.277) que, se nos primeiros tempos da colonização a povoação da Amazônia era uma forma de a coroa Portuguesa afirmar sua soberania sobre esse território e suas riquezas naturais, no século XX a preocupação com a Amazônia adveio, de um lado, também da necessidade de afirmação da soberania do Governo Brasileiro sobre a Amazônia (...) e, de outro lado, de questões de natureza econômica, considerando que a partir dos anos 50 o país implementava uma política de exportação sustentada na expansão das atividades agro-industriais no espaço amazônico.

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distribuídas aos filhotes da ditadura” . Empresas como a “Colonizadora Sinop S. A., de

Sinop, e a Colonizadora Indeco de Alta Floresta, ambas com mais de 400.000 hectares

disponíveis” (PICOLI, 2005, p. 24), são exemplos de grandes projetos que fortalecem

na Amazônia a prática do latifúndio.

Sobre a colonização do norte de Mato Grosso, Regina Beatriz Guimarães Neto

observa, em A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo

(2002) que muitos homens e mulheres, mais precisamente aqueles que já haviam feito

escola10 no Paraná, na década de 50, colocaram-se em marcha, novamente, rumo às

terras da Amazônia. No entender da escritora, “a obra da empresa colonizadora elevava-

se como um clarão na imensa floresta, onde o ruído dos machados, abatendo as grandes

árvores, trazia ao lugar o gemido da impotência da natureza perante o absurdo dos

homens” (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 71). A autora lembra que não somente

paranaenses se deslocaram para a região, pois muitos outros passaram também pela

escola do Mato Grosso do Sul, conforme depoimento de Zé Antônio: “Eu fui para

Dourados e de lá vim para Alta Floresta, esperando acontecer aqui o que num consegui

lá” (GUIMARÃES, 2002, p. 75). Nessa travessia em busca da nova terra, o que os

colonos encontravam, no entanto, eram duras adversidades. Trabalhavam na labuta

diária enquanto a colonização ganhava reconhecimento e nome. A transcrição de um

trecho do depoimento da família de Zé Antônio resume bem a reação dos colonos recém

chegados ao sertão11 mato-grossense:

Eu cheguei e comecei a enfrentar o mato com a família inteira. A gente quando chegou aqui, não tinha estrada. Nós entrou aqui e só tinha nós e uma família lá na estrada da central. Não tinha nada, não tinha nenhuma família de colono. Mais eu nem pensei, dinheiro ninguém tinha, mais a firma dava apoio se a gente precisasse, mais não deu nada, não, toquemo em frente! Não achei nada difícil, meus filho tudo tem coragem, eu também tenho. Um dia chegamo, um dia armamo o barraco e...[Intervenção da mulher do colono] – Eu mais as moça acabamo de fechar o barraco. Não achamo nada difícil. A gente acabou de fechar e eles foram derrubar esses mato, derrubaram tudo no braço (GUIMARÃES, 2002, p. 77).

10 O termo é usado no sentido de identificar os colonos que já haviam vivido a experiência da migração no sul do país. 11 Lylia Galleti, em sua tese sobre sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso, discute em que medida o termo sertão foi usado para classificar, geograficamente, amplas regiões como espaços vazios de civilização e atrasadas na marcha histórica. Tese de doutorado: NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO: sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso. [2000].

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Cabe lembrar, neste ponto do olhar retrospectivo, que toda a história da colonização

brasileira remete a questões diretamente associadas à temática da terra. O Brasil é

tomado como região agrária pelos colonizadores europeus, que não têm em vista o

fortalecimento da colônia e dos povos nativos. O que conta é apenas o progresso do

conquistador por meio de práticas de colonização exploratória. Sérgio Buarque De

Holanda diz, em Raízes do Brasil, tratar-se do princípio “que, desde os tempos mais

remotos da colonização, norteara a produção de riqueza no país” , e que “não cessou de

valer um só momento para a produção agrária” (1995, p. 52). A relação de poder em

torno da posse da terra não é, portanto, um fenômeno recente em território brasileiro.

No decorrer de toda a história da colonização, a questão agrária é a base de conflitos

sociais que se agravam na medida em que novos horizontes são vislumbrados por

grandes grupos colonizadores.

Flávio Aguiar, ao apresentar a sua obra Com palmos medida, sob o olhar da

representação literária, observa que nos primeiros tempos da República “as guerras

desencadeadas pelas lutas entre facções da classe dominante – os senhores da terra –

ganham destaque sobretudo na narrativa” (1999, p.13). O autor apresenta uma antologia

temática na qual a literatura brasileira manifesta em que medida prosadores e poetas

representaram e expressaram a ocupação da terra no Brasil. Observando pelo viés da

História, pode-se dizer que a conquista, a fixação e a exclusão identificadas pelo autor

como eixos determinadores dos trajetos e escolhas dos textos da antologia, constituem-

se como eixos seletivos naturais. A ordem cronológica das publicações, observada na

coletânea, permite vislumbrar a evolução de um processo que promoveu o contingente

de “rejeitados, deserdados, expulsos, exilados, por assim dizer, em sua própria terra”

(AGUIAR, 1999, p. 10).

Nesse mesmo sentido, Nicolau Sevcenko apresenta um estudo pormenorizado

sobre os escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto, cujas obras permitem entrever as

tensões históricas cruciais do período que retratam. Segundo o autor, as obras dos dois

escritores distinguem-se “pela transparência com que resumem nas propostas e

respostas estéticas os conflitos mais agônicos que marcaram a sociedade brasileira nessa

fase” (2003, p. 32). Euclides da Cunha traz à tona, em Os sertões, uma das lutas

messiânicas pelo direito a terra mais significativas da história brasileira.

Apresentando um contexto semelhante, também a Guerra do Contestado foi

conduzida por um líder messiânico e, assim como Canudos - a terra prometida,

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envolveu milhares de camponeses pobres que acabaram sendo derrotados pela repressão

de tropas federais. Os líderes dessas lutas; Antônio Conselheiro, em Canudos, Bahia, e o

Monge José Maria, na região do litígio entre o Paraná e Santa Catarina, colocavam-se

como intermediários na comunicação de Deus com o povo. Por esse motivo “alguns

autores chamam as revoltas camponesas do período de lutas messiânicas”

(MORISSAWA, 2001, p. 86).

A origem dessas lutas e de todo o problema da má distribuição de terras no Brasil

remonta ao período do descobrimento. A América já tinha donos havia muito tempo e,

como os indígenas não soubessem o que significava “ser dono”, não faziam idéia de que

a terra viria a ser propriedade privada dos colonizadores. Habituados a dividir tudo o

que era produzido, caçado, pescado e coletado não geravam excedentes de produção,

não conheciam a palavra “comércio” . No entender de Morissawa “a luta pela terra no

Brasil nasceu naquele mesmo instante em que os portugueses perceberam que estavam

numa terra sem cercas, onde encontravam tudo muito disponível” (2001, p. 57). A partir

de então, instaurado o primeiro caso de invasão, os habitantes da terra que não

conseguiram fugir rumo ao interior do território brasileiro foram feitos escravos dos

colonizadores. A coroa portuguesa, por seu turno, assim que sentiu ameaçada a

soberania sobre a Colônia, dividiu as terras em capitanias hereditárias e cada uma delas

foi entregue como concessão a nobres portugueses, em troca do pagamento de impostos

à coroa. Esse é um aspecto para o qual Morissawa chama a atenção: “as terras do nosso

país não foram dadas a esses nobres. Elas continuaram pertencendo à Coroa portuguesa

até 1822 e depois ao Império brasileiro até 1850” (2001, p. 57). Desse modo, a terra não

podia ser vendida, no entanto, os donatários das capitanias podiam dividi-las em

sesmarias para as pessoas que quisessem produzir nela. Assim se chega ao ponto crucial

do trato com a terra no Brasil. Tanta terra para explorar e nenhuma mão-de-obra para

realizar o trabalho. Desse modo, a escravização de indígenas ocorreu por pelo menos

cem anos quando, por interferência dos padres jesuítas, passaram a trabalhar apenas

para as missões em troca da proteção que recebiam dos padres. “Quando não estavam

abrigados em missões, os índios preferiam lutar até a morte a entregar-se à escravidão.

Os exemplos mais conhecidos da resistência indígena são a Confederação dos Tamoios

e a Guerra dos Bárbaros” (MORISSAWA, 2001, p. 59). Diante desse quadro, a

substituição do escravo indígena pela mão-de-obra escrava africana se apresentava ao

colono estabelecido no Brasil como a alternativa mais adequada. Um povo que já era

cativo na África não apresentava resistência ao trabalho escravo. Mesmo assim, quando

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chegavam ao Brasil, eram acorrentados e levados para os engenhos, onde ficavam

vigiados pelos feitores. O comércio de escravos se tornou tão lucrativo para os

traficantes que alguns deles ficaram mais ricos que os próprios latifundiários a que

serviam, chegando a atuar como agiotas, emprestando dinheiro aos fazendeiros da

Colônia. Sobre esse período a autora lembra que,

No Brasil do século XVII, ainda exclusivamente açucareiro, dominavam os senhores de engenho. Na mesma situação social, estavam os grandes comerciantes, que importavam e exportavam mercadorias e traziam escravos da África para serem vendidos no Brasil. Abaixo dessa camada mais rica ficava a multidão de homens livres pobres: pequenos agricultores, carpinteiros, sapateiros, alfaiates, pequenos comerciantes. Esmagados sob esse edifício social estavam os escravos, que, em algumas regiões, chegavam a ser a maioria da população (MORISSAWA, 2001, p. 61).

Também Roberto Schwarz12 reporta-se a esse período, embora sem pretender

escrever uma história do Brasil, expõe, dentre outras, uma pertinente reflexão sobre a

questão escravagista e suas implicações no contexto nacional. Ao falar sobre a

emancipação política do Brasil, o autor lembra o flagrante caráter conservador que

orientou as elites frente às mudanças que se impunham ao período oitocentista. Diante

da iminência liberal que pautava a consciência do século, a norma e a infração

configuraram o comportamento da elite brasileira da época. Nas palavras do crítico, “o

tráfico de africanos continuou a ser um excelente negócio, o mais lucrativo sob o sol”

(SCHWARZ, 2000, p. 37), evidenciando os modos atrasados de produzir em detrimento

à concepção do ideário moderno que se pretendia instaurar no país. Nesse mesmo

contexto, diz ainda:

Mesma coisa para o ciclo do café, decisivo e longo, cuja prosperidade assentava sobre a escravidão e, mais adiante, sobre o trabalho semiforçado, com o qual chegaria a nosso tempo. Assim, a ligação do país à ordem revolucionada do capital e das liberdades civis não só não mudava os modos atrasados de produzir, como os confirmava e promovia na prática, fundando neles uma evolução com pressupostos modernos, o que naturalmente mostrava o progresso por um flanco inesperado (SCHWARZ, 2000, p. 37).

12 Em Um mestre na periferia do capitalismo:Machado de Assis (2000), o autor elabora sua reflexão para pensar os procedimentos literários em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) a partir do conceito de “volubilidade” . Essa discussão será retomada no próximo capítulo para ilustrar a originalidade da forma e suas implicações no fazer literário.

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Desse modo, o ideário liberal, necessário para a organização do novo Estado e das

elites, representa tanto o progresso como a permanência do modelo arcaico na relação

proprietário e empregado. Esse rol de acontecimentos vai elaborando a história de

ambos os lados. Os excluídos do processo modernizador, por sua vez, passaram a

formar quilombos onde se refugiavam não só escravos foragidos, como também índios,

pobres e prostitutas. O quilombo dos Palmares foi considerado o maior do Brasil,

caracterizando-se pela junção de quilombos que chegou a reunir perto de vinte mil

habitantes. Zumbi, o mais famoso rei de Palmares, “manteve-se no comando da luta de

resistência por cerca de dezesseis anos, vencendo diversas incursões feitas na tentativa

de vencer a resistência de Palmares. Zumbi foi morto quando o reduto foi arrasado por

mercenários sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho” (MORISSAWA,

2001, p. 65).

Em meados do século XIX, a pressão internacional para se acabar com a

escravidão aumentou e muitos escravos continuavam a fugir para os quilombos. O

processo de abolição durou 38 anos, iniciando com a lei do fim do tráfico, em 1850,

seguida da Lei do Ventre Livre, em 1871 e da Lei do Sexagenário, em 1885. Quando,

em 1888, é assinada a Lei Áurea, os escravos formavam um imenso contingente de

despossuídos, cuja maioria só sabia trabalhar na terra, mas não contava com um metro

de chão para plantar e sobreviver. Para que os ex-escravos, os brasileiros pobres, os

posseiros e imigrantes não pudessem se tornar proprietários e continuassem a se prestar

a trabalhos assalariados nos latifúndios, a Coroa estabeleceu uma lei restringindo o

direito de posse da terra. Nesse contexto, “A Lei das Terras significou o casamento do

capital com a propriedade da terra. Com isso, a terra foi transformada em uma

mercadoria à qual somente os ricos poderiam ter acesso” (MORISSAWA, 2001, p. 71).

Os imigrantes europeus, grande parte deles camponeses sem terra, começavam a

chegar em grande número a partir de 1870. Iniciava-se, assim, um novo modelo de

escravidão que mantinha os colonos pobres reféns dos fazendeiros que cobravam, após

a colheita, o que haviam gasto na passagem de vinda dos imigrantes, as dívidas do

armazém e o aluguel da moradia. Desse modo, a ocupação da terra no Brasil revela uma

história em que o povo, quer fosse o nativo brasileiro, o traficado africano ou o

aventureiro europeu, esteve sempre à margem do processo de inclusão social por meio

da terra.

Também Bosi, em sua Dialética da Colonização, resume o processo de

colonização no Brasil de forma incisiva: “Novas terras, novos bens abrem-se à cobiça

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dos invasores” (BOSI, 1992, p. 20). E em seguida cita a visão marxista sobre o processo

colonizador. Segundo o crítico, Marx via nesse processo uma prática que “não se esgota

no seu efeito modernizante de eventual propulsor do capitalismo mundial; quando

estimulado, aciona ou reinventa regimes arcaicos de trabalho, começando pelo

extermínio ou a escravidão dos nativos nas áreas de maior interesse econômico” (BOSI,

1992, p. 21).

2.1 Reforma agrár ia: a colonização tardia

A reprodução do sistema colonizador, que efetiva práticas do passado

exterminador e excluidor dos povos originários e posseiros, reelabora, no processo de

colonização interna, séculos depois do descobrimento, a história de exclusão social e

cultural do homem do campo. A esse respeito, Stedile lembra as proposições elaboradas

no 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, que aconteceu de 21 a 25 de maio

de 1979, em Brasília:

1- que o Movimento sindical de Trabalhadores Rurais tome posição contra o processo de colonização atualmente em curso; 2- que os erros e desvios desta colonização como alternativa oficial para não fazer a Reforma Agrária sejam analisados e amplamente denunciados, especialmente a expulsão de colonos e posseiros e sua transformação em mão-de-obra barata e escrava; 3- que a colonização seja realizada somente por órgãos oficiais com a participação do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e não por colonizadoras particulares; 4- que o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais exija a realização de uma colonização voltada para a criação massiva de unidades de produção tamanho familiar em benefício dos trabalhadores rurais (STEDILE, 2005, p. 164).

Sobre essa questão, Picoli explica que, ao mesmo tempo em que o poder oficial

distribuiu terras aos grupos organizados, também promoveu assentamentos via

INCRA13 a pequenos agricultores, para desenvolver a idéia de um governo bom e

prestativo, e “com essa tática foi possível implantar os projetos das elites agrárias” .

Conforme afirma o autor, “a união entre o Estado e o Capital é histórica e, por meio da

ditadura, se incumbe de desenvolver a estratégia de ocupação” (2005, p.23).

13 O INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, é uma autarquia federal criada pelo Decreto n°. 1.110, de 9 de julho de 1970 com a missão prioritária de realizar a Reforma Agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União.

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Vale lembrar, nesse ponto da reflexão, a pergunta formulada por Morissawa: “Que

perspectivas restaram aos sem-terra?” (2001, p. 122), e responder conforme Stedile:

“Quando a ditadura militar começa a dar sinais de crise a partir de 1976, durante o

governo do General Ernesto Geisel e, posteriormente no governo do General João

Figueiredo, invoca-se o Estatuto da Terra para realizar desapropriações” (2005, p. 152)

em áreas onde os conflitos sociais se mostravam mais iminentes e evitar, assim, reações

mais vigorosas dos camponeses. No entanto, esse artifício não funcionou, e o que

ocorreu “no período de 1979-1983 foi a eclosão de muitas lutas de posseiros da

Amazônia e o ressurgimento da luta massiva pela terra em quase todo o território

nacional” (STÉDILE, 2005, p. 152).

Assim, do interior desse processo político e dos anseios dos trabalhadores que

esperavam pelo efetivo cumprimento dos propósitos do Estatuto da Terra, começa o

“período de gestação do MST, que durou quatro anos e alguns meses até o nascimento

em 1984” (MORISSAWA, 2001, p. 123). Dentre os marcos significativos da história da

constituição do Movimento, a autora destaca o episódio de ocupação da Fazenda

Macali, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, ocorrido em 7 de setembro de 1979. E

acrescenta que, “muitas outras lutas, nesse estado e em todo o país, foram gerando

lideranças e incrementando a consciência da necessidade de ampliação das conquistas

em busca de um objetivo mais alto: a reforma agrária” (MORISSAWA, 2001, p. 124).

No início de dezembro do mesmo ano, algumas “ famílias que não haviam conseguido

assentamento em lutas anteriores resolveram acampar num local chamado Encruzilhada

Natalino, entroncamento das estradas que levavam a Ronda Alta, Sarandi e Passo

Fundo” (MORISSAWA, 2001, p. 125). O assentamento passa, então, a representar um

espaço de resistência para

Parceiros, meeiros, assalariados e filhos de pequenos agricultores [...]. Era um lugar estratégico, próximo a Annoni, da Macali e da Brilhante. Cerca de sete meses depois, já eram 600 famílias, reunindo cerca de 3 mil pessoas em barracos que se estendiam por quase dois quilômetros à beira da estrada. Boa parte delas já tinha experiência das coisas do movimento. Apesar da precariedade das condições do acampamento, trataram de se organizar em grupos, setores e comissões, e de eleger uma coordenação. Dessa luta nasceu o Boletim Sem Terra, o primeiro órgão de comunicação do Movimento, e uma secretaria administrativa em Porto Alegre para buscar solidariedade. A Brigada Militar cercava o local, tentando intimidar e desanimar os sem-terra de sua luta. O governo enviou representantes e até o bispo de Passo Fundo para cooptá-los, oferecendo empregos. Mas

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desistiu. Os sem-terra da Encruzilhada estavam firmes na decisão de persistir (MORISSAWA, 2001, p. 125).

Quando, em 1985, o presidente do INCRA José Gomes da Silva pede demissão por

perceber que o novo governo – José Sarney -, não tinha reais compromissos com a

reforma agrária, o Estatuto da Terra ainda não havia sido olhado pelas autoridades

políticas como um verdadeiro Plano de Reforma Agrária. Em 1987, com a Constituinte,

acontecem avanços em “algumas questões sociais, mas no tema da reforma agrária

representou um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra” (STEDILE, 2005, p. 153).

Sobre a nova constituição observa ainda o autor que ela insere mudanças fundamentais

na classificação das propriedades, mas não suplanta todos os artigos do Estatuto da

Terra.

Desta maneira, diante do constante adiamento de uma regulamentação definitiva

para as questões relativas à ocupação das terras, foi necessário, nas palavras de Stedile,

“criar uma lei complementar destinada a normatizar a aplicação dos novos princípios

constitucionais à reforma agrária” e promulgou-se, então, em 1993, a “Lei Agrária/93”

(2005, p. 154). Entretanto, a normatização prevista nessa lei não simplificou o processo

de desapropriação; ao contrário, criou mecanismos que facilitaram a contestação

jurídica pelo latifúndio, evitando que os processos de desapropriação sejam rápidos e

eficazes.

Segundo Morissawa, a atuação do MST em terras mato-grossenses “começou de

fato em agosto de 1995, quando fez a primeira ocupação com 1.000 famílias, na

Fazenda Aliança, em Pedra Preta” (2001, p. 192). Por ocasião da audiência com o então

governador Dante de Oliveira, os sem-terra reivindicaram a desapropriação imediata da

fazenda, segurança contra os jagunços, remédios e alimentação. Nos anos de 1997 e

1998, mais duas ocupações acontecem sedimentando as ações do movimento no Estado:

Em março de 1997, cerca de 1.000 famílias ocuparam uma área em São José do Povo, e outras 1.500 fizeram o mesmo em área próxima a Cáceres. Em outubro de 1998, 700 famílias ocuparam o latifúndio Urutau, em Mirassol d’Oeste e São José dos Quatro Marcos. (MORISSAWA, 2001, p. 192).

Laudemir Zart, ao falar sobre os fenômenos históricos da luta pela terra em Mato

Grosso, diz que A Encruzilhada Natalino simboliza o marco instaurador da resistência e

da luta pela terra pós-64 e, no contexto local, pode-se dizer que representa, também, o

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ingresso de Mato Grosso na história do MST. A transferência de 203 famílias do

acampamento na Encruzilhada Natalino para o estado de Mato Grosso,

“especificamente para o Projeto de Assentamento – Lucas do Rio Verde – localizado na

BR 163, rodovia Cuiabá-Santarém” (ZART, 2005, p. 143), inaugura a relação do

movimento com o sertão mato-grossense.

Dessa maneira, a história revela que os “desdobramentos do golpe militar de 1964

[...] geraram uma nova correlação de forças políticas, aliando militares, latifundiários,

burguesia nacional e capital estrangeiro, [...] que impôs pela força sua hegemonia

política e seu projeto de desenvolvimento” (STEDILE, 2005, p. 154). Nesse sentido, diz

ainda o autor, o MST se constitui um Movimento organizado que compreende a

democratização do acesso a terra, como a solução para resolver os problemas da

pobreza e da desigualdade social. Como conclusão ao período histórico que envolve

anos de luta pelo direito a terra e promove, em seu desenrolar, o surgimento e

consolidação do MST, o autor conclui:

Cá estamos, até hoje. Na prática, apesar do Estatuto da Terra, da nova Constituição e da subseqüente Lei Agrária, o processo de concentração da propriedade da terra no Brasil continua crescendo. Ao longo desses 40 anos, apesar da incessante luta dos movimentos camponeses, a propriedade da terra está cada vez mais concentrada em mãos de menos gente, empurrando para muito longe a perspectiva de um processo histórico de democratização do acesso a terra. O Brasil se mantém como um dos países de maior concentração da propriedade de terra. [...]. Mas a história vai sendo escrita conforme a caminhada do povo (STEDILE, 2005, p. 154 e 155).

Ao falar sobre O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, o antropólogo

Darcy Ribeiro diz que o “caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda

hoje, menos uma sociedade do que uma feitoria” (2003, p. 212). O fato é atribuído a

uma estrutura que toma as condições de sobrevivência e de progresso nos moldes

colonizadores. Para o autor, “a estratificação social gerada historicamente tem também

como característica a racionalidade resultante de sua montagem como negócio que a uns

privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como

objeto de enriquecimento alheio” (RIBEIRO, 2003, p. 212).

O escritor declara ainda, ao falar sobre a questão agrária para o Jornal Sem Terra,

em março de 1997, que “O Movimento Sem Terra é umas das coisas mais importantes

que já aconteceram no Brasil. E muitos de nós guardamos no coração uma grande

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esperança neles, para obrigar o Brasil a levar a questão agrária a sério” (apud

CALDART, 2004, p. 50). Na reflexão de Caldart, “trata-se de um movimento social que

foi se constituindo historicamente também pela força de seus gestos, pela postura de

seus militantes e pela riqueza de seus símbolos” (2004, p. 53). Assim, o retrospecto

histórico revela a preocupação do Movimento em cultivar a memória e, por meio da

mística, melhor compreender sua base social e construir os valores e a postura de cada

integrante do MST, constituindo a consciência coletiva do sujeito social Sem Terra.

3. Memória e identidade: trajetos em construção

Eis que a terra – cujas entranhas próximas, nos “ sete palmos do chão” a todos um dia nos abrigará, não esquece – mostra e dá aos homens a sua “ bondade” .

(Carlos Rodrigues Brandão)

Observando o surgimento e a trajetória dos sem-terra, é possível dimensionar,

então, a preocupação de lideranças e intelectuais como Pedro Stedile, Ademar Bogo,

Mitsui Morissawa e Roseli Caldart em preservar a memória do Movimento e constituir,

por meio dela e das demais manifestações culturais, a consciência do sujeito social sem-

terra. Essa consciência enraíza outra vez o sem-terra que resgata a memória histórica

por meio da mística vivenciada como ato cultural elaborado no interior das práticas

militantes.

Segundo Caldart, “do ponto de vista da formação do sem-terra como sujeito

político e sociocultural é possível identificar momentos distintos” (2004, p. 116), dentre

os quais o ato de ocupação da terra é apenas o primeiro, que se desdobrará em outras

ocupações como a revisão das tradições, dos costumes, da visão de mundo, produzindo

e reproduzindo cultura. “Os barracos de lona preta, com sua disposição espacial, têm

chamado a atenção da sociedade de maneira continuada para um conflito social que se

escancara na ocupação, e se desdobra nessa outra forma de luta” (CALDART, 2004, p.

176).

Para Bogo, a cultura “representa a produção material e espiritual da existência, a

produção da consciência e a formulação de objetivos que poderão ser alcançados pela

sucessão de várias gerações” (2000, p.14). Nesse processo de assimilação da herança

cultural, produzida e repassada aos seres individuais e sociais, haverá alterações

permanentes, pois

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cada geração acrescenta nesta interligação de gerações, suas próprias características, formando sua identidade, sempre com responsabilidade de preparar o ambiente onde viverão as gerações posteriores. [...] Assim se sucedem os inventos, as descobertas científicas, as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativas com seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos da existência, os poetas e seresteiros, que buscam subir os mais altos degraus na escada que levam à felicidade (BOGO, 2000, p. 14).

Desta forma, a construção da cultura do sujeito social Sem Terra acontece no

interior do movimento em todos os momentos vivenciados pelo grupo. Ao falar sobre

essa cultura, Bogo a define como “algo concreto que se move como uma força invisível

no ambiente onde se produz a existência de um determinado grupo social e influi

profundamente em seu comportamento” (2000, p. 20). Nesse sentido, diz ainda, será

difícil arrancar as experiências e aprendizados históricos que se fixam no conhecimento

humano como sinais que não se apagam, nem mesmo com a eliminação do corpo físico.

Convém lembrar, diz o autor, que embora o Brasil esteja completando 500 anos, tem

menos de 50 anos de vida predominantemente urbana. Até então, a maioria dos

brasileiros vivia no campo e produzia sua existência ligada a terra. Por isso, ao falar da

terra e da agricultura, toca-se “no imaginário ainda latente de conhecimentos produzidos

pelos avós deste povo, que mesmo atualmente urbanizados, foram feitos de terra e

carregam o cheiro dela para onde forem” (BOGO, 2000, p. 22).

Desse modo, a cultura que Bogo denomina cultura com aroma de sertão, mantém-

se no imaginário do sem-terra durante todos os momentos da militância e é vivenciada

como ato cultural, por meio da mística e da simbologia, dos sentimentos e da palavra

falada vinculada sempre à ação concreta. Caldart observa que, no acampamento, a

herança cultural se costura no sentido de reconstituir nas “ famílias que mal se conhecem

e que, na maioria das vezes, portam costumes e heranças culturais tão diversas entre si”

(2004, p. 176), uma nova história de vida comum que se reconhece

em sentimentos compartilhados de medo, de dor, de fome, de frio, mas também de convívios fraternos e de pequenas alegrias nascidas da esperança de uma vida melhor, que aos poucos lhe identifica como grupo: o acampamento como espaço social de formação identitária de uma coletividade em luta, e que se descobre com uma nova perspectiva de futuro (CALDART, 2004, p. 176).

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Conforme reflexão de Bosi, “cultura supõe uma consciência grupal operosa e

operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro” (1992, p. 16).

Também para Bogo, a cultura, “mesmo que perversa e desestruturante, ainda é o

resultado da existência de um grupo social” (2000, p. 14). A idéia dessa construção

coletiva da cultura implica o direito de acrescentar aspectos que o grupo considerar

necessários ao novo momento histórico ou retirar aqueles que deixam de fazer sentido

frente a novas perspectivas. Se, conforme Bosi, “no coração de cada homem do povo

convivem uma resignação fundamental e uma esperança sempre renascente” , de

maneira similar, a mística do MST manifesta a presença de “caracteres constantes de

nossa cultura popular: materialismo, animismo, visão cíclica da existência (ou

reversibilidade). Fica implícito no termo popular que essa cultura é” , como a cultura

dos sem-terra, “grupal, supra-individual” (BOSI, 1992, p. 326).

Ao falar sobre Cultura Brasileira e Identidade Nacional Renato Ortiz analisa a

questão da cultura popular a partir da concepção do Centro Popular de Cultura (CPC), e

da União Nacional dos Estudantes (UNE), desenvolvida entre os anos de 1962 a 1964.

Para tanto, traz à tona a reflexão de Ferreira Gullar “que compreende a cultura popular

como a tomada de consciência da realidade brasileira” (apud ORTIZ, 2005, p. 72). Esse

conceito vai confundir-se com a idéia de conscientização, subvertendo o antigo

significado que assimilava a tradição à categoria de cultura popular. As observações de

Ortiz sobre o sentido que o termo vai assumir no contexto histórico analisado pelo

autor, também no contexto do MST se reveste de uma conotação que “significa

sobretudo função política dirigida em relação ao povo” , pois não se trata de uma

concepção de mundo das classes subalternas, trata-se de “projeto político que utiliza a

cultura como elemento de sua realização” (ORTIZ, 2005, p. 72). Em conclusão ao seu

estudo, o autor diz que as manifestações culturais de grupos sociais podem ser

analisadas observando-se de que maneira as relações de poder penetram o domínio da

esfera da cultura. Embora as expressões culturais não se apresentem na sua concretude

imediata como projeto político, deverão ser observados os interesses desses grupos, pois

eles determinam o “sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela manifestação”

(ORTIZ, 2005, p. 142).

Nesse mesmo sentido, pode-se reelaborar, também, a reflexão de Stuart Hall sobre

As Culturas Nacionais Como Comunidades Imaginadas, transportando para o fenômeno

da migração interna e o conseqüente “sentimento de perda subjetiva” , a idéia de nação

como “comunidade simbólica” (2000, p. 58). Essa idéia, geradora de um sentimento de

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identidade e lealdade, torna-se uma fonte poderosa de significados para as identidades

culturais modernas. Assim, também no contexto interno, a idéia de nação como

comunidade imaginada, organizadora das ações e concepções, passa a produzir os

sentidos sobre os quais um determinado grupo se identifica e constrói, a partir desse

sentimento, sua identidade. Nessa perspectiva, o esforço do povo sem-terra em irmanar-

se numa nação que os identifica enquanto grupo coeso e distinto no interior da nação

nacional caracteriza o Movimento a partir dos mesmos elementos que constituem uma

cultura nacional como comunidade imaginada, isto é, observa-se a congregação das

mesmas características: “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a

perpetuação da herança” (HALL, 2000, p. 58).

Na reflexão de Bogo, quando o “Sem Terra deixa de ser categoria social para

tornar-se nome próprio, quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeito para

mudar sua condição social” , esse novo sujeito produz o “encontro do ser homem com o

ser terra” (2000, p. 24). Esse encontro entre dois corpos físicos materiais que possuem

características e identidades irá resgatar reciprocamente a história das duas existências.

Assim, no entender do sem-terra, terra e ser humano se reencontram para reconstruir

uma mesma história de desconstrução em que “parte da terra e parte dos seres humanos

são jogados no berço da exclusão para chorarem a dor da falta de cuidado e de respeito”

(BOGO, 2000, p. 25). Essa recuperação histórica ou, memória histórica, continua Bogo,

“é a experiência feita por determinado grupo social que se organizou para produzir

coletivamente sua existência” e, diz ainda, “da mesma forma que lembramos dos heróis

revolucionários, recordamos nossos avós que viveram da produção, ligados a terra, e

juntos produziram conhecimentos que vamos passando lentamente como um carro de

boi que se arrasta à procura do futuro” (2000, p. 21).

Segundo Caldart, quando o Movimento passou a incorporar os assentados e suas

áreas como parte de sua base social e de sua organização, o MST passou também a

pesquisar na história e em suas experiências subsídios que pudessem ajudar no processo

de organização dos assentamentos. É nesse contexto, acentua a autora, que se fortalece

no Movimento a discussão sobre a organização da “vida social em uma área que se

coloque como espécie de retaguarda econômica e política da luta pela Reforma Agrária

no Brasil” (2004, p. 188).

Assim, a memória representa para o Movimento a ponte que vem do passado,

conduz com sabedoria rumo à construção do futuro, e preserva viva a memória que

ensina a saber pertencer-se para poder entregar-se. Essa sabedoria “muitas vezes

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enterrada nas covas do esquecimento, [...] alimenta as raízes existenciais de um povo”

(BOGO, 2000, p. 27). Essa memória é, também, a existência já produzida com todas as

suas dimensões e se manifesta nas práticas e ações vividas no presente, pois, nas

palavras do autor,

[...] há memória nos restos de raças que ainda sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-se vivas e que os livros de história não deixam ver para que não apareçam nas cicatrizes do tempo, os nomes e os dizeres dos lutadores incansáveis, pela igualdade entre os seres humanos. Há memória para os camponeses nas fases da lua, [...]. Há também memória no trabalho artesanal dos velhos camponeses das gerações passadas, [...]. Há memória na culinária das etnias, [...]. Há memória nas fotografias em preto e branco onde aparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou de barro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziam suas confraternizações. [...] Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis de escritores verdadeiramente humanos, que se empenharam em contar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria guardar [...]. Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas, lendas. Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção de um sonho, [...]. Há memória na crença traduzida de geração em geração. [...] nos menores detalhes há memórias que fizeram parte da construção da existência de nossos antepassados e que dormem em alguma dobra do embrulho que traz a história. Até nas nossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter consciência da importância desse passado para sabermos como olhar corretamente para o futuro. Quando vamos para a terra, essa memória nos acompanha e é com ela que principiamos a organização de um novo momento histórico, procurando produzir nossa existência (BOGO, 2000, p. 28 e 29).

Para o sem-terra, a memória histórica representa, portanto, “a possibilidade de

retorno para onde ficaram pedaços de suas raízes” , é “o caminho de volta para

compensar o êxodo criminoso que ocorreu no Brasil a partir da década de 60 [...], pois

há terra que ainda é possível cultivar com conhecimentos guardados na memória”

(BOGO, 2000, p. 16).

Ecléa Bosi, ao falar sobre o processo de migração, cultura e desenraizamento, diz

que as múltiplas raízes do migrante se partem quando ele “perde a paisagem natal, a

roça, as águas, as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua

maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de louvar da Deus” (2004, p. 20).

No entender da autora, “a palavra homem deriva de húmus, chão fértil, cultivável” , por

isso a luta contra o desenraizamento se manifesta no sentido de reconstruir a unidade

Ser-Terra. Desta maneira, entende a autora que “a luta contra o desenraizamento está

presente nos movimentos operários e camponeses” como a manifestação do “medo do

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desemprego e da migração”, como reação às “multinacionais ou contra as monoculturas;

pela autogestão na indústria ou pela reforma agrária” (BOSI, 2004, p. 20) e como o

desejo de voltar para onde ficaram as raízes originais.

Na observação de Bogo, ao manifestar a consciência dessa condição, o Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra engendra um esforço coletivo permanente em

religar as raízes que já foram arrancadas e procurar o que pode renascer nessa terra de

erosão. Para o autor, o reencontro do homem com a terra promove a reconstrução das

duas existências, pois quando o ser homem decide “se abraçar a terra, para extrair de

seu corpo o perfume que move a dignidade do povo em marcha”, está lutando em defesa

da própria vida e da vida do ser terra.

Sobre esse aspecto, Leonardo Boff também lembra, em sua Ecologia: grito da

terra, grito dos oprimidos (2000), a estreita ligação entre o ser humano e a terra:

[...] o ser humano não está apenas sobre a Terra. Não é um peregrino errante, um passageiro vindo de outras partes e pertencendo a outros mundos. Não. Ele é filho e filha da Terra. Ele é a própria Terra em sua expressão de consciência, de liberdade e de amor. Nunca mais sairá da consciência humana de que somos terra (adam-adamá do relato bíblico da criação) e de que o nosso destino está indissociavelmente ligado ao destino da Terra e do cosmos onde se insere a Terra. (BOFF, 2000, p. 33).

Do mesmo modo, também a reflexão de Alfredo Bosi sobre o sentido das palavras

colo-cultus-cultura revela como o cultivo da terra e o culto à terra organizam as

vivências socioculturais do reencontro do ser humano com a terra. Essa reorganização

permite ao homem elaborar o presente por meio do passado que o constitui, então, em

ser histórico. Para o autor,

A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isso é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade. A esfera do culto, com sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se como um outro universal das sociedades humanas juntamente com a luta pelos meios materiais de vida e as conseqüentes relações de poder implícitas, literal e metaforicamente, na forma ativa da palavra colo (BOSI, 1992, p. 15).

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No entanto, segundo o crítico, “convém amarrar os dois significados” da palavra

cultus, “que mostra o ser humano preso à terra e nela abrindo covas que o alimentam

vivo e abrigam morto":

cultus (1): o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado;

cultus (2): o que se trabalha sob a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em

honra dos antepassados (BOSI, 1992, p. 14 e 15). Em ambas as dimensões apresentadas

por Bosi se reconhece a base sobre a qual se faz o sujeito Sem Terra.

Para Caldart, “trata-se da categoria de enraizamento projetivo que é possível

construir a partir da reflexão produzida por Simone Weil na década de 40 sobre a

condição operária, e de como foi retrabalhada por Alfredo Bosi em uma análise sobre a

questão da cultura no MST” (2004, p. 97). Nas palavras de Weil, em A condição

operária e outros estudos sobre a opressão (1979):

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das muitas difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios de que faz parte naturalmente (WEIL, 1979, p. 347).

Assim, Caldart conclui com a leitura de Weil que, ao mesmo tempo em que a

mística se constitui pela “raiz do sentimento que é simbolizado e cultivado” a partir de

“valores que sustentam uma determinada concepção de humanidade”, ela também

“evoca a materialização (geralmente simbólica) desse sentimento" (2004, p. 210). Essa

evocação se manifesta “na beleza da ambientação dos encontros, nas celebrações, na

animação proporcionada pelo canto, pela poesia, pela dança, pelas encenações de

vivências que devem ser perpetuadas na memória” e que, por sua vez, enraízam o sem-

terra à terra que ele defende e pela qual aprendeu a lutar por meio de “gestos fortes,

pelas homenagens solenes que se prestam a combatentes do povo” (CALDART, 2004,

p. 211). Dessa maneira, a mística, que mantém entrelaçados e enraizados todos os sem-

terra de todos os tempos, manifesta-se nos “símbolos do Movimento, seus instrumentos

de trabalho e de resistência, seus gritos de ordem, sua agitação, sua arte” .

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Também Regina Beatriz Guimarães Neto observa que o processo de migração dos

colonos do sul do país para as terras da Amazônia suscitou, nesses homens e mulheres,

uma explicação que extrapola o entendimento comum. No entender de Guimarães,

“para essa população pobre, que muito pouco controle pode ter sobre seu futuro,

vivendo sob os reveses da sorte, amparando-se em Deus ou apelando ao destino, os

acontecimentos que rondam sua vida surgem repletos de sinais místicos” (2002, p. 68).

Assim, os colonos suportavam tudo, pois estavam embalados pelo sentimento de uma

resistência que acreditavam não mais possuir. A força dessas pessoas emanava da fé,

pois “acreditavam no sucesso da colonização. O próprio tempo da chegada passava por

uma espécie de fetiche: é o tempo que não se conta; amanhã ele apareceria nos frutos do

trabalho” . (GUIMARÃES, 2002, p. 68). Desse modo, a lembrança dos tempos difíceis

começa a se perder e o que importa é apenas aquela parte da memória que levanta os

marcos apologéticos. O processo identificador da nova terra, nesses casos, não

considera o sofrimento passado, pois a história presente é a do triunfo. Esse aspecto da

memória seletiva na construção identitária de um determinado grupo é discutido por

Ulpiano Meneses, em seu texto Cultura brasileira e arqueologia (2004). Ao falar sobre

identidade cultural o autor observa que a busca de uma identidade se alimenta do ritmo,

que é repetição. Para Meneses,

O suporte fundamental da identidade é a memória, mecanismo de retenção de informação, conhecimento, experiência, quer em nível individual, quer social e, por isso mesmo, é eixo de atribuições, que articula, categoriza aspectos multiformes da realidade dando-lhes lógica e inteligibilidade (2004, p. 183).

Nesse sentido, a incessante busca do MST em construir, por meio das

manifestações culturais, da mística e da preservação da memória a identidade do sujeito

Sem Terra, revela “que é em virtude das definições que existem indivíduo e sociedade.

[...] O processo de identificação é um processo de construção de imagem; por isso

terreno propício de manipulações” (MENESES, 2004, p. 182). Se, conforme as

reflexões elaboradas pelos intelectuais do movimento, a construção coletiva de sua

identidade implica acrescentar ou retirar aspectos da herança cultural que os integrantes

do grupo consideram necessários ou não, então o resgate da memória sofre um processo

seletivo. Segundo Meneses, essa seleção é uma das características que o conceito de

memória nos leva a considerar, pois nem tudo ela registra, e, do que registra, nem tudo

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aflora à consciência. Uma outra característica da memória é que ela pode ser induzida

ou até forjada e, “nas sociedades simples, o estudo dos ritos de retorno às origens e dos

mitos de fundação, por exemplo, permite compreender em profundidade os mecanismos

de defesa de uma determinada configuração sociocultural” (MENESES, 2004, p. 184).

3.1 M ito, religiosidade e mística: caminhos de transcendência

A afirmação de Meneses remete à reflexão elaborada por Mircea Eliade sobre O

mito do eterno retorno (1992) em que o historiador de religiões examina os conceitos

fundamentais das sociedades arcaicas. Para o autor, a diferença básica entre o homem

arcaico e o moderno consiste na valorização cada vez maior que este último atribui aos

acontecimentos históricos. A reflexão dos dois autores permite verificar a oscilação dos

conceitos em torno da consciência do tempo histórico na constituição de certos grupos

sociais modernos. No caso do MST, percebe-se a busca constante da preservação da

memória como elemento de identificação e que justifica as atitudes e posturas presentes,

isto é, o esforço na construção do sujeito sem-terra histórico. Por outro lado, observa-se,

também, o cultivo de símbolos e de momentos de vivência mística em que os

sentimentos emanam como uma espécie de “revolta contra o tempo concreto e histórico,

sua nostalgia por uma volta aos tempos míticos do começo das coisas (ELIADE, 1992,

p. 7). Esse comportamento do grupo permite entrever que o desejo do homem arcaico

em ordenar o tempo concreto e histórico por meio de arquétipos permanece no

imaginário de sociedades modernas, deixando transparecer a sobrevivência de uma certa

valorização metafísica da existência humana.

Para Eliade, o símbolo, o mito e o ritual expressam a necessidade de afirmação

coerente sobre a realidade final das coisas, constituindo um sistema que pode ser visto

como aquele que compõe a metafísica. Objetos e atos tornam-se reais e adquirem um

determinado valor “porque participam, de uma forma ou de outra, de uma realidade que

os transcende” (ELIADE, 1992, p. 17-18). Nesse sentido, a elaboração dos símbolos do

MST, já comentada no início do capítulo, remete o problema da existência humana e da

história para o horizonte da espiritualidade arcaica e, conseqüentemente, para uma

leitura metafísica.

Assim, ao mesmo tempo em que os intelectuais e pensadores do MST demonstram

a preocupação na organização da memória histórica do movimento, também revelam a

condição metafísica da sua existência. Quando, na Encruzilhada Natalino, os sem-terra

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demarcaram o território da fazenda invadida com uma cruz, símbolo da fé cristã,

reeditaram, modernamente, a atitude de descobridores e colonizadores na tomada de

posse das regiões recém-descobertas. Conforme lembra Eliade, esse gesto corresponde a

um modelo mítico que reporta para a ordenação do caos, pois, “quando se toma posse

de um território – isto é, quando começa sua exploração -, são realizados rituais que

repetem de maneira simbólica o ato da Criação: a área não-cultivada é primeiro

cosmicizada, antes de ser habitada” (ELIADE, 1992, p. 21).

Do mesmo modo que os conquistadores portugueses e espanhóis tomaram posse

dos territórios que descobriram e conquistaram levantando neles uma cruz, repetindo

assim, em nome de Jesus Cristo, o ato da criação, e os conquistadores ingleses o fizeram

em nome do rei da Inglaterra, também o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do

Brasil repetiu o gesto levantando uma cruz no primeiro grande evento de invasão e

tomada de posse de um território em sua história. Ocupado com a finalidade de ser

habitado ou utilizado como lugar para se viver, esse território deve ser transformado,

antes de mais nada, do caos para o Cosmo por meio de um ritual.

Dessa maneira, a cruz da Encruzilhada Natalino não representou apenas a união do

grupo em torno da fé católica, como observou Morissawa, referindo-se à mística do

Movimento, mas, também e principalmente, a repetição de um gesto “que representa

apenas a cópia do ato primordial da criação do mundo” (ELIADE, 1992, p. 22). A

consagração do espaço conquistado ou invadido coincide com o momento mítico do

princípio da criação. Nas invasões da história recente do Movimento, a cruz dá lugar à

bandeira do MST, símbolo permanente da mística que identifica o grupo social como

sociedade organizada no interior da nação nacional. A repetição desse gesto, no

entender de Eliade, garante a realidade e a durabilidade de uma construção, “não apenas

pela transformação do espaço profano em espaço transcendental, (o Centro), mas

também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico” , ou seja, “ele se

desenvolve não só num espaço consagrado [...], mas também num tempo sagrado, era

uma vez (in illo tempore, ab orige), quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por

um deus, um ancestral, ou um herói” (1992, p. 29).

Essa comparação remete para uma questão colocada no início do capítulo. Quando

o MST foi interpretado como um movimento religioso por conta da sua mística, a

reação de Bogo se deu no sentido de reiterar a necessidade em alimentar o vazio

material e espiritual dos camponeses em luta sem que, no entanto, essa manifestação se

estabelecesse por meio de um grande homem, um herói, ou um líder espiritual. A

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maneira como o Movimento entende essa prática acontece de forma diversa daquela

observada nas lutas messiânicas, como foi o caso de Canudos e do Contestado. Nessas

revoltas, a religiosidade do povo era direcionada por um líder carismático que, enquanto

homem em posição espiritual e intelectual superior aos demais camponeses,

representava o elo com o Pai. “No MST, embora tenham existido e existam líderes que

se destacam, não existe esta figura do grande homem, do Um”, diz Eliane Domingues14

ao comentar a dimensão religiosa presente na luta pela terra. No resumo da autora:

Em Canudos e no Contestado, Antônio Conselheiro e José Maria vêm ao encontro deste anseio do “pai” . Eles representam o que Freud (1939/1996c) define como grande homem: aquele especificamente dotado de características que são valorizadas, não físicas, mas espirituais, psíquicas e intelectuais. O grande homem não é aquele que se destaca em uma determinada área, mas alguém que comete um grande feito. Por isso, chefes militares, governantes e conquistadores são os que mais recebem este qualificativo. No entanto, mais do que uma definição única do que seria grande homem ou de quais seriam suas características, o que mais interessa a Freud são os meios que lhe permitem exercer influência sobre os demais. Estes meios são dois: a personalidade e a idéia que sustenta (DOMINGUES, 2007).

O MST constitui-se um movimento organizado com programas e estratégias

bastante elaboradas, além do que e principalmente, não centralizada na figura de um

líder, do Um, como os movimentos messiânicos que antecederam o Movimento. Então,

observa Domingues, se Freud, assim como Marx, “atribui à religião uma origem social

e subjetiva” , sendo a primeira “representada pela cultura que impõe sofrimento e uma

série de restrições à satisfação das pulsões; e a subjetiva – que ele (Freud) privilegia –

tem como base o "sentimento de impotência humana" e a "nostalgia do pai", é possível,

em desacordo com as proposições de ambos os pensadores,

atribuir à religião um papel significativo no processo de fortalecimento das ações coletivas, principalmente quando o MST estava se constituindo e construindo um espaço de “desalienação” dos sujeitos que viriam a integrar o movimento. Isto não invalidaria as

14A autora apresenta sua reflexão sobre a religiosidade dos movimentos sociais no campo no artigo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Contestado e Canudos: algumas reflexões sobre a religiosidade. Disponível em www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/artigo03.pdf . Acessado em 16/12/07.

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proposições destes últimos autores sobre as origens social e subjetiva da religião, mas mostra que o mundo real deve constantemente inquietar as teorias com suas contradições e que ainda há muito que se pesquisar (DOMINGUES, 2007).

Assim, verificando as características da expressão religiosa no interior desses

movimentos, é necessário distinguir, definitivamente, a concepção de credo religioso,

isto é, religiões instituídas no meio social histórico, da mística do MST. Sobre essa

questão, um fenômeno bastante elucidativo foi verificado em visita ao pré-assentamento

Zumbi dos Palmares II, situado entre os municípios de Sinop e Cláudia, no norte de

Mato Grosso. A coexistência de espaços destinados ao culto religioso tradicional e aos

rituais místicos específicos do Movimento evidencia a distinção que o sem-terra

estabelece entre religião e mística. Logo na entrada do terreno, dois barracos chamam a

atenção pelas placas que ostentam na fachada: Assembléia de Deus e Congregação

Cristã no Brasil. Mais acima, em lugar de destaque, tremula a Bandeira do MST,

símbolo maior do Movimento, num mastro erguido ao lado da escola e do barracão

onde acontece a mística, durante as assembléias semanais do grupo.

A convivência pacífica das manifestações religiosas, conforme explica o militante,

professor e líder comunitário de Zumbi dos Palmares II15, caracteriza o perfil do

Movimento: “O MST é aberto e democrático a qualquer religião, da umbanda ao crente,

aqui dentro pode ser praticado qualquer religião, qualquer uma, se organizou pode fazer

seu culto. Nós somos uma comunidade que respeita todas as religiões” . A mística, no

entanto, nada tem de sentimento religioso. Conforme afirma Noir Castelo Júnior, trata-

se da emoção de cada integrante do Movimento em dedicar a vida pela luta, pela causa

como um todo, pelo resgate da dignidade de cada indivíduo: “Cada reunião nossa nós

fizemos a mística [...] para que a gente não esqueça das coisas do nosso povo, da

história” , diz o militante.

Pode-se inferir, então, ao observar a configuração da mística do MST no contexto

social do grupo, que a ausência de um Pai, de um Uno, é substituída, na mística, pelo

sentimento de confiança nos propósitos do grupo que mantém aceso o ideal de uma

construção coletiva em nome da luta pela reforma agrária no Brasil. Se, por um lado, os

rituais da mística lembram as características apontadas por Mircea Eliade sobre a

repetição de gestos simbólicos como arquétipos da espiritualidade arcaica ainda

15 No anexo C, o teor da conversa com Noir Castelo Júnior, ocorrida no dia 12 de janeiro de 2008.

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presentes em algumas sociedades modernas; por outro, não se pode atribuir à mística do

Movimento as concepções sobre religião tomadas a Marx e Freud e pensadas por Eliane

Domingues para entender a religiosidade dos movimentos sociais no campo. A autora

conclui com Stédile que, embora a prática da Teologia da Libertação tenha

proporcionado “a mudança de perspectiva da espera da terra nos céus, para a

organização da luta pela terra e conscientização dos camponeses” (DOMINGUES,

2007), ainda assim ela não poderá ser considerada conforme aquela religiosidade

alienante apontada por Freud. Antes disso, trata-se de pensá-la como uma religião

“detentora também de um potencial subversivo, de crítica e questionamento, que pode

fortalecer a ação de indivíduos ou grupos contra a ideologia dominante” , conclui a

autora.

Isso posto, convém observar que a mística do MST é um dos elementos culturais

que caracteriza o grupo como uma organização social no interior da nação, com

símbolos próprios de identificação. Essa caracterização implica redimensionar o tempo

nas narrativas modernas que localizam o povo ou a nação como sujeito e, ao mesmo

tempo, objeto de narrativas sociais e literárias. As fontes simbólicas e afetivas da

identidade cultural modificam o espaço horizontal do povo-nação, pois esse espaço

presume um tempo fixo, homogêneo da representação da nação. Sobre esse aspecto vale

lembrar a observação de Homi Bhabha (1998), que ao citar a leitura feita por Houston

Baker para interpretar e falar sobre o Negro no Renascimento do Harlem, diz que as

narrativas nacionais representam as visões de mundo de senhor e escravo. Essa postura,

segundo o autor, só pode ser tomada como comum a todos por não manifestar as

particularidades de nenhum. Ora, pensando nas imensas distâncias existentes entre as

colchas de retalhos que compõem o imaginário dos indivíduos sociais e a

horizontalidade que as narrativas históricas pretendem, é possível questionar a narrativa

horizontal e linear que supõe um sujeito-ideal capaz de negar uma série de identidades

individuais, de classe e de gênero em favor de uma suposta linearidade.

O aspecto pedagógico que domina o historicismo deve movimentar-se, então, em

direção ao caráter performativo que introduz na narrativa o entre-lugar, o enquanto isso,

pois a idéia de nação implica uma série de divisões no interior dela mesma. Nesse

sentido, o performativo tensiona as zonas de controle e de renúncia, de força e de

dependência, de exclusão e de participação, e, ainda, de recordação e de esquecimento.

No caso dessa última tensão, o esquecimento necessário para a configuração de uma

nação hegemônica e coletiva conviveria com a memória enraizadora que constitui os

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sujeitos enquanto indivíduos no interior da nação. Esse enraizamento elaborado no

contexto cultural do grupo social Sem-terra, no interior da nação, escapa à narrativa

horizontal da nação imaginada como sincronia de símbolos representativos de todos os

indivíduos, de todo um povo coeso e irmanado em torno dos mesmos sentimentos.

Assim, sem se anular como sujeito, o sujeito dividido em objeto e sujeito não será

mais parte de um povo “contido naquele discurso nacional da teleologia do progresso,

do anonimato de indivíduos, da horizontalidade espacial da comunidade, do tempo

homogêneo das narrativas sociais” (BHABHA, 1998, p. 212). O tempo performativo

revela a zona de instabilidade oculta em que o povo se movimenta no sentido de

aprender a conhecer-se para melhor pertencer-se. Esse movimento se dá no interior da

nação, identificada à impossibilidade de congregar o presente pleno e a visibilidade de

um passado universal consensual. A suposta solidez sociológica da narrativa da coesão

nacional dá lugar ao enquanto isso que converte em signo ambivalente o tempo e o

espaço, introduzindo no “presente enunciativo da nação um tempo diferencial e iterativo

de reinscrição” (BHABHA, 1998, p. 225). O fator que introduz no presente enunciativo

da nação esse tempo diferencial e iterativo de reinscrição consiste na vontade de um

povo em ser uma nação. Essa vontade elabora-se na condição de esquecer ou, ser

obrigado a esquecer a violência envolvida no estabelecimento dos escritos da nação,

como uma espécie de subtração original, constituindo o começo da moderna narrativa

de nação.

As reflexões expostas pelo autor e a reelaboração empreendida a partir do exemplo

do MST na constituição da nação nacional, da nação como grupo específico inserido na

nação maior, apontam para o performativo do tempo e do espaço na configuração da

idéia de nação moderna e suas implicações identitárias. A vontade em constituir uma

nação, o povo-como-um, uma coletividade coesa irmanada em torno de seus símbolos,

introduz na narrativa o entre-lugar que pensa as margens enquanto geradoras de

histórias dentro da História elaborando a narrativa das identidades individuais e

coletivas, performativas. Esquecendo e lembrando, o povo-nação reelabora a narrativa

nacional instaurando um tempo oscilante, produzindo uma estrutura simbólica da nação

nacional apenas como comunidade imaginada.

Nessa perspectiva, a concepção de entre-lugar traz à tona a reflexão elaborada

por Hugo Achugar em seu Planetas sem boca (2006), mais precisamente no ensaio

Espaços incertos, efêmeros: reflexões de um planeta sem boca. Ao abordar a questão da

latino-americanidade como o lugar de ser perifericamente Outro, o autor discute em que

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medida o sujeito da enunciação manifesta seu discurso balbuciante. O balbucio

consistiria na articulação de uma resposta à qualificação desse sujeito como deslocado,

como alguém que fala do lugar de desprezo e do não-valor. A resposta surgiria, então,

como discurso elaborado por “aqueles que falam da periferia ou desse lugar que alguns

entendem como espaço de carência” (ACHUGAR, 2006, p. 14). Essa resposta se

constituiria como a produção de valor a partir da periferia que, entre o real e o

imaginado, a circunstância e o desejo, torna-se a expressão daquilo que é imaginado

como lugar de enunciação. Sendo um “ lugar de enunciação é, ao mesmo tempo, um

lugar concreto, verdadeiro, e um lugar teórico ou desejado” , acentua Achugar, pois

“todo discurso é sempre formulado a partir de um lugar que é verdadeiro e imaginado,

concreto e desejado, histórico e ficcional” (2006, p.19).

Pensando com o autor, entende-se, então, que tomando o poder da periferia,

do Outro, da margem, do marginal e do marginalizado na produção de valor o MST,

como nação imaginada no interior da nação nacional, produz e consagra o seu discurso,

isto é, seus valores. Desse modo, ao falar de “ lugar” , fala-se de uma posição construída

e simbólica, uma vez que, no entender de Achugar, “todos os lugares são construções

metafóricas, mas enquanto algumas não necessitam ser justificadas, outras o necessitam,

pois são como planetas sem boca” (2006, p. 22).

Assim, o patrimônio simbólico construído pelo MST manifesta, em certa medida,

a ambigüidade característica dos conceitos, tanto de identidade quanto de memória. No

entanto, observa-se nas manifestações culturais do Movimento, a preocupação no

aprofundamento da consciência histórica que, segundo Meneses, consiste não apenas

em informar-se das coisas outrora acontecidas, mas perceber o universo social como

algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de formação e reorganização.

Nessa perspectiva, a partir do que Meneses chama de plataforma de referência, a mística

do MST constitui-se como um dos referenciais do movimento em que a memória

“ funciona como instrumento biológico-cultural de identidade, conservação e

desenvolvimento, que torna legível o fluxo dos acontecimentos” (2004, p. 85).

Também Gilbert Durand, ao falar sobre memória e imaginário, diz em sua obra As

estruturas antropológicas do imaginário, mais especificamente no Livro Terceiro –

Elementos para uma fantástica transcendental, que “a ordem da vontade, do vital que

se opõe à inércia e ao automatismo, é justamente o poder de parar, o poder de encarar,

em contraponto do destino, outros possíveis, diferentes dos que são automaticamente

encadeados pelo determinismo material” (2002, p. 400). Esse processo, confluente aos

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aspectos observados no desenvolvimento da mística do MST e à idéia exposta por

Meneses sobre a plataforma de referência constituinte da memória e, por conseqüência,

da identidade de um determinado grupo social, no caso o Movimento dos Trabalhadores

Sem Terra do Brasil, converge para o que Durand aponta sobre as características da

memória e do imaginário:

Longe de estar ao lado do tempo, a memória, como o imaginário, ergue-se contra as faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir, para além das necessidades do destino. É essa saudade enraizada no mais fundo do nosso ser que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial (DURAND, 2002, p. 403).

Assim, a memória não é mera intuição do tempo, antes escapa a ele no triunfo de

um tempo reencontrado. Esse aspecto da memória, que permite voltar ao passado,

autorizando em parte a reparação dos ultrajes do tempo, pertence ao domínio do

fantástico. No caso da mística do MST, ato cultural em que se manifesta, também, a arte

produzida por seus integrantes, a memória organiza esteticamente a recordação. Por isso

Durand faz suas as palavras de Gusdorf ao dizer que “o tempo do homem é a

possibilidade de contar o seu passado e de premeditar o seu futuro, como também a de

romancear a sua atualidade” (DURAND, 2002, p. 401).

Desse modo, a partir do breve levantamento histórico da constituição do MST, dos

aspectos apontados pela literatura específica do grupo, produzida por seus pensadores, e

dos conceitos de cultura, identidade, memória e imaginário discutidos pelos autores e

críticos citados, é possível compreender e afirmar que a mística do Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra apresenta, assim como a memória, o caráter fundamental do

imaginário que é ser eufemismo e, por isso mesmo, antidestino que se ergue contra o

tempo. Nesse contexto, a leitura da produção poética da sem-terra Adriane Rocha

permite entrever a criação artística que revela o grande museu imaginário da arte em

honra do homem. O poder de melhoria do mundo que há no homem, lembra Durand,

emerge em sua criação, na “transformação do mundo da morte e das coisas no da

assimilação à verdade e à vida” (2002, p. 404-405). Por isso, reconhecendo à

imaginação, em todas as suas manifestações religiosas e místicas, literárias e estéticas,

esse poder de erguer suas obras contra o imediatismo de uma vivência puramente

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material, a arte tem o “papel de domesticar o tempo e a morte e de assegurar no tempo,

aos indivíduos e à sociedade, a perenidade e a esperança” (DURAND, 2002, p. 405).

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I I – A TRAJETÓRIA ESTÉTICA NA EXPERIÊNCIA CRIADORA DE

ADRIANE ROCHA

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.

(Pero Vaz de Caminha)

1. Literatura e função social

A poesia produzida por Adriane Rocha constitui-se uma manifestação da arte que

por sua vez é tida como uma espécie de revolução simbólica da realidade, característica

de toda obra literária. No entanto, ao problematizar a questão da função social da

literatura, Geraldo Maia (2007) observa, em artigo sobre Literatura de Classes16, que a

inclinação em reduzir a literatura ao seu caráter meramente literário, desprovido de

qualquer praticidade, resiste até hoje e “a tendência dominante ainda é a da literatura

que se mantem no vácuo, acima das lutas de classe” . Entretanto, segue o poeta, por

outro lado permanece “o caráter transgressor, rebelde, desafiador e revolucionário da

literatura que exprime em seu bojo as grandes demandas das revoluções” . Nesse

contexto, é necessário considerar que as classes revolucionárias de agora não vêem mais

nas condições de vida da sociedade burguesa os seus referencias, pois essas classes

organizam-se em movimentos, grupos, associações, espaços, cooperativas, ongs e

sindicatos, ou seja, esses grupos construíram, ou constroem, a sua própria identidade.

Desse modo, os referenciais desses grupos são “a aldeia, o quilombo, a terra-mãe-áfrica,

a caatinga, a favela, a feira, o lixão, o assentamento, a invasão” (MAIA, 2007).

Também nas metáforas de Bogo, as manifestações revolucionárias dos poetas,

escritores, contadores de fábulas, músicos que “dormem dentro de nós” , revelam o novo

sujeito social que não sente “medo de expor na galeria de arte da história este quadro, e

ter consciência de que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência da

importância da nossa existência” (BOGO, 2000, p. 46).

16 Literatura e luta de classes, artigo publicado na revista eletrônica Cronópios – Literatura e arte no plural, em 05/05/2007. Geraldo Maia é poeta, ator e diretor teatral. Disponível em: attp � ���������� ��� ��� ���� ���� � ������������ � !�"#��$��%!&� '� ���� $�����(�� )�*,+�-/.�+0��123"��3��$�)� 4"��5.�-���.�6���+�.�.�7�80+�+,�:9�6�;/�

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A reflexão elaborada por Candido (2000) sobre os fatores que acentuam a

participação do artista nos valores sociais comuns ou peculiares a uma sociedade dada,

constituem processos complementares que equilibram a socialização do homem e, na

mesma medida, da arte. A dialética entre os fatores que o crítico chama de integração e

diferenciação, determinados pelas forças sociais condicionantes, estabelece, conforme a

ocasião de produção da obra e da necessidade de sua produção, a sua caracterização ou

não como um bem coletivo. No entanto, lembra o autor, a função social se faz presente

na obra alheia à vontade e à consciência de autores e receptores, pois essa função já se

constitui como tal pelo fato de a linguagem ser o instrumento natural da produção

literária legitimando, por isso, sua função social enquanto veículo transmissor de certa

visão de mundo. Vale dizer, então, que a função social “decorre da própria obra, da sua

inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela

comunicação” (CANDIDO, 2003, p. 46).

Roland Barthes, pensando nos detalhes da linguagem e da literatura que constituem

o próprio ser da literatura, também lembra que ela é feita com linguagem, ou seja, “com

uma matéria que já é significante no momento em que a literatura dela se apodera”

(2003, p. 170). Desse modo, o que se consome não é a idéia de literatura, mas um

significado a mais que dela se colhe. Por isso, para significar, é necessário que a

literatura deslize para o sistema da linguagem, alcançando, assim, o fim comum às duas:

comunicar. Funda-se, então, a incessante troca entre os dois sistemas: “vejam minhas

palavras, sou linguagem; vejam meu sentido, sou literatura” (BARTHES, 2003, p. 171).

Retornando a Candido, entende-se com o autor que será o grau de sublimação

expresso na obra o elemento que determina a diferença entre a arte “expressão da

sociedade” e a arte “social, isto é, interessada em problemas sociais” (2000, p.23. Grifo

do autor). O crítico apresenta, então, a distinção entre o que considera dois tipos de arte:

arte de agregação e arte de segregação, veiculado-os aos dois fatores expostos acima, a

integração e a diferenciação. No caso da arte literária, o autor diz não ser possível

estabelecer distinção entre ambos os tipos uma vez que se complementam conforme a

dialética entre a expressão grupal e a característica individual do artista e explica que

ambas as referências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando neles o sentimento de valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de

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consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte (CANDIDO, 2000, pp. 20-21).

Sobre esse aspecto, o crítico observa também que a arte, sistema simbólico de

comunicação inter-humana, manifesta influências concretas exercidas pelos fatores

socioculturais. Embora seja “difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, [...]

pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias,

às técnicas de comunicação” (CANDIDO, 2000, p. 21). Assim, a sublimação que

direciona a ação criadora do artista segundo estes ou aqueles fatores, conforme se

manifestem em maior ou menor grau de consciência, determina a função social da

literatura. Se a primeira, a arte de agregação, inspira-se principalmente na experiência

coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis, procurando incorporar-se a um

sistema simbólico vigente, partindo do já estabelecido como forma de expressão de

determinada sociedade, e a segunda, a arte de segregação, “se preocupa em renovar o

sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número,

ao menos inicialmente, reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da

sociedade”, então, afirma Candido (2003, p. 23), os dois tipos de arte se complementam.

A agregação e a segregação ocorrem em toda obra em dimensão variável conforme

o jogo dialético entre a expressão grupal e as características singulares do artista. No

entanto, se um aspecto predominar sobre o outro, a distinção ainda pode ser mantida,

uma vez que a reflexão do crítico foi proposta com o pensamento em dois fatores muito

gerais e importantes: a integração e a diferenciação. No caso da integração esses fatores

tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da

sociedade, ou, ao contrário, no caso da diferenciação tendem a acentuar as

peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. Segundo o autor, “são

processos complementares, de que depende a socialização do homem; a arte,

igualmente, só pode sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duas tendências

referidas” (CANDIDO, 2003, p. 23).

Em outro texto, falando sobre O direito à literatura, Cândido chama a atenção

para a similaridade entre os níveis social e ideológico da literatura que deixam entrever,

imediatamente, as concepções de um determinado autor. Para o crítico, nos casos em

que essa intenção assumir características de propaganda, ideologia, crença ou adesão

será literatura social, pois estará tratando “de uma realidade tão política e humanitária

quanto a dos direitos humanos, que partem de uma análise do universo social e

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procuram retificar as suas iniqüidades” (2004, p. 180). Citando como exemplo a poesia

abolicionista de Castro Alves, o autor adverte que ela atua não apenas pela eficiência de

sua organização formal e pela qualidade do sentimento que exprime, mas também pela

natureza de sua posição política e humanitária. Desse modo, a literatura empenhada

resulta de produções nas quais o autor deseja assumir uma determinada posição face aos

problemas. Essa posição pode ser ética, religiosa, política ou simplesmente humanística.

Ao falar sobre O caráter social da ficção do Brasil (1987), Fábio Lucas chama a

atenção para a maneira como o texto literário, a partir do romance nordestino, traz à

tona o quadro social na agricultura da época. O autor remonta essa tradição nordestina

para o ano de 1890, quando Rodolfo Teófilo publica A fome, romance no qual o relato

dos sofrimentos de uma família sertaneja desvela-se como protesto contra “o descaso do

Governo em relação às populações abandonadas” (LUCAS, 1987, p. 46). O crítico

enumera, então, obras que, desde Luzia-Homem (1903), romance considerado precursor

da saga nordestina, trazem a vida no campo como elemento predominante até o período

da repressão pós-64. Esses romances manifestam o caráter social na medida em que

retratam “a disparidade social do País, [...] a atuação simultânea das forças telúricas e

das instituições humanas para o esmagamento do homem e para tornar mais

pronunciado o desnível entre as classes” (LUCAS, 1987, p. 46). Romances como A

bagaceira (1928) e O boqueirão (1935) de José Américo, seguidos pela obra pessimista

de José Lins do Rego, de quem Lucas destaca o romance O moleque Ricardo (1935),

por julgá-lo “o depoimento mais eloqüente do autor a respeito da questão social” (1987,

p. 37), são lembrados pela economia do discurso que pesa tanto quanto as circunstâncias

sociais pesam sobre as consciências.

Da produção de Jorge Amado o crítico destaca o romance Terras do sem fim

(1942) por ilustrar “bem a luta pelo domínio da terra movida pela cobiça e escrita com

sangue” (1987, p. 50), pois a opressão dos humildes aparece através da epopéia dos

coronéis do cacau. O romance Irmão Joazeiro (1960), de Francisco Julião, é posto em

relevo por não apresentar “traços demagógicos exagerados ou socialistas, como em

tantas outras obras de inspiração” , observa Lucas (1987, p. 53). A relação

patrão/empregado, fragmentada em vários episódios, confere unidade à obra,

funcionando como uma personagem do romance. Nas palavras de Lucas:

A luta é para ter terra onde plantar e morar, mas uma luta impotente e passiva. [...] O dono das terras aproveita-se destas e do esforço dos camponeses. Estes, contudo, é que revelam amor à terra e ao cultivo

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do solo. [...] O latifúndio, a essa época, tem nova política: quer as terras para a atividade pecuária, pouco se importando com o infortúnio dos camponeses. [...] Pode-se dizer que não tem propriamente personagem central: conta a vida de várias famílias, onde a relação dominante é patrão/empregado (1987, p. 53-54).

Outra obra de valor literário inegável que traz como tema a exploração humana no

campo é Selva Trágica (1959), de Hernâni Donato. Ambientado no sudeste de Mato

Grosso17, o romance trata das “dantescas condições de trabalho da região” ,

constituindo-se “um dos mais altos momentos da novelística de conteúdo social no

Brasil (LUCAS, 1987, p. 53-54). A relação entre os ervateiros e a Companhia que

detinha o monopólio sobre a exploração dos ervais e, na mesma proporção, sobre os

empregados é contada em histórias de amor paralelas, episódios de fuga e conseqüente

caçada humana.

Sobre o ciclo nordestino, Lucas avalia as obras de Graciliano Ramos como as mais

importantes do romancista no conjunto de sua obra, “pelo seu acabamento, pelas

qualidades literárias e pela implantação de um estilo” (1987, p. 56). São Bernardo

(1934) e Vidas secas (1938) são reconhecidos exemplos de romances que colocam a

descoberto quadros sociais que promovem a marginalização e a miséria material e

humana.

Nessa perspectiva, inscrevendo-se nesse mesmo tema que desvela a relação do

homem com a terra, a criação poética de Adriane Rocha manifesta uma função social

que comporta o papel que a obra exerce no estabelecimento de relações sociais, na

satisfação de necessidades espirituais e materiais. Conforme considerações de Candido,

trata-se de uma poética que deixa transparecer a conservação ou alteração de uma certa

ordem na sociedade revelando, por meio do grau de sublimação expresso em sua obra,

uma arte interessada nos problemas sociais de seu povo e, por isso, social. No entanto,

ao tomar como tema gerador a Terra, a poeta não expressa apenas as mazelas do povo

sem-terra, mas também a degradação da Terra e, por conseqüência, da humanidade.

Essa característica da estética rocheana conduz a sua obra para a função total da

literatura, como será visto mais adiante.

2. Literatura e função ideológica

17 Vale lembrar que à época da publicação do romance, o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul ainda se constituíam como um único Estado da Federação.

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Considerando-se a ideologia um nível de significação ou um sistema de

representações, ela manifesta, então, um discurso que não pode ser confundido com

uma função mediadora. Essa observação de Fábio Lucas revela a preocupação do crítico

em desmascarar o falso conceito de ideologia, que a aproxima, na literatura, ao

conteúdo, modismo dos que trataram, com entusiasmo ou desprezo, da literatura

engajada. Complementando a reflexão, Lucas dialoga com o pensador argentino Eliseo

Verón que adverte: “Na análise de textos, a ideologia não tem nada a ver

necessariamente com o que se designou na velha tradição lingüística por conteúdo”

(apud LUCAS, 1985, p.16). Por isso, a oscilação entre ideologia e visão de mundo leva

à revisão de conceitos já estabelecidos, mas não de todo estabilizados.

Reportando-se ao conceito marxista, Lucas lembra que as ideologias “não têm

histórias, não evoluem; são, ao contrário, os homens que, desenvolvendo sua produção e

seu comércio material, transformam, ao mesmo tempo, seu pensamento e seus

produtos” (1985, p. 13). Vale considerar, então, a advertência de Louis Althusser e de

seus discípulos: “há uma distinção radical entre a teoria (saber rigoroso) e a ideologia

(consciência deformada): o pensamento do jovem Marx ainda se apresenta como

demasiadamente ideológico” (apud LUCAS, 1985, p. 13), portanto, deformado. É

Lucien Goldmann quem Lucas traz ao texto para tentar distinguir em categorias as

ideologias e as visões de mundo. Para o pensador, a distinção entre ambas consistiria no

“caráter parcial e, por isso mesmo, deformador das primeiras e total das segundas”

(apud LUCAS, 1985, p. 13). Também Michel Bernardi é convocado pelo autor para

relatar o modo como usa essas duas categorias. Diferente de Goldmann, Bernardi

entende que “a ideologia é, pela própria definição, consciente, enquanto a visão de

mundo pode ser implícita, imagem obscura ou confusa na consciência” (apud LUCAS,

1985, p. 13-14). E, por último, a proposição do crítico português Eduardo Prado

Coelho:

A ideologia oscila assim entre dois extremos: uma excessiva proximidade do real (uma alusão ao real imediato) e um desconhecimento efetivo desse real. Na medida em que, dominada pelas pressões do próprio real, ela só vê nele aquilo que está interessada em lá ver, a sua alusão ao real é ilusão (apud LUCAS, 1985, p. 14).

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Desse modo, a discussão acerca de ideologia remete o analista da obra literária

para um emaranhado de concepções muitas vezes incompatíveis entre si. Sem pretender

esgotar a questão, importa reconhecer que todo texto literário carrega em si uma trama

de segmentos herdados, quer sejam eles da sabedoria geral, de concepções políticas, de

crenças religiosas ou posições filosóficas, quer sejam chamados ideologia ou visão de

mundo, quer se constituam em ação consciente ou inconsciente do artista, imprimem na

obra a função ideológica.

De toda forma, a função ideológica, imbricada na função social, manifesta certos

desígnios voluntários do artista em revelar uma concepção ideológica específica. Do

mesmo modo, também o leitor de determinado grupo social pode desejar que a obra lhe

mostre, expresse ou represente, certos aspectos da realidade. Sendo assim, essa função

se revela mais aparente na obra literária nos casos em que o artista visa a exprimir suas

convicções políticas, religiosas ou filosóficas, como na função social. No entanto, a

função ideológica é considerada por Candido a menos importante uma vez que o

desígnio consciente do artista em formular uma determinada idéia poderá configurar-se

como ilusão, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu. Por isso, essa função

ou, o desígnio consciente, voluntário, tanto da criação quanto da recepção, “é

importante para o destino da obra e para sua apreciação crítica, mas de modo algum é o

âmago de seu significado” (CANDIDO, 2000, p. 46).

Para Bosi a ideologia “é uma percepção historicamente determinada da vida” que

“passa a distribuir valores e a esconjurar antivalores, junto à consciência dos grupos

sociais” (2000, p. 138). Quando no sistema poético se defrontam os tempos “corpóreo,

inconsciente, ciclóide, ondulatório, figural, da frase concreta; e o tempo quebrado de

histórias sociais” , é possível vislumbrar, no nível da consciência histórica do poeta

moderno, o desejo indestrutível “que pulsa na imagem e no som” (BOSI, 2000, p. 138-

139). Por isso,

Já não bastam à palavra poética as mediações naturais da imagem e do som; entra na linha de frente do texto o sistema ideológico de conotações que vai escolher ou descartar imagens, e trabalhar as imagens escolhidas com uma coerência de perspectiva que só uma cultura coesa e interiorizada pode alcançar (BOSI, 2000, p. 138).

Esse sistema ideológico de conotações parece ser o responsável pela linha

oscilante entre as funções ideológica e social. Ora, se existem valores dominantes em

cada formação social, então haverá também uma conotação própria para estas ou

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aquelas imagens, de acordo com as perspectivas, esperanças, medos, frustrações e

inquietações de cada cultura.

Também a reflexão de Maia (2007) tende a considerar a conotação própria que

cada grupo revolucionário imprime em sua arte como uma característica da função

ideológica. Empenhando-se em preservar a originalidade de suas culturas, seus idiomas,

sua arte, sua literatura e sua poesia os mais variados grupos sociais se dizem e se

reconhecem numa perspectiva ideológica peculiar. Essa coerência de perspectiva das

imagens somente poderá manifestar-se em culturas coesas e interiorizadas como acorre

nos guetos, nas praças, nas periferias, nas aldeias, nos lugarejos distantes, nos

acampamentos, nos assentamentos, nas invasões de terras e de prédios. Trata-se,

portanto, da literatura de cordel, da poesia de rua, do rap, dos escritores e poetas

marginalizados, “a grande maioria excluída que mesmo assim faz arte, faz poesia, faz

literatura, mas uma literatura revolucionária porque transformadora, anunciadora,

reinventora da revolução alinhada com a ancestralidade original, autóctone” .

Retomando Lucas, conclui-se com o crítico que a obra de Adriane Rocha

desempenha a função ideológica na medida em que manifesta o sistema de

representações de um grupo social coeso e historicamente situado. Desse modo, a

função ideológica pode identificar o texto literário como “uma das formas com que o

homem percebe o mundo e representa a realidade de modo coerente, isto é, racional,

ajustando-se a ela quanto às posições que toma e ao papel que desempenha na

sociedade” (LUCAS, 1985, p. 85).

3. Pátria Sem-Terra: Literatura e função total

Por função total entende-se a capacidade da obra em desligar-se de fatores que a

prendem a um momento e lugar determinados, manifestando a “elaboração de um

sistema simbólico que transmite certa visão de mundo por meio de instrumentos

expressivos adequados” (CANDIDO, 2003, p. 45). Assim, segundo a observação do

crítico, essa função manifesta, na poética de Adriane Rocha, elementos constitutivos de

análise na medida em que tematiza a Terra, tema da mais acentuada intemporalidade.

Toda obra literária pressupõe a ordenação do caos, promovida pelo arranjo especial de

palavras que fazem surgir um novo sentido. Quando a obra impressiona por conta da

ordenação articulada de quem a produziu, o seu conteúdo atuará por causa da forma,

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e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu a forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. (CANDIDO, 2004, p. 178).

Desse modo, é necessário que a forma ordene adequadamente o conteúdo para que

a literatura promova a capacidade do receptor de ver e sentir. Por isso, a função total da

literatura satisfaz necessidades básicas do ser humano, porque “ocorre humanização e

enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimento oriundo da

expressão submetida a uma ordem redentora da confusão” (CANDIDO, 2005, p. 180).

Assim, toda produção alheia ao plano estético, que é o decisivo, manifestará falhas e

prejuízos à verdadeira produção literária. Visto, então, que intenção e conteúdo não

bastam, é válido dizer que apenas as funções social e ideológica, destituídas de forma,

não se constituem, ainda, literatura. É preciso que a função total, isto é, a função da

eficácia estética, conduza à eficácia humana, pois a força humanizadora da literatura

consiste na própria literatura, em sua capacidade de criar formas pertinentes aos

conhecimentos, concepções, ideologias e sentimentos que se pretende transmitir.

Um exemplo claro sobre essa eficácia estética é apresentada por Candido (1970, p.

77) em seu texto Dialética da malandragem em que a forma e o conteúdo “contribuem

para atingir essencialmente os leitores” . Reportando-se ao romance Memórias de um

sargento de milícias (1854), de Antônio Manuel de Almeida, o crítico elabora uma

análise minuciosa do plano de estilo da obra e lhe confere relevo por entender que o

“desvinculamento das Memórias em relação à ideologia das classes dominantes do seu

tempo, tão presente na retórica liberal e no estilo florido dos beletristas” , alcança, nesse

romance de costumes, “uma libertação que funciona como se a neutralidade moral

correspondesse a uma neutralidade social, misturando as pretensões das ideologias no

balaio da irreverência populesca” (CANDIDO, 1970, p. 87).

Em recente produção crítica sobre o romance realista Memórias póstumas de Brás

Cubas (1881), também Roberto Schwarz debruçou-se sobre a originalidade da forma e

suas implicações no fazer literário do mestre Machado de Assis. Para o autor, “a

ambivalência ideológica das elites brasileiras, um verdadeiro destino” (SCHWARZ,

2000, p.42), caracteriza na obra o conceito de volubilidade proposto pelo crítico. A

dialética entre algum tipo de desrespeito justificado sempre pela satisfação do amor

próprio, torna onipresentes no universo narrativo a norma e a infração, manifestando

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uma incerteza de base que, longe de caracterizar uma falha, revela um procedimento

artístico de primeira força, atribuindo a objetividade da forma a uma ambivalência

ideológica inerente ao Brasil de seu tempo. Nas palavras do autor, “a volubilidade de

Brás Cubas é um mecanismo narrativo em que está implicada uma problemática

nacional. Esta acompanha os passos do livro, que têm nela o seu contexto imediato,

ainda quando não é explicitada ou mesmo visada” (SCHWARZ, 2000, p. 47).

Sobre a questão da forma, também Bosi observa que a conotação e a ordem de

valor manifestadas nas obras literárias constituem aspectos simultâneos de análise que,

junto com os aspectos propriamente estéticos, estabelecem o sentido da obra, pois “a

organização da superfície física é a matéria significante do poema com todos os seus

jogos de figuras e retornos, é o conjunto dos procedimentos” e, como complemento, “a

outra superfície é a que se nos dará quando apreendemos o sentido pleno do texto” , pois

a organização da superfície física não é ainda sentido (BOSI, 2000 p. 42-43). Desse

modo, a reflexão do autor conflui para o que Candido aponta como procedimento

adequado à análise:

Só a consideração simultânea das três funções permite compreender de maneira equilibrada a obra literária, seja a dos povos civilizados, seja, sobretudo, a dos grupos iletrados. Se naquela os aspectos propriamente estéticos sobressaem de maneira a realçar a função total, nesta a função social avança pra primeiro plano, tornando-a ininteligível se não for levada na devida conta (CANDIDO, 2000, p. 47).

Está explícita na obra de Adriane Rocha a simultaneidade das funções apontadas

pelos críticos como elementos determinadores da literariedade18 de uma determinada

obra. Se, por um lado, a sua produção remete para a função social da literatura por

trazer à tona elementos que manifestam a concepção crítica da artista diante dos

problemas vivenciados pelo seu povo; por outro, traduzem sentimentos e conhecimentos

específicos de um grupo social dado e, por isso cumprem uma função ideológica sem,

no entanto, comprometer a função total que toda literatura deve manifestar.

Inscrevendo-se dialeticamente entre os fatores de integração e diferenciação, isto é,

18 José Luís Jobin adverte que em cada período histórico podemos observar uma certa ordem, a partir da qual se estabelecem, com maior ou menor rigidez, as fronteiras do literário. Disponível em E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <>=�?:?�@BA C�C�DEDED4F GIHKJ�=LF�M�N/OPF%@�?QC#R�S�?�O%TU HKR�JKJKV�S/WXR�Y[Z]\�C#Z2^KC�_�Z/Z�`,F

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movimentando-se adequadamente entre as funções social e ideológica, a poesia de

Adriane Rocha alcança, na felicidade da forma e na universalidade da temática, a

função total. Essa dialética emana na realização estética que faz convergir à intenção

voluntária da poeta o conteúdo organizado na superfície física, legitimando, pelos níveis

de sublimação alcançados na obra, a sua validade literária. Assim, a temática da Terra,

força motriz da poética de Adriane Rocha, quer seja analisada do particular para o

universal ou, ao contrário, do universal para o particular, manifesta, além da dimensão

puramente social e ideológica, a intemporalidade e a universalidade do tema,

desprendendo-o de tempos e espaços dados. Essa característica conduz a análise da obra

para além das fronteiras sociais e ideológicas sem, no entanto, comprometer essa ou

aquela função da literatura.

3.1 Geração de 30: poética do desengano

A moderna poesia brasileira registra poetas engajados que escreveram os

primeiros versos desse tipo especial de lírica originada dos compromissos sociais,

políticos e religiosos dos escritores. Na segunda fase modernista, na década de 1930,

houve uma aproximação intensa entre literatura e sociedade, sobretudo na prosa,

conforme observações de Flávio Aguiar, Nicolau Sevcenko e Fábio Lucas já pontuadas

anteriormente. Nesse período os intelectuais de esquerda passam a denunciar os

problemas sociais em seu fazer artístico e a distinção entre projeto estético e ideológico

estabeleceu uma nova poética modernista.

Sobre esse período, Luís Bueno (2007)19 chama a atenção para a alteração de

perspectivas que pontuou uma distinção válida para a toda a América Latina. Em seu

texto Nação, nações: os modernistas e a geração de 30 o crítico observa “que a geração

dos autores que participaram da Semana de Arte Moderna se preocupava, sobretudo,

com uma revolução estética, enquanto os que estrearam nos anos 30 centravam sua

atenção nas questões ideológicas” (BUENO, 2007). Se a geração da fase heróica

conviveu, ainda, com a noção predominante de país novo, que ainda não se realizara,

mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro, na geração

seguinte a consciência nascente de subdesenvolvimento “adia a utopia e mergulha na

19 Disponível em www.fflch.usp.brdlcvposgraduacaoeclpdfvia07via07_08pdf . Acessado em 05/01/2008.

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incompletude do presente, esquadrinhando-o, o que é compatível com o espírito que

orientou os romancistas de 30” (BUENO, 2007). Desse modo, resume o crítico,

Se o desejo de fazer uma arte brasileira, incluindo o uso de uma linguagem mais coloquial e uma aproximação da realidade do país, é um dado de permanência do espírito de 22, durante a década de 30 a realização estética em si mesma é muito diferente – e o predomínio do romance ao invés da poesia já é evidência suficiente desse fato. A forma de atuação é também outra (BUENO, 2007).

A utopia ainda possível, na geração de 20, numa mentalidade que percebia o Brasil

como um país novo, não podia sustentar-se diante da pré-consciência de

subdesenvolvimento que emergia com a geração seguinte. Desse modo, “a arte da

década de 30 não poderá, portanto, abraçar qualquer projeto utópico e necessariamente

se colocará como algo muito diverso do que os modernistas haviam levado a cabo”

(2007). Nesse sentido, pode-se dizer que o romance de 30 vai se constituir como uma

arte pós-utópica.

Dialogando com Mário de Andrade, Bueno traz à tona a hipótese do escritor

modernista para explicar a predominância da figura do “ fracassado” no romance de

30, articulando essa idéia à formação da identidade nacional. Nessa perspectiva,

entende-se que a formação da consciência de que o país era atrasado canalizou todas

as forças do romance de 30, que reproduziu, assim, os aspectos mais injustos da

sociedade brasileira. Desse modo, o herói, que antes promovia ações para transformar

essa realidade negativa, passou a incorporar, também, algum aspecto do atraso. No

entender do autor,

ao contrário do realismo do século XIX, que havia estigmatizado a narrativa em primeira pessoa, muitas vezes o romance de 30 priorizou-a, com duplo efeito: primeiro, o de conferir veracidade maior ao documento, já que assim ele aparece construído como depoimento de quem viveu aquele fracasso; segundo, o de sublinhar o caráter definitivo das derrotas narradas, já que para ninguém o impasse pode ser tão profundo, ou mais sem saída a situação, do que para aquele a quem não é dada uma perspectiva mais ampla ou distanciada do problema (BUENO, 2007).

É nesse ponto da reflexão que Bueno introduz a segunda questão proposta por

Mário de Andrade para se pensar a geração de 30: a ausência de projetos totalizadores.

Se, por um lado, a produção artística da geração de 20 buscava “uma identidade

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nacional que articulada, integrada, tanto na obra de Mário de Andrade quanto na de

Oswald de Andrade” (BUENO, 2007), estabelecia o compromisso do grupo; por outro,

o comportamento dos escritores de 30 não manifestou nenhuma visão unificadora de

Brasil, pois cada romancista se ocupou de mergulhar num aspecto específico do

presente. Essa característica da geração de 30 revela uma “visão geral do país após uma

leitura extensiva desses romances – e mesmo a maneira pela qual Mário de Andrade

percebeu a importância da figura do fracassado demonstra isso” (BUENO, 2007).

Assim, o interesse por essa figura constituiu-se como uma das maiores conquistas para a

ficção brasileira que viria a seguir: a incorporação das figuras marginais. Desse modo, o

resultado desse procedimento anti-escola, voluntário ou não nos romancistas de 30,

“produz uma vigorosa força de oposição a uma visão total – totalitária mesmo – de

Brasil proposta por Getúlio Vargas” (BUENO, 2007). Vale transcrever a conclusão a

que chega o crítico acerca da distinção proposta para se pensar as duas gerações

modernistas:

É um contraste significativo o que se cria entre a visão do país como um conjunto de realidades locais que merece ser conhecido nas suas particularidades e o modelo oficial de unidade nacional, cuja tendência seria a de apagar as diferenças para se obter um conceito uno de nação. A boa recepção ao romance regionalista, por exemplo, mesmo considerando as acanhadas dimensões de nosso público leitor àquela altura, foi uma demonstração clara da distância de um projeto oficial unificador em relação à visão que ia se tornando a mais viável para os próprios brasileiros, que queriam simplesmente saber da vida nos engenhos, do drama da seca, da região amazônica, das plantações de cacau e café, da realidade dos pampas [...] (BUENO, 2007).

Essa reflexão de Bueno remete para as concepções de Hall, sobre a constituição

das comunidades imaginadas, e de Bhabha, sobre a pretensa coesão nacional que

manteve na horizontalidade as narrativas sobre nação, já pontuadas no capítulo anterior.

Para este, o caráter performativo introduz nas modernas narrativas nacionais o entre-

lugar, o enquanto isso, colocando em relevo as identidades de grupos inseridos na

nação maior, e, para aquele, a identidade dos grupos se constrói em torno de

sentimentos, ações e concepções comuns à comunidade. Assim, pode-se dizer com

Bueno que a poética de 45 estabelece a nova direção que as pressões históricas impõem

à poesia: a direção da objetividade. Ao refletir sobre a questão, Bosi observa que essa

nova direção pode ser entendida em dois sentidos:

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a) Procura de mensagens (motivos, temas...) que façam do texto um testemunho crítico da realidade social, moral e política;

b) Procura de códigos que, rejeitando a tradição do verso, façam do poema um objeto de linguagem integrável, se possível, na estrutura perceptiva das comunicações de massa, medula da vida contemporânea (BOSI, 2006, p. 468).

Sobre a incorporação de figuras marginais à lírica brasileira, João Cabral de Melo

Neto destaca-se no cenário literário como um poeta com acentuada “tendência de

apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina”

(BOSI, 2006, p. 471). O poema “Morte e vida severina” (1956), de João Cabral, conta

a trajetória de um homem do Agreste que sai em direção ao “ litoral e topa em cada

parada com a morte, presença anônima e coletiva, até que no último pouso lhe chega a

nova do nascimento de um menino, signo de que algo resiste à constante negação da

existência” (BOSI, 2006, p. 471). A literatura de João Cabral de Melo Neto nasce na

mesma esteira dos poetas amadurecidos durante a II Gerra Mundial. Essa lírica

participante se mostrará sempre associada, de uma ou outra forma, às tensões sociais.

Nessa mesma via, seguindo as pegadas estéticas de uma literatura brasileira

cujos poetas, a partir dos terceiro e quarto decênios do século XX manifestaram uma

arte engajada, compromissada com as questões sociais, também os poetas e cantadores

do MST expressam em sua poesia as mazelas e contrastes que as questões em torno da

posse da terra provocaram no Brasil. Desta maneira, as manifestações culturais dos

sem-terra constituem-se, na história do MST, como fator que “ identifica o caminho

vivenciado pelo trabalhador sem-terra que chega à firmeza da afirmação sou Sem

Terra, sou do MST!” (CALDART, 2004, pp. 163-164). Essa identificação se

manifesta, também, por meio da poesia produzida pelos integrantes do movimento,

compondo o conjunto de símbolos que constituem a mística do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil.

3.2 Arte engajada: poética do compromisso

A poesia e a música estão presentes em quase todas as atividades do Movimento

e há um respeito muito grande para com as composições musicais, principalmente

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para a primeira geração que criou o MST a partir dos anos oitenta. As músicas são

compostas por letras que descrevem, geralmente, a lógica sujeito, tempo e espaço,

localizando onde, quando e por que aconteceu determinado fato. São músicas “para

ouvir, pois contam alguma tragédia ou estabelecem uma relação íntima entre o ser

humano e a divindade ou ainda mantém viva a memória regional ligada às festas ou à

religião” (BOGO, 2005, p.105). Essa característica das composições em destacar o

sujeito, localizando-o no tempo e no espaço onde se dá o acontecimento, pode ser

vista “claramente nas músicas cantadas por Tonico e Tinoco, Chico Mineiro, e o

Menino da Porteira, ou a Triste Partida de Patativa do Assaré, cantada por

Gonzagão” (BOGO, 2005, p. 105).

Em âmbito nacional, dentre os artistas ligados ao Movimento, o poeta, cantor e

compositor Zé Pinto20 manifesta em seu fazer poético o compromisso assumido com a

causa do povo Sem Terra. Frei Beto ([s.d]) observa, ao apresentar o poeta, violeiro e

cantador, na contracapa do volume de poemas O amanhã é bem mais que outro dia, que

na caminhada dos Sem Terra pela reforma agrária Zé Pinto expressa com muita beleza e

arte as aspirações mais profundas da nossa gente. Também Stédile, na mesma

apresentação, refere-se ao poeta como a expressão típica da cultura popular cultuada no

movimento Sem Terra. Para o autor, trata-se de uma arte que brotou nos corações e

mentes, debaixo das lonas, nas caminhadas, nas ocupações, nas lutas em geral do nosso

povo do interior. No poema “Patativizando” o eu lírico dialoga com outro poeta

nordestino, Patativa do Assaré, deixando entrever na expressão lírica o sentimento de

compromisso com as causas do povo que a arte engajada manifesta:

Patativa disse adeus Olhou pro céu e voou Assaré foi testemunha Até Mandacaru chorou Nas asas da poesia, Viajou noites e dias Pra encontrar nosso Senhor Era assim meu companheiro Menos cansaço e mais dor

20 Zé Pinto nasceu em Minas Gerais. Sua família emigrou, quando ele era criança, para Rondônia, no norte do Brasil. Seu trabalho artístico em acampamentos e assentamentos se iniciou aos 13 anos. Um dos coordenadores do primeiro CD do MST, Arte em Movimento, no qual assina nove canções. Participou também do Primeiro Festival Nacional de Canções da Reforma Agrária, do qual originou-se o segundo CD do MST. Produtor do CD de músicas infantis do MST para o qual contribui com 11 canções. Uma Prosa Sobre Nós é seu CD individual. Autor dos livros de poesia, como Poesia que brota da luta (esgotado). Fez trabalhos de divulgação da cultura do MST, em Portugal e na Alemanha, Bélgica e Espanha (Disponível em http://www.landlles-voices.org/vieira/contibutors.phtml?ng=p#Pinto, acessado em 28/12/07).

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Fazer poemas de arma, Pra fazer arma de flor Num país tão seresteiro, De viola e de pandeiro, Nunca se viu tanta angústia Num poeta sertanejo Denunciando as tramóias De um projeto traiçoeiro Que vê beleza na fome Desse povo brasileiro!

Zé Pinto rende homenagem a Patativa, poeta cordelista do município nordestino

de Assaré que escreveu, entre muitos outros poemas, “A triste partida” , que foi

musicada e gravada por Luiz Gonzaga. Ao falar sobre a poesia de Patativa no Jornal

da Poesia21, José Nêumanne observa que não há que se exigir desse poeta “perícias de

esgrimista da linguagem nem habilidades de pesquisador da semântica. Sua poesia

serve a sua gente: descreve sua vida, ou seja, seu convívio com a paisagem ou com

outros viventes” . De cunho épico, a poesia de Patativa narra a proeza dos valentes

retirantes nordestinos, lembrando a repetição cíclica do êxodo bíblico.

Em Mato Grosso, a poeta Marilza Ribeiro dedicou-se a denunciar por meio de

seus versos “o processo de dominação que reina nos latifúndios mato-grossenses e que

é responsável por uma história de sangue e medo” (MAGALHÃES, 2001, p. 230).

Tematizando essa realidade, a poeta empresta seu fazer literário aos que não têm vez

nem voz, incluindo, também, os menores abandonados, os trabalhadores braçais e as

mulheres. No dizer da pesquisadora Célia Maria Domingues da Rocha Reis, estudiosa

da obra de Marilza Ribeiro, a expressão da poeta nunca é a de uma individualidade.

Prevalece sempre o coletivo por meio “da representação de tipos mais primitivos da

terra, ao homem que as condições sócio-econômicas regionais geraram, o pescador, a

ceramista, a redeira, o posseiro e tipos mais modernos, [...] desprovidos de identidade,

transeuntes anônimos, andarilhos” (REIS, 2005, p. 35).

Nessa mesma esteira, outro poeta mato-grossense, Dom Pedro Casaldáliga, viu

na poesia sua melhor expressão de fé e de reação contestadora. Homem religioso que

em acordo com a proposta da Teologia da Libertação, da qual é seguidor, denuncia em

versos situações que ilustram os desmandos cometidos contra os menos favorecidos em

nome do avanço dos projetos políticos de colonização, o bispo-poeta nos fala em sua

obra de posseiros e indígenas, elementos que estão no fim da cadeia do Poder na região.

21 Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/jneumanne4.htlm., acessado em 10/11/07.

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Conforme a crítica já apontou, “Dom Pedro Casaldáliga prega o retorno à Amazônia dos

indígenas, o paraíso que antecedia a chegada dos descobridores” (MAGALHÃES, 2001,

p.162).

4. Adriane Rocha e a poética da terra – uma trajetória de afetos

Também em Mato Grosso, a produção poética da sem-terra Adriane Rocha

manifesta uma consciência histórica e estética em conformidade com aquilo que Bogo

aponta como a revolução que “pretende libertar a linguagem para que haja um franco

diálogo entre os objetos, espécies e cores nesta integração da vida com o planeta”

(2000, p. 81). Em apresentação à obra da poeta, o também poeta, crítico e ensaísta

Isaac Ramos define a visão ecológica e social de Pátria Sem-Terra como a matiz

poética mais expressiva de Adriane Rocha22. Nas palavras do autor, trata-se de “uma

poeta pronta, que sai do acampamento Antonio Conselheiro, na cidade de Tangará da

Serra-MT, como militante, declamadora e, agora, partirá para as páginas literárias do

nosso Mato Grosso” (ROCHA, 2004, p.13-14). Ideologicamente definida, a

linguagem da Pátria Sem-Terra, de Adriane Rocha, insere-se, nos espaços que

compreendem a mística do Movimento, como elemento constitutivo da cultura

elaborada pelo MST, revelando a trajetória do povo sem-terra imaginada pela

consciência criadora. O sujeito-de-enunciação lírico expressa o desejo do sujeito

coletivo marcado pela história de luta e movimenta-se na construção rumo à

linguagem própria, voz do sujeito social Sem Terra. Nesse contexto,

A voz do corpo é semelhante à voz que sai da garganta. A voz dos pássaros é a mesma que a voz dos poetas. A voz das árvores é a mesma que a voz das crianças. A voz das cores é a mesma que a voz da luta, da resistência e da transformação, [...]. Todos os objetos se comunicam entre si ou com o ser humano. (BOGO, 2000, p. 81).

Essa linguagem ajuda o sem-terra a perceber as coisas que existem e como

existem instituindo, junto com os demais símbolos do Movimento, um diálogo franco,

sincero e democrático com todos os tipos de vida. É nesse contexto que a poeta

Adriane Rocha representa a voz do sujeito histórico, atuante, condutor da história, 22 Pátria Sem-Terra (2004) divide-se em três partes, ou blocos: I – Pátria Sem-Terra, II – Pensamentos e III – Intimidades. Os poemas analisados fazem parte do bloco I.

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engajado e comprometido com os ideais do Movimento que seguem a mesma esteira

da eco-espiritualidade. A poeta-militante atuou “no setor de juventude e cultura,

espalhando arte e saber e também no coletivo de gênero resgatando a beleza e o

direito de ser mulher” 23.

Natural de Três Passos, Rio Grande do Sul, Adriane Rocha mudou-se com a

família para a cidade mato-grossense de Tangará da Serra, no ano de 1993. Mãe de duas

filhas, a poeta se define como “sonhadora e persistente” . Seu envolvimento com o MST

passa pela figura do pai que “aderiu ao movimento” contra a vontade da filha. Ela não

compreendia ainda os propósitos daquela luta, apenas era contrária à adesão do pai ao

Movimento. Adriane Rocha conta, em relato poético, o episódio que marcou a aventura

da família nos primeiros contatos com a realidade vivida pelos sem-terra:

Foi triste aquela fria madrugada de outubro, as estrelas gritavam com mais intensidade, o vento dedilhava uma suave canção e nos negros braços da noite vultos aglomeravam-se em pontos estratégicos. Mulheres, homens e crianças como formigas, cada qual exibindo seu troféu no alto de suas cabeças, enxada, foice e facão vinham nas mãos, os corações não cabiam nos peitos inflados, os olhos disputavam um lugarzinho em um caminhão. O medo misturava-se com a possibilidade da vitória compartilhada. E partiram em precisão, amontoados, cada qual na sua fé, na sua crença invocavam o Pai maior. O sereno lambia os rostos cansados marcados por um passado felino, amargo e excludente. Na força do sonho coletivo viravam a página de um novo roteiro. Com a rebeldia que pulsava em veias valentes, da vida fizeram palco e protagonizaram a própria história que cheirava vida, que tinha cor de terra e gosto de pão. E eu fiquei chorando. (Grifo meu).

Depois de quatro dias concentrados na BR 358, em Nova Olímpia, “uma carreta

desgovernada invadiu o acampamento e levou consigo cinco sementes de esperança que

estavam lá, como as demais, querendo chão para germinar e gerar dignidade”. Diante do

ocorrido, Adriane Rocha vai ao encontro do pai e pede a ele para desistir do sonho. Seu

pai, segurando-lhe o rosto entre as mãos e olhando-a nos olhos, diz: “ filha, eu vou ficar

por nós e pelos cinco que se foram. [...] E ele ficou sorrindo” . Depois disso, quando

recebia as visitas do pai, Adriane ouvia dele informações muito diferentes daquelas

23 Todas as informações sobre a poeta foram obtidas via conversas telefônicas e em carta-poema (Anexo B), datada de 12 de dezembro de 2006.

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transmitidas pela mídia. Decide, então, conhecer o acampamento de perto e

compreende, como ela mesma diz, que “somos sujeitos da própria história, que a

liberdade está na construção da nova sociedade” , e torna-se “uma lutadora do povo,

herdeira de exemplos, idéias, sonhos e ideais de muitos que na luta tombaram”. Depois

de algum tempo no assentamento, a poeta sente necessidade em retomar seus estudos,

mas a militância em tempo integral impossibilitava a realização deste outro sonho.

Assim, consciente da sua condição coletiva, devolve “a terra ao MST e ao INCRA para

que o lote pudesse exercer sua função social, pois o objetivo da reforma agrária é

fecundar a mãe que está no cio e tirar de seu ventre a vida” . Outra família ocupou a área

destinada anteriormente à família da poeta. Adriane Rocha segue, então, para Campo

Novo do Parecis, onde retorna aos bancos escolares para formar-se professora, pois a

poeta acredita na educação como

processo permanente de construção de uma nova sociedade, [...], porque humaniza, transforma, socializa, é geradora de conflitos e quando educa crítica e democraticamente eleva a pessoa humana ao auto-conhecimento arrancando-a das cercas do latifúndio da ignorância, conduzindo-a à libertação, é por isso que quero estar em sala de aula.

É desta maneira que a consciência histórica revela o compromisso com o coletivo e

a relação que o sem-terra estabelece com a terra. Nesse sentido, a terra não é somente

terra, é o resgate da dignidade, da certeza de que o mundo imaginado pode ser

construído coletivamente. A imagem da terra, no imaginário do sem-terra, passa,

necessariamente, por sua história de luta e resistência presentificada por meio da mística

vivenciada em todos os encontros, manifestações, acampamentos e assentamentos.

Nesse contexto, os símbolos construídos no decorrer do processo de constituição do

MST manifestam, na esfera material, a construção da consciência do novo sujeito

social. Assim, articulando o grito do oprimido com o grito da Terra, a poesia de

Adriane Rocha abre passagem para um universo estético que manifesta as funções

social, ideológica e total da literatura, em busca do possível retorno ao paraíso perdido.

Para entender essas funções da literatura sem perder de vista sua integridade estética é

preciso, a partir da distinção entre as três, movimentar a leitura no sentido de considerar

cada função em sua devida conta.

4.1 O sujeito-de-enunciação lír ico enuncia a trajetória

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A dialética das funções postulada por Cândido entre os “três pontos de vista,

levando em conta o quadro sociocultural em que as manifestações literárias se situam,

mas procurando captá-las na integridade de seu significado” (2000, p. 51), confluem

para a dimensão poética da linguagem, mais especificamente para a teoria do enunciado

proposta por Käte Hamburger. Desse modo, a consideração simultânea das funções

social, ideológica e total da literatura, permite observar o movimento que o sujeito-de-

enunciação lírico engendra para expressar os enunciados coletivos e individuais,

ordenando o caos e revelando o paraíso possível por meio de imagens poéticas.

Käte Hamburger postula que “o sistema de enunciação da linguagem é o

correspondente verbal do próprio sistema da realidade”, pois o que se enuncia “é o

campo da experiência ou da vivência do sujeito-de-enunciação” (1986, p. 168). Cabe

observar, então, que a posição da criação literária como arte verbal justifica-se pelo fato

de a relação entre criação literária e realidade ser reconduzida à relação de criação

literária e enunciação da realidade. Entende-se, desse modo, que o muito discutido eu

lírico é um sujeito-de-enunciação, pois o experimentamos como um enunciado de um

sujeito-de-enunciação e “ isto já é justificado do ponto de vista básico-estrutural pelo

fato de que experimentamos um poema de modo completamente diferente do que a

literatura ficcional, narrativa ou dramática” (HAMBURGER, 1986, p. 168).

Também Maria Zaira Turchi, em sua Literatura e antropologia do imaginário

(2003), reporta-se ao modo como a pesquisadora alemã trata a relação dos gêneros

literários. “O lugar do lírico na criação literária está no sistema de enunciação da

linguagem, na relação lírica sujeito-objeto” , concorda Turchi (2003, p. 60). Ao falar

sobre os elos da similitude que amalgamam o lírico e o místico, a autora dialoga

também com Gilbert Durand, que “dedicando-se à interpretação cultural de linguagens

simbólicas concretas, formula uma teoria geral do imaginário, qualificada por ele

mesmo como estruturalismo figurativo”24 (TURCHI, 2003, p. 25).

Retornando à teoria do enunciado proposta por Hamburger, vale lembrar que ela

foi formulada com o pensamento voltado para a questão da “tensão conceitual criação

literária e realidade que, explícita ou implicitamente, sempre serve de base às

considerações da Teoria Literária” (HAMBURGER, 1986, p.1). Essa tensão conceitual

consiste na concepção de que a criação literária é coisa diferente da realidade, mas

24 Essa discussão será retomada e aprofundada no capítulo seguinte.

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também significa o aparentemente contrário, ou seja, que a realidade é o material da

criação literária.

A partir da comparação da linguagem da poesia com a linguagem da não-poesia, a

pesquisadora alemã encontra o meio indicado para a pesquisa da estrutura da poesia

como fenômeno global. Por isso, para buscar uma lógica da criação literária, é preciso

pensar nos fundamentos da Teoria da Linguagem, isto é, considerar a estrutura da

linguagem, que a autora designa como o sistema enunciador da linguagem. O conceito

de enunciado requer um sentido terminológico específico, pois o sujeito desse

enunciado não tem nada em comum com o sujeito lógico e com o sujeito gramatical. O

sujeito da criação literária, sujeito-de-enunciação, não pertence nem à Lógica, nem à

Psicologia, nem à Teoria do Conhecimento, mas sim à Teoria da Linguagem.

Entretanto,

na Teoria da Linguagem o problema do enunciado ainda não se tornou objeto de estudo. Isso se deve aparentemente ao fato de que ela dirigiu sua atenção somente para dois lados: para a linguagem como formação gramático-linguística e para a linguagem como enunciação, ou seja, como discurso (HAMBURGER, 1986, p. 19).

Também a Teoria da Comunicação difere da Teoria da Enunciação, porque esta

manifesta uma teoria da estrutura, sobretudo da estrutura oculta da linguagem, enquanto

aquela concerne à situação da linguagem falada. O eu-emissor da comunicação

diferencia-se do sujeito-de-enunciação da linguagem, pois presume sempre um tu

receptor, enquanto o sujeito-de-enunciação remete ao objeto, isto é, o conteúdo da

enunciação, às enunciações de um sujeito-de-enunciação, constituindo-se a enunciação

de um sujeito sobre o objeto. Desse modo, se o único caso no âmbito da linguagem para

o qual a fórmula de enunciação não é válida é a narração do gênero narrativo, entende-

se que é “ justamente esta exceção que consolida [...] a validez da fórmula da enunciação

em todo domínio restante da linguagem, do qual também faz parte a criação lírica”

(HAMBURGER, 1986, p. 20).

Para explicar essa proposição, a autora parte do exame minucioso das definições de

Aristóteles sobre a noção de poiesis, usada pelo filósofo como mimesis, sendo as duas

noções idênticas para ele. Também os termos poiein e poiesis, isto é, fazer, produzir,

podem ser traduzidos por imitatio no sentido de imitação. Por isso, ao elaborar o

conceito de teoria do enunciado, a autora observa que, para Aristóteles, o termo

“mimesis é muito menos decisivo no sentido de imitação, matiz de significado nele

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contido, do que no sentido fundamental de representação, de fazer” (HAMBURGER,

1986, p. 3). Entretanto, convém lembrar que não será o tipo de enunciado nem a

modalidade da sentença que determinará “a intensidade da subjetividade ou

objetividade, mas a atitude do sujeito-de-enunciação. O que constitui o gênero lírico

enquanto tal é “a intenção manifestada do sujeito-de-enunciação de um ser lírico, ou

seja, pelo contexto em que encontramos o poema” (HAMBURGER, 1986, p. 174).

Assim, segue Hamburguer, se Hegel chegou à definição do fenômeno específico da

criação literária como “aquela arte toda especial em que a Arte começa a se dissolver”

(1986, p. x), não chegou, no entanto, às últimas conseqüências da proposição. Desse

modo, entende-se que as várias teorias antigas e recentes da criação literária não

chegaram a resultados totalmente satisfatórios, pois a relação da Arte Literária com o

sistema lingüístico geral não foi assimilado com suficiente clareza ou não se tiraram

dela todas as conseqüências. Então, ao formular o conceito de teoria do enunciado a

partir da teoria lingüística, a autora descobre o seu valor metodológico e afirma que “a

lógica da criação literária é a sua fenomenologia” , pois “não designa outra coisa além

dos fenômenos em si” (HAMBURGER, 1986, p. viii). Ao citar Schlegel, a autora

reconhece que essa descoberta não é nova, pois o autor já havia formulado o

pensamento claro de que o meio da poesia é o mesmo através do qual o espírito humano

chega à consciência de si e organiza seus devaneios, ou seja, é a língua.

Nesse sentido, a imaginação criadora de Adriane Rocha revela um sujeito-de-

enunciação lírico que não toma a Terra e o sem-terra apenas como objeto a ser

tematizado pela expressão poética. De maneira diferente daquela geralmente observada

na Literatura, quando retrata as classes marginalizadas, na criação poética rocheana o

sujeito-de-enunciação lírico é também objeto que passa a agir culturalmente. Assim, se

por vezes observa-se uma proporção maior dos elementos que realçam as funções social

e ideológica do texto; por outras, o aspecto estético evidencia em igual

proporcionalidade a função total. O sentido pleno do texto é revelado pela análise

simultânea desses aspectos, pois as imagens recorrentes nos poemas manifestam a

mediação simbólica elaborada pelo eu poético ao trazer à tona o imaginário que é

expressão do sujeito sem-terra e, ao mesmo tempo, a angústia de todo ser humano

diante da destruição da Terra.

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O poema “Bandeira do MST” (p. 33)25, exemplifica a formulação de Hamburguer

de que “os objetos são pretextos para palavras” , porque o objeto, no caso do poema, a

bandeira do movimento, “motivou o poema, ou melhor, a enunciação lírica” .

Tua beleza é encantadora, É sinônimo de paz, liberdade... Do meu sofrimento, é doutora. Então busco contigo a dignidade Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha...

Nestas duas estrofes, o pólo-objeto das enunciações feitas nos versos é nítido: a

bandeira. Embora seja enunciada com menor precisão nos quatro primeiros versos, na

enunciação seguinte está mais próxima do pólo-objeto. O sujeito-de-enunciação lírico

menciona o símbolo do Movimento de maneira concreta, empunhando-o. A referência

ao estado emocional e afetivo provocado pela presença do objeto remete ao sentimento

existente na imaginação criadora. Embora as primeiras enunciações alusivas à bandeira

sejam menos precisas, o pólo-objeto das enunciações retirou-se deste para o pólo-sujeito

que organiza os enunciados regidos pelo sentido. O título ilumina, pela menção do

objeto, a relação significativa dos enunciados do poema, constituindo no lírico uma

função mais essencial que no gênero ficcional.

O exemplo apresentado, no entanto, não permite a afirmação de que o poeta “tenha

expresso pela enunciação do poema uma experiência própria, ou então que ele não se

referiu a si mesmo” uma vez que “não existe critério exato, nem lógico, nem estético,

nem interior, nem exterior, que nos permita a identificação ou não do sujeito-de-

enunciação lírico com o poeta” (HAMBURGER, 1986, p. 196). Assim, conforme o

conceito de teoria do enunciado proposto pela autora, entende-se a forma do poema

enquanto enunciação que experimentamos como espaço de experiência do sujeito-de-

enunciação, o que a torna suscetível a ser vivida como enunciado da realidade.

Cabe verificar, então, o conceito de vivência em relação à natureza do eu lírico e

com referência ao conceito de lirismo vivencial, criado pela ciência literária alemã. Nas

palavras da autora, o conceito de vivência deve ser compreendido psicológica e

biograficamente, considerando que se trata de um “conceito legítimo de epistemologia

25 Adriane Rocha, Pátria Sem-Terra (2004). As referências aos poemas serão seguidas com indicação do número da página entre parênteses.

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alemã, principalmente empregado por Hursserl como a noção de todos os processos da

consciência (de percepção, imaginação, conhecimento, etc.)” (HAMBURGER, 1986, p.

198). Assim, as experiências da consciência, equiparando consciência à vivência,

especificamente “como um termo que expressa a intencionalidade da consciência, como

consciência de algo” , legitimam o emprego da noção de vivência para a enunciação

lírica e entende-se com isso

que não importa o gênero da “vivência” : vale para o poema-objeto, (circunstancial), poema-idéia, poema político, tanto quanto para o poema de emoção, enfim pra toda a lírica. A vivência pode ser “ fictícia” no sentido de invencionada, mas o sujeito vivencial e com ele o sujeito-de-enunciação, o eu lírico, pode existir somente como um real e nunca fictício (HAMBURGER, 1986, p. 199).

Desta maneira, a razão por que a transformação realizada pelo sujeito-de-

enunciação lírico com o material artístico, isto é, a linguagem, difere da literatura

ficcional, consiste no fato de que transforma a realidade objetiva em subjetiva vivencial,

permanecendo como realidade. A literatura ficcional permanece mimese da realidade

porque não é enunciado, mas imitação, uma vez que a realidade da vida humana é o seu

material. Nesse contexto, um poema lírico é uma estrutura aberta, pois está aberto a

interpretações, enquanto a obra ficcional constitui-se uma estrutura fechada.

Conclui-se, com Hamburger, que apenas experimentamos um fenômeno lírico

verdadeiro onde vivemos um eu lírico verdadeiro, isto é, “um sujeito-de-enunciação

lírico verdadeiro, indiferentemente de sua apresentação na forma de ‘eu’ ou não” (1986,

p. 208). Essa circunstância vivencial determina o lirismo em sua natureza central

autóctone e é também responsável pela sua delicada situação no domínio enunciativo

geral da linguagem. Embora delicada, a teoria manifesta um princípio que é

determinável em todos os casos, pois é o “procedimento da enunciação para com o

pólo-objeto” , que nos faz experimentar “o poema lírico como o campo vivencial e

unicamente o campo vivencial do sujeito-de-enunciação” , diz Hamburger (1986, p.

208).

Desta maneira, Pátria Sem-Terra manifesta um sujeito-de-enunciação lírico que

expressa o desejo de um eu coletivo marcado pela história de luta e, sobretudo, pela

esperança de construir, produzir, criar um novo quadro pintado com uma linguagem

própria, que manifesta a voz do sujeito social Sem Terra. Essa voz revela uma

consciência ideologicamente marcada que vai constituir, junto com outras

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manifestações culturais do MST, a mística do movimento. Para Bogo, a linguagem

desempenha “um papel cada vez mais importante” na formação da consciência

histórica, estética e ecológica do sujeito sem-terra, “porque ajuda a perceber as coisas

que existem, e a forma como existem”, possibilitando “a instalação de um diálogo

franco, sincero e democrático com todos os tipos de vida” (2000, p. 81). As enunciações

líricas de Adriane Rocha assumem, assim, uma expressão poética que permite entrever,

a um só tempo, um objeto-sujeito que tanto observa como exprime a si mesmo e ao

coletivo quando manifesta a temática da Terra e da luta dos sem-terra pela reforma

agrária. É o olhar interno, surgido do interior do movimento que constitui a expressão

poética da autora como um olhar diferente daqueles que já representaram e

expressaram, na literatura brasileira, as questões da luta pela posse da terra no Brasil.

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I I I – O IMAGINÁRIO DA TERRA EM PÁTRIA SEM-TERRA

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e

temperados, como os de Entre Doiro e Moinho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

(Pero Vaz de Caminha)

1. Ser Humano e Ser Terra – o abraço imaginado

No contexto do MST, todos os símbolos criados para identificar o grupo e

preservar a história de um período significativo da vida de pessoas que entregaram seu

esforço e sua vida para edificar idéias imaginadas, não se constituem apenas símbolos,

pois desempenham uma função altamente questionadora da ordem e apontam para o

futuro. A relação mística estabelecida pelo imaginário poético de Adriane Rocha entre a

imagem da terra e o sujeito coletivo sem-terra reitera símbolos do Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra que reconciliam o ser humano e o ser terra. A partir das

dimensões dos símbolos, constituídos e consolidados no decorrer do processo de

formação do Movimento, o sem-terra realiza uma celebração mística que mistura sujeito

e objeto, humanidade e terra. Essa fusão se manifesta na vivência simultânea das três

dimensões simbólicas; a cósmica, a onírica e a poética. Assim, se por meio da vivência

simbólica, a mística dos sem-terra exprime o mistério que funde o sujeito e os sentidos

numa composição que, para Bachelard, constitui o realismo do imaginário, então o

sentido secreto da representação mística vivenciada pelo grupo constitui-se como

epifania. Por isso, a Bandeira e o Hino do Movimento, embora se manifestem como

objetos sensíveis, conduzem também para algo além do sentido imediato. Durante a

realização da mística, esses símbolos reconduzem a um significado que “é inacessível, é

epifania, ou seja, aparição do indizível, pelo e no significante” (DURAND, 1988, p. 14-

15). Desse modo, o sentimento que emana durante a mística do Movimento, transpõe a

celebração do grupo em torno dos símbolos para a área predileta do simbolismo:

o não sensível em todas as suas formas – inconsciente, metafísica, sobrenatural e supra-real. Essas coisas ausentes ou impossíveis de se perceber por definição acabarão sendo, de maneira privilegiada, os próprios assuntos da metafísica, da arte, da religião, da magia: causa

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primeira, fim último, finalidade sem fim, alma, espírito, deuses etc. (DURAND, 1988, p. 15).

Assim, entende-se com Durand que a mística do Movimento dos Trabalhadores

Rurais do Brasil constitui-se uma manifestação que, “não podendo figurar a infigurável

transcendência” , elabora na imagem simbólica a “ transfiguração de uma representação

concreta através de um sentido para sempre abstrato” (1988, p. 15). Desse modo, ensina

Bogo, o chamamento para a construção coletiva do futuro, confere à imaginação um

caráter “ intuitivo e se alimenta da sensibilidade” existente “nas relações sociais e

humanas, fazendo-nos acreditar que cada revolucionário é um artista da revolução”

(2000, p. 85). Na letra do hino, o chamado para a luta já configura o triunfo no futuro

construído pela coletividade:

Hino do Movimento dos Sem-Terra

Vem, teçamos a nossa liberdade Braços fortes que rasgam o chão Sob a sombra da nossa valentia Desfraldemos a nossa rebeldia

E plantemos nossa terra como irmãos!

Vem, lutemos Punho erguido

Nossa força nos leva a edificar Nossa pátria Livre e forte

Construída pelo poder popular

Braço erguido ditemos nossa história Sufocando com força os opressores

Hasteemos a bandeira colorida Despertemos essa pátria adormecida

O amanhã pertence a nós trabalhadores

Nossa força resgatada pela chama De esperança no triunfo que virá

Forjaremos desta luta com certeza Pátria livre, operária camponesa

Nossa estrela enfim triunfará.

O punho erguido no presente forja o triunfo que ainda é futuro, é o cultivo do

sonho, é a mística, é o mistério entendido pelo MST “não como algo distante, ao

contrário, está presente em cada lutador, que sente esta vontade indomável de continuar

andando como que a buscar algo que ainda não vê, mas sente que existe ali mais

adiante” (BOGO, 2005, p. 38). Assim, vivida na aventura coletiva, “a mística não é algo

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abstrato” , como lembra João Pedro Stédile (apud BOGO, 2005, p. 38), ela “só tem

sentido se faz parte da vida” .

O poema “Bandeira do MST” (p.33), já citado para exemplificar como as

enunciações em torno do pólo-objeto migram em direção ao pólo-sujeito, manifesta um

sujeito lírico que realiza um tributo à bandeira, personificando um dos símbolos

permanentes do movimento ao cantar os sentimentos que evoca.

Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha...

Observa-se, na primeira estrofe do soneto, que entra na linha de frente do poema o

sistema ideológico de conotações que escolhe as imagens sob a perspectiva de uma

cultura coesa e interiorizada. A palavra poética vai buscar nas mediações simbólicas a

reiteração das imagens manifestas no Hino do Movimento. O punho erguido do hino

encontra no eu do poema o punho do sujeito-de-enunciação lírico vivencial que é

também o sujeito do ato cultural de erguer e segurar a bandeira. Chevalier observa que a

verticalidade “é sempre símbolo forte de ascensão e de progresso”, conferindo “ao

advento da dimensão vertical o valor de um estado definido da tomada de posse de

consciência” (1995, p. 946). Assim, se no hino existe um chamado para a luta, no

poema o chamamento é atendido e a ação se passa em tempo presente. Esse gesto

estabelece nas enunciações do poema a condição coletiva vivida pelo eu lírico, sujeito

coletivo que sente o sangue ferver nas veias. A exaltação ao símbolo será cantada para

sempre, por um tempo indeterminado,

Nunca deixarei de exaltar-te,

que marca o início do terceiro verso, manifestando o compromisso ininterrupto com a

luta, pois

Nem que a morte me venha,

o desejo de construção de uma Pátria livre, operária camponesa, será adiado para um

tempo futuro, como sugere o hino. A esperança no triunfo que virá, cantada no hino,

manifesta um desejo ainda imaginado, distante, que vai encontrar nas mãos do sujeito

lírico, o devir transformando em presente no imaginário poético. A consciência de que

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com as próprias mãos toma posse do tempo, instaura no poema o tempo-estado, e

transforma a determinação do sujeito lírico em triunfo antecipado.

A esperança está em minhas mãos.

O verbo estar condiciona o tempo em estado permanente e autoriza o eu lírico a

transformar o devir em tempo presente, constante. Se a bandeira é amada, bela e forte, é

essa mesma condição de estado, o ser agora, que antecipa no poema a nação já

transformada.

Pois, és amada, és bela, és forte e, com certeza, Vamos transformar o Brasil em nação.

Chevalier ensina que a bandeira é símbolo de proteção, concedida ou implorada e

aquele que porta a bandeira ergue-a acima de sua cabeça, lançando “um apelo ao céu,

cria um elo entre o alto e o baixo, o celeste e o divino” (1995, p. 118). No mesmo

dicionário, o verbete estandarte remete ao complemento do sentido que o símbolo

adquire por representar uma organização social ou um grupo: “Toda sociedade

organizada tem suas insígnias – totens, pendões, bandeiras, estandartes – que são

sempre colocadas num topo (haste, tenda, fachada, teto, palácio)” (CHEVALIER, 1995,

p. 402). Também Cirlot fala sobre este símbolo, a bandeira, lembrando que ele deriva

historicamente da insígnia totêmica. O fato de que esteja colocada no alto de um mastro

ou de uma asta é menos significativo em sua constituição de símbolo do que a vontade

de situar a projeção anímica acima do nível normal. É deste fato que “deriva o

simbolismo geral da bandeira, como signo de vitória e auto-afirmação” (1984, p. 114).

Noir Castelo Júnior, militante, líder comunitário e professor do pré-assentamento

Zumbi dos Palmares II, exprime, em poucas palavras, a relação mística que o sem-terra

estabelece com esse símbolo: “tô pra matar ou pra morrer por esse símbolo do

Movimento, que sem ele hoje eu não seria ninguém”. Esse sentimento desvela a

manifestação de transcendência que o culto ao símbolo produz nos integrantes do

Movimento.

Também no poema “Acorda, pátria amada!” (p. 22-23), o sujeito-de-enunciação

lírico personifica um outro símbolo, o Hino Nacional Brasileiro, ao estabelecer com ele

uma espécie de monólogo. O símbolo é o meio pelo qual o sujeito lírico estabelece a

relação com a pátria para clamar e lamentar a ausência, o silêncio e a morte da Terra, a

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Mãe Gentil. O primeiro verso anuncia, entre aspas, a retomada de um espaço nacional,

as margens de um rio que testemunharam um outro grito, num outro tempo. Agora, o

sujeito lírico enuncia um brado sobre o qual ainda não brilharam os raios da liberdade e

da igualdade:

“Nas margens plácidas”

O teu povo heróico ainda ergue o brado Pelo fervor do sol da liberdade

E pergunta pelo sol que não brilhou:

Que igualdade conseguimos conquistar?

O que resplandece no presente são imagens sombrias, distantes daquele “sonho

intenso” 26 cantado outrora:

O sonho de amor e esperança

Não passa de um sonho que se ausenta Em cada filho teu que se cansa

Diante da espessa nuvem cinzenta Que encobriu teu céu formoso de outrora,

A imagem do cruzeiro só resplandece E este finca nas covas as vítimas que à terra desce.

O cruzeiro de agora não resplandece num “céu risonho e límpido” , pois mostra aos

filhos e filhas da Mão Gentil apenas a parte que lhes cabe da pátria transformada em

latifúndio. Nas duas estrofes seguintes, o eu lírico manifesta a admiração e a decepção

diante das mudanças que a História impôs aos anseios “dos filhos desse solo” :

Da tua beleza e da tua grandeza Não se tem dúvidas,

Mas o teu futuro é duvidoso Posto que tua soberania é um engodo.

Se das Américas és a mais bela

Desperta deste repouso profundo E não permita que te façam de elo

Com o intuito de chegar ao Novo mundo.

“Gigante pela própria natureza” , a pátria recusa aos “ filhos deste solo” o “berço

esplêndido” , o “florão da América” . Agora, iluminada “ao sol do Novo Mundo”, a

26 As expressões que aparecem entre aspas na análise do poema “Acorda pátria amada!” são referências ao Hino Nacional Brasileiro.

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pátria mobiliza uma imagem de soberania mesclada de engodo que o sujeito-de-

enunciação lírico lamenta em seu canto:

Nem flores, nem campos, nem bosques

Nem amanhã, bem próximo, Nem vidas, nem amores

“No teu seio” só rumores, De uma nação que vive horrores

Nesse segmento do poema, os três últimos versos trazem rimas consoantes que

reforçam a distância semântica entre os significantes amores, rumores, horrores. Essa

distância entre os sentidos parece tornar “a paz no futuro” ainda mais remota,

acentuando a ausência da Mãe gentil:

Terra adorada Mãe gentil, de amor tão forte

Teus filhos e filhas, por ti Choram a própria morte

Filhos e filhas lamentam que, para eles, “o lábaro” não seja símbolo de “glória no

passado”. No entanto, o eu lírico insiste no desejo de construir uma pátria livre,

convocando a Pátria Amada, no primeiro e no último verso da estrofe, a despertar para

a construção desse sonho:

Acorda, Pátria Amada!

E verás que teus filhos e filhas Desejam ter uma pátria livre

Mobilizada, socializada, sonhos mil... Acorda, Pátria Amada!

Os construtores da pátria livre serão os filhos e filhas que “não fogem à luta” , que

se irmanam em torno de sonhos mil. O sujeito lírico não idolatra a pátria, não repete

refrão à mãe gentil dos filhos deste solo. Apenas manifesta a consciência de que “o

verde-louro desta flâmula” não acolhe a todos os seus filhos. Assim, o eu lírico, a partir

de um símbolo nacional, reelabora uma espécie de símbolo às avessas, uma cobrança,

um acerto de contas entre o presente e o passado, confrontando os tempos. O futuro do

hino é o agora, o presente desvelado pelo sujeito-se-enuncição lírico que reclama pela

imagem da pátria anunciada no passado.

Ao falar sobre a imagem, Durand observa que a consciência dispõe em diferentes

graus a adequação total ou a inadequação de um signo eternamente privado do

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significado. Para ilustrar esse pensamento, o autor explica que esse signo longínquo

nada mais é do que o símbolo e distingue “dois tipos de signos: os signos arbitrários,

puramente indicativos que remetem a uma realidade significada, se não presente pelo

menos sempre representável, e os signos alegóricos, que remetem a uma realidade

significada dificilmente apresentável” (DURAND, 2002, p. 13). No caso destes últimos,

devem configurar concretamente uma parte da realidade que significam. Embora a

propriedade do símbolo seja manifestar um sentido, do qual é portador, quando essa

manifestação se constituir numa “representação que faz aparecer um sentido secreto é a

epifania de um mistério” (DURAND, 2002, p. 15). Desse modo, quando o sujeito-de-

enunciação lírico funde os tempos do hino e do poema, confrontando-os, o signo que

representa a nação passa a manifestar, além do sentido que porta, um sentido secreto

que é trazido à tona pela consciência criadora. É então que, por meio do símbolo

nacional, o sujeito lírico epifaniza o mistério, transcendendo a simbolização da imagem

anterior. A transfiguração da Pátria Amada é elaborada na instância poética que “parece

tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico

puro – o dos tempos já mortos - , mas de um passado presente cujas dimensões míticas

se atualizam no modo de ser [...] do inconsciente” , ensina Bosi (2000, p. 131-132).

Assim, as imagens de Pátria Sem-Terra manifestam as três dimensões do símbolo,

apontadas por Durand. A dimensão cósmica do símbolo retira toda a sua figuração do

mundo visível que nos rodeia, enquanto a onírica se enraíza nas lembranças, nos gestos

que emergem em nossos sonhos e constituem a massa concreta de nossa biografia mais

íntima. A dimensão poética, por sua vez, “apela para a linguagem, e a linguagem mais

impetuosa, portanto, mais concreta” (DURAND, 1988, p. 16). Essas três dimensões,

presentes na constituição dos símbolos dos trabalhadores do Movimento Sem Terra

reiteram o desejo da construção de um sujeito coletivo em torno de um mesmo objetivo,

pois esse “conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns

através dos outros,” e “acrescenta-lhes um poder simbólico suplementar” (DURAND,

1988, p.17). Nesse sentido, diz ainda o autor que

A redundância dos gestos constitui a classe dos símbolos rituais: o muçulmano, que na hora da prece, se prostra em direção ao Oriente, o padre cristão que abençoa o pão e o vinho, o soldado que presta homenagem à bandeira, o dançarino, o ator que interpreta um combate ou uma cena de amor confere, como seus gestos, uma atitude significativa a seus corpos ou aos objetos que manipulam (DURAND, 1988, p. 17).

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Também Bosi observa a aliança entre imagem e sentimento, corpo e historicidade,

matéria e significação como ato fundante da poesia. Essa aliança constitui-se como

causa real que o sujeito-de-enunciação lírico imagina e enuncia para manter juntas a

realidade do objeto em si e a sua presença em nós (2001, p.42). O poema “Aos Sem

Terra” (p. 17) que abre a obra de Adriane Rocha, abre-se também à sensação visual

como a trajetória, a caminhada do povo sem-terra em busca do reencontro com a Terra.

O verbo inicial, Somos, seguido pelo substantivo, povo, e este modificado pelo termo

caminhante..., manifesta a consciência coletiva que se põe em movimento na seqüência

do poema.

Somos povo caminhante…

E seguiremos:

No segundo verso, a ação que complementa a apresentação da identidade coletiva

do primeiro, E seguiremos:, anuncia também um nós, um povo, um grupo social que vai

seguir pela trilha traçada na página e imagina o caminhar, o vaivém do sem-terra que

segue rumo ao devir imaginado. Esse vaivém manifesta uma serialidade de ações

descontínuas que se mostram diferentes entre si. No entanto, segundo Cirlot (1984, p.

521), o serial se constitui, também, “pela unificação do relativamente diverso” . Assim, a

ordenação de uma série no tempo ou espaço equivale à determinação ou constituição de

um processo. Observa-se no poema que, embora o traçado do caminho oscile da direita

para a esquerda e da esquerda para direita e a trajetória imaginada conjugue “realidades

opostas, indiferentes entre si” , é a unidade da imagem que irá operar a “reconciliação,

que não implica redução nem transmutação da singularidade de cada termo” (PAZ,

2006, p. 38):

Andando, Sorrindo, Cantando, Sentindo, Chorando, Caindo, Querendo, Levantando, Defendendo, Mudando, Resistindo, Lutando, Perdendo,

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Ganhando, Sofrendo, Sonhando, Dizendo, Acreditando, Vivendo, Amando, Vencendo!

Os versos Sorrindo,/ Cantando,/ Sentindo,/ Chorando,/ Caindo, revelam uma

pluralidade de imagens que desafia o princípio da contradição e promove a identidade

dos contrários na totalidade da imagem, pois as ações contínuas de sorrir, cantar, sentir,

chorar e cair, no contexto da luta pela terra, isto é, no campo vivencial em que o sujeito-

de-enunciação lírico está inserido, manifesta a totalidade de sentimentos e vivências do

povo em marcha.

Os versos seguintes encadeiam uma seqüência semântica univalente; Querendo,/

Levantando,/ Defendendo,/ Mudando,/ Resistindo,/ Lutando,/ e conduzem a marcha

para a esquerda, para o lado oposto ao que se sucediam as imagens antitéticas. Essas

imagens, ao mesmo tempo em que unificam e reforçam o paralelismo semântico,

também conduzem o traçado do caminho para o rumo esquerdo. O sujeito lírico, ao

assumir a condição de povo que caminha contra a ordem estabelecida, isto é, em direção

contrária à direita que se apresentava antitética, agora, no compasso do antidestino,

opõe-se às trilhas incertas e elabora no poema o ritmo seguro do caminhar para o devir

imaginado.

Quando Gaston Bachelard propõe o estudo da imaginação a partir do “problema

psicológico das qualidades imaginadas” postula que, “ ao invés de buscar a qualidade

no todo do objeto, será preciso buscá-la na adesão total do sujeito que se envolve a

fundo naquilo que imagina” (2003, p. 62-63). Essa qualidade propõe-se como uma

acumulação de valores uma vez que a felicidade de imaginar prolonga a felicidade de

sentir e deve nos seduzir por todos os nossos sentidos, mobilizando-nos para além do

que está manifestadamente envolvido. Por isso a expressão do autor: “No reino da

imaginação, sem polivalência não há valor” . Essa polivalência manifesta “o segredo das

correspondências que nos convidam à vida múltipla, à vida metafórica. As sensações

não são muito mais do que as causas ocasionadas das imagens isoladas.” Assim, se a

“causa real do fluxo de imagens é na verdade a causa imaginada precisamos

considerar, ao lado dos dados imediatos da sensação, as contribuições imediatas da

imaginação” (BACHELARD, 2003, p. 63).

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Quando o sujeito-de-enunciação lírico, ao final da seqüência de imagens

recorrentes de resistência, no movimento para a esquerda, introduz um único verso que

remete novamente àquela seqüência antitética inicial, Sofrendo, justamente no ponto em

que a disposição gráfica do poema converterá a marcha novamente para a direita,

desencadeia uma série de versos que expressam a acumulação de valores uniformes.

Depois das imagens ambíguas da trilha inicial, o sujeito-de-enunciação lírico instaura

uma direção final segura que torna polivalentes as metáforas gráfica e semântica. As

reticências do primeiro verso que sugeriam um caminhar constante, incerto,

interminável, Somos povo caminhante..., são substituídas pelo sinal exclamativo no

final do poema estabelecendo a correspondência entre a imagem concreta do caminho e

a imaginação do sujeito-de-enunciação lírico que determina o triunfo: Sonhando,/

Dizendo,/ Acreditando,/ Vivendo,/ Amando,/ Vencendo!.

O poema organiza o sentido amalgamando forma e conteúdo numa perspectiva

que funciona como instância reguladora da caminhada do povo sem-terra. O tempo

verbal condiciona a trajetória a um tempo em andamento. O passado é reconduzido ao

presente na continuidade das ações que ditam um ritmo contínuo, incessante de marcha

e de luta. As rimas soantes perfazem todo o movimento e emprestam um andamento

contínuo ao ininterrupto caminhar. O vaivém é compassado por esse ritmo e por esse

tempo que mantém em conformidade sentimentos, ações e reações. Embora as imagens

se apresentem divergentes entre si no decorrer da construção, convergem, em sua

totalidade, ao tempo e ao ritmo que se delineia rumo à certeza da vitória no futuro.

Para Bosi, o ser vivo capta, a partir do olho, as formas materiais sensíveis e essa

sensação visual permite elaborar, no ato de ver, tanto a aparência das coisas quanto a

relação entre nós e essa aparência. Esse processo desencadeado pela sensação visual

“tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua

existência em nós” (BOSI, 2000, p. 19).

As imagens elaboradas no poema manifestam o anseio do eu poético em fazer

confluir, na imaginação criadora, aquilo que se parece com a caminhada histórica do

sem-terra, isto é, a disposição gráfica do poema, com a relação que a aparência do

caminho físico e todas as imagens manifestas nele representam na trajetória do povo em

marcha, constituindo o realismo do imaginário. A reflexão elaborada por Bosi sobre a

imagem mental ou inscrita a partir dos verbos aparecer e parecer ilustra a dupla relação

que a imagem entretém com o visível. Pois “o objeto dá-se” , diz o autor, “aparece, abre-

se (latim: apparet) à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago

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primordial que temos dele” . Depois, “com a reprodução da aparência, esta se parece

com o que nos pareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que a

linguagem mantém próximos” (BOSI, 2000, p. 20). Também Octávio Paz (2006, p. 46)

entende que ao percebermos um objeto qualquer, este se nos apresenta como uma

pluralidade de qualidades, sensações e significados que se unificam, instantaneamente,

no momento da percepção. Essa operação unificadora da imagem acontece por meio do

sentido, pois

o sentido não é só o fundamento da linguagem como também de toda a expressão da realidade. Nossa experiência da pluralidade e da ambigüidade do real parece que se redime no sentido. À semelhança da percepção ordinária, a imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade (PAZ, 2006, p. 46).

Quando a imaginação põe em nós a mais atenta das sensibilidades, percebemos que

as qualidades representam em nós mais devires que estados e a imaginação tantaliza o

sonhador que pretende fixá-la. Por isso, quando se observa a imagem gráfica do poema

“Aos sem terra” (p.17), e se considera a aliança entre imagem concreta, imaginação e

sentimento, percebe-se o eu lírico tonalizado, isto é, aberto ao jogo de imagens

ritmanalisadas pelo impulso e pela vibração, abarcando ou reconciliando os significados

contrários ou díspares sem suprimi-los. Assim, lembra Bachelard, “entramos

naturalmente no universo das imagens, ou melhor, tornamo-nos o sujeito tonalizado do

verbo imaginar” (2003, p. 69). Quando essas imagens fundem juntos o sujeito e o

objeto, então a qualidade será encarada como uma tonalização completa do sujeito. Por

outro lado, a vibração produzida pela imagem poética pode produzir efeitos mais leves,

pois, “a imagem literária, triunfo do espírito da sutileza, pode também determinar ritmos

mais leves, ritmos que são apenas leves, como o frêmito dessa árvore íntima que é, em

nós, a árvore da linguagem” (BACHELARD, 2003, p. 70). Alcança-se, assim, o simples

encanto da imagem comentada, da imagem que adquire seu sentido e sua vida nas

metáforas.

Nessa perspectiva, o imaginário da terra, na Pátria Sem Terra de Adriane Rocha,

amalgama ao matiz social e ideológico um viés condutor da trajetória que busca

acomodar o homem ao ideal humano, à felicidade ética da espécie. Ao engendrar, por

meio da dimensão poética do símbolo, o caminho de volta do desterro cósmico, o

sujeito-de-enunciação lírico enuncia a luta antitética, predominante no regime diurno

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das imagens e, por outro lado, o retorno eufêmico, representado no regime noturno.

Desta forma, a imaginação realiza o equilíbrio de um regime no outro, atribuindo “ao

imaginário, em qualquer de suas manifestações, o poder metafísico de se erguer contra a

morte” (TURCHI, 2003, p.32).

Essa característica da imaginação criadora de Adriane Rocha reporta a análise da

obra para a perspectiva de leitura proposta por Gilbert Durand. O autor propõe uma

Poética do Imaginário que interpreta a recorrência dos símbolos e imagens como

projeções inconscientes dos arquétipos em que se configuram as profundezas do

inconsciente coletivo. Discípulo do filósofo Gaston Bachelard, para quem a teoria da

imaginação centra-se nos elementos primordiais da cosmogonia Terra, Água, Ar e Fogo,

e da teoria do inconsciente coletivo elaborada pelos trabalhos de psicanálise de Jung,

Durand postula uma leitura arquetípica da imaginação criadora, aplicável no campo da

estética e da crítica literárias. Para o autor, o ser humano produz, na sua atuação

sociológica e cultural e, por conseguinte, na sua criação artística e literária, uma

inquestionável faculdade simbolizadora que pode tanto partir da cultura como do natural

psicológico, pois o essencial da representação e do símbolo encontra-se entre esses dois

marcos irreversíveis. Por isso, a Poética do Imaginário postulada pelo autor, remete a

análise para o “trajeto antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível do

imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que

emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002, p. 41).

1.2 Regimes diurno e noturno: a luta antitética e o retorno eufêmico

Maria Zaira Turchi, ao estudar como se dá o processo de remitologização no século

XX, preconiza, a partir dos estudos de Gilbert Durand, uma abordagem da hemenêutica

simbólica com vistas a investigar a especificidade de cada gênero literário. Para realizar

tal tarefa, a autora adota a perspectiva antropológica que focaliza o imaginário como

tensão coesiva entre as forças subjetivas e biográficas e as sociais.

No entender da autora, cada geração recoloca as fronteiras do conhecimento e da

descoberta sob o enfoque de eterna dúvida, permitindo afirmar que “o prazer da

descoberta não é tanto o produto final – é a aventura humana” (TURCHI, 2003, p. 13).

Assim, para analisar a posição do símbolo e do imaginário nos tempos modernos é

preciso considerar que a questão ainda se coloca, por vezes, entre o valor da

argumentação conceitual da razão e a vocação e o poder do pensamento simbólico. Esse

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reconhecimento, no entanto, não se caracteriza como um confronto direto entre

mentalidade científica e imaginário, pois o conflito entre as forças científicas e as

ressurgências simbólicas já não se delineiam em balizas antagônicas. A autora dialoga

com Durand para pensar a questão da alegada mentalidade científica e técnica do final

do milênio que parece ser “uma ilusão supersticiosa mantida pela pedagogia escolar e

universitária do Ocidente, mas que não corresponde absolutamente ao balanço profundo

da alma ocidental e contemporânea média” (DURAND apud TURQUI, 2003, p. 17).

A partir dessa perspectiva, as bases norteadoras da Literatura e antropologia do

imaginário (2003), de Turchi, alicerçam-se nas pesquisas de Gilbert Durand, discípulo

de Bachelard, Eliade e Jung, entre outros. Os trabalhos do autor resultam numa “teoria

sobre as estruturas antropológicas do imaginário constituindo-se em aparato teórico para

alicerçar estudos que tratam das relações entre o imaginário e a literatura.

Aplicando essa teoria aos gêneros literários em suas especificidades, Turchi

promove, por sua vez, a associação da crítica do imaginário ao estudo dos gêneros. No

segundo capítulo de sua obra, cujo subtítulo anuncia os Elos de similitude: lírico e

místico, a autora investiga de que maneira a “analogia e a similitude compõem-se nos

princípios estruturais do regime noturno místico e, no paralelo estabelecido, em

categorias modais do gênero lírico” (2003, p. 57-58). Para tanto, segue Turchi,

Nada mais lógico [...] do que basear a classificação dos gêneros literários, não mais exclusivamente na racionalidade produtora da lógica e do conhecimento subjetivo e objetivo do mundo, mas nas estruturas simbólicas que priorizam o imagético, nunca gratuito, anterior à própria razão, que guarda todos os mistérios do mundo no estuário do inconsciente coletivo (2003, p. 46).

Nessa perspectiva, é preciso considerar que as formas da poesia moderna levam às

últimas conseqüências a estrutura lírica sujeito-objeto, que se apresenta, “por

excelência, concentrada – forma rigidamente contida, pura significação”, complementa

Turchi (2003, p. 61).

No entanto, para compreender a estrutura do gênero lírico a partir da Poética do

Imaginário, faz-se necessário, primeiro, entender as estruturas do imaginário a partir dos

regimes diurno e noturno das imagens. A composição bibartida desses dois regimes,

procedentes de três posições reflexológicas, dão origem a três estruturas que podem ser

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avaliadas como uma autêntica fisiologia do imaginário, pois estabelecem os princípios

gerais, constituindo as bases para a identificação de cada regime.

Como já foi dito acima, o regime diurno é constituído por signos de luta, de força

e de coragem, elementos fundamentais que dinamizam a imaginação simbólica desse

regime. Caracterizado “pela antítese, que opõe luz e sombra, e se compõe de conjuntos

de imagens opostas” (DURAND, 2002, p. 67), constitui-se como um regime

predominantemente masculino. O regime noturno, por sua vez, é o da antífrase,

essencialmente feminino, e nele ocorre a eufemização das imagens negativas do regime

diurno. Devido à ambivalência da energia libidinal, o regime diurno aparece como uma

figura masculina e paterna, violenta e ao mesmo tempo ascética, ao passo que no

noturno as “ imagens da morte, da carne e da noite” (DURAND, 2006, p. 197) são

valorizadas positivamente, e a libido se torna feminina e materna.

Conforme resume Turchi, Durand concebe as três dominantes reflexas “como

matrizes nas quais as representações simbólicas vão naturalmente se integrar” , e atribui

aos “grandes gestos reflexológicos o ponto de partida de seu método – concomitância

entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas” (2003, p.

26). Assim, os dois regimes são classificados a partir das três dominantes de

representações simbólicas que são agrupadas da seguinte forma:

O diurno, estruturado pela dominante postural, concerne à tecnologia das armas, à sociologia do soberano mago e guerreiro, aos rituais da elevação e da purificação. O noturno subdivide-se em dominante digestiva e cíclica: a primeira assume as técnicas do recipiente e do habitat, os valores alimentícios e digestivos e a sociologia matriarcal; a segunda agrupa as técnicas do ciclo, do calendário agrícola, os símbolos do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos (TURCHI, 2003, p. 27).

A estrutura mística do simbolismo da inversão do regime noturno é definida por

Durand como o gosto pela união e pela secreta intimidade, cuja representação é a figura

da taça, que simboliza a descida íntima. No entanto, a imaginação noturna não leva

somente à quietude da descida e da intimidade simbolizada pela taça, pois esse regime

leva também à dramatização cíclica, em que se organiza o mito do eterno retorno,

representado pelo denário e pelo pau. O dinamismo do ciclo, do retorno e das divisões

circulares do tempo é promovido pelo denário, enquanto o pau representa a promessa da

conquista, da vitória sobre o tempo. Portanto, se de um lado aparecem os arquétipos e

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símbolos do retorno através dos esquemas rítmicos do ciclo, de outro os arquétipos e

símbolos messiânicos e históricos promovem a confiança no resultado final. Assim, por

meio desses arquétipos em que predomina a estrutura progressista, o tempo já não é

vencido pela segurança do retorno e da repetição, mas por uma conquista que domina o

devir. Essas estruturas místicas que visam à unificação, à realização da coerência dos

contrários, neutralizam o medo diante das imagens nefastas e terrificantes. É então que,

por essa alquimia da união coerente dos contrários, dá-se a eufemização da imagem na

simbolização do regime noturno místico. Durand vê a alquimia não apenas como um

regresso ao útero, como descida íntima, mas também como um processo de aceleração

do tempo para melhor dominá-lo, pois, conforme ensina o filósofo, “há um estreito

parentesco progressista entre a exaltação épica, ambição messiânica e o sonho

dimiúrgico dos alquimistas” (2002, p. 354).

1.3 Poética do Imaginário: analogias e similitudes entre o lír ico e místico

Os estudos de Maira Zaira Turchi associam o gênero lírico aos princípios que

sustentam as estruturas místicas do regime noturno das imagens. No entender da autora,

Os movimentos de dobrar-se sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se, encadear-se são próprios desse regime do imaginário que procura penetrar na intimidade quente do mundo, eufemizando os contrastes. Assim, os gestos de atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do regime noturno místico, dizem respeito à experiência de multiciplidade de significados dos seres, entre os quais a analogia pressente e explora semelhança de relações (TURCHI, 2003, p. 59).

Partindo do princípio de que a lógica da analogia leva à compreensão do universo

e que “o processo analógico está na base do simbolismo, é preciso indagar” , adverte

Turchi (2003, p. 57-58), “de que modo a analogia e a similitude constituem-se nos

princípios estruturais do regime noturno místico e, no paralelo estabelecido, em

categorias modais do gênero lírico” . Para esclarecer a questão, a autora chama ao texto

as diferentes configurações da similitude postuladas por Michel Foucault: “a

convenientia, a aemulatio, a analogia e a sympathia” (TURCHI, 2003, p. 58). A ligação

por vizinhança, algum laço de parentesco, ainda que obscuro, a idéia de conveniência, o

sopro das influências, das paixões, que atrai as coisas semelhantes e assimila as

próximas, constituem a primeira forma de similitude, que de círculo em círculo vão se

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ligando como anéis uns aos outros. A segunda forma de similitude, a aemulatio, cria

uma espécie de anel de emulação, uma cadeia, em forma de círculos, mas que não estão

presos às leis do lugar, podendo agir à distância. A analogia, que se sobrepõe as duas

primeiras, é a terceira forma de similitude, e remete a ajustamentos, nexos, junturas,

assegurando o confronto das semelhanças no espaço. Essa forma cuida das relações

mais sutis das semelhanças, pois, localizada num espaço de irradiação, envolve o

homem por todos os lados, e o homem, por seu turno, é o ponto de apoio a partir do

qual as analogias se proliferam. A quarta forma de semelhança consiste no jogo das

simpatias que agem espontaneamente, caracterizando-se pelo poder de assimilar, de

igualar as coisas, de anular ou fazer perder a identidade inicial, transformando-as. Desse

modo, a analogia e a similitude constituem os princípios que balizam as estruturas

místicas do regime noturno. A eufemização dos contrastes se dá por meio dos

“movimentos de dobrar-se sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se, encadear-se”

procurando “penetrar na intimidade quente do mundo” (TURCHI, 2003, p. 59).

Entende-se, assim, que o elo de viscosidade possibilita, pelo processo da similitude, em

âmbito geral, e da analogia, em particular, estabelecer ligações com objetos ou figuras

separadas por meio de gestos como atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do

regime noturno místico. Essa estrutura aglutinante, diz Turchi, “conduz ao eufemismo, à

inversão dos valores, fazendo o negativo reconstituir-se em positivo” (2003, p. 59).

Como conclusão ao estudo desse regime, a autora acentua que o princípio básico das

estruturas místicas e do gênero lírico é a analogia. Daí o seu poder de atribuir ao mundo

um ritmo universal por meio do redobramento das imagens, dos encaixamentos, dos

acordes de repetição, sinais da redundância essencial na estrutura mística. É a atitude

repetidora da consciência, promotora da recorrência e da redundância que leva ao ritmo

e à rima, diferenciando o lírico dos outros gêneros.

A autora observa, então, que a diferença do lírico dos demais gêneros literários

consiste no movimento de significação que amarra o lírico ao inconsciente reflexo do

corpo vivo, uma vez que é no processo interno

mais íntimo que o ego vai buscar o nascimento ou a gênese de uma significação, com a força da linguagem primeira, do verbo. O lírico é a emoção do pensamento que compreende e significa um novo sentido, em palavras ainda quentes do mistério da ação interior, despojadas de outras camadas materiais. No lírico, a consciência quer realizar o duplo movimento de revelar o mundo, revelando-se a si própria como reveladora do mundo (TURCHI, 2003, p. 60).

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Nessa perspectiva, os estudos da autora sobre os gêneros literários pelo viés da

Poética do Imaginário, vinculam suas proposições sobre o gênero lírico aos trabalhos da

alemã Käte Hamburger, que propõe uma leitura dos gêneros literários a partir do

sistema de enunciação da linguagem, conforme reflexão já pontuada no capítulo

anterior. Turchi dialoga com Hamburger para pensar a definição do eu-lírico “como um

sujeito, no sentido pessoal do conceito, e também como sujeito da enunciação, podendo

abarcar, deste modo, as manifestações mais modernas da poesia” (TURCHI, 2003, p.

60). No entender da autora, a ligação entre as duas teorias se estabelece porque a noção

de sujeito-de-enunciação lírico pode ser pensada “em paralelo com o realismo sensorial

das representações ou vivacidade das imagens – característica do regime noturno

místico” (TURCHI, 2003, p. 61).

A obra de Adriane Rocha mobiliza signos de força, de coragem e de luta,

pertencentes ao regime diurno das imagens. Ao mesmo tempo, a recorrência das

imagens que buscam uma incessante trajetória de retorno, introduzem os símbolos que

pertencem ao regime noturno. Dessa forma, observa-se, por um lado, o sujeito-de-

enunciação lírico conduzindo a imaginação criadora em clima de tensão e

complementaridade entre os dois regimes. Entre ascensão e queda, altura e

profundidade, exposição e interioridade, entre o gláudio e a taça o movimento do sujeito

poético em tecer uma lírica que expressa os sentidos e configurações simbólicas

elaboradas no ambiente cultural e histórico do MST, vai restituindo homens e mulheres

sem-terra ao espaço que justifica sua luta. Por outro lado, esta lírica expressa um desejo

inconsciente que move a humanidade em busca do paraíso terreal e permite entrever,

nas imagens elaboradas, o mito do Paraíso Perdido e do Eterno Retorno. A recorrência

dessas imagens remete a poesia de Adriane Rocha para a estrutura mística do regime

noturno das imagens. Assim, transitando entre os dois regimes, ou inscrevendo-se mais

diretamente às estruturas místicas próprias do gênero lírico, as imagens conferem ao

fazer literário da poeta sem-terra a concretude do sonho humano em encontrar as bem-

aventuranças terrestres, conferindo à luta dos sem-terra proporções universais, uma vez

que a humanidade inteira, indistintamente, carrega em si o anseio de retornar ao Paraíso

Perdido.

2. Do inferno ao paraíso: a imaginação simbólica assenta esperanças

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Na mão que nunca se cansa/ a Esperança, a Esperança...

(Pedro Casaldáliga)

Os poemas de Pátria Sem-Terra que trazem o simbolismo dos dois regimes são:

“Sem-terra” , “500 Anos amor maligno” , “500 Anos amor maligno II” , “Antes que

racionais, animais” , “Futuro ameaçado”, “Terra e vida, terra é vida” , “Um novo Brasil é

possível” , e “Esperança” .

No poema “Sem-terra” (p.18-19), o sujeito-de-enunciação lírico apresenta versos

que perguntam qual é a identidade dos sem-terra para então enunciar, no decorrer do

poema, a identidade coletiva desse povo. Os versos que iniciam os blocos de enunciados

Quem são eles?/, Quem são?/, Quem são esses homens e essas mulheres?/, questionam

de maneira direta e sugerem um movimento que se faz do geral para o particular. No

primeiro verso, o eu lírico pergunta de forma genérica: Quem são eles?, sem gênero

específico, eles, um sujeito coletivo, um grupo social. Depois, torna a perguntar de

maneira ainda mais genérica: Quem são?, voltando a indagação mais em direção ao

sentido sobre a condição de ser sem-terra e menos sobre quem é o sem-terra. A

enunciação interrogativa é retomada alargando e especificando a constituição do grupo

em gêneros: Quem são esses homens e essas mulheres?. A partir desse fio condutor e

identificador do sem-terra e da sua trajetória, o sujeito-de-enunciação lírico expressa

símbolos presentes nos regimes diurno e noturno das imagens ao instituir na enunciação

lírica o simbolismo da ascensão e da descida, do gláudio masculino e da taça feminina,

representantes dos dois regimes. O pólo-objeto das enunciações interrogativas

estabelece associações de sentido com o título, “Sem-terra” , apresentado como nome

próprio, genérico, razão pela qual, no decorrer do poema, permanece como ponto de

referência, como o núcleo que produz a associação de sentidos. Os versos enunciantes

que seguem a primeira proposição, Quem são eles?:

Que marcham destemidos. Sob o tapete da história

Deixando rastros na memória E nos passos a ousadia

De lutar pela vida Por mais fino que seja o fio da esperança,

Bordam a cortina do tempo Com os olhos buscam num sorriso de criança

A certeza de não andarem contra o vento

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trazem referência aos símbolos da força, da coragem, da luta e da esperança e aparecem

logo no início das enunciações. A atitude de marchar destemidamente equivale a

marchar com coragem e ousadia na luta pela vida, contra a cortina do tempo. Assim, as

características do simbolismo presente no regime diurno das imagens vão compondo,

aos poucos, a indentidade coletiva do povo que marcha Sob o tapete da história. Esse

tapete manifesta a relação identitária estabelecida entre a consciência histórica ou,

memória histórica construída pelo Movimento com o desejo de reencontrar as raízes que

ligam o homem à terra, ao Paraíso Perdido, pois os rastros deixados na memória

impulsionam os passos da ousadia e tecem o fio da esperança. No entanto, os versos

Por mais fino que seja o fio da esperança,

Bordam a cortina do tempo

trazem elementos femininos do regime noturno da imagem, instaurando no poema o

primeiro entrelaçamento simbólico entre os dois regimes. Se o fio da esperança é fino e

delicado, as mãos que bordam a cortina do tempo deverão ser também delicadas,

femininas. O trajeto é tecido com cuidado, pois as armas ascencionais do regime diurno,

o cetro e o gláudio, embora necessárias para conduzir a marcha heróica, não são

suficientes para subverter o tempo em favor da esperança. O mitema do fio une os

destinos individuais e coletivos, entrelaçando a trajetória do sem-terra ao destino de

todo mortal, que é projetado no mito das Moiras gregas, soberanas do destino de todos

os homens. As Parcas, como eram chamadas pelos romanos, se dividiam na tarefa de

fiar, enrolar e cortar o fio da vida. Durand ensina que “o fuso ou a roca, com os quais

estas fiandeiras fiam o destino” sintetizam “os instrumentos e os produtos da tecedura e

da fiação” , que “são universalmente simbólicos de devir” (2002, p. 321). Assim, na

tarefa de bordar a cortina a tempo, estão reunidas as imagens que formam o elo de

viscosidade, pelo processo da similitude e da analogia, estabelecendo a ligação entre a

condição negativa do presente a um tempo futuro onde se desvela a promessa de vida.

Desse modo, “o futuro é presentificado, é dominado pela imaginação”, pois como

lembra Durand, “nesse dia tudo era possível... o futuro foi presente... quer dizer, houve

mais tempo, um relâmpago de eternidade” (2002, p. 353).

Os gestos de atar, ligar, prender, aproximar, constitutivos do regime noturno

místico, conduzem “ao eufemismo, à inversão dos valores, fazendo o negativo

reconstituir-se em positivo” (TURCHI, 2003, p. 59). O tempo que se colocava como

ameaça aos propósitos luta, é convertido em aliado, pois permite tecer, durante a

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caminhada, o manto da esperança. O imaginário desliza, então, o simbolismo da

estrutura heróica do regime diurno para a performance eufemizante do regime noturno,

atribuindo ao bordado a função benéfica de unir e prender o fio do tempo ao fio da

esperança. Assim, “o fio, que é o primeiro elemento de ligação artificial” e “ já é símbolo

do destino humano” (DURAND, 2002, p. 107), tece a metáfora que se ergue contra o

destino como

A certeza de não andarem contra o vento.

O caminho é aberto em direção contrária aos ventos da História. No entanto, ao

andar contra a ordem imposta, a caminhada segue as pegadas da certeza que emana da

força e da organização que os ideais da luta do Movimento projetam ao traçar o futuro.

E esse vento imaginado não será contrário, soprará favorável ao objetivo comum, ao

desejo sagrado de retornar à Terra. Não se anda contra o vento, enuncia o sujeito-lírico,

quando se luta pela vida, pela unidade cósmica e essa conformidade alinha as aspirações

do sem-terra e da própria Terra em resgatar-se mutuamente. O movimento desses

homens e mulheres rompe a barreira dos ventos estabelecidos e alinha-se ao ritmo de

luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Assim, embora o sujeito-de-

enunciação lírico movimente no poema imagens que, numa atitude heróica, aumentam

hiperbolicamente o aspecto tenebroso e maléfico da face do tempo, traz também

imagens eufemizadas da trajetória indicando a presença do simbolismo materno e

acolhedor da intimidade, simbolizado pela taça. Esse simbolismo representa a cautela, a

delicadeza e o aconchego presentes no regime feminino, pois a trama do bordado requer

essas qualidades para engendrar num sorriso de criança a fiação de um tempo futuro

onde sopram os ventos favoráveis da certeza. Por isso, essa certeza está mais a frente, na

geração para quem os ventos contrários ao cotidiano de luta soprarão em harmonia,

unificando Terra e Humanidade.

No entanto, se a manifestação do cuidado em manter a marcha na direção segura,

esquivando-se dos ventos contrários, remete ao simbolismo materno, ao colo delicado e

acolhedor da intimidade, por outro lado, a imaginação poética reforça “o apelo dos

contrários que dinamizam os grandes arquétipos” (DURAND, 2002, p. 169). Assim, o

sujeito-de-enunciação lírico observa e identifica o povo sem-terra e a trajetória

imaginada, pois ser sem-terra, na expressão do sujeito-de-enunciação lírico ao responder

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a segunda enunciação interrogativa, é tecer delicadamente o fio do destino, mas é

também entoar, falar, denunciar e clamar:

Os que entoam uma canção E nos acordes mais simples

Falam da repressão Denunciam a exploração. E clamam por dignidade.

Por meio desse canto, que é denúncia e clamor, a imaginação reencontra o

isomorfismo ar-palavra-visão, tal como foi estudado por Jung e Bachelard: “palavras

dinâmicas, fórmulas mágicas que pelo domínio da respiração e do verbo domam o

universo” (DURAND, 2002, p. 155). Os versos que complementam o terceiro

enunciado interrogativo que distingue o povo sem-terra em gênero, Quem são esses

homens e mulheres?, expressam o sentido de complementaridade que o sujeito-de-

enuciação lírico vai estabelecer entre ambos, pois esses homens e essas mulheres

constituem-se, juntos, um povo unificado em torno da mesma causa,

Que se permitem sonhar de novo

Resgatando valores assim como o orgulho De ser povo caminhante...

A distinção, seguida da unificação, realiza no poema a harmonização dos

contrários a que se refere Paz (2006, p. 41) quando lamenta o modelo polarizador do

pensamento ocidental. Homens e mulheres resgatam a dignidade da condição humana

em sua porção masculina e feminina. Essa consciência da dualidade do ser humano

expressada no enunciado interrogador manifesta, nas enunciações do poema, um outro

fazer, o fazer cultural do próprio MST, que faz deslizar o sentido das imagens para a

comunhão entre o animus e a anima. Bachelard lembra que essa síntese essencial é

“ facilmente destruída no contato com a vida cotidiana” (2006, p. 58). No entanto, a

consciência da totalidade de cada ser, composta pelas dimensões feminina e masculina,

é simbolizada no meio social do Movimento pela forma como são compostas as

lideranças, exercidas sempre por um homem e uma mulher, em todos os espaços, quer

seja no acampamento, no pré-assentamento ou no assentamento definitivo ou, ainda, nas

coordenadorias e direções de âmbito estadual e nacional. Essa fusão expressa a busca da

unidade também na organização do mundo material. Assim, conforme observa Paz

(2006, p.50), “o dizer do poeta se encarna na comunhão poética. A imagem transmuta o

homem e converte-o por sua vez em imagem, isto é, em espaço onde os contrários se

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fundem”, pois essa transmutação harmoniza o ser consigo mesmo quando se faz

imagem, quando se faz outro. Desse modo, o poema não apenas anuncia a existência

dinâmica e necessária de seus contrários como também a sua final identidade. Daí a

unidade restauradora que passa a interrogar em enunciados seguidos por imagens que

evidenciam o fazer coletivo e movimentam homens e mulheres em busca do mesmo

alento para uma mesma luta:

Quem são esses doutores analfabetos

Que nos seus consultórios descobertos Produzem remédio para a mais

Terrível dor que consome E nessa batalha diária contra a fome

Tem na reforma agrária seu grito de socorro

As imagens promovidas pelos adjetivos antitéticos doutores analfabetos, e de um

espaço, consultórios descobertos, tido culturalmente como um ambiente bem

estruturado e equipado, indicam a condição reguladora da existência desse grupo social,

composto por homens e mulheres, doutores que produzem sua história a céu aberto,

buscando na reforma agrária a unidade cósmica e a cura para as misérias produzidas

pela História humana. O seu grito de socorro rompe os ventos impostos pelo progresso

e anuncia uma outra unificação:

Que gente é essa que quer Unir campo e cidade

Numa grande irmandade Para juntos buscar a tão sonhada liberdade

E o direito a cidadania

Campo e cidade, dois espaços distintos que essa “gente” quer unir e irmanar. O

sujeito-de-enunciação lírico revela que há um outro, uma outra gente, em outro espaço,

e o direito à cidadania é sonho de ambos, das gentes do campo e da cidade. Por isso,

pelo propósito da comunhão com o outro, a resistência aos constantes desenraizamentos

trazidos pelo progresso se justifica como qualidade:

E na arte de resistir alguém já dizia Indignar-se com injustiças É uma provocação? – Não! Para eles é uma qualidade Tão bonita quanto A solidariedade e a humildade De ver no outro o irmão.

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Na ânsia de dizer-se como essa gente, como esse outro, o sujeito-de-enunciação

lírico chama para si o canto de indignação e denúncia. Conforme Turchi, “as

aproximações da conveniência, os ecos da emulação, os nexos da analogia são

sustentados, mantidos em duplicação pela reação de simpatia e de antipatia que pode

aproximar ou distanciar as coisas do mundo” (2003, p. 58). Assim, configurando as

imagens pelo processo da analogia e da similitude, o sujeito lírico coloca-se como ponto

irradiador das enunciações. Não é provocação “deles” indignar-se com injustiças, Para

eles é uma qualidade como A solidariedade e a humildade, pois “eles” vêem no outro o

irmão. Eles e estes, os doutores analfabetos, os do campo ou da cidade, dizem-se nesse

sujeito-de-enunciação lírico, nessa relação lírica sujeito-objeto.

Quem são estes que possuem mãos calejadas Que empunham com fervor a bandeira E identificando-se como os SEM-TERRA Assim seguem na grande fileira... Por um lugar sem guerra Enfrentam cada anoitecer Com rebeldia para mudar a trajetória Cantando a vitória Em cada amanhecer.

Os homens e mulheres com mãos calejadas que gritam por socorro, que propõem a

união entre campo e cidade, empunham com fervor, indignação e rebeldia uma bandeira

que é sua e é também de um outro. A bandeira, empunhada numa atitude heróica,

converte-se em talismã benéfico que identifica o grupo proclamando a coexistência

dinâmica e necessária dos contrários como sua final identidade.

No poema analisado, os seis versos estruturados em enunciados interrogativos

reiteram a angústia e a ansiedade com que o sujeito-de-enunciação lírico questiona uma

existência de limitações e privações. Ao reconhecer essa condição, o sujeito lírico

justifica a “rebeldia” do grupo social que se coloca em marcha à procura de um lugar

sem guerra, longe da miséria humana, numa atitude heróica, caracterizada pelo

simbolismo do regime diurno das imagens. Nos dois últimos versos, Cantando a

vitória/ Em cada amanhecer , a imagem do triunfo, recorrente em todos os poemas,

desliza o sentido dos enunciados para a regime noturno místico, para o aconchego da

taça, manifestando o desejo de Eterno Retorno para a Grande Mãe.

Os poemas “500 anos amor maligno” (p. 20) e “500 amor maligno II” (p. 21)

trazem o simbolismo da Grande Mãe, a terra acolhedora e feminina presente nas

estruturas noturnas místicas. Os títulos remetem ao período do descobrimento do Brasil,

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estabelecendo os elos de analogia e similitude entre os enunciados dos poemas. O

sujeito-de-enunciação lírico organiza imagens carregadas de potencialidade simbólica

que remetem ao mito da Grande Mãe, o espaço primordial, pois a terra é Moça menina/

Terna morena de Face serena/ Inocente feminina /.../ Ardente, nativa, única. Essa

“redundância que se manifesta nas repetições insistentes, elucida o modo como o mito

se configura no lírico” , ensina Turchi (2003, p. 82). A Grande Mãe, também conhecida

como Gaia, personifica a Terra, a Mãe Primordial dos deuses e dos homens, doadora da

vida que estruturou o Caos. Gaia tinha tantos nomes quantas fossem as suas

representações na natureza, dentre os quais, Telus, Cibele, Deméter, e Ops são os mais

conhecidos nas mitologias. Por isso, também na mitologia a frase “mãe é uma só” pode

ser usada no sentido de que todas as Deusas são uma única, todas são manifestações da

Grande Mãe, a energia criadora que dá a vida, nutre e mantém os filhos. Durand lembra

que essa crença na divina maternidade da terra é certamente uma das mais antigas” e,

“uma vez consolidada pelos mitos agrários, é uma das mais estáveis” (2002, p. 230).

Assim, o sujeito lírico expressa a conaturalidade entre terra e vida, entre a terra e a

mulher, especialmente a mãe, por sua inesgotável capacidade de frutificar e se doar. No

entanto, embora os mitemas formadores das imagens iniciais do poema remetam ao

mito da Grande Mãe, os versos seguintes são introduzidos pela conjunção adversativa,

enunciando uma perspectiva simbolizadora de oposição:

Mas, roubaram-na a verde túnica, brutalmente a Penetraram, ainda virgem,

Sentindo vertigem, murmurou de dor

A Terra é transformada em objeto a ser explorado pelo homem, é tomada como

mercadoria que pode ser comprada e vendida, explorada até a exaustão, pois

Das entranhas arrancaram-lhe riquezas, Deixando tristeza, no ventre maior

No pior momento, dominaram-na sangrando sua veia

e a Grande Mãe, matriz da vida, sangra nas mãos dos humanos que em nome do

progresso, secam o seu ventre de mãe, pois

Sofrimento igual outra não teve

E aqueles que procuravam pelo Paraíso Perdido tomaram-na para si, fizeram dela

sua colônia e a batizaram, iniciando um longo período de exploração.

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Primeiro resolveram chamá-la de Monte Pascoal

Em seguida Terra de Santa Cruz, hoje mãe gentil, Pátria Amada Brasil!

A pátria é então simbolizada pela imagem da mãe gentil, remetendo para o

simbolismo do casal divino céu-terra, presente na mitologia universal. “A terra é o

ventre materno donde saíram os homens” diz Durand, e por isso “o sentimento

patriótico (dever-se-ia dizer matriótico) seria apenas a intuição deste isomorfismo

matriarcal e telúrico” (2002, p. 230). Assim, o sujeito-de-enunciação lírico simboliza a

pátria como um macroorganismo vivo, pois a pátria é a Terra e, como tal, ensina Boff,

não apenas a pátria está ameaçada, mas “a própria Terra como um todo está doente e

deve era tratada e curada” (2000, p. 165). Por isso, a pátria é o cosmo de onde fala o

sujeito-de-enunciação lírico, é a terra que “se apresenta com tal dosagem de elementos,

de temperatura, de composição química da atmosfera e do mar que somente um

organismo vivo pode fazer o que ela faz. A Terra não contém vida. Ela é vida, um

superorganismo vivente, Gaia” (BOFF, 2002, p. 185).

O movimento das estruturas simbólicas que conduzem as imagens de um regime a

outro anuncia o simbolismo de um tempo nefasto. Esse simbolismo é intensifico no

poema “Amor maligno II” (p. 21) onde a insistência nos enunciados interrogativos

reaparece, promovendo elos de viscosidade entre as imagens. Os versos interrogadores

Quem te ama com tanto fervor?/, Teus filhos sem solo? Como amamentá-los?/, Se

teimam a secar tuas veias cristalinas?/, Queimando-as com o laser da

intransigência....?, distribuídos da primeira a terceira estrofes, intensificam-se na

última, que é composta por três enunciações interrogadoras:

Que te resta se bóias no desamor? Curando, com rancor, chagas cancerígenas? Como suportar este amor maligno?

A angústia e a indignação confundem-se nas enunciações do sujeito lírico que não

diz, não enuncia, apenas indaga. Diante do estado em que a Mãe foi transformada, os

versos só fazem tentar entender o comportamento dos filhos que degradam e

corrompem a Grande Mãe. Aquela Terra acolhedora, que recebera e encantara os

descobridores do Novo Mundo, convalesce em chagas. Explorada como algo inerte,

como coisa extensa e rentável, perdeu a sua condição primeva de Mãe e agoniza à

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margem do progresso pois, sua condição materna de gerar vida está ameaçada. Mas o

sujeito lírico invoca:

- Terra adorada te olha – Volve os olhos para ti Quem te privas de pôr em teu colo

clamando pela reação da Grande Mãe, manancial de onde vem a vida, colo sagrado que

não se pode comprar nem vender, pois foi herdada dos ancestrais. Aqueles que a

profanam não agem como filhos, pois

Se em teu ventre “ laqueiam” As trompas que dá a vida

põem em risco a vida da Terra e, por conseguinte, de toda a humanidade. Por isso o

sujeito-de-enunciação lírico perfila as interrogações angustiadas diante da Mãe

agonizante, trazendo para o poema o esquema tenebroso das imagens da queda e da

morte. O mito do Paraíso Perdido é soterrado pelo mito da Queda, originário das

narrativas que falam de uma era dourada, que, entretanto, desapareceu por culpa

humana. A partir da instauração desse mito, a reentrada da humanidade no Paraíso ficou

condicionada a provas de sofrimento e de sacrifício. A Queda pode assumir também a

forma de desilusão política, religiosa ou pessoal. Os inocentes tornam-se órfãos quando

pensam que Deus está morto ou os abandonou, que o governo nem sempre é bom, que

as leis nem sempre são justas, e que os tribunais não os protegem. Os filhos órfãos,

aqueles que insistem em retornar para o seio da Grande Mãe na esperança de encontar

as bem-aventuranças, sentem-se impelidos a lutar por sua sobrevivência, que representa,

também, a sobrevivência da humanidade. Assim como “em todas as épocas, portanto,

em todas as culturas os homens imaginaram uma Grande Mãe, uma mulher materna

para a qual regressam os desejos da humanidade” (DURAND, 2002, p. 235), também os

herdeiros do progresso desejam retornar. Por isso sua luta se coloca contra os propósitos

do progresso, porque desejam proteger a Mãe dos perigos que ele representa à

sobrevivência dela e dos homens.

O poema “Antes que racionais, animais” (p. 26-27) manifesta um ritmo e um tom

que confronta a criação divina e a criação humana. O sujeito lírico introduz, a partir do

verbo existir, cinco enunciados, dos quais apenas dois são suficientes para criar, para

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fazer existir um universo completo: há um planeta chamado Terra e nele há o homem,

único animal racional da criação:

Existe, entre tantos, um chamado Terra, Dizem que é um planeta redondo,

Existe, entre tantos, um chamado homem, Dizem que é o único animal racional.

O que não dá pra se ter certeza, Sem respeito, agridem-se...

Alguém diz, a ciência diz: dentre toda a criação, a racionalidade é característica

exclusiva do homem. No entanto, há uma dúvida nessa proposição, pois, como racionais

que são, não poderiam alterar a criação perfeita remetendo o Cosmo ao estado de Caos,

anterior à criação. A previsão desse desfecho trágico para o destino da Terra coloca em

dúvida a racionalidade humana que é enuncida pelo sujeito lírico logo no quinto verso.

A dúvida inicial vai se converter em certeza, dimensinando, no decorrer de enunciados

líricos, os defeitos e limitações da criação humana: Sem respeito, agridem-se..., e as

reticências indicam ainda um vasto simbolismo de imagens negativas colocadas em

relevo pela irresponsabilidade humana. Leonardo Boff lembra que o “ judeo-cristianismo

[...] afirma que o ser humano foi criado para ser o zelador da Terra como jardim do

Éden” (2002, p. 101), no entanto, pelo contrário, o desfecho do dominium terrae revela

a prática humana que domina e explora a Terra, justicada pela ordem divina. As

conseqüências perversas do mandato do Gênesis (1, 28), “Frutificai, disse ele, e

multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” , resultaram num paraíso diferente daquele

para o qual a humanidade deseja retornar. Existe a ganância e eis que existe a criação

humana, o Caos, apartando e distanciando os animais racionais.

Existe, entre tantos, uma chamada ganância, Que toma conta do coração deles;

Então ficam cegos, e querem só pra si... Existe, entre tantos, um “paraíso” de máquinas,

Uma confusão de botões. Dizem que é uma revolução tecnológica.

Nessa revolução de autoria humana, o homem constrói para si um “ paraíso” de

máquinas, e Existe, entre tantas, uma chamada computador. E o homem, cego perante

sua criação, converte-se, também, em máquina. Assim, o sujeito-de-enunciação lírico

vai delineando um universo virtual, Que afasta os “ racionais” uns dos outros,

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Namorados já não passeiam de mãos dadas, Por entre jardins (“navegam” sem ao menos se verem);

Pois, já não existem jardins. Transformam tudo em uma grande selva de concreto Fica difícil entender certos paradoxos destes animais

“racionais” .

Os animais racionais criam seu mundo paradoxal em que suas criações não

suplantam os abismos entre uns e outros, pois

Para uns, sobra comida em suas mesas,

Outros milhões morrem de fome Uns tem grandes casas,

Outros milhões moram embaixo de pontes Para uns constroem-se escolas supérfluas

Para outros será reservada a cegueira do analfabetismo

Uns e outros não têm o mesmo direito de acesso aos benefícios da criação

humana. E a própria máquina expõe o abismo social que impera.

No auge da modernidade é privilégio

Para uns expor, vulgarmente, seus corpos num “Big Brother”

Outros são obrigados a prostituírem-se Para sobreviverem no que chamam sociedade.

Uns e outros têm destinos diferentes, assim como a criação humana, pois enquanto

Uns já comemoram a ciência de clonar,

A efêmera vitória da morte,

outros milhões morrem/ Numa guerra sem nome. Em uns, o sucesso, a prepotência e o

poder imperam nesse reino maquinizado,

Em uns obstina-se a busca do sucesso Exercendo-o com prepotência para manterem-se no poder.

Em outros, a esperança de que o Caos da modernidade possa outra vez se

converter em Cosmo, restabelecendo a criação divina.

Em outros a esperança acalenta o sonho Da Liberdade de viverem como irmãos,

Animais da mesma espécie.

Do Cosmo ao Caos e do Caos ao Cosmo. O movimento engendrado pelo sujeito

lírico para passar a limpo o existir das duas criaturas, Terra e Humanidade, traz a

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imagem da Terra em sua passividade de Mãe, e a imagem dos animais racionais que

existem, mas também fazem existir um outro mundo. Esse mundo, onde as diferenças

sociais imperam, torna-se ainda mais hostil aos que acalentam o sonho de viverem

como irmãos, pois é a máquina quem dita as regras nesse espaço competitivo e

excluidor. O mito da Grande Mãe revela-se nos mitemas estruturados em feixes de

imagens que manifestam a oposição entre os esquemas do simbolismo noturno místico e

do diurno. Nos dois primeiros enunciados líricos a Terra, acolhedora e materna, traz a

imagem do círculo, do centro, do ventre materno e acolhedor, pois Dizem que é um

planeta redondo. Os demais enunciados revelam a ascendência do homem como

dominador da criação. Nesse mundo dominado pelo homem, alguns desfrutam os

privilégios trazidos pelo progresso enquanto outros são excluídos e condenados a todo

tipo de privações e misérias. O poema, criação que é, perfaz pela palavra, pelo Verbo, a

existência dos dois seres, do ser Terra e do ser Homem, ameaçados pelas ações

humanas. Ao final do poema, nos três últimos enunciados, o sentimento de temor

presente no regime diurno que se desvelou no decorrer das constelações de imagens

relativas à queda humana, dá lugar às armas representantes da luta heróica desse regime,

pois a esperança é a arma com que o sujeito-de-enunciação lírico se opõe à queda

definitiva da Terra e da espécie humana. É dessa maneira que a antítese do regime

diurno se faz sempre presente nas enunciações líricas de Adriane Rocha.

A vida no e do planeta está com o “Futuro ameaçado” (p. 31-32), anuncia o título

de outro poema. A água, elemento essencial para a sobrevivência da vida na Terra, vem

juntar-se aos movimentos da palavra criadora e a faz deslizar pelo leito do rio:

Teu nome é sinônimo de vida Por todo o universo, conhecida A lua e as estrelas contemplam sua beleza... Tua cor, sem cor! Teu gosto sem sabor! Teu cheiro, sem odor! ....doce... ...salgada... ...clara... ...cara?... ...escura? ...poluída?... ...agredida?... ...privada?... ...contaminada?... ...escassa?... ...desperdiçada?... ...ameaçada?... ...preciosa? ...Água...

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A água, espelho que refletia a lua e as estrelas reflete agora a ação humana. Ela

que fora criada pura e límpida, doce, salgada e clara, agora tem seu leito poluído e, por

isso, segue o seu curso agredida e contaminada. A “água negra é sempre, no fim das

contas, o sangue, o mistério do sangue que corre nas veias ou se escapa com a vida pela

ferida” . E esse “sangue é temível porque é o senhor da vida e da morte, [...] é o primeiro

relógio humano, é o primeiro sinal humano correlativo do drama lunar” (DURAND,

2002, p. 111). Assim, o simbolismo da água que corre, negra e refletiva, redobrando a

imagem como a sombra redobra o corpo, traz o esquema que valoriza negativamente o

negro e o escuro, opondo-se à imaginação da luz e do dia. A essa primeira parte do

regime diurno que é consagrado às trevas e projeta a angústia diante da mudança,

retratando o medo e a fuga do tempo, vem juntar-se o simbolismo formador da terceira

epifania imaginária da angústia humana, também relacionada às trevas. Forma-se,

assim, o esquema da queda do regime diurno que resume os terríveis aspectos do tempo

nefasto, moralizado pela punição. A ação do homem promoveu um desvio profundo no

curso límpido das águas e, por conseqüência, no curso da história humana. Então o eu

lírico conclui:

Estamos colhendo o que plantamos, Ou melhor, o que desmatamos...

E prevê um outro existir, criando uma expectativa árida e hostil, um mundo com

sede de vida, pois as imagens trazem uma sucessão de dúvidas e ausências como nos

versos que antecipam a Queda da criação como reflexo das ações humanas:

Talvez um dia não existam mares; Nem rios nos limites das fronteiras. Talvez um dia não existam verdes, Nem chuvas, para sorrir as flores. Talvez um dia não existam peixes, Nem lagos para os sapos fazerem suas serenatas Talvez um dia não exista verão; Nem arco-íris riscando o céu Talvez um dia não existam sementes no chão Nem mesas fartas de pão Talvez um dia não exista água. Nem vidas...

Talvez um dia, nem rios, nem chuvas, nem lagos, nem arco-íris e se as sementes

da vida não puderem germinar, então toda a vida sobre a Terra estará condenada. Diante

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das imagens nefastas é preciso criar um outro mundo, em que o talvez e o nem dêem

lugar a outras nascentes, pois a previsão da extinção da vida do e no planeta é iminente.

Nesse segmento, os mitemas presentes nas rimas dos versos 29, 31 e 32, verão, chão e

pão, intercaladas pelos versos 30, 33 e 34, que terminam com os mitemas sintetizadores

do cosmo, céu, água e vidas, elaboram uma seqüência simbólica convergente que

manifesta, por meio da menor unidade semântica do discurso mítico, a constelação de

imagens do mito do Paraíso Perdido.

Mas talvez um dia nascentes surgirão No coração da humanidade Vertendo consciência doce e transparente E como um manancial será o sentimento De preservação, de amor, de cuidado...

Durand lembra que “as águas encontrar-se-iam no princípio e no fim dos

acontecimentos cósmicos, enquanto a terra estaria na origem e no fim de qualquer

vida” , ou, em outras palavras, “as águas seriam, assim, as mães do mundo, enquanto a

terra seria a mãe dos seres vivos e dos homens” (2002, p. 230). Na ânsia de salvar a

Grande Mãe, o sujeito-de-enunciação lírico faz existir um novo homem, que resgatará

também a Água e, por meio desse gesto, restabelecerá o equilíbrio a toda a criação,

Cicatrizando as lesões causadas Devolvendo ao longo dos rios O verde desfazendo dos leitos

A represa humana depende de suas próprias ações para criar ondas de respeito à

vida, para permitir que os cursos dos sonhos naveguem em leitos transformados, pois “a

água transporta-nos, a água adormece-nos, a água devolve-nos a uma mãe” diz Durand

(2002, p. 234). Então o sujeito lírico determina: faça-se um novo universo, crie-se uma

nova postura diante da vida, e o Verbo criador faz existir correntezas de esperanças:

Que garimpos sejam extintos Que na grande represa humana Despertem ondas de respeito a vida... Que correntezas de esperanças Corram nos cursos dos sonhos Desaguando num futuro transformado

para que se possa cumprir a salvação de todas as criaturas. Terra, Água e Humanidade

são recriados no poema. Elementos naturais e criaturas racionais. Uma nova imagem

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instaura a esperança gerada na imaginação criadora. No entanto, os danos são

inumeráveis, Água e Terra padecem sob a ação de seus filhos e filhas. Mas permanece a

esperança, pois se “Terra e vida, Terra é vida” (p. 29-30) enuncia a unidade cósmica que

manifesta a interdependência de todas as criaturas, então o sujeito lírico opõe-se com

heroísmo contra o devir. A Terra, doadora da vida, agoniza no destino trágico a que seus

filhos a submeteram. A formosura, a beleza, o encanto e os mistérios de outrora

desvelam um presente em que a Grande Mãe é convocada pelo eu lírico a levantar-se e

lutar:

Eras tão formosa, tão bela, encantadora, Misteriosa... Quando solteira, sem fronteira, cheia de vida Audaciosa... Hoje, descabelada, despida, magra, acabada Chorosa... (Porque deixaste teus filhos/as fazerem isso contigo?) Ainda tens força... Levanta-te, lute.

Formosa, bela, encantadora, misteriosa, audaciosa. Assim era a Grande Mãe em

sua imagem de Paraíso. A partir da ação humana, sua face converte-se em aspectos

nefastos, pois hoje está descabelada, despida, magra, acabada/ Chorosa... Vítima das

ações humanas realizadas em nome da ganância, a Terra é convocada pelo sujeito lírico

a lutar. Essa luta encontra ecos na força dos guerreiros que lutam em defesa dela, contra

outros filhos, monstros que a banham com o sangue dos próprios irmãos. As armas

representantes da luta nessa face heróica do regime diurno são o cetro e o gláudio que,

em sua verticalidade de cetro e agressividade de gláudio, opõem-se à queda. Assim,

solidário ao sofrimento da Grande Mãe, o sujeito lírico empresta suas armas para salvar

a Mãe que se esvai lentamente:

Sei que sofres pelo descaso de teus filhos/as, guerreiro/as. Mas, também geraste filhos/as que transformaram-se Em monstros... Sim, teus filhos/as monstros, que te desgastam e Te matam lentamente... Que banham-te com o sangue Dos próprios irmãos/ãs E os dominam, oprimem, sufocam Tiram o direito de te amar, te respeitar...

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E como toda mãe resignada diante da inconseqüência dos filhos que a dominam,

oprimem e sufocam resta, no entanto, o amor materno que tudo perdoa. Então o sujeito-

de-enunciação lírico consola:

Tu és mãe e teu amor te dará forças para Agüentares até o dia... O dia que teus guerreiros/as, Vencerem a ganância de seus irmãos/ãs Corruptos e corruptores.

O consolo e a resistência vêm dos filhos e filhas guerreiros e guerreiras que

enfrentam a ganância e a corrupção daqueles que exaurem suas forças. Somente com a

remissão da espécie e, com ela, a vida da Terra e na Terra será possível num futuro,

Quando a solidariedade correr nas veias da Humanidade, como as águas cristalinas Que ainda correm no leito dos rios, mesmo Que estreitos. Quando trocar as armas de fogo pelas armas Da consciência, da união...quando todos/as Conseguirem, possuí-la Tocá-la, beijar-te-ão e, com as enxadas, Acariciarão tua face serena, que jamais Será maquiada com química venenosa. Quando não mais banharem-te de sangue E, sim, de lágrimas de alegria com A conquista da VITÓRIA DA VIDA.

O esquema da queda apresenta no poema imagens com o aspecto maléfico e

tenebroso de um tempo que se impõe como ameaça à vida no planeta redondo, no

espaço circular que é associado sempre ao jardim, ao fruto, ao ovo ou ao ventre, e

desloca o acento simbólico para a intimidade acolhedora da taça do regime noturno da

imagem. No entanto, a intimidade e segurança encontram-se ameaçadas pela queda, que

está ligada “à rapidez do movimento, à aceleração e às trevas” , pois “a queda resume e

condensa os aspectos temíveis do tempo, dá-nos conhecer o tempo que fulmina”

(DURAND, 2002, p. 113). O sangue que banha a Terra está repleto de sofrimento e de

terror, é o símbolo perfeito da água negra, do arquétipo das trevas, tão negativamente

valorizado pelo homem.

Por um lado, o esquema da queda apresenta imagens com o aspecto maléfico e

tenebroso de Cronos e, por outro, os esquemas ascensionais e diairéticos afirmam sua

vitória sobre o destino. Assim, aos gestos dos reflexos posturais e do esforço de

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verticalização correspondem os símbolos ascensionais que buscam a recuperação de

uma potência perdida. É então que a antítese, própria do regime diurno, desliza a

imagem final para o regime noturno das imagens, para a eufemização, para a VITÓRIA

DA VIDA, que será uma conquista coletiva. Será a redenção da Terra e da humanidade.

Desse modo, as imagens que causavam medo são intensificadas até a antífrase no

regime noturno e o medo é desaprendido, pois a noite eufemizada promove uma

valorização positiva do luto e do túmulo, assim como a água torna-se materna, arquétipo

da descida e do retorno.

O sentimento que redime a relação Mãe/filhos e filhas é tocado pela metáfora da

água cristalina que corre, não como química venenosa nos rios que mal sobrevivem em

seus leitos, mas como lágrimas de alegria ao final de uma árdua conquista. Os três

enunciados do poema que remetem para a condição temporal transformadora da morte

anunciada em vida restauradora, são introduzidos pela indeterminação do termo quando,

dividindo o poema em três blocos nos quais predomina essa condição temporal. O longo

período de agressões a que a Terra foi submetida, requer um tempo também longo para

que as imagens negativas se convertam em positivas. A transformação enunciada é

lenta, o tempo de recuperação é imprevisível, mas o sujeito-de-enunciação lírico

acredita na vitória e movimenta sua criação no compasso da luta pela vida.

O poema “Um novo Brasil é possível” (p.28) remete para o futuro a imagem de

uma pátria melhor, restaurada, uma Pátria querida onde as agruras da luta sejam, enfim,

compensadas. Por isso a insistência do movimento lírico se perfila à insistência do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil em prosseguir na luta, porque vela

pela sobrevivência da humanidade e da Terra e a vida da humanidade na Terra.

No estreito leito dos sonhos

A esperança nos conduz a caminhar Caminhar não é apenas trocar passos

Mas, é andar para o realizar É estabelecer objetivos.

É não desanimar

Assim, pautando a criação poética no mesmo sentimento de esperança que

impulsiona a caminhada, a conjunção aditiva que inicia o verso seguinte será a primeira

de cinco que conduzem a esperança do início até o final do poema, movimentado a

imaginação criadora rumo ao futuro sonhado. É preciso caminhar,

E saber a hora de esperar...

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A espera não é utópica, a caminhada tem rumo certo, tem objetivos bem traçados e

sabe a hora de esperar, pois

No caminho que escorre a marcha

Há pedras, há pranto, espinhos...

No entanto, aos percalços enfrentados somam-se novos caminhos

E é sendo perfurados que os pés Avançam, construindo novos caminhos

Nada detém a caminhada daqueles que marcham rumo à vitória, irmanados pelo

canto coletivo

E na poeira deixam rastros da história Protagonizada pelo povo caminhante

Que entoam em uma só voz contagiante O canto da liberdade e da vitória

A esse canto vem ligar-se o grito pelo direito à vida, pela construção de uma

identidade que vem avermelhar as imagens cinzentas, desaguando em toda parte a

esperança, que traz em seu bojo as imagens de uma nova pátria

E a grande represa de humanos Deságua em ruas, praças e avenidas

Avermelhando os cinzentos céus urbanos Gritando por direitos

Estabelecendo conceitos Oportunizando a vida...

Para os problemas da nação Já tem uma saída

Tingindo os cinzentos céus urbanos de vermelho, cor do símbolo totêmico do

grupo social Sem Terra, a consciência criadora levanta aos céus a imagem da unificação

da pátria por meio da reforma agrária. No vermelho da Bandeira do MST encontra-se o

símbolo considerado universalmente princípio fundamental da vida. Chevalier ensina

que o vermelho é a expressão do mistério da vida, pois “seduz, encoraja, provoca, é o

vermelho das bandeiras, das insígnias” (1995, p. 944). Todos os povos expressam, de

alguma maneira, “o poder de fascinação da cor vermelha, que leva em si, intimamente

ligados, os dois mais profundos impulsos humanos: ação e paixão, libertação e

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opressão; isso, as bandeiras vermelhas que tremulam ao vento do nosso tempo provam!”

(CHEVALIER, 1995, p. 946). Por isso, quando Bachelard fala sobre as qualidades

imaginadas, observa que “o vermelho aproxima-se mais de avermelhar que de

vermelhidão. O vermelho imaginado ficará escuro ou pálido, conforme o peso do

onirismo das impressões imaginárias” , pois “ela tantaliza o sonhador que quer fixá-la”

(2003, p. 68). Assim, alteradas as cores da pátria e estabelecidos os novos conceitos, o

último enunciado cumpre sua missão de agregar ao poema a imagem final da criação

que o sujeito lírico enuncia desde os primeiros versos: a esperança em unificar Terra,

Pátria e liberdade

E é com a reforma agrária no chão Que começa a libertação da pátria querida.

“A pátria é quase sempre representada sob traços feminizados” , ensina Durand

(2002, p. 231), os mesmos traços que simbolizam a Grande Mãe, o seio materno, o

Paraíso acolhedor. Desse modo, a hesitação moral herdada do regime diurno será

convertida, no regime noturno do simbolismo, em metáforas que misturam terra e água

numa ambiência de alegrias e felicidades que constitui a reabilitação da feminilidade

acolhedora da pátria. As imagens que fundem água, sonho e sentimento; No estreito

leito dos sonhos/ /.../ E a grande represa de humanos/ Deságua em ruas e avenidas.,

são verificadas também no poema “Futuro ameaçado” (p. 31-32); Talvez um dia

nascentes surgirão/ No coração da humanidade/ Vertendo consciência doce e

transparente/ E como um manancial, será o sentimento /.../ Que na grande represa

humana/ Despertem ondas de respeito à vida/ Que correntezas de esperança/ Corram

nos cursos dos sonhos/ Desaguando num futuro transformado. Essa cadeia metafórica

pela qual o sujeito-de-enunciação lírico transpõe as camadas semânticas imbricando

água e vida traz para os dois poemas o isomorfismo completo dos símbolos “da Mãe

suprema, em que se confundem virtudes aquáticas e qualidades terrenas” (DURAND,

2002, p. 230). A consciência criadora manifesta, assim, o movimento e o ritmo

repetitivo “do universo simbólico à mediada que os símbolos esclarecem uma

redundância de gestos, de relações lingüísticas ou de imagens materializadas na arte”

(DURAND, 1988, p. 17).

A esperança na reabilitação da pátria em figura feminina e materna é recorrente

nos poemas de Adriane Rocha. Ela, a esperança, impõe-se como símbolo de

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transcendência para um espaço e um tempo metafísico. Esse simbolismo sintetiza todas

as imagens de inversão em que a queda, eufemizada, converte-se em descida, refreando

a iminência de um devir tenebroso. A repetição da conjunção aditiva “e” forma entre as

imagens o elo de viscosidade com que o sujeito-de-enunciação lírico aproxima,

encadeia, prende, ata e liga os enunciados até alcançar a reversão unificadora do regime

noturno místico. O fio usado para elaborar as imagens desse simbolismo é o fio da

esperança, que manifesta, na criação de Adriane Rocha, o movimento circular e rítmico

pelo qual o sujeito lírico converte o simbolismo negativo do regime diurno em

constelações de imagens positivas do regime noturno. É por isso que esse fio da

esperança, que “é tecido e destino, é o fuso que, pelo movimento circular que sugere,

vai tornar-se talismã contra o destino” (DURAND, 2002, p. 322)

O fio da esperança movimenta os esquemas que conduzem aos mitos do Eterno

Retorno e da Grande Mãe. Esse fio vai bordando, no decorrer das enunciações líricas, a

cortina do tempo, manifestando-se rumo a um espaço metafísico, para além do tempo,

agindo como “ ligação tranqüilizante, é símbolo de continuidade, sobredeterminado no

inconsciente coletivo pela técnica circular ou rítmica da sua produção” (DURAND,

2002, p. 322). Desse modo, o sujeito-de-enunciação lírico engendra o bordado que liga

e amarra os ideais do MST ao desejo inconsciente de toda humanidade de retornar ao

Paraíso Perdido, ao seio da Grande Mãe. Por isso, a esperança é o fio condutor com o

qual o sujeito poético simboliza as imagens da resistência da vida diante da morte, do

sonho coletivo de uns e outros, de homens e de mulheres do campo e da cidade, dos

filhos agressores e dos filhos órfãos de reencontrar as bem-aventuranças.

As sete estrofes do poema “Esperança” (p. 34) trazem, também, a característica

indagadora do sujeito lírico desta Pátria Sem-Terra. Questionar, procurar respostas,

esse é o processo pelo qual o sujeito-de-enunciação lírico harmoniza os contrários no

regime noturno das imagens, revertendo o tempo e a morte em esperança vitoriosa. A

vitória consiste no simbolismo do retorno que a recorrência e persistência dessa

esperança engendram como resposta a todas as indagações. Assim, embora o sujeito

lírico continue indagando, a esperança se faz fio da vida, que se faz caminho, que se faz

regaço materno e ventre acolhedor.

Que seria da noite Sem o brilho das estrelas Sem a lua com suas fases? Que seria do dia

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Sem a beleza da aurora Sem o canto dos pássaros?... Que seria dos tempos Sem suas estações Sem frio, sem calor, Sem a chuva, sem o vento? Que seria da terra Sem as sementes Sem as mãos de quem As semeiam? Que será da esperança Sem luta, sem resistência Sem povo, sem mudança?... Que será da liberdade dos povos Se não houver seres (do sul ou do norte) Sensíveis, capazes de perceber As mais simples formas de vida e ver As mais injustas formas de morte?... Que será de nós Sem audácia de reclamar Sem o desejo de vencer Sem a capacidade de sonhar Sem o direito de viver?

A imagem gráfica do caminho se funde à imagem do centro, do ventre sagrado da

Grande Mãe prenhe de vida. O útero da terra é o lugar de onde vem a vida e é para este

lugar que o fio da esperança conduz a caminhada. Seja a trajetória dos sem-terra em

busca de terra para plantar e cuidar, seja da humanidade em sua trajetória passageira e

angustiada diante da impossibilidade de vencer o tempo e a morte. Todas as estrofes do

poema são iluminadas pelo título, “Esperança” , que atribui sentidos específicos aos

enunciados.

Da primeira a terceira estrofes, a esperança traz o simbolismo que remete ao

Cosmo como obra perfeita, morada de todas as criaturas. A quarta estrofe introduz

imagens que deslizam o sentido para o sonho daqueles que desejam semear, plantar e

colher no colo íntimo e quente da Mãe Terra. No entanto, esse sonho encontra-se em

permanente ameaça diante da ação degradante do homem. É então que, na quinta

estrofe, o sujeito-de-enunciação lírico teme pela sobrevivência da esperança, pois, como

ela será conservada Sem luta, sem resistência/ Sem povo, sem mudança?... Por isso a

esperança é movimentada em sentido circular, e as duas últimas estrofes sintetizam

imagens recorrentes em toda a obra, em que vida e morte, sonho e vitória resgatam a

esperança do reencontro com a terra. Esse reencontro é instituído pela recorrência dos

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mitemas organizadores das imagens do retorno que são elaboradas a partir do fio da

esperança, mantendo a caminhada dos sem-terra em constante movimento.

A observação de Durand sobre a técnica da tecelagem e a técnica da viagem, que

“assumem uma e outra, desde a sua origem, a rica mitologia do círculo” (2003, p. 328),

desvela a construção imaginária de Adriane Rocha. Assim, por meio de uma reviravolta

completa dos valores que há na estrutura mística do regime noturno das imagens, o

sujeito-de-enunciação lírico promove a inversão restauradora: “o que é inferior toma o

lugar do superior, os primeiros tornam-se os últimos” (DURAND, 2002, p. 276).

A imaginação criadora conduz as imagens em clima de tensão, levando o sujeito-

de-enunciação lírico a manifestar os símbolos que emergem da luta pela vida,

manifestos no desejo de retornar à terra, numa postura heróica contra o tempo e a morte.

Assim, tensionando as contradições presentes no esquema da queda do simbolismo

negativo do regime diurno, o sujeito lírico chama para si o grito dos sem-terra, campo

vivencial no qual realiza, por meio da palavra instauradora “a identidade última entre o

homem e o mundo, a consciência e o ser, o ser e a existência, a crença mais antiga do

homem e a raiz da ciência e da religião, magia e poesia” (PAZ, 2006, p. 42). Essa

identidade entre o homem e o mundo se manifesta por meio do poema que nos faz

recordar o que foi esquecido, e é justamente por obra da imagem que se produz a

instantânea reconciliação entre o nome e o objeto, entre a representação e a realidade.

Essa reconciliação “seria impossível se o poeta não usasse a linguagem e se essa

linguagem, por meio da imagem, não recuperasse sua riqueza original” (PAZ, 2006, p.

47).

Nesta Pátria Sem-Terra a dimensão poética do símbolo desliza os sentidos dos

enunciados líricos para a harmonização dos contrários, revelando uma criação literária

empenhada em resgatar a Grande Mãe e assim reconciliar o ser humano e o ser terra. A

dimensão onírica traz à tona a fusão entre o mundo material e o mundo do sonho,

colocando em relevo a esperança, sentimento que mantém o povo sem-terra irmanado

em torno do desejo coletivo. O fio da esperança constitui-se o elo que interliga entre si

os enunciados que conduzem à redenção da terra e da espécie humana. Se, por um lado,

o tempo e as chances de retornar para a Grande Mãe se escoam, por outro a esperança se

impõe como fio condutor que assegura a travessia. Essa recuperação promovida pela

dimensão poética do símbolo manifesta a necessidade emergente de resgatar a Mãe

Terra como condição para salvar a humanidade. Esse espaço idealizado por contornos

míticos atualiza, na obra de Adriane Rocha, a condição errante e conflitiva de homens e

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mulheres, com ou sem-terra, atribuindo à sua obra uma totalidade de imagens e

símbolos que se constituem em desejos humanos universais.

Assim se configura o imaginário da terra nesta poesia gerada no seio da luta pelo

direito de retornar à Grande Mãe e, com ela e nela, produzir uma nova perspectiva de

vida que reconduza a Terra à condição de Paraíso Perdido, o aconchego materno,

origem cósmica comum a toda humanidade. Desse modo, a poeta sem-terra revela em

seu fazer literário a criação feminina, o olhar e o sentimento femininos, pois como bem

lembra Durand, “eterno feminino e sentimento da natureza caminham lado a lado em

literatura” (2002, p. 233).

Entre o vivencial e o imaginário, tensionando forças subjetivas, biográficas e

sociais, a poesia de Adriane Rocha se faz o fio da esperança que circula para tecer a

cortina do tempo, eufemizando-a em taça acolhedora, fraterna e feminina. Nessa

perspectiva, Pátria Sem-Terra revela o mesmo simbolismo de transcendência vivido

pelos integrantes do MST nos momentos da mística do Movimento. Assim, retomando

as imagens do Paraíso Perdido, do Paraíso decaído e do Paraíso possível, pontuadas no

primeiro capítulo, o sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra inscreve sua

poesia na esteira da arte engajada e militante cumprindo, a um só tempo, as funções

social, ideológica e total da literatura.

Forma e conteúdo convergem em sua totalidade para o princípio cósmico restaurador

que o Ocidente relegou ao esquecimento em favor da racionalidade, das idéias claras e

distintas que, no dizer de Paz, delegou “a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas

de prender o ser por caminhos que não fossem os mesmos desses princípios. Mística e

poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (2006, p. 40). Esse

desenraizamento tem sido indizível e permanente e as “conseqüências desse exílio da

poesia são cada dia mais evidentes e aterradoras: o homem é um desterrado do fluir

cósmico e de si mesmo” (PAZ, 2006, p. 40).

Há um Paraíso possível sendo edificado por homens e mulheres desta Pátria Sem-

Terra que constroem sobre as ruínas da Terra e do Cosmos os novos caminhos para o

jardim terreno, pois “eco-espiritualmente a esperança [...] assegura que, apesar de todas

as ameaças de destruição que a máquina de agressão da espécie humana montou e

utiliza contra Gaia, o futuro bom e benfazejo está garantido” (BOFF, 2000, p. 306).

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CONCLUSÃO

A mística do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra se caracteriza por

princípios diferentes daqueles das religiões tradicionais que se irmanam em torno de um

Deus, um Uno. Ao contrário, ela se estabelece com base num sentimento que tem

relação exclusiva com o modo como o grupo foi constituído “e começou a ser”

(ELIADE, 2006, p. 11). Como todo grupo cultural, também o MST possui a sua grande

narrativa em que representa a origem do universo, seu lugar nesse universo e no

cosmos, o sentido da caminhada do grupo e da caminhada humana, como o presente é o

futuro do passado e qual o destino da humanidade. Seguindo a lógica do inconsciente

coletivo, essas narrativas usam a linguagem do mito e a simbólica do imaginário para

contar uma “história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, porque sempre se

refere a realidades” (ELIADE, 2006, p. 12).

Nessa perspectiva, em similitude aos sentimentos simbolizados na mística do

Movimento, cuja celebração atualiza os acontecimentos ocorridos in illo tempore,

também o sujeito-de-enunciação lírico de Pátria Sem-Terra transcende o espaço

vivencial e reatualiza o imaginário da terra paradisíaca. Eliade ensina que “através de

sua criação os artistas antecipam o que deverá ocorrer – algumas vezes uma ou duas

gerações mais tarde – em outros setores da vida social e cultural” (2006, p. 69). Numa

atitude de recusa ao tempo profano que se apresenta hostil à construção da consciência

histórica do sujeito social sem-terra, o eu lírico desta Pátria Sem-Terra manifesta “sua

revolta contra o tempo concreto e histórico, sua nostalgia por uma volta [...] aos tempos

míticos do começo das coisas” (ELIADE, 2006, p. 7). Essa manifestação, lembra Boff,

coloca-se como o grito dos “ filhos e filhas da Terra explorados e condenados a morrer

antes do tempo” (2000, p. 168), que desafiam os ventos da História para preservar a

vida da Mãe Terra e, por extensão, de toda a humanidade.

A plena realização do Paraíso está retroprojetada no passado, na grande narrativa

primordial, cujas imagens e símbolos resistem como “planta de construção a ser

realizada pelo empreiteiro que é o ser humano, homem e mulher” , acentua Boff (2000,

p. 66). Mais do que um ser na Terra o ser humano é um ser da Terra, por isso essa

construção estabelece entre ambos a relação mais complexa e singular de todo o

cosmos. Porque todo homem e toda mulher “são a terra que pensa, que espera, que ama,

que sonha e que entrou na fase da decisão não mais instintiva mas consciente. [...] Tudo

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está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos os momentos” (BOFF, 2000,

p. 166). Assim, em conformidade com o sentimento de Eco-espiritualidade, esta Pátria

Sem-Terra funda a era ecológica que, depois de séculos de confronto com a natureza,

conduz a humanidade no caminho de volta para a sua casa comum, a boa e fecunda

Terra, a Grande Mãe, estabelecendo com ela uma nova aliança de respeito e de

fraternidade.

Nessa perspectiva, as forças imaginárias que conduzem o sujeito-de-enunciação

lírico na edificação do Paraíso Perdido e de um tempo ideal para uma vida harmoniosa

junto à Mãe Terra, manifestam-se a partir das três dimensões do símbolo; a cósmica, a

onírica e a poética. Essas dimensões estão presentes, também, no conjunto de símbolos

observados nas manifestações culturais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

que se constituiu no decorrer do processo de formação e consolidação do grupo social.

É nos momentos de celebração mística que o sujeito sem-terra vivencia, coletiva e

individualmente, a fusão sujeito e objeto - homem e terra. Desse modo, as três

dimensões do símbolo escalonadas por Durand constituem, pela forma como são

vivenciadas coletiva e individualmente nas manifestações culturais do MST, o realismo

do imaginário postulado por Bachelard (2003, p. 70). Nesse sentido, os poemas

analisados emanam a força poética do símbolo que, para Durand,

define melhor a liberdade humana do que qualquer especulação filosófica: esta se obstina em ver, na liberdade, uma escolha objetiva, enquanto na experiência do símbolo sentimos que a liberdade é criadora de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio do assunto mais engajado no evento concreto. Ela é o motor da simbólica. Ela é a Asa do Anjo (DURAND, 1988, p. 37).

O conteúdo imaginário, motivado por esta ou aquela situação na história e no

tempo, ensina Durand, coloca-se contrário à “pretensão de alguns que a todo custo

querem desmistificar o homem” (2002, p. 428). Essa concepção durandiana estabelece

diálogo com a reflexão de Paz (2006) que caracteriza a história do Ocidente como um

erro, um extravio, no duplo sentido da palavra, pois nos distanciamos de nós mesmos e

nos perdemos no mundo renegando, assim, o processo unificador promovido pelo poeta.

Também Durand percebe a objetividade, o materialismo e a explicação determinista

como uma máscara desmitificante que não passa “de um colonialismo espiritual, da

vontade de anexação, em proveito de uma civilização singular, da esperança e do

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patrimônio da espécie humana inteira” (2002, p. 429). Assim, desmistificar o símbolo e

ao mesmo tempo remitificá-lo, exprime o desejo humano de simbolizar a transcendência

histórica, porque a desmistificação absoluta anularia os valores da vida diante da

constatação brutal da mortalidade. Por isso, é preciso discernir com clareza a

mistificação de mito: “Querer desmitificar a consciência aparece-nos como a tarefa

suprema da mistificação” constituindo a antinomia fundamental, “porque seria esforço

imaginário para reduzir o indivíduo humano a uma coisa simples, inimaginável,

perfeitamente determinada, quer dizer, incapaz de imaginação e alienada de esperança.

Ora, a poesia e o mito são inalienáveis” (DURAND, 2002, p. 429-430). Existem, pois,

sociedades sem pesquisadores científicos, mas não existem sociedades sem poetas, sem

artistas e sem valores e é essa condição que faz preponderar a dimensão de apelo e de

esperança sobre a desmistificação. É então, diz Durand, que a esperança, “sob pena do

cúmulo da morte, jamais pode ser mistificação. Ela se contenta em ser mito” (1988, p.

96), pois a mais humilde das palavras é mensageira de uma expressão que, mesmo

contra sua vontade, aureola o sentido próprio objetivo. E é esse luxo poético, essa

impossibilidade de desmitificar a consciência que se apresenta como a oportunidade do

espírito. Assim se institui a imaginação simbólica como força criadora que se “opõe ao

nada objetivo da morte, afirmando ao mesmo tempo os direitos do mito e a vocação da

subjetividade para o Ser e para a liberdade que o manifesta. De tal modo que não há

para homem honra verdadeira que não seja a dos poetas” (DURAND, 2002, p. 430).

Dessa maneira, o imaginário da terra, em Pátria Sem-Terra, reveste-se daquela

característica apontada por Eliade de antecipar pela palavra criadora o que ocorrerá com

a Terra e com a humanidade se a postura e as ações humanas diante do e no Cosmos não

se modificarem. O clamor do sujeito-de-enunciação lírico revela a iminência da

destruição do lar comum como resultado do desencontro entre Terra e Humanidade. Por

outro lado, o imaginário de Adriane Rocha desvela, também, a possibilidade de

reconstrução da relação Terra-Humanidade, recriando pela palavra poética imagens

redentoras que asseguram, por meio do reencontro do sem-terra com a Terra, a

preservação do imaginário sobre o Paraíso Perdido.

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Anexo A – Poemas/corpus BANDEIRA DO MST Tua beleza é encantadora, É sinônimo de paz, liberdade... Do meu sofrimento, é doutora. Então busco contigo a dignidade Quando meu punho se ergue para segurar-te, Meu sangue ferve nas veias, Nunca deixarei de exaltar-te, Nem que a morte me venha... Contigo perdi meu egoísmo. Somente com tua firmeza, Podemos acabar com o capitalismo. A esperança está em minhas mãos. Pois, és amada, és bela, és forte e, com certeza, Vamos transformar o Brasil em nação.

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ACORDA, PÁTRIA AMADA!

“Nas margens plácidas” O teu povo heróico ainda ergue o brado

Pelo fervor do sol da liberdade Que igualdade conseguimos conquistar?

O sonho de amor e esperança

Não passa de um sonho que se ausenta Em cada filho teu que se cansa

Diante da espessa nuvem cinzenta Que encobriu teu céu formoso de outrora,

A imagem do cruzeiro só resplandece E este finca nas covas as vítimas que à terra desce.

Da tua beleza e da tua grandeza

Não se tem dúvidas, Mas o teu futuro é duvidoso

Posto que tua soberania é um engodo.

Se das Américas és a mais bela Desperta deste repouso profundo

E não permita que te façam de elo Com o intuito de chegar ao Novo mundo.

Nem flores, nem campos, nem bosques

Nem amanhã, bem próximo, Nem vidas, nem amores

“No teu seio” só rumores, Se uma nação que vive horrores

Terra adorada

Mãe gentil, se amor tão forte Teus filhos e filhas, por ti

Choram a própria morte

Acorda, Pátria Amada! E verás que teus filhos e filhas

Desejam ter uma pátria livre Mobilizada, socializada, sonhos mil...

Acorda, Pátria Amada!

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AOS SEM TERRA

Somos povo caminhante…

E seguiremos:

Andando, Sorrindo, Cantando, Sentindo, Chorando, Caindo, Querendo, Levantando, Defendendo, Mudando, Resistindo, Lutando, Perdendo, Ganhando, Sofrendo, Sonhando, Dizendo, Acreditando, Vivendo, Amando, Vencendo!

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SEM-TERRA

Quem são eles?

Que marcham destemidos. Sob o tapete da história

Deixando rastros na memória E nos passos a ousadia

De lutar pela vida Por mais fino que seja o fio da esperança,

Bordam a cortina do tempo Com os olhos buscam num sorriso de criança

A certeza de não andarem contra o vento Quem são?

Os que entoam uma canção e nos acordes mais simples Falam da repressão

Denunciam a exploração. E clamam por dignidade.

Quem são esses homens e essas mulheres? Que se permitem sonhar de novo

Resgatando valores assim como o orgulho De ser povo caminhante...

Quem são esses doutores analfabetos Que nos seus consultórios descobertos

Produzem remédio para a mais Terrível dor que consome

E nessa batalha diária contra a fome Tem na reforma agrária seu grito de socorro

Que gente é essa que quer Unir campo e cidade

Numa grande irmandade Para juntos buscar a tão sonhada liberdade

E o direito a cidadania E na arte de resistir alguém já dizia

Indignar-se com injustiças É uma provocação? – Não! Para eles é uma qualidade

Tão bonita quanto A solidariedade e a humildade

De ver no outro o irmão. Quem são estes que possuem mãos calejadas

Que empunham com fervor a bandeira E identificando-se como os SEM-TERRA

Assim seguem na grande fileira... Por um lugar sem guerra

Enfrentam cada anoitecer Com rebeldia para mudar a trajetória

Cantando a vitória Em cada amanhecer.

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500 ANOS AMOR MALIGNO

Moça menina Terna morena

Face serena Inocente feminina

Ardente, nativa, única...

Mas, roubaram-na a verde túnica, brutalmente a Penetraram, ainda virgem,

Sentindo vertigem, murmurou de dor.

Das entranhas arrancaram-lhe riquezas, Deixando tristeza, no ventre maior

No pior momento, dominaram-na sangrando sua veia

Sofrimento igual outra não teve Primeiro resolveram chamá-la de Monte Pascoal

Em seguida Terra de Santa Cruz, hoje mãe gentil, Pátria Amada Brasil!

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AMOR MALIGNO II Quem te ama com tanto fervor? Cuidado, veja lá com quem fala, - Terra adorada te olha – Volve os olhos para ti Quem te privas de pôr em teu colo Teus filhos sem solo? Como amamentá-los? Se teimam a secar tuas veias cristalinas? Se em teu ventre “ laqueiam” As trompas que dá a vida Queimando-as com o laser da intransigência....? Que te resta se bóias no desamor? Curando, com rancor, chagas cancerígenas? Como suportar este amor maligno?

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ANTES QUE RACIONAIS, ANIMAIS

Existe, entre tantos, um chamado Terra, Dizem que é um planeta redondo,

Existe, entre tantos, um chamado homem, Dizem que é o único animal racional.

O que não dá pra se ter certeza, Sem respeito, agridem-se...

Existe, entre tantos, uma chamada ganância, Que toma conta do coração deles;

Então ficam cegos, e querem só pra si... Existe, entre tantos, um “paraíso” de máquinas,

Uma confusão de botões. Dizem que é uma revolução tecnológica.

Existe, entre tantas, uma chamada computador Que afasta os “racionais” uns dos outros

Namorados já não passeiam de mãos dadas, Por entre jardins (“navegam” sem ao menos se verem);

Pois, já não existem jardins. Transformam tudo em uma grande selva de concreto Fica difícil entender certos paradoxos destes animais

“racionais” . Para uns, sobra comida em suas mesas,

Outros milhões morrem de fome Uns tem grandes casas,

Outros milhões moram embaixo de pontes Para uns constroem-se escolas supérfluas

Para outros será reservada a cegueira do analfabetismo No auge da modernidade é privilégio

Para uns expor, vulgarmente, seus corpos num “Big Brother”

Outros são obrigados a prostituírem-se Para sobreviverem no que chamam sociedade.

Uns já comemoram a ciência de clonar, A efêmera vitória da morte,

Ao mesmo tempo em que milhões morrem Numa guerra sem nome.

Em uns obstina-se a busca do sucesso Exercendo-o com prepotência para manterem-se no poder.

Em outros a esperança acalenta o sonho Da Liberdade de viverem como irmãos,

Animais da mesma espécie.

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FUTURO AMEAÇADO Teu nome é sinônimo de vida Por todo o universo, conhecida A lua e as estrelas contemplam sua beleza... Tua cor, sem cor! Teu gosto sem sabor! Teu cheiro, sem odor! ....doce... ...salgada... ...clara... ...cara?... ...escura? ...poluída?... ...agredida?... ...privada?... ...contaminada?... ...escassa?... ...desperdiçada?... ...ameaçada?... ...preciosa? ...Água... Estamos colhendo o que plantamos, Ou melhor, o que desmatamos... Talvez um dia não existam mares; Nem rios nos limites das fronteiras. Talvez um dia não existam verdes, Nem chuvas, para sorrir as flores. Talvez um dia não existam peixes, Nem lagos para os sapos fazerem suas serenatas Talvez um dia não exista verão; Nem arco-íris riscando o céu Talvez um dia não existam sementes no chão Nem mesas fartas de pão Talvez um dia não exista água. Nem vidas... Mas talvez um dia nascentes surgirão No coração da humanidade Vertendo consciência doce e transparente E como um manancial será o sentimento De preservação, de amor, de cuidado... Cicatrizando as lesões causadas Devolvendo ao longo dos rios O verde desfazendo dos leitos Depósitos de lixo e esgoto. Devolve-la da mesma maneira que pegaram Que garimpos sejam extintos Que na grande represa humana Despertem ondas de respeito a vida... Que correntezas de esperanças Corram nos cursos dos sonhos Desaguando num futuro transformado.

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TERRA E VIDA, TERRA É VIDA Eras tão formosa, tão bela, encantadora, Misteriosa... Quando solteira, sem fronteira, cheia de vida Audaciosa... Hoje, descabelada, despida, magra, acabada Chorosa... (Porque deixaste teus filhos/as fazerem isso contigo?) Ainda tens força... Levanta-te, lute. Sei que sofres pelo descaso de teus filhos/as, guerreiro/as. Mas, também geraste filhos/as que transformaram-se Em monstros... Sim, teus filhos/as monstros, que te desgastam e Te matam lentamente... Que banham-te com o sangue Dos próprios irmãos/ãs E os dominam, oprimem, sufocam Tiram o direito de te amar, te respeitar... Tu és mãe e teu amor te dará forças para Agüentares até o dia... O dia que teus guerreiros/as, Vencerem a ganância de seus irmãos/ãs Corruptos e corruptores. Quando a solidariedade correr nas veias da Humanidade, como as águas cristalinas Que ainda correm no leito dos rios, mesmo Que estreitos. Quando trocar as armas de fogo pelas armas Da consciência, da união...quando todos/as Conseguirem, possuí-la Tocá-la, beijar-te-ão e, com as enxadas, Acariciarão tua face serena, que jamais Será maquiada com química venenosa. Quando não mais banharem-te de sangue E, sim, de lágrimas de alegria com A conquista da VITÓRIA DA VIDA.

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UM NOVO BRASIL É POSSÍVEL

No estreito leito dos sonhos

A esperança nos conduz a caminhar Caminhar não é apenas trocar passos

Mas, é andar para o realizar É estabelecer objetivos.

É não desanimar E saber a hora de esperar...

No caminho que escorre a marcha Há pedras, há pranto, espinhos... E é sendo perfurados que os pés

Avançam, construindo novos caminhos E na poeira deixam rastros da história Protagonizada pelo povo caminhante

Que entoam em uma só voz contagiante O canto da liberdade e da vitória

E a grande represa de humanos Deságua em ruas, praças e avenidas

Avermelhando os cinzentos céus urbanos Gritando por direitos

Estabelecendo conceitos Oportunizando a vida...

Para os problemas da nação Já tem uma saída

E é com a reforma agrária no chão Que começa a libertação da pátria querida.

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ESPERANÇA Que seria da noite Sem o brilho das estrelas Sem a lua com suas fases? Que seria do dia Sem a beleza da aurora Sem o canto dos pássaros?... Que seria dos tempos Sem suas estações Sem frio, sem calor, Sem a chuva, sem o vento? Que seria da terra Sem as sementes Sem as mãos de quem As semeiam? Que será da esperança Sem luta, sem resistência Sem povo, sem mudança?... Que será da liberdade dos povos Se não houver seres (do sul ou do norte) Sensíveis, capazes de perceber As mais simples formas de vida e ver As mais injustas formas de morte?... Que será de nós Sem audácia de reclamar Sem o desejo de vencer Sem a capacidade de sonhar Sem o direito de viver?

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Anexo B – Car ta/poema de Adr iane Rocha

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Anexo C – Conversa com o militante Noir Castelo Júnior Conversa com Noir Castelo Júnior, militante do MST, professor e líder comunitário do pré-assentamento Zumbi dos Palmares I I , em tarde nublada, aos 12 dias do mês de janeiro de 2008. Noir, fale um pouco sobre a invasão e ocupação desta área... como aconteceu? Aqui foi mais um acordo, né. O fazendeiro quer vender a área que não está cumprindo a função social dela, a gente entra na área e antes de fazer a ocupação dela vem a equipe do INCRA e faz a vistoria, entendeu, e avalia o que ele tem de bens aqui dentro, o que ele fez de benefícios e aí então ele é pago, né, esse benefício é pago à vista e o restante da área é pago em TDAs, né. TDA é dinheiro, são títulos do governo que aí eles levam. Quando assinou acordo com o INCRA aí a gente pode tá entrando e trabalhando. Ao entrar na área, a bandeira do MST é erguida em lugar de destaque, como vemos aqui. Fale sobre esse gesto. Toda a ocupação nossa é feito isso aí. É a nossa bandeira. Ela representa nossa união. Nós somos aqui várias pessoas. Se eu pegar um palitinho de fósforos eu quebro ele, se eu pegar cem palitinhos eu não vou conseguir quebrar, não vou ter força pra quebrar e aí que entra nosso símbolo, pela junção do povo, pela unificação do nosso povo a favor do ideal nosso. Tem pessoas que tão aqui hoje e pode vender o lote amanhã, mas tem pessoas que tão aqui, posso dizer o exemplo meu mesmo, que tô pra matar ou pra morrer por esse símbolo do Movimento, que sem ele hoje eu não seria ninguém. Você se constituiu ou ainda se constitui um novo sujeito com base nos ideais e propostas do Movimento... Pra falar bem a verdade eu era policial militar, fiz tudo de errado que um homem pode fazer, através de um companheiro que pude conhecer o MST que eu consegui resgatar minha dignidade, minha moral, e hoje tô aqui dentro, sou professor e tô cumprindo a função como militante e como homem, entendeu. Porque, talvez, daqui dez anos eu não teria coragem de olhar para meu filho e dizer pra ele que eu sou um homem, jamais eu teria essa coragem, porque realmente eu nunca fiz nada. Então houve, de fato, um resgate? Sim. Essa é a função do MST. Temos casos como o do Cigarra ali, o Cigarrinha, que o apelido dele é Cigarrinha, que ele chegou andarilho no nosso Movimento. Hoje ele é um cidadão, ele tem todos os seus documentos, parou de beber e hoje ele é um cidadão. Aqui no Zumbi existem duas igrejas. A Assembléia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil. Como acontece a prática religiosa e qual a diferença dela em relação à mística do MST? Como o sem-terra entende e lida com a questão da religiosidade e da mística? A nossa ideologia ela não é religiosa, a nossa ideologia ela é completamente diferente, entendeu, porque todos da comunidade tem sua terra, faz sua roça, é comer aquela fruta que vocês comeram ali, entendeu, não tem nada a ver com religiosidade. O MST é aberto e democrático a qualquer religião, da umbanda ao crente, aqui dentro pode ser praticado qualquer religião, qualquer uma, se organizou... porque nós somos uma comunidade que respeita todas as religiões.

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Qual é o momento em que se realiza a mística do MST? Cada reunião nossa nós fizemos a mística. Hoje nós tivemos uma extra entre o pessoal da direção, mas toda a nossa reunião nós cantamos o nosso hino, nós temos o nosso Hino do Movimento, na escola, uma vez por semana, nós cantamos o Hino Nacional e Hino do MST. Nos nossos encontros, todo dia tem um grupo, né, dividido, para que faça uma mística diferente. O que/como é fazer uma mística? É coisas que acontecem no dia-a-dia do nosso movimento. A gente faz uma mística de ocupação de fazenda, a gente faz uma mística para que a gente não esqueça das coisas do nosso povo, da história. Tem algo a ver com homenagem? É como se fosse uma homenagem, entendeu. Nós fazemos mística do tempo de Lampião, do tempo dos escravos... Como é feita essa homenagem, por meio de encenações, cantos, poesia? É teatro, eles se sujam de massa de tomate pra fazer que é o sangue de algum companheiro, é isso aí que a gente faz, é uma forma de teatro. Enquanto tá fazendo a mística a gente tá lendo uma poesia, tá cantando, assim que funciona a mística do movimento. A emoção vem à tona nesse momento? Ela acontece com todos ou com a maioria dos integrantes? Acontece. Rapaiz... tem mística que a gente chora. Tem mística que você vê todo mundo chorando. Eu participei de uma mística em Cuiabá, há dois nos atrás, eu passei um ano e quatro meses na porta do INCRA, meu filho nasceu na porta do INCRA, literalmente falando, ele nasceu na porta do INCRA e na hora que se despediu a nossa turma, teve uma mística que um dos nossos companheiro fez que emocionou muito todos. Essa emoção é diferente da emoção religiosa? Sim, com certeza, aí vai mais pela luta, né, com a causa como um todo, saber que eu não era ninguém e agora eu sou alguém, é o resgate da dignidade. Todos os integrantes participam da mística? Todos participam, é claro que sempre tem alguém que prefere ficar no barraco, mas a grande maioria participa. Zumbi dos Palmares I I , município de Cláudia, distante 60 km de Sinop, estado de Mato Grosso.