o homem e a terra- fichamento
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Fichamento do livro O Homem e a Terra, de Eric Dardel.TRANSCRIPT
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DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica.
Fichamento por Carlos Alberto Caetano
O prefácio à edição brasileira feito pelo prof. Eduardo Marandola Jr. situa a
importância do livro para uma abordagem fenomenológica da Geografia
embora tenha sido recebido à época com certa “restrição” por alguns
segmentos, embora no contexto dos estudos humanistas tenha tido alguma
valorização.
O autor do prefácio faz uma boa periodização localizando os conceitos de
geograficidade, fundamental na obra, lugar e paisagem. Também cita outra
publicação de DARDEL, “A História, Ciência do Concreto”, fato que no final
da leitura me causou a sensação de uma lacuna da argumentação do prefácio
em relação à KOSIK, Karel; filósofo checo neomarxista e sua obra tão
contemporânea quanto clássica, Dialética do Concreto.
Ao fazer uma relação entre Geografia e Cultura, a partir do texto de DARDEL
também me ressenti da falta de uma citação à Shakespeare e sua Companhia
do Camarlengo, talvez o autor de teatro que mais tenha se debruçado sobre a
relação do homem e a terra, ainda que no plano do simbólico, sendo seu teatro
à época, na margem esquerda do rio Tâmisa, denominado – muito
apropriadamente - de Globe Theatre, motivo mais do que suficiente para que
sua produção cultural seja pensada, analisada e até criticada – se for o caso –
do ponto de vista da interpretação fenomenológica e geográfica.
O autor do prefácio registra que DARDEL fala sobre a dimensão espacial da
existência. Esse sentido da ontologia da ciência geográfica, para além dessas
lacunas registradas, o livro cumpre bem e até esboça a discussão sobre a
globalização e as questões que envolvem o processo de desterritorialização
promovido pelo neoliberalismo. Também senti falta de completar a relação
territorialização/desterritorialização, com os processos atuais de
reterritorialização, mas trata-se até de uma lacuna compreensível por uma
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questão de coerência interna da abordagem fenomenológica e da época em
que o livro foi escrito.
DARDEL divide seu texto em duas partes: O Espaço Geográfico, onde
apresenta problematizações sobre diversas dimensões da discussão sobre o
espaço e História e Geografia, onde traz alguns aspectos interessantes do
campo simbólico e do campo científico. Na primeira parte apresenta seu
principal argumento e que praticamente sustenta a obra: a geograficidade do
homem. Na segunda parte articula a partir da interpretação de um despertar da
consciência geográfica.
O primeiro tópico de O Espaço Geográfico, Espaço geométrico, espaços
geográficos, faz um paralelismo entre a mão do homem e as forças da
natureza, explorando possibilidades do que chama de poesia geográfica e
romance literário (p.3) e nesse aspecto do imaginário fala sobre uma geografia
interior (p.5), cita o mito de Prometeu Acorrentado e caminha até aspectos
religiosos abordando inclusive as questões relativas à espiritualidade (p.6).
Conclui esse tópico remetendo à idéia de que essa visão primitiva será
ajustada pelo saber.
O segundo tópico, Espaço material, tomo o mar como referência e conduz a
uma conceituação sobre o espaço “puro” do geógrafo em oposição ao
geômetra. E segue falando sobre a escala humana e aborda o
antropocentrismo (p.8) como uma exigência. Acredito que essa colocação está
relacionada com a idéia de produção do espaço, que ele comenta do ponto de
vista do espaço habitável, cultivável, navegável. Na p.9 aparece o conceito de
território, que irá pontuar diversos momentos da narrativa, embora o foco
principal seja o lugar.
Esse é, para mim, um dos maiores questionamentos sobre a obra. Afinal, por
que apenas pincelar o conceito de território?
O autor continua sua argumentação falando sobre a distância como qualidade,
de perto e longe, mas situa distância como poder sobre o espaço, até
aproximar sua narrativa sobre o vivido e o valor afetivo (p.11). Passa pela
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relação Norte/Sul, opondo gelo e Sol e comenta sobre as rotas de navegação
como itinerários (p.12).
Ao mesmo tempo fala sobre o corpo como espaço onde se desenvolve a
existência. Relaciona corpo com os deslocamentos, os caminhos a serem
percorrido (p.13). Assim o homem vai sendo caracterizado como construtor de
espaços (p.14), onde ele estabelece relações afetivas, de troca, de comércio.
Onde ele se sente em um lugar. Um lugar que ele produz.
O terceiro tópico, O espaço telúrico, fala sobre a plasticidade, a imaginação
criativa que irrealiza do espaço. Ao mesmo tempo traz a visão geológica sobre
a crosta terrestre (p.15), o interesse humano em entender a estrutura da Terra.
Cita que as escarpas, os cortes de rio, as falésias mostram o esqueleto da
Terra para o homem (p.16), e puxa mais uma vez pela visão da religião, no
caso a montanha como manifestação de Deus para algumas visões religiosas.
Trata também do aspecto telúrico. A Terra como realidade telúrica não só na
visão das montanhas mas também nas cavernas, como a possibilidade de
entrar na Terra e conhecer suas profundidades. Isso abre a porta para a
discussão sobre vulcanismo, placas tectônicas, etc, (p.18) até chegar à ideia de
espaço telúrico como espaço fechado, profundidade e movimento. E conclui o
tópico falando sobre as florestas e se silêncio (p.19).
O quarto tópico sobre Espaço aquático, o domínio das águas, espaço em
movimento onde compara o silêncio das águas com o silêncio das florestas
(p.20) sempre caminhando pelas proximidades da magia, do canto das sereias,
do reino das sombras (p.21). Afirma que a água temporaliza o mundo e que o
mar é um agente, segundo a geografia científica (p.22).
Talvez a reflexão mais importante do texto DARDEL coloque no encerramento
do tópico sobre Espaço Aquático quando diz, na p.23 “quem tem razão aqui,
a ciência que tende a reduzir o mundo a um mecanismo ou a experiência
vivida que se apropria do mundo exterior ao nível do fenômeno?”
O quinto tópico é sobre o Espaço Aéreo. A atmosfera e as noções de diurno e
noturno; das estações do ano; o frio e as indústrias produtivas. Fala do Sol com
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seu apelo à vida e de uma fenomenologia do espaço. Reflete sobre a
importância das nuvens e das chuvas para os homens e a terra. E nos lembra
que todos conhecemos o cheiro da terra molhada.
O sexto tópico, Espaço construído, fala sobre a obra do homem. Cria uma
hierarquia de espaços, vila, pequena cidade, grande cidade, sempre como
intervenções humanas. Conceitua o que chamamos de urbanidade, nossa
polidez particular, chegando à afirmação mais importante do ponto de vista da
pesquisa que estou iniciando: “a cidade como realidade geográfica, é a rua”
(p.28). E desenvolve uma problematização sobre a rua que já ganhou espaço
na minha tese. Fala da rua como espaço concreto e familiar, da relação do
trabalhador com a rua, da mobilidade das populações das cidades pelas ruas
(p.29), a rua como via, como caminho.
Pensei que o autor fosse se aprofundar mais nessa contextualização, que seria
extremamente útil para a minha pesquisa, mas ele deixa a rua como uma
exteriorização da mobilidade.
E chega ao sétimo tópico, (p.30), A paisagem, conceitua, estabelece uma
relação com sua idéia de geograficidade, cita o Nordeste Brasileiro ao falar da
destruição de florestas e abordar o homem como ser individual e coletivo
(p.31). Trata a paisagem como sintoma do ser social e volta a falar sobre o
Nordeste Brasileiro, explicitando seu contato com a obra de Josué de Castro,
mas confesso que achei meio descontextualizada a referência, sem datação.
Coloca quase que conclusivamente algo importante sobre a paisagem, que ela
pressupõe a presença do homem (p.32).
Chega ao oitavo e último tópico da primeira parte, Existência e realidade
geográfica, fazendo polêmica sobre a geografia e sua relação com o homem.
E volta a falar da rua, muito rapidamente. No sentido de que a realidade
geográfica é para o homem o lugar onde ele está. Mas passa rápido para
discutir objetividade e subjetividade, o geográfico como internalidade e
externalidade (p.34); a singularização dos espaços terrestres, a morte, os
vivos, o espaço ilimitado, a água, a floresta, como se estivesse fazendo uma
síntese do que já havia sido dito.
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Novidade ele traz quando fala da relação do homem com a cor e depois
caminha na direção de uma perspectiva temporal. Aproxima-se de um autor
clássico da fenomenologia, Merleau-Ponty (p.40) embora esse autor não seja
tão presente em sua obra, como era de se esperar.
Cria uma idéia de classes de relação do homem com a terra: habitar, construir,
cultivar, circular. E introduz o sono na relação do homem com o lugar, diz que o
sono é um abandono ao lugar, algo como pacto com terra. Depois explica sua
concepção de existir como algo não abstrato, não conceitual, concreto (p.41). E
conceitua que a terra, como base, é o advento do sujeito.
Na p. 42 faz uma relação que também interessa para a minha pesquisa, as
rochas, a pedra. Fala sobre Ctonos, termo da mitologia que designa a terra
como a mãe dos Titãs. Lembra que extraímos a pedra das profundezas
ctonianas, dando um sentido a um aspecto religioso, digamos, que dialoga com
a minha pesquisa. Fala da pedra que se parte em mil fragmentos e nem de
longe imagina que esse é um dos mitos da religião Yorubá que irei abordar na
minha tese.
Sentencia a existência de uma luta incessante (p.43) entre a luz e a escuridão,
entre o Homem e a Terra. Não posso negar que este trecho tem um profundo
canal aberto para ser interpretado do ponto de vista de práticas religiosas, mas
o autor passa ao largo.
Quase se redime no final ao falar de antigos cultos orgiásticos (p.45) e as
religiões da embriagues sagrada. Mas é só.
A parte 2, História da Geografia, apresenta a geografia como lugar da história,
como testemunhos de épocas sucessivas, e o autor diz que o que importa é o
despertar da consciência geográfica (p.49). Fala em atitudes e numa
concepção global do mundo, uma interpretação.
1. A geografia para ele é o poder, a Terra no sentido mítico é a origem.
Conceitua a anterioridade cronológica e a causalidade como categorias e não
se esquece da religião Ctoniana à qual se referiu antes. Busca suporte na
língua latina para o húmus humanus. Cultus, culto, cultura.
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Importante para a minha pesquisa, na p. 49 ele fala da árvore onde habita um
princípio sagrado. Tudo que cerca os homens, inclusive as pedras. Tem tudo a
ver com a minha pesquisa. Aborda novamente a água, p. 50, e do homem
como objeto.
2. Explica que a terra é presença e da relação do homem com o espaço.
Quando o homem está fora da realidade ele não está fora do espaço (p.51), ou
seja, o espaço na medida do homem. O homem que se deixa penetrar pela
magia das formas e da luz quando cita a religião novamente (p.52). Fala nos
deuses e na ancestralidade (p.53), todas as presenças que animam a geografia
mítica.
3. Coloca o poder sobrenatural e a metafísica como referência da geografia
mítica. A celebração e o fato de que a terra deve ser celebrada. Contemplada.
O fato de que na base da geografia dos primitivos há um elemento religioso. E
chega finalmente aos totens, e ao território da tribo. Mais uma vez a mesma
lacuna conceitual, não se aprofunda na discussão sobre o território (p.55).
Mais uma vez fala da pedra (p.56) como um acontecimento em sí própria.
Afirma que a pedra é, torna-se pedra. Isso é muito importante para a minha
pesquisa.
4. Analisa a terra como principio de unidade do grupo, clã, etc, e a condição do
homem de ser-com. Passa de raspão pela questão da ancestralidade e da
religião até chegar, na p. 57 à questão da raça. A raça, diz, não é somente a
permanência humana ao longo de uma linhagem, mas é a fidelidade ao laço
terrestre.
Posso fazer uma relação com a questão do candomblé que, com base na obra
de DARDEL pode ser considerado como um centro totêmico (p.58) onde ele
também analisa a questão dos mitos da criação e dos mitos axiológicos,
ressaltando o cuidado que se deve ter com mitos degenerados.
A seguir aborda a questão dos lugares sagrados (p. 59) e do mito fundador à
realidade fundada.
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5. O espaço geográfico mítico não comporta ponto de referência objetivo
(p.60). O sentido notável de orientação dos primitivos. Seus centros de
referência, valores espaciais. Lugar de reencontro com os ancestrais, por ex.
Totem. O altar. Para os gregos o cosmos designa uma ordem inseparável da
beleza. Mundus é relacionado a limpo. O altar cimenta em um todo coerente o
complexo topográfico. Geografia, estabilidade, unidade, vida (p.61).
O autor coloca que a valorização mítica do espaço comanda as divisões da
geografia. Em todos os povos existem duas cosmologias: uma relacionada com
o trabalho humano e outra relacionada com um mundo inquietante, onde
ninguém nunca penetrou.
Uma referência interessante à impureza da terra o autor relaciona com o hábito
de calçar sapatos e registra que, para alguns povos existem poderes
demoníacos em operação (p.63).
A seguir o autor fala sobre a relação masculino (seco) e feminino (úmido)
(p.64). Depois fala sobre a questão do animismo e relativa ao mito fundador,
tratando a geografia mítica como representação coletiva (p.65).
O momento que esperava do autor surge na p. 66: a relação com a referência à
dialética, quando cita o logos, onde o mito foi incubado. “Sob a forma de uma
dialética, pelo jogo de perguntas e respostas à procura de um sentido, de um
princípio” [...] p. 66.
A terra na int erpretação profética é a segunda parte de História da
Geografia, p.66.
O autor começa falando sobre as concepções proféticas como elemento
perturbador das ligações do homem com a terra. Confesso que o verbo
perturbar causou uma certa estranheza. A partir da doutrina iraniana de
Zoroastro faz diversas considerações sobre a relação do homem com o Criador
e, posteriormente analisa o profetismo bíblico (p.67) e afirma que houve uma
dessacralização da terra em direção a uma concepção objetiva e material por
parte do homem, coisa com a qual não concordo.
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Discute a seguir aspectos da temporalização da terra (p.68) e espacialização
do espaço (p.69), e chega a mostrar uma certa preferência por uma religião e o
papel do homem que é elevado acima da natureza, o que não deixa de ser
uma visão antropocêntrica.
Ao analisar a Geografia Heróica destaca o aspecto da aventura, do espaço a
descobrir, do trabalho do herói. Fortalece esse aspecto da iniciativa individual
(p.71) e aborda a questão da consciência histórica para falar a seguir do papel
do homem, no sentido masculino da palavra, dos valores masculinos e dos
valores femininos.
Visto como ser absoluto em muitos povos, o homem é visto como alguém
incapaz de não se conceber como um ser absoluto (p.72) e continua sua leitura
sobre o desenvolvimento da geografia, mostrando que o papel do herói na
Odisséia ajuda a formatar uma geografia já quase consciente. Analisa as
narrativas de viagem e aspectos do encontro dessas narrativas com a filosofia
da natureza, concebendo que o papel do herói contribui para a constituição de
uma visão da geografia legendária (p.75).
Chega as grandes navegações já no sec. XV e atribui a esse período a
ocorrência de uma revolução geográfica, tendo Colombo um papel central no
discurso do autor. Tudo isso, assegura, vai servir de base para uma geografia
científica (p.78).
Em Geografia das Velas Desfraldadas, o autor opõe esse tema à geografia
de gabinete ou de laboratório. Sempre destacando a poética do descobrimento
geográfico (p.79). Não descuida dos erros dos descobridores em relação à
localização das terras descobertas (p.80) e fala em uma geografia afetiva, o
desfrute estético como forma de expressão (p.81).
Afinal analisa o papel de Rousseau e sua teoria do bom selvagem (p.82) e fala
a compreensão geográfica na descrição dos costumes dos povos
“descobertos”, abrindo caminho para sua leitura sobre A Geografia científica
(p.83) e da predominância de uma ordem lógica. Questiona o que é a geografia
científica e sua relação com a realidade geográfica (p.83). Assim chega à
construção dos impérios resultante das viagens dos navegadores, fato que
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ocorre desde a antiguidade e o autor cita o exemplo de Alexandre, o Grande,
(p.84).
Destaca o papel do geógrafo na realização dos inventários (p. 86) e se
questiona sobre até onde vai a geografia, elaborando uma perspectiva da
etnogeografia (p.88).
A guisa da Conclusão, faz um paralelo entre o homem antigo, o homem,
medieval e o homem moderno (p.91). Analisa que há uma busca por uma
soberania absoluta e, citando Josué de Castro, destaca a necessidade de uma
prudência e modéstia a partir das questões relativas à fome (p.93)
Conclui argumentando em relação à visão de que a superioridade é um
obstáculo à harmonia e que busca um frescor em sua visão (p.96), chegando
ao nível do fenômeno e das suas possibilidades como elemento integrante da
prática científica.
Gostaria de ter lido a obra sem a premência de fazer um fichamento, de
cumprir um prazo.