o fogo como instrumento de manejo
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O fogo como instrumento de manejo
Em épocas remotas, antes do surgimento do homem, as
queimadas em ambientes savânicos eram causadas
basicamente por raios. Com o domínio do uso do fogo e o
grande crescimento de suas populações, o homem passou a
aumentar muito a frequência das queimadas nesses
ambientes, além de alterar a época de ocorrência das
queimadas naturais.
As informações disponíveis revelam que o uso do fogo era
muito difundido entre todos os grupos indígenas que
habitavam os cerrados. Por meio do fogo, eles manipulavam
o ambiente e se beneficiavam de diversas maneiras:
estimulavam a floração e a frutificação de plantas que lhes
eram úteis, atraíam e caçavam animais que vinham comer a
rebrota do estrato herbáceo, espantavam animais
indesejáveis – como cobras –, livravam-se de algumas pestes
(insetos, ácaros), “limpavam” áreas para instalar suas vilas e
seus cultivos, além de se utilizarem do fogo para sinalização
e em rituais religiosos.
Os indígenas tinham grande conhecimento dos efeitos que
queimadas em diferentes épocas do ano, ou de diferentes
intensidades, ou ainda em diferentes frequências anuais,
podiam ter sobre cada grupo de plantas ou de animais. Por
exemplo, sabiam que, se queimassem o Cerrado todos os
anos, poderiam prejudicar espécies arbóreas, matando os
indivíduos jovens, mas que, ao queimar a cada 2-3 anos,
estimulavam a frutificação das arbóreas e davam tempo aos
jovens para que desenvolvessem mecanismos de defesa
contra o fogo (como cortiça grossa); geralmente queimavam
o Cerrado na época seca, logo após o pequizeiro (Caryocar
brasiliense) lançar seus brotos (agosto/setembro), a fim de
não danificar sua floração e a produção de frutos, que se
iniciam em outubro, após a primeiras chuvas de verão. A
forma de precisar a época mais adequada para queimar era
por meio de algumas espécies indicadoras (aquelas de seu
interesse), como o pequi, cujo fruto era muito utilizado como
alimento e recurso medicinal. Numa escala temporal mais
refinada, também se guiavam pela formação de nuvens, pelo
nível dos rios, ou pelo comportamento de alguns animais
para saber quando melhor aproveitar os efeitos do fogo. Em
geral, queimavam pequenas áreas, ou áreas maiores num
sistema de mosaico, intercalando locais queimados com não-
queimados, que serviam de refúgio à fauna e às espécies de
plantas mais sensíveis ao fogo.
Parte desse conhecimento foi transmitida aos agricultores e
pecuaristas, porém, ao contrário dos indígenas, seu estilo de
vida sedentário não lhes permitia manter o sistema de
queima em mosaico, nem esperar alguns anos para voltar a
queimar o mesmo local, pois necessitavam maximizar,
temporal e espacialmente, os benefícios do fogo. Disso
resultou um aumento na frequência e na extensão das áreas
queimadas, ocasionando, muitas vezes, a degradação do
ambiente, em termos de esgotamento das terras, erosão,
exclusão do estrato arbóreo, extermínio de espécies nativas,
infestação por espécies ruderais, dentre outros.
Contudo, o mau uso do fogo não anula os benefícios que
seu bom uso possa trazer. Nas savanas, o fogo é um
instrumento de manejo precioso, que pode levar a uma
grande gama de resultados ecológicos, em médio prazo.
Lidando com os elementos que compõem o regime de uma
queimada – frequência, intensidade e época da queima – se
pode aumentar ou diminuir a produção de folhas e frutos,
estimular ou excluir determinadas espécies de plantas e
animais, aumentar ou diminuir os nutrientes disponíveis às
plantas no solo, ralear ou adensar a vegetação arbórea.
Assim, o uso adequado e planejado do fogo pode ser uma
estratégia de manejo boa e barata para a manutenção de
pastagens naturais e também de parques nacionais e
reservas biológicas que se destinam à proteção dos
ecossistemas do Cerrado.
A aversão ao fogo que hoje se vê nos órgãos ambientais e na
mídia provém de informações equivocadas, que confundem
conceitos válidos para as florestas tropicais com o
funcionamento e a dinâmica do Cerrado, coisas
completamente distintas. É uma pena, pois uma boa
compreensão do papel do fogo e de seus efeitos nos
ecossistemas de Cerrado, adquirida por meio da combinação
de conhecimentos técnico-científicos gerados por
pesquisadores e do conhecimento empírico acumulado pelos
habitantes do Cerrado, possibilitaria a aplicação adequada
dessa ferramenta, com bons resultados para a solução de
diversos problemas que hoje atingem os cerrados naturais e
semi-naturais.
Vânia R. Pivello é professora do Departamento de Ecologia,
do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo