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3 O Funcionamento Psíquico na Gênese dos Acidentes de Trabalho Ludmila de Fátima Drumond Pinto Psicóloga atuante na área de recursos humanos Os atuais métodos de análise dos acidentes de trabalho e as tentativas de reduzi-los não tem sido muito eficazes, uma vez que estes ainda ocorrem com certa freqüência. No mundo atual, apesar do discurso das empresas se basear no desenvolvimento de talentos humanos, existe cada vez mais competitividade, pressão para produzir com qualidade num espaço curto de tempo. Os ambulatórios estão cheios de trabalhadores estressados, com problemas de saúde, mas quando estes são profundamente investigados, descobrem-se causas psíquicas que são encobertas por seqüelas físicas. Os acidentes de trabalho precisam ser relacionados também às causas subjetivas, que se originam dos fatores psicológicos, determinantes da participação consciente ou inconsciente do indivíduo. As Organizações desenvolvem programas internos de segurança que proporcionam um alívio imediato aos trabalhadores, mas não podem arrancar as marcas, a história trazida por cada trabalhador, suas questões pessoais e as pressões “do mundo” fora da empresa. Este trabalho foi realizado no período de fevereiro a junho de 2003, buscando refletir sobre a dinâmica psíquica do trabalhador que antecede o comportamento que leva ao acidente. Tem como objetivos: estudar a vivência subjetiva do trabalhador frente aos acidentes, discutir, a partir da leitura teórica, os estudos de saúde mental e relações de trabalho e apontar aspectos específicos da vivência dos acidentes de trabalho. Foi dada ênfase à contextualização da Saúde Mental e trabalho que levantará questões psíquicas que envolvem toda a trama de sofrimento, prazer do trabalhador para que se compreenda o movimento psíquico do adoecer no trabalho e conseqüentemente, a ocorrência

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O Funcionamento Psíquico na Gênese dos Acidentes de Trabalho

Ludmila de Fátima Drumond Pinto

Psicóloga atuante na área de recursos humanos

Os atuais métodos de análise dos acidentes de trabalho e as tentativas de reduzi-los

não tem sido muito eficazes, uma vez que estes ainda ocorrem com certa freqüência. No

mundo atual, apesar do discurso das empresas se basear no desenvolvimento de talentos

humanos, existe cada vez mais competitividade, pressão para produzir com qualidade num

espaço curto de tempo. Os ambulatórios estão cheios de trabalhadores estressados, com

problemas de saúde, mas quando estes são profundamente investigados, descobrem-se causas

psíquicas que são encobertas por seqüelas físicas.

Os acidentes de trabalho precisam ser relacionados também às causas subjetivas, que

se originam dos fatores psicológicos, determinantes da participação consciente ou

inconsciente do indivíduo. As Organizações desenvolvem programas internos de segurança

que proporcionam um alívio imediato aos trabalhadores, mas não podem arrancar as marcas, a

história trazida por cada trabalhador, suas questões pessoais e as pressões “do mundo” fora da

empresa.

Este trabalho foi realizado no período de fevereiro a junho de 2003, buscando refletir

sobre a dinâmica psíquica do trabalhador que antecede o comportamento que leva ao acidente.

Tem como objetivos: estudar a vivência subjetiva do trabalhador frente aos acidentes, discutir,

a partir da leitura teórica, os estudos de saúde mental e relações de trabalho e apontar aspectos

específicos da vivência dos acidentes de trabalho.

Foi dada ênfase à contextualização da Saúde Mental e trabalho que levantará questões

psíquicas que envolvem toda a trama de sofrimento, prazer do trabalhador para que se

compreenda o movimento psíquico do adoecer no trabalho e conseqüentemente, a ocorrência

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dos acidentes.

Para que se inicie o estudo do qual se pretende com o presente trabalho é

indispensável à busca pela definição conceitual e histórica do elemento principal que permeia

os sistemas de segurança e saúde do trabalhador: os acidentes de trabalho.

Fazendo-se um breve histórico do desenvolvimento da legislação de acidentes de

trabalho nota-se que na Antiguidade não se encontram vestígios em relação a nenhuma lei

referente ao assunto. Porém, no século XIII, nas leis das Índias, já começam a aparecer

instruções e normas quanto a acidentes ocorridos com os trabalhadores marítimos, entre os

quais era obrigatoriedade do capitão fornecer vinho à tripulação, para amenizar o frio, já

sendo apontados aqui, aspectos preventivos do acidente de trabalho. (Oliveira, 2003).

Com o passar do tempo, as normas sobre acidentes de trabalho foram se

desenvolvendo, sobretudo na Espanha, e principalmente com a Revolução Industrial, o

assunto passou a ser preocupação também em outros países. Assim, pouco a pouco, foi se

impondo um direito novo, reparador do dano que o acidente do trabalho poderia causar.

(Oliveira, 2003)

A primeira dificuldade encontrada é a de se atingir uma perfeita conceituação do que

constitua acidente de trabalho. Tanto que em alguns países da Europa é dos Tribunais a tarefa

de defini-lo, determinando se aquele fato submetido a julgamento se enquadra como acidente

de trabalho.

Isso pode causar injustiças, pois pelo entendimento do Tribunal, que atua fora do

ambiente de trabalho, a ocorrência de determinado fato pode apresentar dificuldades para sua

conceituação como um acidente de trabalho.

O Brasil, tomando outra posição, define o que seja o acidente de trabalho em todas as

suas leis acidentárias, construindo o conceito pouco a pouco, equiparando os acidentes de

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trabalho às moléstias profissionais, para os fins de reparação do dano sofrido.

O projeto que gerou a primeira lei acidentária no Brasil foi destacado em 1918 1, e

estabelecia a adoção de normas sistemáticas sobre o Direito do Trabalho. Não foi tarefa fácil

estabelecer o fundamento jurídico para justificar a indenização decorrente do acidente de

trabalho, uma vez que, a indenização inicialmente era baseada na prova da culpa do

empregador, cabendo ao empregado o ônus da prova. Também não ocorria a indenização por

culpa do operário e nem mesmo quando a ocorrência do acidente se verificava em relação ao

uso da máquina, caso em que a doutrina vigente inculpava tanto o empregado como o

empregador.

Mais tarde é o empregador que deverá responder por todos os riscos derivados da

atividade da empresa, entre eles, os de acidentes, não importando saber se houve culpa e nem

mesmo de quem. Essa lei abandona as causas pessoais preexistentes, considerando doença

profissional apenas o que for contraído pelo exercício do trabalho e que só por si poderia

causá-la.

As futuras leis já viriam por citar às perturbações funcionais, dando um novo sentido

ao conceito de acidente do trabalho, abandonando a causa voluntária e levando em conta

outros aspectos.

Hoje, segundo a Constituição Brasileira de 1988:

Acidente de Trabalho é aquele que ocorre durante o exercício do trabalho, que provoca lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho. Considera-se igualmente os casos ocorridos no percurso da residência e do local da refeição para o trabalho ou deste para aquele (Brasil (1991), apud Mendes, 2002, p.329).

Contudo, mesmo como uma definição mais precisa do que venha a ser considerado

como acidente, mesmo que este tenha ocorrido no local do trabalho, não aparecendo às

exigências citadas anteriormente, não tem razão de ser enquadrado como tal. O trabalhador

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pode ter sofrido um acidente com perdas materiais consideráveis, ter escoriações, mas se ele

foi devidamente encaminhado para outras funções e não faltou ao trabalho no dia seguinte,

isso não será considerado e registrado como acidente.

Nota-se aqui um descaso das Organizações (entendida como estruturas, normas,

procedimentos, chefia, divisão hierárquica, relações de trabalho e de poder), por não registrar

um acidente apenas porque segundo os escritos da lei todo evento que foge a determinadas

exigências não deve ser considerado acidente. Deixa-se de lado que o mais importante é

preservar a saúde física e moral do trabalhador e fica cada vez mais claro que as estatísticas de

acidentes não são plenamente confiáveis.

Outro ponto que prejudica a saúde física e moral da classe trabalhadora são as

conseqüências geradas pelos determinantes da miséria, da devastação e da exclusão social que

acontecem no momento atual. No dia-a-dia emergem questões que são pautadas nos efeitos

das mudanças tecnológicas com suas conseqüências sobre o trabalho, na instabilidade de

emprego e mercado, na mudança da estrutura familiar.

Ainda nas legislações e na visão das Organizações não fica claro a respeito do que o

indivíduo carrega de marcas da sua história. Não se evidencia que os fatores externos e as

pressões e cultura organizacionais sejam levadas em consideração na ocorrência de um

acidente.

As doenças ocupacionais, os acidentes e a morte no trabalho não são episódios

isolados, que só podem ocorrer por fatores determinados apenas pelo local de trabalho. Existe

uma relação entre os fatos, condições e conseqüências, devendo-se perceber que a dinâmica

das relações no ambiente de trabalho não ocorrem entre iguais. Ressalta-se, que tudo o que

diz respeito aos trabalhadores acaba por tornar-se um jogo de esconder a realidade vivida por

eles, que são responsabilizados também, pelo seu próprio acidente.

1 http:// www.fimperj.org.br/artigos/acide/aa01.htm

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A legislação brasileira da Previdência Social (Brasil (1997), apud Mendes, 2002),

mesmo com conceitos atualizados presentes na nova Constituição ainda oculta um número

grande de acidentes através de mecanismos reguladores próprios. Não combina com as

empresas que tem alta lucratividade, que precisam manter a produtividade, um índice alto de

acidentes, fazendo com que aqueles que forem considerados menos graves, não sejam

registrados. Outra prática adotada é o remanejamento de função até que o trabalhador

recupere sua saúde.

Mas o que, atualmente, vem a ser considerada a palavra saúde? Será que o conceito

real é o mesmo entendido pela Organização?

A Constituição Federal de 1988 (Brasil apud Mendes, 2002, p.327), passa a entender a

saúde como resultante das condições de alimentação, educação, salário, meio ambiente,

trabalho, transporte, emprego, lazer e liberdade, acesso à propriedade privada da terra e

acesso aos serviços de Saúde.

O que se percebe aqui é a complexidade do assunto e a importância de se apreender o

processo em sua totalidade. Como a Organização só entende a recuperação da saúde como um

simples remanejamento de função cabe alternativas de intervenção que contemplam as

diversas formas da complexa relação de saúde-doença-trabalho.

É necessário pensar a Saúde do Trabalhador desde a sua organização na sociedade e

no trabalho, compreendendo-se essa realidade sob uma perspectiva de sujeitos coletivos,

conhecendo-os e reconhecendo-se historicamente. (Mendes, 2002, p. 326).

Compreendendo-se a dinâmica da produção, as condições de trabalho e o modo de

vida de cada trabalhador, é possível entender os processos de saúde, adoecimento e acidentes

no ambiente de trabalho.

A saúde e a doença envolvem uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana e de atribuição de significados. Pois a saúde e doença exprimem

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agora e sempre uma relação que perpassa o corpo individual e social, confrontando com as turbulências do ser humano enquanto ser total (Mendes, 2002, p. 327).

Não há como separar a história do indivíduo de seu trabalho. A Organização “bate de

frente” com as questões individuais, o que tem acarretado um aumento exacerbado de doenças

geradas pelo trabalho. Continua-se tratando o acidente apenas como descuido,

desconhecimento das normas de segurança e até, mesmo, como imprudência do trabalhador.

Não se dá conta, ainda, dos processos psíquicos que antecedem o comportamento. Os

acidentes nunca cessarão de acontecer, porém, a partir do momento em que a Organização for

capaz de compreender o ser humano em sua totalidade, estes possam diminuir suas

ocorrências.

Analisando-se as profundas transformações que vêm ocorrendo no trabalho, observa-

se o crescente número de estudiosos a buscar o entendimento desses complexos processos que

cerceiam as relações de trabalho e indivíduo, portador de crenças e desejos, e seus reflexos no

processo de adoecer e se acidentar no trabalho.

No começo do século XX, nota-se o início de estudos profundos a respeito das

relações de trabalho com os processos psíquicos. A crescente industrialização, a prolongada

jornada de trabalho, causou efeitos físicos e psíquicos nos trabalhadores. Estes não

participavam do processo produtivo, uma vez que suas tarefas eram divididas, o que gerava o

desconhecimento sobre a totalidade do processo. (Dejours, 1988).

Apesar de todos os esforços para se estudar o funcionamento psíquico, não foi ele

quem apareceu como primeira “vítima” das empresas, mas foi o corpo, dócil e domesticado

entregue a estrutura da Organização. Corpo fragilizado e privado de seu próprio aparelho

mental, domesticado e explorado pelo sistema de trabalho. (Dejours, 1988, p. 21).

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Com a exploração crescente, e com um agravamento do estado de saúde de vários

operários, começam a surgir os movimentos por parte da classe trabalhadora, em busca de

melhorias nas condições de trabalho e saúde.

Após a Segunda Guerra Mundial, os movimentos operários começam a ganhar mais

força para desenvolver ações que visavam as melhorias das condições de trabalho.

Defenderam a criação de atitudes de prevenção a acidentes, lutaram contra as doenças geradas

pelo trabalho, revelaram, de certa forma, o corpo. O corpo se tornou evidência; evidência da

exploração, o que faz surgir um questionamento de todas as ciências e a criação de leis que

iniciaram a modificação na estrutura de trabalho. (Dejours, 1988).

Mas será que realmente houve mudanças a respeito do trabalho? Será que a redução da

jornada de trabalho, os direitos adquiridos contribuíram para uma mudança no cenário atual?

Talvez o que tenha mudado, sejam os conceitos que antes eram permitidos em relação ao

trabalho: obediência, produtividade, exploração... hoje se exalta a criatividade, o talento, mas

realmente a Organização não mudou. Ainda que de uma maneira mais camuflada, continua

entrando em choque com os ideais de trabalho, ou então, por que haveria os ambulatórios de

estar lotados de “doentes” ocupacionais e o índice de afastamento por lesões geradas pelo

trabalho estaria tão alto?

Porém, o que se pode notar, de todo o avanço alcançado pelos movimentos operários,

foi a tese de que para que a exploração se evidenciasse era necessário marcas visíveis ao

corpo. Somente mais tarde, se começa a revelar os fatores psíquicos, que não são visíveis,

mas são participantes ativos nas relações de trabalho e saúde.

O estudo das repercussões da Organização sobre o aparelho psíquico será evidenciado

por Christophe Dejours, com a publicação de seu livro, intitulado: A Loucura do Trabalho:

Estudo de Psicopatologia do Trabalho, lançado em 1980, na França.

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Dejours (1988) levantou a importância de não se reduzir o trabalho somente às

pressões físicas, químicas e biológicas do posto de trabalho, que são denominadas por

condições de trabalho. Era necessário, e ainda é, estudar o trabalho por uma dimensão

organizacional, isto é, considerar a divisão de tarefas e a dinâmica das relações.

As relações humanas, materializam-se na divisão dos homens. Os trabalhadores são

divididos hierarquicamente pela Organização do trabalho, sendo comandados e

supervisionados, tendo suas relações definidas e reguladas pelo modelo desta Organização.

A Organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma Organização do Trabalho que os ignora (Dejours, 1988, p.56).

É do choque entre a história individual e os preceitos da Organização que nasce o

sofrimento, que se traduz em insatisfação, medo, angústia, doenças ocupacionais e acidentes.

É a partir desta descoberta que nasce a Psicopatologia do Trabalho, que propõe uma visão,

ainda que limitada, inovadora a respeito do trabalhador.

Uma vez descoberto o sofrimento psíquico, essa nova ciência de dedica a estudar,

também, o modo como determinados indivíduos conseguem se manter sadios num ambiente

que aparentemente só pode causar danos à saúde.

A Psicopatologia do Trabalho tem como finalidade fazer a análise dinâmica dos

processos psíquicos mobilizados pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho

(Dejours, Abdoucheli, 1994, p.120). A investigação tomará como ponto principal, os conflitos

que possam surgir do encontro entre um indivíduo, portador de uma história exclusiva, que já

existia antes da atividade profissional e, uma Organização, que já vem sendo construída

independente da vontade desse indivíduo.

O termo Psicopatologia não foi empregado para designar apenas a doença, mas

também para estudar a normalidade. Quais os recursos internos que determinados indivíduos

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se permitem utilizar para se manterem saudáveis num ambiente pouco saudável. Entre as

pressões do trabalho revela-se um indivíduo capaz de compreender sua situação e, além de

tudo, ser capaz de reagir e se defender. Porém, essas defesas são intimamente ligadas ao que

cada sujeito é em sua vida psíquica, por isso não se encontra um modelo de estratégias

defensivas*.

É o homem que fracassa nas suas defesas, que não consegue mais burlar o sofrimento

e, conseqüentemente, adoece e se acidenta, o objeto de estudo do presente trabalho. E, desta

forma, não há como se fugir de toda a história da saúde mental para que se possa compreender

toda a complexidade das relações que envolvem o homem e seu trabalho.

O que vem a ser considerado sofrimento?

O sofrimento designa então, em uma primeira abordagem, o campo que separa a doença da saúde [...]. Entre o homem e a Organização prescrita para a realização do trabalho, existe às vezes, um espaço de liberdade que autoriza uma negociação, invenções e ações de modulação do modo operatório, isto é, uma invenção de operador sobre a própria organização do trabalho, para adapta-la à suas necessidades, e mesmo para torna-la mais congruente com seu desejo. Logo que esta negociação é conduzida a seu último limite, e que a relação homem-organização do trabalho fica bloqueada, começa o domínio do sofrimento – e da luta contra o sofrimento (Dejours apud Silva, 1994, p.15).

Estas estratégias tomam forma quando observamos o uso de bebidas alcoólicas, em

certos segmentos profissionais, a fadiga, os altos índices de doenças ocupacionais. A noção de

que o trabalho pode causar sofrimento parece bastante evidente: é como se fosse possível

enxergar o sofrimento no rosto (Jaques, Codo, 2002, p.19).

É nesse âmbito que se inscreve a psicopatologia do trabalho: o sofrimento está no

centro da relação psíquica do homem com o trabalho. Não se trata de eliminar esse sofrimento

da situação de trabalho, nem tão pouco eliminar o trabalho. Dentre outras diretrizes, tal

ciência trata das conseqüências mentais do trabalho, mesmo na ausência de patologias.

Especificamente, trata do impacto da Organização sobre a saúde mental do trabalhador.

* São os esforços que o trabalhador faz para adequar o trabalho às necessidades de sua estrutura mental.

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Cada indivíduo reage de forma particular frente às situações de trabalho e já chegam a

este “carregando” sua história de vida pessoal. De um lado, se está alguém com a necessidade

de encontrar prazer e de outro, a Organização, que tende a instituir um modelo automático e

ao enquadramento, mesmo que de forma sutil, do trabalhador a um certo modelo.

O estudo desta sistemática pode ser encontrado já nos escritos de Freud (1930) sobre o

Mal estar na civilização. Para Freud, a atividade do homem caminha em duas direções: busca

de ausência de sofrimento e desprazer e, de experiência de prazer (Mendes, 1995, p.35).

[...] Não é possível, dentro dos limites de um levantamento sucinto, examinar adequadamente a significação do trabalho para a economia da libido. Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que esta técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles necessários, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao do que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas só trabalha sob pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis. (Freud, 1974, v. XXI, p.99)..

O prazer relaciona-se à satisfação de necessidades, o sofrimento caracteriza-se por

sensações desagradáveis, devido a não satisfação de necessidades. Estas sensações são de

ordem inconsciente relacionadas a desejos profundos, revelados, em grande parte, em forma

de projetos de vida (Mendes, 1995).

O trabalho faz parte da realidade exterior, e pode causar prazer ou sofrimento, desde

que os desejos inconscientes possam ser atendidos pelas condições externas.

Submetidos a excitações vindas do exterior (informações visuais, auditivas, táteis, etc) ou do interior (excitações instintuais ou pulsinonais, inveja, desejo), o trabalhador retém energia. A excitação quando se acumula, torna-se a origem de uma tensão nervosa. Para liberar esta energia, o trabalhador dispõe de muitas vias de descargas que são, esquematicamente: via psíquica, via motórica e via visceral (Dejours, 1988, p.64).

Não se que dizer que os homens apenas sofrem no trabalho, pois isso não é verdade. O

que se defende é a idéia de que se determinado trabalho não tem nenhum sentido para aquela

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pessoa, ela vai sofrer, ainda que de forma inconsciente. E para dar conta de sua insatisfação

precisará encontrar formas de se aliviar. As Organizações atuais, ainda que uma minoria, já

está se “preocupando” com a qualidade de vida no trabalho. Porém, mesmo que proponham

programas de segurança, de qualidade de vida, com o objetivo de aliviar as tensões geradas

pela ocorrência de acidentes, o que conseguem é apenas trazer a sensação de frescor ao

trabalhador. Não acabam com o sofrimento, com as marcas que cada um carrega dentro de si

e daí, a ocorrência de acidentes e doenças ocupacionais, mesmo que haja todo um movimento

de prevenção por parte da Organização.

Na relação do homem com o trabalho, não somente se “ganha” como também se

constrói a vida, estabelecendo-se um status social que não se restringe ao ambiente de

trabalho. Pelo contrário, a atividade profissional, é parte intimamente ligada ao universo

individual e social de cada um, podendo ser traduzida tanto como meio de equilíbrio e de

desenvolvimento quanto como fator diretamente responsável por dano à saúde.

A conexão entre a instância psíquica e os vários âmbitos das esferas sociais, é assim

sintetizada por Seligmann-Silva2 (1992): Há uma interação dinâmica e contínua entre

instância psíquica (individual) e experiência laboral (coletivo e social). As dinâmicas que se

processam articulam vivências individuais que, pela via da instersubjetividade, atingem a

instância coletiva.

Em qualquer circunstância ou situação o trabalhador não será nunca considerado um

indivíduo isolado. Ele é sempre parte ativa das relações. Relação com os colegas de trabalho;

relação com a Organização; com a comunidade; ele pertence a um coletivo. Ele é um ser que

carrega desejos e projetos de vida.

E é nesse ponto, que Dejours (1988) enfatiza que a Organização do trabalho é

geradora de conflito na medida que opõe o desejo do trabalhador à realidade limitada do

2 http:// www.nutline.ufop.br/ artigoX.htm

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trabalho. A destruição desse desejo** se dá em função de dois pontos cruciais, o conteúdo das

tarefas, que separa o homem do processo produtivo, e as relações humanas.

Fica bem claro, que não é o ato de trabalhar que pode trazer prejuízos a saúde mental

do indivíduo, pois o trabalho é uma das fontes de prazer do homem, ele trás reconhecimento,

faz com que o homem se sinta útil, valorizado. O que pode trazer sofrimento é o modo como a

Organização do trabalho estrutura o trabalho; é a forma como ela trata as tarefas e os

indivíduos. Ela continua a tratar o trabalhador como uma simples máquina, cuja função é

apenas produzir; produzir muito, com qualidade e em pouco tempo. E é por isso que ele sofre;

por não gostar de trabalhar em determinada função, mas precisa continuar para que possa dar

o sustento a família; não conhece bem o processo produtivo de toda a empresa, por ter sua

função tão especializada e ter que se ater só a ela que nem pode conversar sobre o que a

fábrica produz; entre outros motivos, estes são os pontos em que o sofrimento aparece, e é a

Organização quem contribui para que isso se agrave ou não, pois é ela quem dita as regras.

Sob o domínio do modelo taylorista de produção (alta jornada de trabalho, salários

baixos, produtividade acima do possível), o trabalhador foi submetido a um tipo de trabalho

repetitivo e sob pressão, no qual não sobra lugar para a atividade fantasiosa, que vem do

universo dos desejos. Como conseqüência, acumula-se a energia psíquica, transformada em

fonte de tensão, fraqueza orgânica, além de acidentes e patologias graves. (Dejours, 1988).

E parece se tratar aqui de um passado muito distante. Mas se a situação dos

trabalhadores atuais for analisada profundamente, se constatará que o modelo taylorista ainda

esta lá, escondido sob as vestimentas de um novo modelo de gestão. Não há como separar os

acidentes de trabalho de toda a trama de sofrimento embasada nas estruturas da Organização.

O indivíduo não suporta mais, ainda que inconscientemente, a situação em que se encontra;

** Entendido, aqui, como conceito da psicanálise, ligado ao inconsciente, se refere ao não atual, a um lugar simbólico, se inscreve no individual e no subjetivo.

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esgota todas as suas fontes de defesas e estratégias, e se coloca em uma situação de risco, às

vezes, até mesmo, com a intenção de se auto punir por não ter sido capaz de se defender da

situação dolorosa em que se encontrava; ele fica debilitado, desatento, vulnerável as situações

de risco e o inevitável ocorre – ele se acidenta.

O que aconteceu desde sempre na história do trabalho, é que a grande maioria das

pessoas, não se dedica ao trabalho como se dedicam a outras formas de obtenção de prazer.

Encaram-no apenas como necessidade de sobrevivência. O trabalhador busca o prazer na sua

atividade laboral, nas relações de trabalho, porém, o que vem encontrando, principalmente na

atualidade, são condições contrárias à satisfação. Ainda são minoria aqueles que podem se

gabar de trabalhar porque gostam e se sentem realizados com a atividade profissional que

exercem. Está-se vivendo na “lei das Selvas”, onde o mais forte é quem sobrevive. As pessoas

não podem se dar ao luxo de escolher no que querem trabalhar; precisam é de trabalho,

aceitando as condições mais adversas e salários baixíssimos, apenas com a finalidade de

conseguir sobreviver. Os sintomas específicos desta falta de prazer, pois trabalhar para

sobreviver não significa também trabalhar com prazer, são o crescimento das doenças

ocupacionais e dos próprios acidentes de trabalho.

O que agrava o sofrimento psíquico é que este não é visível ao corpo como é, o

sofrimento físico. Ele é vivido de forma muito particular, pois cada indivíduo é um ser único

carregado de sua história de vida. É uma falta de consideração com a empresa, com os amigos

de trabalho, considerar a hipótese de que se está doente, ou que se acidentou, devido às

insatisfações com o emprego. As pessoas sofrem caladas, e o silêncio se transforma em

tensão; tensão esta que atinge a atividade psíquica, e como esta é “a sala de comando” para

todas as relações com o exterior, conseqüentemente, os prejuízos serão sentidos pelos

familiares, pelos amigos. Mas não é possível admitir que o trabalho causou qualquer

problema na saúde, pois mais vale o emprego do que o desabafo de qualquer trabalhador

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desempregado.

De um lado está a Organização, caracterizada pela rigidez e por se constituir um

sistema de imposições e restrições. De outro lado, o funcionamento psíquico, caracterizado

pela liberdade de imaginação e expressão dos desejos inconscientes do trabalhador (Mendes,

1995, p.35).

Apenas para se apontar à complexidade do assunto que envolve o sofrimento psíquico

e, conseqüentemente, o foco central deste trabalho, que são os acidentes, ressalta-se aspectos

importantes do mundo interior do indivíduo.

Cada um é constituído de uma individualidade exclusiva, condicionada por valores

sociais comuns, mas que são percebidos e interpretados de forma bastante particular. Existem

os elementos emocionais que não são conscientizados, que orientam, que distorcem,

originando interpretações diversas para uma mesma verdade; verdade aquela, concebida pelo

sujeito.

Conta, ainda o indivíduo, com a hereditariedade, os elementos geneticamente

transmitidos, que nem sempre constituem uma herança desejável e sadia.

Ainda se não bastasse, o indivíduo é afetado pela cultura, pressões externas,

desenvolvimento tecnológico, realidade econômica, uma gama de situações e novos valores

para os quais o indivíduo não foi preparado e aos quais deve-se acomodar imediatamente, o

que não significa que estará integrado a esse novo momento. Não há como separar o

indivíduo do momento econômico e social que está vivendo. O mundo está em crise, a

ameaça do desemprego assombra todos os lares, a incerteza quanto ao futuro está presente, os

baixos salários, a violência crescente... a miséria... não dá pra separar o homem no trabalho do

mundo lá fora, ele está inserido nesse contexto, é agente participativo do momento da história.

Cabe então, que a análise do trabalho e, principalmente do trabalhador, se faça dentro

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dessa sistemática, uma vez que, o indivíduo é no trabalho o mesmo indivíduo fora dele. É

necessário enxergar o Ser Humano em toda sua complexidade.

Apesar da complexa “teia” que envolve a formação do Ser Humano e suas relações

com o trabalho nota-se que este último também faz parte da satisfação dos desejos mais

internos.

O trabalho não é um lugar que causa apenas prazer ou apenas sofrimento, mas se

origina da dinâmica interna das situações e da Organização do trabalho, é produto de tal

dinâmica, das relações subjetivas, do modo de agir e reagir dos trabalhadores, permitidos pela

Organização.

Tanto o modelo de Organização, como as relações subjetivas dos trabalhadores com o

trabalho, tem papel fundamental na determinação de vivências de prazer, com conseqüências

para a produtividade. (Mendes, 1995).

Se o homem trabalha feliz, satisfeito, vai produzir melhor, com mais qualidade; se

pode criar em cima de sua tarefa, o produto certamente terá um resultado muito melhor do que

quando a realiza sem a menor motivação, sem estar satisfeito com o que faz. Da mesma

forma em que é evidente o sofrimento no rosto do trabalhador que sofre, também é evidente a

satisfação, a alegria de se trabalhar em algo prazeroso, que trás, além de sobrevivência,

realização pessoal.

Os estudos de Dejours vieram contribuir, também, sobre esse aspecto, uma vez que dá

enfoque a relação com o prazer que pode existir entre o trabalhador e seu trabalho. Na

realidade concreta e na vivência individual do trabalho, não se encontra apenas sofrimento,

mutilações ou, até mesmo, mortes. É necessário, também, que se compreendam as fontes de

prazer sofrimento, para se tentar um maior aprofundamento nas relações de trabalho e saúde.

Dejours (1988), destaca o sofrimento no trabalho, porém, observou que a maior parte

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dos trabalhadores dá conta de manter um satisfatório e saudável estado de funcionamento

mental, defendeu a necessidade de enfatizar os mecanismos de enfrentamento de tal

sofrimento, para que se compreenda melhor os recursos usados pelos trabalhadores “contra” a

estrutura da Organização.

Na realidade, será que é mesmo só uma minoria que sofre com o trabalho, ou melhor,

com a estrutura da Organização? Com este mundo moderno, acelerado, instável, será que as

estratégias defensivas também não estariam gerando um acúmulo de tensão e isso também

resultaria em reações inadequadas? Volta a pergunta que não quer calar: Por que então há um

número tão grande de profissionais estressados, afastados do trabalho e, até mesmo, se

acidentando?

Ressalta-se mais uma vez, toda a complexa dinâmica em que o homem está envolvido

e a importância dos estudos sobre saúde mental e trabalho.

Faz-se necessário, apontar, uma crítica feita a Dejours, por Wanderley Codo (2003)3,

estudioso das relações entre saúde mental e trabalho, no Brasil. Para ele, as relações de

trabalho são mais difíceis de detectar do que se poderia supor a teoria dejouriana.

Na sua visão, o trabalho e seus efeitos são difíceis de detectar devido a onipresença do

primeiro. Suas definições fundamentais são encobertas pelo modo como o trabalho se

organiza na sociedade. Além disso, as relações entre saúde mental e trabalho se manifestam

num plano individual estrito, apesar de determinados pela estrutura social.

Como já ressaltado anteriormente, o trabalho tem uma conotação muito forte de

sobrevivência, e valor, independente do trabalho que exerça. Quem fica falando mal do

emprego está “ferindo a honra” da empresa e de toda a sociedade, pois com tantos

desempregados, ninguém deveria reclamar se está trabalhando; deveria se dar por satisfeito e

3 http: www.nutline.ufop.br / artigoX.htm

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assim levar a vida, pois o que importa é o dinheiro no final do mês, ainda que pouco, mas que

permita a sobrevivência e a “honra de ser um assalariado”.

Para Codo (2003, p.4)4, uma das poucas coisas que se sabe sobre saúde mental e

trabalho é o fato de que a consciência do risco é fator ansiogênico que potencia o próprio

risco.

O que não se pode, é dar somente evidências de que o trabalhador sofre, pois isso

poderia desencadear um mal estar geral, mas sim, estudar profundamente a dinâmica do

trabalho, mas tomando como peça fundamental, o trabalhador, que muitas vezes é esquecido.

É preciso que as próprias Organizações, assim como Dejours já apontava, se flexibilizem, de

modo a conceder maior liberdade de operação ao trabalhador, o qual passaria a atender, ainda

que parcialmente, seus desejos, as necessidades do seu corpo e as variações de seu estado de

espírito.

A Saúde mental deve vir, não para destacar o sofrimento, mas proporcionar que a

própria Organização se questione: Quais estratégias organizacionais podem ser eficazes na

promoção da saúde dos indivíduos?

Essa é uma realidade, ainda um pouco distante, uma vez que, são tomadas medidas

que agem como paliativo ao sofrimento dos trabalhadores. Desta forma, o sofrimento fica

mascarado, e só pode ser revelado através de uma sintomatologia, que tem características

próprias de cada profissão. É mais fácil à consciência, e à Organização, aceitar uma

enxaqueca, uma dor muscular, o próprio stress, do que assumir o medo ou a insatisfação

diante do trabalho.

O que se nota diante de todo o desenvolvimento da estrutura do trabalho e nos novos

modelos de gestão, é a tentativa de melhoria nas condições de trabalho, afim de “solucionar”

4 http:// www.nutline.ufop.br/ artigoX.htm

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os motivos que levam o indivíduo a estar insatisfeito com seu trabalho. É a chamada, e tão

falada, Ergonomia.

Modificando o ambiente de trabalho, acredita-se estar diretamente atingindo a

vivência subjetiva do trabalhador, mas isso não seria possível, pois para se alcançar a

significação profunda da vivência subjetiva de cada indivíduo só através de técnicas ligadas

ao discurso individual, como a psicanálise, por exemplo, o que não é o objetivo do estudo

entre saúde mental e trabalho. O que se visualiza diante das práticas de ergonomia, é uma

apreciação global dos efeitos da intervenção ergonômica que vai direto ao objetivo (Dejours,

1988, p.55).

É certo que, num primeiro momento, a intervenção ergonômica trará um grande

benefício para os trabalhadores: melhoria na postura, diminuição das dores “na coluna”,

melhoria no local de trabalho, entre outras mudanças; entretanto, com o passar do tempo, toda

a sensação de alívio vai se desfazendo, pois vão se revelando outros prejuízos, que estavam,

anteriormente, escondidos, o fato de que no fundo nada mudou (Dejours, 1988, p.55).

Não se pode esquecer que cada indivíduo vai vivenciar a situação do trabalho de sua

forma particular, e é isso que a Organização deveria “enxergar”. Não há como adequar toda a

estrutura organizacional ao modo subjetivo de cada trabalhador, mas o que se quer apontar é

que apenas práticas que atinjam o objetivo, não vão amenizar o que o trabalhador carrega

dentro de si, que talvez nem ele próprio, tenha consciência. Precisa-se dar conta, de que o

indivíduo tem uma vida interior, que engloba trabalho, cultura, história de vida; ele não é só

mais uma máquina produtiva.

No centro da relação saúde-trabalho, a vivência do trabalhador ocupa um lugar particular que lhe é conferido pela posição privilegiada do aparelho psíquico na economia psicossomática. O aparelho psíquico seria, de alguma maneira encarregado de representar e de fazer triunfar as aspirações do sujeito, num arranjo da realidade suscetível de produzir, simultaneamente, satisfações concretas (proteção de vida, saúde do corpo) e simbólicas (significação do trabalho nas suas relações com o desejo) (Dejours, 1988, p.62).

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Seria muito bom, se realmente a realidade externa estivesse de acordo com que o

indivíduo idealiza na sua vida psíquica. Mas isso será impossível, pois é necessário ao

desenvolvimento biológico e psíquico, o sofrimento, para que o indivíduo aprenda a tolerar

frustrações e desprazeres. Resta ao trabalhador, ou melhor, a todos os homens, aprender a se

defender e viver de maneira satisfatória, ou pelo menos tentar se permitir viver de forma mais

satisfatória possível, já que inseridos em uma cultura, em um certo momento econômico (que

na atualidade é o capitalismo globalizado), fica difícil ir em busca daquilo que se deseja. Este

seria um privilégio de poucos.

Uma vez constatada a existência da relação entre vida psíquica e sofrimento no

trabalho, é necessário relacionar os acidentes de trabalho às causas subjetivas, que se originam

de fatores psicológicos, determinantes da participação consciente ou inconsciente do

indivíduo na ocorrência dos acidentes.

O acidente desvela-se como a expressão máxima do fracasso das estratégias de

resistência adotadas pelos trabalhadores. (Mendes, 2002, p.239).

E isso é bem verdade quando pensamos sobre como é capaz de se acidentar alguém

que domina o processo e detém todo um saber sobre as regras de segurança de determinada

atividade? Os acidentes, em sua maioria, quando analisados, acabam sendo sofridos por

pessoas extremamente envolvidas no processo de segurança. Mas é aí que entra a questão:

será que realmente estes trabalhadores estão satisfeitos diante da estrutura da Organização? E

o “mundo” fora da empresa, como está?

É necessário, na dinâmica dessas relações, confrontar e reconhecer os possíveis

ângulos obscuros que contribuem para a construção social da invisibilidade dos acidentes de

trabalho.

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Uma das vivências dos trabalhadores, ainda muito ignorada é a questão do medo. Ele

está presente em todos os tipos de trabalho. Muitas atividades estão expostas a riscos

relacionados à integridade física, ao acidente de trabalho. O risco é exterior, inerente ao

trabalho, independe da vontade do trabalhador. (Dejours, 1988).

Na grande maioria das vezes, às Organizações, propõe aos trabalhadores apenas

medidas preventivas individuais, que podem ter caráter material (equipamentos de proteção)

ou psicológico (regras de segurança).

Os equipamentos de segurança podem denunciar aquilo que o ser humano mais teme:

a constatação de que não são invencíveis e que são suscetíveis a se acidentar. Como não são

trabalhados os medos, as necessidades, os desejos, estes equipamentos só fazem denunciar a

impotência frente às situações reais de risco.

A partir de pesquisas realizadas com trabalhadores de indústrias químicas, Dejours

(1988) concluiu que a questão principal é a ansiedade, em relação à qual se estrutura tudo que

diz respeito ao sofrimento mental dos trabalhadores.

Na empresa tudo lembra a possibilidade de ocorrência de um acidente ou incidente: cartazes, palestras, sinais luminosos, alarmes sonoros e visuais, presença de capacetes, luvas, destinados principalmente, a estimular a atenção – provocando medo, justamente - mais do que construir uma verdadeira proteção.(Dejours, 1988, p.75)

Isso pode ser notado no setor da construção civil. Quem nunca presenciou operários

sem capacetes, “pendurados” a uma altura enorme sem nenhuma proteção? O uso de

equipamentos de segurança pode representar para estes trabalhadores, sua fragilidade frente

ao alto grau de perigo que sua atividade oferece. No Brasil, 25% dos casos de acidentes de

trabalho são provenientes da construção civil.

São vários os motivos que podem levar a tal estatística; instabilidade da produção na

construção civil, perfil inadequado dos trabalhadores, pouca qualificação, insatisfação com o

trabalho por não ser tão bem remunerado. O mais importante é que, segundo pesquisa

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realizada por Izabel Borsoi (2002) com trabalhadores deste ramo de atividade, não há

identificação de aspirações pessoais com o trabalho, mas este seria apenas visto como fonte

de sobrevivência.

Além de todo o problema econômico que envolve estes trabalhadores, ainda se destaca

a questão do desejo, incompatível com a estrutura da Organização. A alta taxa de acidentes

neste setor não é por acaso, e não somente pela insegurança que ronda os trabalhadores, pois

uma das maiores preocupações das empresas hoje, é com segurança, uma vez que a imagem é

mais cara do que a reparação do dano sofrido. Manter a boa imagem, ficar longe de ser uma

empresa que lidera as estatísticas de acidentes, é a meta de qualquer empresa que deseja “estar

de bem” com o mercado. Mas se elas investem tanto, por que os acidentes não cessam?

É neste ponto que gira toda a problemática do tema proposto, pois o que se vê, são

soluções que visam melhorar o exterior, o dano físico, não são soluções que vão de encontro

com que o indivíduo tem de mais íntimo dentro de si. Mais uma vez se está deixando fora,

aquele que é o personagem principal de toda a questão: o trabalhador; aquele composto por

sonhos, desejos, cultura, genética, economia, individualidade...

A questão dos acidentes vai muito além de se investigar o local de trabalho ou de se

atribuir à falha humana pura e simples. Trata-se de algo muito complexo, devido a

imprevisibilidade e riqueza do Ser Humano.

O trabalhador precisa estar perfeitamente ajustado à função e totalmente integrado a

seu meio de trabalho. Daí se notam vários benefícios: melhor produtividade, se encontra a

possibilidade de realização profissional e pessoal, a satisfação na atividade exercida,

integração homem-ambiente de trabalho; tudo isso fará com que o trabalhador sinta-se

valorizado, o que irá refletir na sua auto-estima e nas suas relações fora do ambiente de

trabalho. Desta forma ele se torna mais cuidadoso, mais eficiente, passa a respeitar-se mais

frente aos perigos oferecidos pela tarefa que realiza.

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A importância dada pela Organização para a relação do homem com seu trabalho, no

aspecto da saúde mental, ainda é muito pouca. É muito cômodo e fácil, na análise do acidente

se dizer: “O operário distraiu-se”; “Ele esqueceu de colocar o equipamento de proteção”.

Simplesmente não se questiona o por quê do operário ter agido daquela forma e se acidentar.

Nas próprias literaturas sobre Segurança no trabalho, não se encontram autores que

destacam a importância de outros aspectos na produção de acidentes. Não se dão conta da

relevância de fatores sociais, econômicos, em oposição a fatores individuais, como sendo

participantes da dinâmica que envolve os acidentes de trabalho.

O enfoque da prevenção dos acidentes é, geralmente, nas tentativas de se mudarem

máquinas ou comportamentos dos trabalhadores. Como centro da análise e de mudança,

deveriam se incluir, também, as relações homem-organização-trabalho.

E a questão dos acidentes vai muito além de se enfatizar a relevância das relações de

trabalho e da Organização. Existe um ponto que só faz demonstrar o quanto este assunto

merece destaque.

Os acidentes de trabalho são encobertos da visão social através de vários mecanismos

que incluem segmentos distintos da sociedade. A legislação previdenciária e trabalhista,

excluem a maioria dos casos relacionados a acidentes. O que mais impressiona, são os

registros do INSS (Borsoi, 2002): os acidentados seriam fantasmas. Não se fornecem dados,

não sabem quem são ou quantos são os acidentados.

As empresas que negam o vínculo empregatício estão dificultando a investigação das

causas que resultaram no acidente. O próprio Poder Judiciário, com sua demora de

julgamento nas situações trabalhistas ligadas aos acidentes. Os acidentes se afundam numa

névoa. Estão obscuros, suas causas camufladas e bem escondidas.

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Observa-se o quanto às relações que envolvem poder, trabalho, desejo são encobertas

e trazem consigo um certo “bloqueio” em serem estudadas, ou a melhor palavra seria,

descobertas?

Estudar o verso e o anverso dos acidentes e mortes relacionados ao trabalho significou procurar-se dar visibilidade a essas histórias através do anticlímax da vida, reconstruindo a história de vida e de morte no trabalho de pessoas pertencentes a parcelas da sociedade que ficaram à margem das informações oficiais, buscando-se através das lembranças dos familiares das vítimas, conhecer essas histórias por inteiro. (Mendes, 2002, p.331). Faz-se necessário estudar as relações do homem com seu trabalho quando este ainda,

em vida possa falar. Devido a negligência das informações a respeito dos índices de acidentes

e sobre quem são e onde estão os acidentados, a família é, muitas das vezes, a única fonte de

informações para aqueles que pretendem se aprofundar no tema acidente de trabalho. As

empresas não falam, escondem números, fazem altos investimentos em segurança. Mais uma

vez, esquecem que o ser humano não é uma máquina; ele sofre, se alegra, tem desejos, pensa,

sente as conseqüências do mundo. Ele deve ser “enxergado” também em seu mundo interior,

e não somente em seu mundo orgânico.

E por ser enxergado só como um ser orgânico, é que entende seu trabalho, desde muito

cedo, como algo que exige força, disposição física, esforço. Foi este o sentido que aprendeu

desde pequeno, principalmente em classes de baixa renda. Sendo o trabalho entendido apenas

como fonte de sobrevivência, de sustento à família, e não também de prazer, deve ser

enfrentado e jamais temido, seja qual for a tarefa proposta, ou em muitos casos, imposta. O

homem está condenado ao trabalho.

Crescendo com esta visão, o indivíduo inicia-se na atividade laboral de forma a pensar

apenas no seu sustento. Está disposto a qualquer serviço, então começa sua caminhada em

busca de crescimento. Trabalha aqui, ali... e quando para e pensa, nota que realmente só

consegue o dinheiro para não morrer de fome. Trabalha, mas não tem direito à diversão, não

tem uma casa digna de seus sonhos, não pode dar aquele presente tão sonhado ao filho...

então, começa o sofrimento também em relação ao trabalho, pois a culpa é dele que não

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oferece o dinheiro necessário. E assim, surgem as bebidas, as dores de cabeça, a insatisfação

constante.

Nenhuma profissão ou ocupação é menor do que outra. O valor dado pela sociedade é

que as tornam diferentes. Existem varredores de rua felizes, satisfeitos com seu trabalho,

orgulhosos daquilo que conseguiram e existem médicos, com carros importados, casas

maravilhosas que são extremamente infelizes. Para cada um, o trabalho tem um sentido. E é

isso que deveria ser levado em consideração: o sentido que o trabalho tem para o sujeito, com

base na sua historia de vida.

E seu o sujeito não consegue entender o sentido que o trabalho tem para si, além da

sobrevivência, ele sofre, e como já foi dito anteriormente, para dar conta de seu sofrimento ele

o controla através de estratégias defensivas para impedir que sua insatisfação venha à tona.

Quando há uma deficiência nesses sistemas defensivos aparecem, então, os sintomas

orgânicos, desencadeando uma queda no processo produtivo. O fracasso total das estratégias

defensivas viria, então, por aparecer, nos acidentes de trabalho, que passa a ser percebido

como punição.

É como se o sofrimento e o cansaço fossem aspectos proibidos no trabalho. Só a

doença de fato, é admissível e, dessa forma, a consulta médica disfarça o sofrimento mental

que é aliviado com medicamentos. Dessa forma, tenta-se deslocar o conflito homem-trabalho

para um terreno mais neutro e com a medicalização desqualifica-se o sofrimento.

(Borsonello, Santos, Schimdt, 2002, p.33).

Apesar do sofrimento se disfarçar por outros tipos de doenças, há muito se sabe, que

uma quantidade considerável dos acidentes de trabalho ocorridos em qualquer parte do

mundo, tem suas origens no comportamento das vítimas. O que muitas das vezes, é

compreendido de maneira errônea, é porquê as pessoas se expõem, de maneira passiva, a uma

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condição de risco que pode levá-las as e acidentar, ou até mesmo a morrer, sem as devidas

precauções.

A inclusão do comportamento dos trabalhadores no conjunto de fatores causais dos

acidentes de trabalho, de forma alguma significa a culpa pelos acidentes e, conseqüentemente,

pelos danos deles decorrentes, nos trabalhadores. No processo de prevenir acidentes, o

comportamento do trabalhador, que foi expresso em si no ato do acidente não é relevante. O

que deve ser levado em conta e valorizado são os determinantes do comportamento, ou seja, o

que o motivou. O que havia de “errado” no ambiente, nas relações de trabalho e ainda na vida

do trabalhador que interferiam, consciente ou inconscientemente, no seu relacionamento com

o trabalho, é que deve ser tomado como ponto fundamental.

O “ato inseguro”, que é a atitude do trabalhador frente a uma situação real de perigo,

serviu e continua servindo para responsabilizar e, até mesmo, para culpar os trabalhadores

pelos acidentes sofridos. Ele vem ocultar, os agravos à saúde do trabalhador e os desarranjos

da Organização do trabalho. É claro que o erro na execução do trabalho, embora não

desejável, é possível de ocorrer, e todos nele podem incorrer. Mas para quem lida com a

prevenção de acidentes, não pode ser o erro por ele próprio motivo de atenção, mas sim as

causas do erro.

A abordagem da segurança do trabalho a partir do raciocínio de que o trabalhador erra ao executar suas tarefas porque é indisciplinado, displicente, negligente, imperito ou, simplesmente, imprudente [...] é tão nociva às práticas prevencionistas quanto à crença de que o trabalhador por conta e risco nunca erra, e quando erra é porque foi induzido ao erro por motivos totalmente alheios à sua condição de humano. Essa forma de conceber a relação do trabalhador com o trabalho além dos erros de concepção, culmina no desvio do eixo das atenções do ambiente e da organização do trabalho para a figura do trabalhador, criando, com isso, mais dificuldades no enfrentamento dos riscos de trabalho. (Oliveira, 2002, p.59).

O trabalhador que se acidenta acaba por ser caracterizado como sendo alguém que não

cumpriu as regras de segurança do trabalho, portanto, irresponsável. De outro lado, termina

duplamente vitimado. Vitimado em relação aos impactos do acidente e, principalmente, em

relação às suas causas, das quais, ele, na condição de cidadão e de sujeito nas relações de

trabalho tem pouco ou nenhum envolvimento. (Oliveira, 2002, p.59).

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É preciso, então, que as empresas se preocupem com o que cada um carrega dentro de

si. O ser humano é dotado de frustrações, medos, desejos, complexos, que não são fixos e

nem previsíveis. É necessário que se marque a existência de alguém que pense e que precisa

criar. Não é dar atenção a problemas individuais, uma vez que isso seria impossível em

empresas com alto número de funcionários, mas é criar mecanismos que valorizem o grupo de

trabalhadores, é ouvi-los, treiná-los, para que eles possam se sentir satisfeitos e para permitir

que eles construam um sentido pessoal para seu trabalho.

O estudo da sistemática entre saúde mental e trabalho pode trazer algumas

contribuições para a empresa, como o questionamento do modelo prescrito e sua influência na

produção, demonstrando que a gestão coletiva da Organização do trabalho permite a

transformação do sofrimento ou do prazer e possibilita o engajamento do trabalhador na

atividade sem maiores prejuízos a saúde mental.

E é dessa forma, que a abordagem dejouriana e sua psicopatologia do trabalho, vêm

contribuir para aqueles que se ocupam em estudar as relações de trabalho. A partir de Dejours,

foi construída a hipótese de que a Organização do trabalho exerce, sobre o homem, uma ação

específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento

que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de

esperanças e de desejos, e uma Organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de

natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma

modificação na sua atividade e no sentido de torná-la mais conforme às suas necessidades

fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isto é, quando a relação homem-trabalho é

bloqueada.

Dejours lança a hipótese, e outros pesquisadores continuam a estudar as relações de

trabalho. Hoje, não é mais hipótese a questão do sofrimento no trabalho. O crescente número

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de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho vem revelar o que está por trás das relações

homem e trabalho.

Os acidentes denunciam o esgotamento das forças do trabalhador, que lutou contra

toda sua insatisfação diante da tarefa exercida. Seu trabalho não tinha sentido para si, era

apenas visto como fonte de sobrevivência.

Não se quer dizer que o trabalhador se acidenta porque quer, mas diante de todo seu

conflito gerado pela estrutura da Organização, que os ignora enquanto pessoas que se

relacionam dentro e fora do trabalho, ele faz todo um movimento que acaba levando ao

acidente. E é este comportamento que antecede o acidente que merece atenção. O que motiva

alguém a agir de determinada maneira merece papel de destaque nas políticas de gestão e de

prevenção de acidentes.

Mas isso ainda não é possível. Seja pelas relações de poder, de cultura, não importa. O

que é importante é a relação entre o sujeito e a Organização do trabalho. Entretanto, o

problema não é criar novos homens, mas encontrar soluções que permitam por fim a

desestruturação de um certo número deles pelo trabalho.

Os estudos entre saúde mental e trabalho são de fundamental importância para o

entendimento do funcionamento psíquico do trabalhador. Os estudos que vem surgindo, estão

permitindo revelar dimensões do trabalho ainda pouco visíveis.

Freud tinha razão quando apontou que é quando o cristal se quebra que

compreendemos sua estrutura (Freud apud Codo, 2002, p.26). Foi quando o trabalhador

inventou o sofrimento que sua lógica pode ser entendida.

Entender o sofrimento diante do trabalho é tarefa árdua para aqueles que se dispões a

estudá-lo. Mas acima de tudo, é uma tarefa promotora de cidadania, na medida em que

transformaria os estudos sobre saúde mental e trabalho em um instrumento de recuperação da

dignidade do trabalho (Codo, 2002).

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Faz-se necessário pensar os acidentes de trabalho pela vertente do sofrimento psíquico.

Se os acidentes não tivessem sua origem também no funcionamento psíquico, os treinamentos

de segurança e os equipamentos de prevenção bastariam para reduzir o número de

ocorrências.

Este não seria um raciocínio apenas para os profissionais da saúde, mas também para

os de outros campos tradicionalmente fechados sobre si mesmos. O desafio é imenso e difícil

de ser absorvido.

Evidentemente, o médico do trabalho não precisará tornar-se psicanalista. Do mesmo

modo como os engenheiros e supervisores de produção, ao descobrirem a importância da

subjetividade, percebem que ela tem que ser considerada no planejamento da produção, sem

por isso se sentirem obrigados a se transformarem em psicólogos.

Fazer com que a Organização descubra e dê importância à subjetividade seria o papel

dos profissionais que se dedicam a estudar o funcionamento psíquico.

Levar em consideração os sonhos, desejos, condições históricas e econômicas como

participantes ativos na formação do indivíduo trabalhador é de fundamental importância, pois

só assim, se entenderá o valor que o sujeito dá a seu trabalho, e o modo como ele se comporta

diante do trabalho.

Fazer com que o ser humano entenda seu trabalho e passe a dedicar-se a ele também

com fonte de obtenção de prazer e felicidade pode ser julgado como utopia diante de um

sistema capitalista que tem como objetivo principal, o lucro.

Utopia seria pensar que os acidentes de trabalho podem deixar de acontecer. Conflitos

gerados pelo choque entre subjetividade e Organização nunca vão deixar de ocorrer, pois a

sociedade é bastante desigual e pensar em um “mundo perfeito” seria inviável, e não é do que

se tratou o trabalho em questão. No entanto, os acidentes poderiam ter seus índices

diminuídos consideravelmente, a partir do momento em que a Organização pudesse

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compreender um homem que é fruto das relações com a sociedade, economia, cultura, e não

um homem-máquina, como, apesar de ocultado por novos conceitos, continua sendo

entendido.

Mas a Psicologia hoje, não pode desconsiderar as variações que se apresentam na

complexa relação homem-trabalho. Tem o papel de apontar o sofrimento psíquico nas marcas

estampadas no corpo do trabalhador. Necessita revelar que as doenças e acidentes gerados

pelo trabalho são mascarados por medicações ou omissões de estatísticas nacionais. Precisa

resgatar a dignidade do trabalho como fonte de prazer e não como sofrimento ou obrigação.

Tem a dura tarefa de retirar do corpo o peso de carregar toda a insatisfação gerada pelo

descaso, ou falta de conhecimento, da Organização diante de sua condição de ser humano.

Pois...

...O corpo, na sua naturalidade, é um credor implacável; não perdoa dívidas contraídas, tem métodos próprios de acertos e não delega as ações de cobranças. O corpo não reconhece nenhuma linguagem que não seja a sua própria. A dor física não é orientada, enquanto revelação, por concepções racionais. É a linguagem da natureza que prevalece. (Oliveira, 2002, p.82).

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