o eurocentrismo e os desafios À efetivaÇÃo da ......gisely capitulino da fonseca o eurocentrismo...

27
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA GISELY CAPITULINO DA FONSECA O EUROCENTRISMO E OS DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA LEI 10.639/03 NO ÂMBITO ESCOLAR RECIFE 2019

Upload: others

Post on 03-Feb-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

    LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

    GISELY CAPITULINO DA FONSECA

    O EUROCENTRISMO E OS DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA LEI

    10.639/03 NO ÂMBITO ESCOLAR

    RECIFE 2019

  • GISELY CAPITULINO DA FONSECA

    O EUROCENTRISMO E OS DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA LEI 10.639/03 NO ÂMBITO ESCOLAR

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, como requisito para obtenção do diploma de Licenciatura Plena em História.

    Orientador: Prof. Dr. Gustavo Acioli

    RECIFE 2019

  • GISELY CAPITULINO DA FONSECA

    O EUROCENTRISMO E OS DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DA LEI 10.639/03 NO ÂMBITO ESCOLAR

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, como requisito para obtenção do diploma de Licenciatura Plena em História. Orientador: Prof. Dr. Gustavo Acioli

    Recife, ____ de Dezembro de 2019.

    Banca Examinadora

    _________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Acioli

    DeHist – UFRPE

    _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lúcia Falcão

    DeHist- UFRPE (Examinador interno)

    _________________________________________ Prof. Dr. Lucas Victor Silva

    DEd - UFRPE (Examinador interno)

  • Sumário

    Apresentação...........................................……….......................................…..…....... 6

    Artigo

    RESUMO……………….…………………………………...……………………………......7

    ABSTRACT.…………………………………………...……………………………….........7

    INTRODUÇÃO………………………………………..…………………………………...…7

    A COLONIALIDADE DO PODER: O EUROCENTRISMO E A HISTÓRIA DA

    ÁFRICA…...………………….…………………………………………………………..…..9

    EUROCENTRISMO NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA: OS DESAFIOS À LEI

    10.639/03………………………………………………………………………………...….12

    Importância da Lei 10.639/03 e de suas diretrizes curriculares…………………...….14

    A colonialidade nos currículos escolares……………..……………………………..…..15

    Livros didáticos e eurocentrismo: empecilhos para uma real abordagem da

    África………………………………………..…………………………………………….….18

    POR UMA DECOLONIALIDADE DO SABER.………..…………..…..……...…….….21

    CONSIDERAÇÕES FINAIS.…………………………………..…………………....…….23

    BIBLIOGRAFIA………………...…………………………………………………………..24

  • 6

    Apresentação

    Este trabalho tem o objetivo de analisar o eurocentrismo como um obstáculo à

    efetivação da Lei 10.639/03 e de suas diretrizes curriculares, no qual se relaciona com

    a obrigatoriedade do ensino de História da África e afro-brasileiras nas escolas do

    país, debatendo acerca das dificuldades de implementação desta lei no âmbito

    escolar. Desta forma, a modalidade escolhida para discutir este tema foi a de artigo

    acadêmico, de cunho qualitativo. Foi realizada uma revisão bibliográfica, utilizando-se

    dos principais autores e obras sobre a temática em questão, contextualizando e

    demonstrando estudos que propiciem uma revisão concisa sobre a problemática.

    Assim, o artigo dispõe-se a ser apresentado como o Trabalho de Conclusão de Curso

    (TCC).

    É importante ressaltar, ainda, que a justificativa para a elaboração do trabalho

    advém de um contexto que se revela interligado à importância da Lei 10.639/03 e de

    suas diretrizes curriculares. Além disso, é primordial que se realize uma compreensão

    desta lei e de suas implicações (por parte dos docentes e professores em formação),

    para que o ensino de História da África e afro-brasileira possa não apenas ser melhor

    lecionado nas salas de aulas, mas que possa ser compreendido quanto à sua

    representatividade para os povos negros e descendentes afro-brasileiros.

    O trabalho tem como pressuposto para análise o Pensamento Decolonial

    Latino-americano e o conceito de “colonialidade do poder”, que será melhor

    apresentado ao longo do artigo e que estará presente nas abordagens acerca do

    eurocentrismo e de como este se encontra nos estudos de alguns autores que tratam

    sobre as abordagens curriculares e dos livros didáticos acerca da História da África e

    afro-brasileira.

  • 7

    O eurocentrismo e os desafios à efetivação da Lei 10.639/03 no

    âmbito escolar

    Resumo: Este trabalho, de natureza bibliográfica, tem o intuito de compreender como o eurocentrismo se constitui aos desafios à efetivação da Lei 10.639/03 nas escolas, analisando os estudos e pesquisas sobre uma presença eurocêntrica no currículo e nos livros didáticos, abordando, posteriormente, possibilidades de se refletir e minimizar tal etnocentrismo europeu. Propõe-se, ao longo deste artigo, contextualizar e entender tais aspectos através do Pensamento Decolonial Latino-americano. Palavras-chave: História; África; Ensino; Colonialidade do poder; Eurocentrismo. Abstract: This bibliographic work aims to understand how Eurocentrism constitutes the challenges to the implementation of Law 10.639 / 03 in schools, analyzing the studies and research on a Eurocentric presence in the curriculum and textbooks, addressing, later, possibilities to reflect and minimize such European ethnocentrism. Throughout this article, we propose to contextualize and understand these aspects through Latin American Decolonial Thought. Key-words: History; Africa; Teaching; Coloniality of power; Eurocentrism.

    Introdução

    O presente artigo tem o objetivo de analisar como o eurocentrismo se constitui

    como desafio à implementação da Lei 10.639/2003 e suas diretrizes curriculares, que

    estabelece a obrigatoriedade do ensino de História afro-brasileira e africana nas

    escolas do país, abordando, por fim, caminhos possíveis para reflexão e minimização

    destas questões. Com isso, o trabalho visa identificar a presença de padrões

    eurocêntricos que são perpetuados no currículo escolar e nos materiais didáticos,

    estabelecendo empecilhos para um ensino efetivo da História da África e afro-

    brasileira no espaço escolar.

    Diante desse contexto, deve-se considerar que a relevância do tema advém,

    sobretudo, de uma percepção que propicie uma valorização adequada dos estudos

    de história da África na sala de aula através do não-silenciamento desta História. Além

    disso, a análise do etnocentrismo europeu/ocidental como um dos principais desafios

    à Lei 10.639/03 e suas diretrizes se alicerça numa herança colonial que perpetua

    concepções há muito arraigadas em nossa sociedade, e se faz presente

    nas escolas, cabendo a docentes e profissionais da educação, refletirem sobre este

    contexto educacional, curricular e dos seus materiais.

  • 8

    Com isso, a Lei 10.639/2003, foi conquistada através da luta dos Movimentos

    sociais negros, e foi inserida na Lei 9394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação

    Nacional (LDB). Instituiu-se posteriormente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para

    a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-

    brasileira e Africana (2004), como forma de fixar e ampliar os conteúdos e exigências

    deste ensino. Assim, o contexto de obrigatoriedades, diretrizes e leis, que na verdade,

    deveriam ser vistas como necessidades e complementaridades, trazem reflexões pela

    constatação de que não basta dispor estes conteúdos no currículo e nos livros

    didáticos, sem uma conscientização acerca deles.

    Desta forma, para a análise e compreensão do tema, foi necessário a

    realização de uma pesquisa bibliográfica abrangendo o ensino de História da África e

    afro-brasileira, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes, bem como de estudos acerca de que

    forma este eurocentrismo perpetua uma visão colonialista de saberes, que remonta,

    ainda, à construção da imagem e do conhecimento desta História da África. Foi

    necessário pesquisar em livros e artigos de revistas especializadas, como também,

    em áreas afins, utilizando-se ainda, de obras e trabalhos que analisassem os livros

    didáticos e o currículo, realizando um levantamento bibliográfico acerca dos principais

    autores e estudos em questão.

    Assim, o artigo analisou, primeiramente, as perspectivas acerca do continente

    africano, sobretudo, na contemporaneidade, discutindo seu impacto e como são

    reforçadas pelo eurocentrismo e a colonialidade do poder, tendo como pressuposto

    teórico, o Pensamento Decolonial Latino-Americano de Quijano (2005) e Mignolo

    (2017a, 2017b). Em seguida, verificou-se que, certos avanços da historiografia e das

    reformulações sobre as concepções referentes à História da África e afro-brasileira

    não se refletem no seu ensino, discutindo os obstáculos de implementação e

    compreendendo, também, como o eurocentrismo está presente no currículo e nos

    livros didáticos, e de como se perpetua uma predominância hegemônica e

    eurocêntrica no ensino da História africana e afro-brasileira, entendendo, desta forma,

    os desafios à efetivação da Lei 10.639/03. Por fim, em uma última seção do artigo,

    abordam-se soluções e possibilidades de minimização destes problemas e das

    questões compreendidas ao longo da análise.

  • 9

    A colonialidade do poder: o eurocentrismo e a História da África

    Inicialmente, para compreensão do eurocentrismo e no modo como está

    difundido no ensino de História da África e afro-brasileira no ensino fundamental e

    médio, é preciso realizar uma breve discussão acerca deste conceito e no modo como

    influencia a produção do conhecimento e a percepção sobre os povos e culturas. É

    válido ressaltar que a obra de Edward Said, intitulada Orientalismo: o oriente como

    invenção do ocidente (1978), alicerce dos estudos pós-coloniais, foi um marco para

    contribuições posteriores que se instauraram nos debates relacionados ao impacto

    deste eurocentrismo, tanto no meio acadêmico, quanto no mundo.

    Com isso, deve-se entender o contexto de tais acepções perpetuadas

    hegemonicamente, onde existe “a ideia de uma identidade europeia superior a todos

    os povos e culturas não-europeus” (SAID, 1978, p. 34). Nesse sentido, o

    etnocentrismo europeu é marcadamente envolvido por uma dita evolução dos povos

    europeus frente aos demais povos do mundo.

    Desta forma, através do Pensamento Decolonial Latino Americano (QUIJANO,

    2005; MIGNOLO, 2017a, 2017b) é possível identificar a influência deste

    eurocentrismo no que Quijano (2005) concebe como a “colonialidade do poder”, onde

    formaliza uma hegemonia e padronização política, cultural e econômica baseada na

    divisão étnico-racial do trabalho (a racialização), que se estrutura em toda sociedade

    atual, em que este processo inicia-se, primordialmente, através da colonização na

    América, a partir do século XVI, e depois, apresenta-se com o neocolonialismo no

    século XIX, onde é possível compreender que:

    ‘Colonialidade’ equivale a uma ‘matriz ou padrão colonial de poder’, o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, do progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade (MIGNOLO, 2017b, p.13)

    A colonialidade, que não é derivada, mas intrínseca à concepção de um ideal

    de modernidade totalizante, difere-se do colonialismo, pois se perpetua. Foi e é

    sentida nas relações étnico-raciais, no qual é verificada na construção de percepções

    hegemônicas e distorcidas acerca daquilo que não é europeu/ocidental.

    Esta hegemonia está presente não apenas nas estruturas de poder, mas

    institui-se em uma colonialidade do conhecimento, onde é possível verificar, ainda,

  • 10

    que tais alicerces históricos relacionados à modernidade “[...] institucionalizaram-se

    no Iluminismo e na Revolução Francesa mediante o liberalismo político e econômico

    que corrobora a racionalidade eurocentrada” (ANDRADE; REIS, 2018, p. 6). Desta

    forma, a racionalidade eurocêntrica justifica e integra-se à colonialidade do poder, se

    evidenciando por meio do dualismo e do evolucionismo (QUIJANO, 2005),

    apresentando posições binárias na concepção do conhecimento e da representação

    de etnias não-europeias, existindo o primitivo e o civilizado, a imobilidade e o

    progresso, onde são geradas estereotipias duais que não correspondem a uma

    compreensão adequada desses povos.

    Desse modo, isto é perceptível na África e em sua História, demonstrando que

    a presença hegemônica dessa colonialidade se perpetua na produção do

    conhecimento de tudo aquilo que não se integra à estruturação euro-ocidental,

    instaurando uma “perspectiva eurocêntrica de conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 18).

    Assim, com o neocolonialismo em África no século XIX, intensificaram-se as

    prerrogativas que, pela concepção etnocêntrica europeia, legitimava a colonização,

    na qual, os “[...] franceses, por exemplo, estimularam a construção de escolas e

    inseriram elementos de sua cultura nos seus currículos justificando o ‘acesso’ dos

    autóctones à civilização” (ANDRADE; REIS, 2018, p. 7).

    Inclusive, foi-se ensinado progressivamente, a língua francesa ou a língua do

    colonizador, deslegitimando ao longo do processo, línguas africanas. Reforçaram-se

    então, visões hegemônicas sobre o continente, relacionadas à produção do

    conhecimento a seu respeito, sendo compreendido portanto, que:

    Reconhecidamente, a imagem reservada à África designava um espaço assoberbado pela opressão, assolado pela indigência cultural e pela inferioridade diante da civilização europeia. Nesse aspecto, existiriam apenas populações destinadas a ser sujeitadas, jamais compreendidas (SERRANO; WALDMAN, 2010, p. 93)

    Com isso, a própria historiografia possui concepções estigmatizantes para este

    continente, onde, “durante a colonização, a História da África era vista como um

    apêndice de acrescento à História do país colonizador” (TELO, 2018, p. 208).

    Advindos desta acepção de racionalidade eurocêntrica, estruturou-se que,

    posteriormente a “[…] conquista de Argel pelos franceses em 1830 e a ocupação do

    Egito pelos britânicos em 1882 – um ponto de vista europeu colonialista passou a

    dominar os trabalhos sobre a história da porção norte da África” (FAGE, 2010, p. 1).

  • 11

    Este contexto, de acordo com Fage (2010, p. 12), foi ainda mais notório na África

    subsaariana, onde se constata que havia o pensamento de que “os povos africanos

    ao sul do Saara não possuíam uma história suscetível ou digna de ser estudada”.

    Hegel, inclusive, dividiu a África em “[...] três partes distintas, a setentrional

    espanhola, o Egito e a África meridional, ou ‘propriamente dita’, aquela que fica ao sul

    do deserto do Saara descrita como quase desconhecida” (GINO, 2017, p. 155), além

    de ter afirmado também, que povos sem escrita eram considerados sem História.

    Barbosa (2008) demonstra ainda que, o evolucionismo e o positivismo, com Spencer

    e Comte, interpôs uma perspectiva de História intitulada universalista, marcada pelo

    eurocentrismo e a ideia de progresso, advindos do âmbito iluminista, onde “as

    sociedades e os povos ‘pré-modernos’ ou ‘arcaicos’ deveriam ser estudados como

    estágios de um caminho civilizacional único, cujo ápice seria a Europa Ocidental”

    (BARBOSA, 2008, p. 48).

    Porém, houve avanços perceptíveis quanto às transformações na construção

    desta História da África com o movimento pan-africanista, logo no início do século XX,

    e a concepção em enaltecer a África e sua História, apesar deste movimento ainda

    não conceber a ideia de “mostrar o continente negro a partir do ponto de vista dos

    africanos” (GINO, 2017, p. 157). Houve também, certa contribuição pela Escola dos

    Annales, por volta de 1930 e as posteriores gerações, no que se refere aos debates

    do novo fazer historiográfico. Contudo, as mudanças relacionadas ao novo modo de

    conceber a História da África foram mais intensas após a II Guerra Mundial e com a

    independência efetiva dos países da África que se inicia na década de 1950.

    Neste período e, posteriormente, ocorreu uma intensificação de interesses e

    trabalhos de intelectuais africanos no estudo do seu próprio continente, onde esta

    geração, que tinha “dominado as técnicas europeias de investigação histórica

    começou a definir seu próprio enfoque em relação ao passado africano e a buscar

    nele as fontes de uma identidade cultural negada pelo colonialismo” (FAGE, 2010, p.

    20). Ademais, Gino (2017, p. 157) destaca o surgimento de um movimento

    historiográfico africano em 1960, onde se difere da historiografia realizada no século

    XIX por começar a considerar “uma análise da história africana voltada para o método

    da oralidade, que se contrapunha a concepção historiográfica europeia sobre o que

    vem a ser a história.”

  • 12

    Eurocentrismo no ensino de História da África: os desafios à lei 10.639/03

    Assim, certos avanços da minimização de concepções eurocêntricas relativas

    à História da África a partir da segunda metade do século XX, e também, pertinentes

    à História afro-brasileira, principalmente, no período atual, “onde é notável o aumento

    da pesquisa nas universidades nas temáticas africanas, da diáspora e indígena”

    (WITTMANN et al, 2016, p. 16), foram essenciais para reconhecimento desta História

    e destes povos, além de que, estes estudos têm sido considerados por um número

    maior de “[...] centros acadêmicos e por organismos como a Organização das Nações

    Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco)” (WALDMAN; SERRANO, 2010,

    p. 12). Contudo, isto não é perceptível quando se trata do ensino desta História nas

    escolas do país, e da aplicabilidade desta nova historiografia ao ensino, bem como

    ainda, são escassos os debates acadêmicos em torno deste assunto.

    Deste modo, Costa e Eugenio (2018) destacam este último ponto quando

    realizaram uma pesquisa bibliométrica na plataforma Scielo e nas cinco principais

    revistas especializadas em ensino de História. O levantamento foi realizado levando-

    se em consideração o período de 2003 (ano de promulgação da Lei 10.639/03, que

    tornou obrigatório o ensino de História e cultura africana e afro-brasileira) à 2017.

    Ficou evidenciado que, desde a promulgação da lei até 2017, foram

    encontrados apenas sete artigos especializados que abordam a forma como a História

    da África tem sido lecionada nos espaços escolares. No caso, verifica-se também que,

    há estudos sobre o assunto, mas que estes são postos à parte ou não são

    identificados nas principais revistas de ensino de História, em que:

    O desenvolvimento de estudos africanos é notório, mas ainda assim, podemos perceber a discussão a respeito do ensino da história da África e dos africanos imbricada com as relações raciais, ou, ainda, alijadas dos debates realizados pelas revistas especializadas no ensino de História (COSTA; EUGENIO, 2018, p. 306)

    Soma-se a isto, a coexistência de questões referentes à formação de

    professores neste meio, para o ensino desta História da África, quando também se

    identifica que a capacitação ou qualificação destes profissionais para o ensino

    fundamental e médio depende não somente das ofertas nos cursos de História, mas,

    da mesma forma, nos cursos de extensão universitária ou de formação continuada

    para formação de professores especializados nesta temática. Desse modo, além de

  • 13

    tais constatações e do pouco debate ou enfoque acadêmico sobre o modo como este

    ensino vem sendo realizado, há ainda a verificação de que esta mesma Lei 10.639/03,

    bem como suas diretrizes curriculares, não tem sido realmente efetivadas de forma

    satisfatória no contexto escolar e nos projetos políticos pedagógicos das escolas,

    entendendo-se que:

    Passando para o ensino fundamental e médio, ao lado das exceções representadas por experiências bem-sucedidas, multiplicam-se os depoimentos de professores que, para atender à lei ou por interesse particular, propõe medidas às coordenações das escolas nas quais dão aulas, sem serem ouvidos. As ações tomadas nesse sentido ficam, então, geralmente restritas às iniciativas pontuais e individuais (SOUZA, 2012, p. 19)

    Com isso, as resistências a uma implementação efetiva desta História da África

    e afro-brasileira, advém, segundo Gonçalves (2014), de uma concepção hegemônica

    e eurocêntrica do entendimento da História como disciplina, onde a compreensão

    desta disciplina termina por padronizar um ensino e uma seleção de conteúdos

    referentes à História e cultura afro-brasileira e africana. Compreende-se, ainda, que

    esta homogeneização de ensino identifica-se diante de uma herança colonial

    instituída, onde Conceição (2012) discute acerca de um processo massivo de

    extermínio físico e cultural da presença africana na História do Brasil, onde se

    evidencia que “as classes dirigentes brasileiras consolidaram uma ideia de nação a

    ser construída a partir do padrão da cultura branca, judaico-cristão, euro-ocidental”

    (CONCEIÇÃO, 201, p. 7).

    Desta forma, os desafios para a real efetivação da Lei 10.639/03, mais do que

    por falta de medidas políticas ou públicas, sobrevêm, predominantemente, de uma

    colonialidade do poder e da racionalidade eurocêntrica, que permeia o campo

    simbólico e que faz predominar uma contínua percepção negativa acerca de países

    ou grupos subalternizados pelos processos de colonização ao longo da História,

    perpetuando-se e ocasionando obstáculos para a constituição satisfatória da história

    da África e da cultura afro-brasileira nas escolas. Ao mesmo tempo, faz com que não

    se estimule as discussões acerca das desigualdades étnicas e nem na real integração

    de uma educação étnico-racial a este ensino, não desvinculando a imagem desta

    História ou deste continente para além das estereotipias negativas.

  • 14

    Assim, este eurocentrismo é verificado de forma subjacente nos materiais

    didáticos, onde se concebe uma percepção que Ferreira (2014) institui ainda como

    “currículos colonizados”, nos quais estes aspectos constituem-se como empecilhos

    que, de certa maneira, propiciam uma estigmatização deste ensino de História da

    África e afro-brasileira nas escolas. Estes acabam por contribuir com a conservação

    de um etnocentrismo europeu que dificulta a aplicação abrangente da Lei 10.639/03.

    Por isso, mais do que por falta de bibliografia especializada, ou pela pouca

    distribuição de materiais didáticos na escola ou, por uma limitada especialização de

    professores neste campo, é sintomático que, mesmo que tais situações pudessem ser

    solucionadas minimamente, no campo das políticas públicas, o campo simbólico,

    segundo Melo (2015), ainda estaria permeado por estruturas que fortalecem

    estereotipias negativas e um pensamento eurocêntrico sobre a África, sobretudo, na

    abordagem destes conteúdos, como verificado.

    Ademais, é fundamental analisar certas caracterizações eurocêntricas

    presente no currículo e nos materiais didáticos que se estabelecem para o ensino de

    História da África e afro-brasileira, e que se constituem como desafios à Lei 10.639/03.

    Contudo, é preciso considerar, antes de tais análises, a relevância e dimensão desta

    lei e da constituição de suas diretrizes curriculares para o ensino de História da África

    e afro-brasileira.

    Importância da lei 10. 639/03 e de suas diretrizes curriculares

    O conteúdo das diretrizes, instituídas em 2004, estão divididas em três

    princípios fundamentais e seis eixos norteadores. Nos princípios encontram-se a:

    Consciência Política e História da Diversidade, o Fortalecimento de Identidades e de

    Direitos e, também, Ações Educativas de Combate ao Racismo e às Discriminações.

    Nos eixos norteadores, que envolvem os conteúdos, estão: a História afro-brasileira,

    a História da África, a cultura afro-brasileira, a cultura africana, a história e cultura afro-

    brasileira e a História e cultura africana.

    Tais diretrizes curriculares se alicerçam, também, nas funções próprias do

    ensino de História, onde esta deve estabelecer relações entre passado e presente,

    mas ainda, deve problematizar, contextualizar e estimular o pensamento, integrando

    a reflexão sobre a condição humana e a diversidade cultural. Com isso, deve

    reconhecer as diferentes fontes e tipos de conhecimentos que viabilizam a presença

  • 15

    das relações entre tempo e espaço, interligados ao ensino de História em sala de aula,

    que “[...] possibilitam aos estudantes a reconhecerem a estreita relação entre os

    saberes escolares e a vida social” (FRANCO; SILVA JÚNIOR; GUIMARÃES, 2018, p.

    1020).

    Diante disto, o intuito da Lei 10. 639/03 e de suas diretrizes curriculares são o

    de estabelecer o reconhecimento e a valorização da História e culturas africanas, ou

    seja, da História dos afrodescendentes e de sua diversidade cultural, com enfoque na

    problematização sobre o tema nas escolas. Então, se faz necessário, por meio desta

    lei e de sua efetiva implementação, o reconhecimento desses povos e do continente

    africano, evidenciando, portanto, a importância de se compreender a preservação da

    memória e identidade dos negros, e destes como agentes próprios de sua história, no

    caso, como sujeitos históricos e não apenas como objetos do conhecimento.

    Além de que, a lei 10.639/03 formou-se para trazer ainda, representatividade

    aos estudantes negros e afrodescendentes, que muita das vezes, não se veem

    representados nos conteúdos de História. Ademais, a real efetivação da lei em sala

    de aula poderia (e deveria) refletir sobre o racismo e as instâncias excludentes que a

    instituição escolar por vezes traz a estes alunos. É importante considerar que, diante

    desses aspectos, “caberia ao ensino de História e cultura afro-brasileira garantir a

    construção das identidades, enquanto que ao ensino de História e cultura da África

    abordaria o resgate da memória” (LUIGI, 2016, p. 12). Considerando, além disso, algo

    muito além de apenas evidenciar o estudo do passado, mas sim, de uma real

    descolonização do saber e ressignificação deste ensino.

    A colonialidade nos currículos escolares

    Porém, é importante salientar que, em contraste com o objetivo de

    ressignificação desse ensino, são ressaltadas, sobretudo, acepções folclóricas em

    relação à África, onde a questão étnico-racial e de uma vivência sobre a temática são

    apresentadas apenas em datas comemorativas ou festejos regionais, silenciando as

    múltiplas perspectivas e contextos relacionados a apresentar o continente africano e

    seus povos e culturas como representantes significativos para a História da

    humanidade (FERREIRA, 2014).

    As datas comemorativas são importantes para a conscientização no ambiente

    escolar, contudo, não garantem a plena efetivação deste ensino, tampouco efetuam a

  • 16

    desconstrução das estereotipias negativas e dos dualismos criados que decorrem

    acerca da África, de sua cultura e da cultura afro-brasileira, onde também se constata

    que, segundo Ferreira (2013, p. 6):

    a cultura dos povos subalternizados mesmo que não silenciada completamente no currículo por estar presente na semana do folclore, é-lhe imposta condição subalterna, por isso, nem é cultura e nem arte, mas folclore e artesanato.

    Ademais, os festejos religiosos africanos e afro-brasileiros são

    majoritariamente tratados com cautela, ou muita das vezes, silenciados ou retratados

    de forma mítica. Souza (2012, p. 21) destaca que “são justamente os temas ligados

    às religiosidades afro-brasileiras os que encontram maior resistência junto a

    professores e alunos”.

    Assim, a colonialidade que permeia e está presente nas escolhas curriculares

    evidencia uma História essencialmente universalista, advindos da herança colonial

    instituída no âmbito da modernidade, onde os conteúdos, bem como sua escolha para

    o ensino desta História e cultura africana e afro-brasileira, demonstram a percepção

    de um monoculturalismo inexistente, além de um silenciamento e esquecimento

    quanto à importância desta, verificando-se que “[...] os currículos monoculturais

    sustentam a herança colonial, isto é, os mesmos padrões que valorizam uma única

    forma de ser, saber e de viver, a eurocêntrica” (FERREIRA, 2013, p. 4). Com isso, a

    escolha por currículos eurocêntricos, segundo Luigi (2016, p. 13), é “mais do que um

    equívoco, é uma atitude de negação que assume caráter violento quando

    consideramos o poder institucional da escola na ‘produção da verdade’ em nossa

    sociedade”.

    Desta forma, é primordial, também, uma menção à BNCC (Base Nacional

    Comum Curricular) onde se evidencia que o ensino de História da África e cultura afro-

    brasileira ainda não é compreendido por suas singularidades e como campo próprio

    de conhecimento, ou mesmo, do entendimento dos africanos e seus descendentes

    como agentes históricos, em que o seguimento de uma História linear euro-ocidental

    continua alicerçada numa ideia de surgimento da África e de seus povos apenas

    quando em contato com agentes externos, e nunca como fontes próprias de

    acontecimentos.

  • 17

    É o que Conceição (2016, p. 94) discute acerca do “ocularcentrismo” na base

    curricular de História, onde ela ressalta acerca destas composições curriculares,

    alegando que o problema “se agrava quando perdermos de vista a dimensão do

    silêncio sobre o qual se tem ancorado os currículos de história. São currículos que

    reforçam o ostracismo de outras geopolíticas, de outras cosmogonias”. Isso visualiza-

    se, pois, quando há sobreposição de saberes em relação a outros, que estão fora do

    mundo euro-ocidental.

    Desta forma, a versão mais recente da BNCC definiu, por exemplo, a exclusão

    de conteúdos relacionados à Antiguidade e a Idade Média africana. É compreendido

    ainda, segundo Franco, Silva Júnior e Guimarães (2018), que tais conteúdos

    referentes a esta História aparecem nos objetos de conhecimento de forma pontual,

    relegando um melhor espaço a este ensino, no qual é possível compreender que:

    Fica implícito que existe uma história que apresenta um modelo político, econômico, social e cultural considerado ‘norma’ e ‘outras histórias’ com significância menor. Mantém a perspectiva do Outro colonial como subalterno (FRANCO; SILVA JÚNIOR; GUIMARÃES, 2018, p. 1024)

    Evidencia-se, também, poucas transformações no que se refere a trazer uma

    História da África e de outros países que faça sentido para além do que se constitui

    como o encontro do “resto do mundo” com a Europa. Outra questão é a instituição de

    uma ordem cronológica para o ensino de História, onde Cruz (2017, p. 145) salienta

    que:

    Embora a introdução desses conteúdos que apresentam nominalmente menção ao continente africano e a diáspora africana, verifica-se que a estrutura que orienta a disposição dos conteúdos se limita ainda a uma cronologia que se inicie com a ‘Grécia Clássica’, ainda visualizada como lugar primevo de inspiração ao pensamento filosófico ocidental. A África fica circunscrita ao trabalho, ao tráfico e a escravidão, além de breve referência à sua organização ‘social e política’ contemporânea limitada ao contexto da colonização europeia. Tal inclinação aponta ainda, as características restritas com as quais a dimensão étnica e racial negra é tratada

    Por isso, apesar desta Base Nacional Comum Curricular fazer menção crítica

    inicial às concepções eurocêntricas e hegemônicas, percebe-se, pelas pretensões

    gerais, que isto não coaduna, de certo modo, com o que é verificado e selecionado

  • 18

    como conteúdo para o ensino da História da África e afro-brasileira. Aliás, se evidencia

    uma maior preocupação com as prescrições de conteúdos do que no impacto delas,

    demonstrando que tais constatações encontram-se como um obstáculo para a

    concreta e efetiva aplicação da Lei 10.639/03 e de suas diretrizes curriculares,

    essencialmente, no que se refere ao ensino desta História.

    Livros didáticos e eurocentrismo: empecilhos para uma real abordagem da África

    Continuamente, encontram-se certos impedimentos a uma tangível

    aproximação com a História da África e afro-brasileira e, consequentemente, com a

    efetivação das diretrizes curriculares estabelecidas pela Lei 10.639/03, igualmente,

    nos materiais didáticos. Estes desempenham um suporte pedagógico aos conteúdos

    previamente estabelecidos por uma base curricular, no qual Choppin (2004, p. 553)

    demonstra que, a função referencial adquire aplicabilidade programática e

    conteudística, onde “[…] ele constitui o suporte privilegiado dos conteúdos educativos,

    o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social

    acredita que seja necessário transmitir às novas gerações.” Desta forma, tal função

    apresenta a base de referência não apenas de técnicas ou conteúdos em si, mas

    pressupõe, a exemplo, uma representatividade ou perspectiva do que se considera

    acerca dos demais grupos étnicos ou o que se julga serem as “outras” histórias.

    Além disso, a criação destes materiais, de acordo com Bittencourt (2013, p.

    71), demonstra uma lógica de mercado que segue variadas técnicas de fabricação e

    editoração, onde estas, “[…] como objeto da indústria cultural impõe uma forma de

    leitura organizada por profissionais e não exatamente pelo autor”. Ainda, encontram-

    se como um papel de instrumentalizar e reproduzir um tipo de saber oficial, que

    estabelece o que deve e como deve ser ensinado determinado conteúdo, no qual:

    Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com preceitos da sociedade branca burguesa (BITTENCOURT, 2013, p. 72)

    Desta forma, Oliva (2009), com o intuito de evidenciar e identificar o modo como

    a História da África e afro-brasileira têm sido publicada, apesar de indicar que os livros

    apresentam certas mudanças nos conteúdos, segundo a análise de 39 coleções de

  • 19

    livros didáticos do ensino fundamental, entre 1999

    e 2005 (data das edições didáticas analisadas), conclui que apenas oito obras

    dedicavam-se a ter capítulos exclusivos sobre a História da África, os quais

    “concentram-se, em grande parte, nas excursões panorâmicas acerca do estudo das

    grandes formações políticas que conheceram seus apogeus no continente” (OLIVA,

    2009, p. 222). No caso, utilizam-se termos como “reino” e “império” ou referentes a

    estruturas centralizadas de poder na África, evidenciando, de certo modo, uma

    abordagem de referencial para a História da África que muito se assemelha a

    formatações eurocêntricas.

    Há que se considerar ainda, de acordo com a análise dessa pesquisa, que não

    apenas existiam os grandes reinos ou impérios em África, na qual a menção somente

    a estas grandes forças de expressão política desconsideram as sociedades africanas

    que não receberam tal classificação. Além de que, “a França de Luís XIV não era o

    Mali de Sundiata Keita, assim como o Reino dos Francos não guarda relação de

    identidade alguma com o Reino de Oyo” (OLIVA, 2009, p. 225).

    O tema da escravidão também aparece interligado a contextos que, ou ora

    enfatizam apenas a importância econômica para a produção açucareira no Brasil, ou,

    em se tratando da escravidão na África, pouco definem como ocorria. Ademais,

    ainda demonstra-se, de certa maneira, que a responsabilidade desta escravidão se

    devia, em parte, ao próprio continente africano ou aos africanos, não distinguindo a

    escravidão realizada no Brasil e em África. Além disso, Fonseca (2011, p. 97) identifica

    que predomina nesses materiais, majoritariamente, através de imagens, uma “[...]

    violência das ações dos traficantes, dos sofrimentos no percurso até a América, da

    exposição dos negros nos mercados de escravos no litoral brasileiro [...]”, constando-

    se ainda que:

    A visão da vida do escravo como apenas um suceder de sofrimentos vem sendo reforçada pelo ensino de História [...] desde o final do século XIX e os livros didáticos têm sido, certamente, um de seus principais instrumentos (Ibidem, p. 101)

    Em um estudo mais recente, Oliva (2017) identifica alguns avanços acerca da

    abordagem da temática africana e afro-brasileira, contudo, demonstra que os padrões

    eurocêntricos e hegemônicos ainda perduram. Tal análise considerou três manuais,

    das treze coleções que seriam destinadas ao ensino médio para avaliação pelo

  • 20

    Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2018. Estes livros já haviam sido

    aprovados no PNLD de 2015. Ademais, foi avaliada a presença da abordagem

    cronológica linear e a composição da História quadripartite, no qual, de acordo com o

    Guia de Livros Didáticos avaliados pelo autor, menciona que esta periodização

    corresponde a uma concepção ocidental de História, onde mesmo que estes

    evidenciem “[…] a necessidade de mudanças no ensino de História, os comentários

    críticos elaborados sobre as três coleções [...] parecem ser, no que diz respeito ao

    ensino de História da África, consensuais e positivados” (OLIVA, 2017, p. 48).

    Outro aspecto observado foi a concepção do Egito como pertencente ao

    continente africano, já que há no imaginário coletivo, a ideia de um Egito fora deste

    continente, em que, apesar dos livros didáticos citarem este país circunscrito

    geograficamente à África, isto não é tão perceptível na devida representação deste,

    na região indicada, onde imagens e mapas de um Egito pertencente ao continente

    não são visualizados em nenhuma das três coleções. Ainda há um fator determinante

    que corresponde ao fato de que se perpetua a abordagem em detrimento dos grupos

    sem estado e das sociedades descentralizadas. Além disso, é interessante

    compreender os esforços, analisados pelo autor, de embranquecimento de Cleópatra

    em um dos materiais, e da não menção direta do Egito Antigo como uma civilização

    africana ou, possivelmente, negro-africana, segundo os debates historiográficos

    recentes, em que:

    No livro História Sociedade & Cidadania 1, de Alfredo Boulos Júnior (2016), a questão da identidade racial dos egípcios foi abordada de forma tangencial e silenciosa a partir de um comentário crítico na legenda de uma imagem apresentada para ilustrar o Segundo Triunvirato na Roma Antiga. Boulos Júnior inseriu, neste tópico, uma fotografia da atriz Elizabeth Taylor, em seu conhecido papel de representação da rainha egípcia no filme de 1963 (OLIVA, 2017, p. 58)

    Assim, evidencia-se em todos estes obstáculos mencionados, um contraste

    com as novas formas de conhecimento histórico, sobretudo, ligadas à historiografia

    contemporânea recente e, principalmente, aos historiadores africanistas, a exemplo.

    Estas tendem a apresentar perspectivas mais polifônicas, possibilitando as diversas

    visões e contribuições de todos os povos à humanidade, valorizando a multiplicidade

    de narrativas históricas.

  • 21

    Por uma decolonialidade do saber

    Diante das constatações e análises de uma presença eurocêntrica ainda

    marcante no currículo e nos materiais didáticos, em que estes se interpõem como

    desafios a uma efetiva implementação da Lei 10.639/03, dificultando um ensino mais

    ampliador acerca da História da África e afro-brasileira, de acordo com os objetivos

    da diretriz curricular, é nítido que se faz necessária uma reflexão sobre os meios de

    minimizar estes obstáculos. A identificação mais pormenorizada destes desafios à Lei

    10.639/03 deve ser avaliada em cada contexto escolar, devido à diferenciação dos

    espaços escolares e das regiões brasileiras, bem como da singularidade de cada uma

    delas.

    No mais, a atualização acerca da historiografia contemporânea afro-brasileira

    e africana por parte dos professores é primordial, viabilizando deste modo, sua

    integração aos cursos de especialização que pudessem atender a uma maior

    demanda para professores na educação básica. Já há predisposições discutidas

    sobre isso, tendo se intensificado após a promulgação da lei, em que “iniciativas como

    cursos de formação continuada tornaram-se aliados de professores que buscam

    alargar seus conhecimentos em conformidade com a legislação” (WITTMAN et al.,

    2016, p. 16).

    Desta forma, a integração entre o meio acadêmico e as escolas é essencial.

    Aprimorar e promover a pesquisa do ensino e estudos africanos e afro-brasileiros é

    um meio de possibilitar que novas metodologias de ensino adentrem mais facilmente

    as práticas pedagógicas, mesmo que ainda haja ações individuais de docentes e

    resistências a um efetivo ensino da História da África e afro-brasileira na educação

    básica. Assim, é primordial que se perceba o leque de possibilidades e de múltiplas

    abordagens para esta História, levando em consideração o intuito maior que foi

    promulgado pela lei e implementado em suas diretrizes para esses conteúdos. Com

    isso, Melo (2015, p. 15) evidencia também que, considerar os “[...]

    (des)conhecimentos naturalizados sobre as culturas africanas e os seus

    descendentes apontam uma perspectiva de descolonização do saber e é um dos

    objetivos que caminha com a lei 10.639/03.”

    Então, é preciso não apenas descolonizar tais conteúdos, mas agir

    decolonialmente, em uma proposta constante de ações para a descolonização dos

    saberes ao ensino da História da África e afro-brasileira. Por isso, enquanto

  • 22

    descolonizar é reconhecer, identificar e desconstruir tais práticas exercidas por uma

    colonialidade do poder, a decolonialidade é a contínua luta do agir por essa

    descolonização. Por isso, tais práticas surgem como opções de ação, e não como

    imposições, “outrossim, propostas pós e decoloniais não devem também ter a

    pretensão de serem totalizantes, mas abrirem caminhos para que outras formas de

    saberes e produção científica emerjam” (TELO, 2018, p. 232).

    Com isso, é primordial pensar por uma decolonialidade do saber que possibilite

    a minimização de concepções eurocêntricas que se inserem no campo simbólico e

    permeiam certas práticas no âmbito das políticas públicas e do ensino, dificultando

    pôr em prática, a lei e suas diretrizes. Sendo assim:

    O pensamento descolonial e as opções descoloniais (isto é, pensar descolonialmente) são nada menos que um inexorável esforço analítico para entender [...] a estrutura administrativa e controle surgido a partir da transformação da economia do Atlântico e o salto de conhecimento ocorrido tanto na história interna da Europa, como entre a Europa e as suas colônias (MIGNOLO, 2017a, p. 6)

    Contudo, não se podem negar as práticas já existentes de micropolíticas de

    resistência, que se interpõe de maneira independente ou não. A partir das práticas

    verificadas de preservação da memória dos povos negros e afrodescendentes, é

    possível compreendermos os diversos modos de ressignificação desta História e do

    continente africano, bem como de seus povos e descendentes.

    Assim, Telo (2018, p. 232) propõe ainda que, “pensar África significa desfazer

    o imaginário colonial moderno presente física e simbolicamente”. Considera-se refletir,

    deste modo, materiais didáticos, bem como formulações e escolhas por currículos

    descolonizados, em consonância com uma efetivação satisfatória referente à Lei

    10.639/03, onde é preciso compreendermos ainda que:

    Este desafio de questionar os domínios da verdade - culturalista, ou desenvolvimentistas-, que sustentam a produção do conhecimento africano, passa por apostar em um processo árduo de ressignificação crítica do lugar de enunciação epistêmico, mesmo sabendo que o próprio marco e os sistemas de categorização continuam sendo determinados pela ordem epistemológica ocidental que pretende questionar (PAULA & CORREA, 2016, p. 36)

    Devemos considerar através do pensamento decolonial, uma forma de se

    refletir o que possibilita uma concreta História da África e afro-brasileira,

  • 23

    desvinculando as ações de colonialidades que fazem perdurar acepções negativas

    para seu ensino, repercutindo em configurações que tornam desafiantes a efetivação

    da Lei 10.639/03 e suas diretrizes.

    Considerações Finais

    De acordo com o que foi discutido neste trabalho, a análise da presença do

    eurocentrismo no currículo e nos livros didáticos, bem como da colonialidade do poder,

    que se estrutura de tal modo a perpetuar uma herança colonial curricular, caracterizam

    um ensino hegemônico sobre a História da África e afro-brasileira, distanciando este

    continente e seu pertencimento real e efetivo à História da humanidade. Isso se

    contrapõe a uma historiografia contemporânea recente acerca desta África, onde esta

    não é realmente incorporada ao seu ensino, compreendendo todos estes pontos como

    desafios à Lei 10.639/03.

    Conclui-se ainda que, as análises verificadas serviram como forma de

    contextualizar as reflexões atuais acerca da temática, onde estas ainda encontram-se

    suscetíveis de discussão e debate. Com isso, entende-se ainda que, a efetivação

    concreta deste ensino vai muito além das materialidades, apesar dessas serem

    fundamentais.

    Desta forma, confere aos profissionais de educação e aos professores em

    formação terem como uma perspectiva de escolha a avaliação dos desafios à

    implementação deste ensino através de um pensamento ou perspectiva decolonial do

    saber. Para isso, é preciso reconhecer e identificar que já imperam versões

    estereotipadas e silêncios acerca da História desta África. A escola deve proporcionar

    uma valorização desta temática, tendo como pressuposto a minimização do âmbito

    escolar como perpetuador do racismo institucional, ou que disponha de práticas

    hegemônicas do saber, evidenciando que o continente africano e as raízes afro-

    brasileiras integram uma diversidade étnico-racial que necessita ser compreendida e

    valorizada.

    Bibliografia

    ANDRADE, M.F.; REIS, M.N. O pensamento decolonial: análises, desafios e

    perspectivas. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, PR, v. 17, n. 202, p. 1 – 11,

  • 24

    mar. 2018.

    BARBOSA, M.S. Eurocentrismo, História e História da África. Sankofa - Revista de

    História da África e de Estudos da Diáspora Africana, São Paulo, v. 1, n.1, p. 129

    – 143, jun. 2008.

    BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In:

    BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto,

    2013. p. 69 – 90.

    CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado de arte.

    Educação e Pesquisa, São Paulo, SP, v. 30, n. 3, p. 549 – 566, set./dez. 2004.

    CRUZ, A.C.J. O lugar da História e cultura africana e afro-brasileira nos debates

    contemporâneos do currículo brasileiro. Revista Interdisciplinar, Mossoró, RN, v. 3,

    n. 8, p. 134 – 150, 2017.

    CONCEIÇÃO, J.C. A ideia de África: obstáculos para o ensino de História da África

    no Brasil. Revista Projeto História, São Paulo, SP, v. 44, p. 343 – 353, 2012.

    CONCEIÇÃO, M.T. O Ocularcentrismo da base curricular de História. Revista

    Lhiste, Porto Alegre, RS, n. 4., vol. 3, p. 93 – 97, 2016.

    COSTA, R.; EUGENIO, B. O Ensino de História da África e a produção acadêmica: o

    que dizem as revistas de Ensino de História no período 2003-2017?. Revista

    Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar. Mossoró, RN, v. 4, n. 11, p. 298 –

    308, jun. 2018.

    FAGE, J.D. A evolução da historiografia da África. In: KI-ZERBO, J. História Geral

    da África I: Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 1

    – 22.

  • 25

    FERREIRA, M.G.; SILVA, J.F. Educação das relações étnico-raciais e as

    possibilidades de decolonização dos currículos escolares: 10 anos da Lei

    10.639/2003. Revista Interface de saberes, Recife, PE, v. 13, n.1, p. 1 – 19, 2013.

    FERREIRA, M.G. Seleção e Silenciamento de conteúdos de História e Cultura afro-

    brasileira e africana: Análise sob uma perspectiva decolonial das práticas

    curriculares. In: V EPEPE, 2014, Garanhuns. Anais [...]. Garanhuns: UFRPE, 2014.

    Disponível em:

    https://www.fundaj.gov.br/images/stories/epepe/V_EPEPE/EIXO_1/MicheleGuerreiro

    Ferreira-CO01.pdf. Acesso em 15 de Out. 2019.

    FONSECA, T.N.L. Procurando pistas, construindo conexões: a difusão do

    conhecimento histórico. In: FONSECA, T.N.L. História e Ensino de História. 3º ed.

    Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 91 – 109.

    FRANCO, A.P.; SILVA JÚNIOR, A.F.; GUIMARÃES, S. Saberes históricos prescritos

    na BNCC para o ensino fundamental: tensões e concessões. Ensino em revista,

    Uberlândia, MG, v. 25, n. especial, p. 1016 – 1035, dez. 2018.

    GINO, Mariana. A Reescrita da História da África Negra. In: XII JORNADA DE

    ESTUDOS HISTÓRICOS PROFESSOR MANOEL SALGADO, 10, 2017, vol. 3, Rio

    de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2017.

    GONÇALVES, J.H.R. Das resistências ao ensino escolar de História da África:

    Algumas considerações. Revista História & Ensino, Londrina, PR, v. 20, n. 1, p. 83

    – 100, jan./jun. 2014.

    LUIGI, A.S. As diretrizes curriculares e o ensino de História da África: estamos

    falando de quê?. Leplege em Revista, Sorocaba, SP, v. 2, n. 3, p. 7 – 22, 2016.

    MELO, D.J.L.M. Os (des)conhecimentos sobre as culturas africanas: Eurocentrismo

    e descolonização do saber. Revista Fórum Identidades, Itabaiana, PB, n. 9, v. 17,

    p. 13 – 28, jan./abr. 2015.

  • 26

    MIGNOLO, Walter O. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista

    Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1 – 18, 2017a.

    ____________. Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu,

    n. 1, v. 1, p. 12 – 32, 2017b.

    OLIVA, A.R. Lições sobre a África: Abordagens da História nos Livros Didáticos

    brasileiros. Revista de História, São Paulo, SP, n. 161, p. 213 – 244, dez. 2009.

    ____________. Desafricanizar o Egito, embranquecer Cleópatra: silêncios

    epitêmicos nas leituras eurocêntricas sobre o Egito em manuais escolares de

    História no PNLD 2018. Romanitas - Revista de Estudos grecolatinos, Vitória, ES,

    n.10, p 26 – 63, jul./dez. 2017.

    PAULA, S. M.; CORREA, S.M.S. Nossa África: ensino e pesquisa. São Leopoldo:

    Oikos, 2016.

    QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In:

    LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.

    Buenos Aires: CLACSO, 2005.

    SOUZA, M.M. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de História da

    África. Revista História Hoje, São Paulo, SP, v. 1, n. 1, p. 17 – 28, 2012.

    SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. ed. São

    Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    SERRANO, C.; WALDMAN, M. Memória D' África: a temática africana na sala de

    aula. 2ed. São Paulo. Editora Cortez, 2010.

    TELO, F.C.A. A Pós/Decolonialidade e os Movimentos de Mulheres e

    Feministas na África. In: GARCIA, M. F.; SILVA, J.A.N. Africanidades,

    afrobrasilidades e processo (des)colonizador: contribuições da Lei 10.639/03. João

    Pessoa: Editora UFPB, 2018. p. 199 – 236.

  • 27

    WITTMANN, L.T. et al. Avanços e desafios no ensino de História africana, afro-

    brasileira e indígena: dispositivos legais, livros didáticos e formação docente.

    Cadernos de Pesquisa do CDHIS: Revista do Centro de Documentação e

    Pesquisa em História, Uberlândia, MG, n. 29, n.1, p. 1 – 16, dez. 2016.