o estado patrimonial

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 INSTITUTO DE HUMANIDADES CURSOS AUTÔNOMOS IX O E S T A D O P A T R I M O N I A L Antonio Paim, Leonardo Prota, Ricardo Vélez Rodriguez

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  • INSTITUTO DE HUMANIDADES

    CURSOS AUTNOMOS IX

    O E S T A D O P A T R I M O N I A L

    Antonio Paim, Leonardo Prota, Ricardo Vlez Rodriguez

  • 2SUMRIO

    I A DOUTRINA DO ESTADO PATRIMONIAL

    1. O patrimonialismo segundo Weber2. A contribuio de Wittfogel

    II A PRSSIA COMO ESTADO PATRIMONIAL

    III A QUESTO DA INEXISTNCIA DE FEUDALISMO,EM PORTUGAL E SUAS IMPLICAES

    1. Principais estudos dedicados ao temaa) Uma distino fundamentalb) Caracterizao dos estudos sobre o tema,

    efetivada por Marcelo Caetano2. Implicaes da ausncia de feudalismo em Portugal

    III A DISCUSSO RELATIVA POSSIBILIDADE DE CARACTERIZAR-SEO ESTADO BRASILEIRO COMO ESTADO PATRIMONIAL

    1. As limitaes do estudo pioneiro de Faoro2. A contribuio de Lobo Torres3. A base social do patrimonialismo segundo Schwartzman4. O principal resultado do debate

    ANEXOSMETODOLOFIA DO CURSOELENCO DAS QUESTES A SEREM DEBATIDAS EM SEMINRIOSALGUMAS INDICAES BIBLIOGRFICAS SOBRE OFEUDALISMO NA ESPANHACURRCULO ABREVIADO DOS AUTORES

  • 3I A DOUTRINA DO ESTADO PATRIMONIAL

    1. O patrimonialismo segundo Weber

    Max Weber (1864/1929) tentou decompor as dimenses bsicas da vida social e quecostumam encontrar-se superpostas: a autoridade, o interesse material e a orientaovalorativa.

    Weber enfatizava que os homens se orientam por uma pauta de valores,contrapondo-se frontalmente ao pensamento do sculo XIX que pretendeu reduzir o indivduoe seus valores a um processo biolgico ou social. Mas igualmente negava que a componentemoral emprestasse racionalidade ao, como supuseram os filsofos do sculo XVIII.

    Contra a idia do sculo XVIII escreve Bendix sustentou que os princpios moraisexistem dentro de um contexto social e histrico; que isto se verifica mesmo em relao moral prtica com pretenses melhor fundadas de universalidade; que algumas das idiasmorais mais insignes foram concebidas e promovidas em luta contra o uso estabelecido e osinteresses criados, em formas tipicamente no racionais. Mas, prossegue, contra a tendnciado marxismo ou do darwinismo social em buscar determinantes sociais ou biolgicas,argumentou que as idias e o comportamento individual tambm possuem uma dimensoirredutvel, que deve ser entendida em seu sentido intrnseco. Esta complexa posiointermediria entre o racionalismo e o reducionismo reflete-se nas definies (...) quedestacam a importncia do significado para compreender o comportamento do homem nasociedade. O significado origina-se no indivduo do mesmo modo que em sua interao comos outros e Weber, ao definir o tema prprio da sociologia, assinala ambos os aspectos. Aao abrange todo o comportamento humano quando o indivduo atuante lhe atribui algumsignificado subjetivo e na medida em que o atribui.(1)

    A ignorncia da componente moral torna incompreensvel o surgimento docapitalismo, como bem o demonstrou Weber na anlise das relaes entre a tica puritana e oaparecimento da empresa de tipo capitalista. E no apenas isto; a eliminao do valor moraltorna incompreensvel toda mudana e inovao sociais de certa magnitude.

    Weber no pretende, contudo, reduzir a sociologia axiologia. Muito ao contrrio. Ainterpretao axiolgica, a seu ver, escapa anlise que se pretenda cientfica. Oreconhecimento da componente moral no exclui que se expresse na forma de interessematerial e que este busque consolidar-se atravs da autoridade. As constelaes de interessesse correlacionam, pois, com valores morais e com tipos de dominao, achando-se excluda apossibilidade de, a partir de tais componentes, esgrimir-se esquemas simplificatrios. Weberinovou igualmente na anlise das formas de dominao. Considerou-as tomando trsprincpios de legitimao, a que correspondem determinadas estruturas: 1) a dominao legal;2) a dominao tradicional e 3) a dominao carismtica. Na dominao tradicionalestabeleceu dois tipos bsicos: o patrimonialismo e o feudalismo. Como se sabe, Weber nopretendia fazer histria mas, levando-a em conta, isto , partindo da experincia histrica,recolher elementos para configurar tipos-ideais aptos a explicar a realidade social, no tomadaem bloco mas considerando fenmenos passveis de delimitao acabada, a exemplo do quefaz qualquer cincia.

    As formas tradicionais da dominao distinguem-se da moderna pelo modo de sualegitimao, predominando nesta ltima os procedimentos legais. Contudo, entre os tipos

  • 4tradicionais aparece, na Europa, o feudalismo do soberano, o que exige o estabelecimento denormas, direitos e deveres nas relaes entre as duas instncias. Assim, o feudalismo ocidentalofereceu a matriz primitiva a partir da qual se chegou idia do pacto poltico comofundamento da distribuio de poderes, tomada como ponto de referncia para amodernizao da estrutura tradicional tpica, o Estado Patrimonial. Neste, as relaes dedomnio sedimentam-se como o prolongamento dos poderes do patriarca familiar.

    Weber afirmou que a organizao poltica patrimonial no conhece nem o conceitode competncia nem o da autoridade ou magistratura no sentido atual, especialmente namedida em que o processo de apropriao se difunde. A separao entre os assuntos pblicose privados, entre patrimnio pblico e privado, e as atribuies senhoriais pblicas e privadasdos funcionrios desenvolveu-se s em certo grau, dentro do tipo arbitrrio, masdesapareceu. Mais explicitamente: o Estado Patrimonial o representante tpico de umconjunto de tradies inquebrantveis. O domnio exercido pelas normas racionais se substituipela justia do prncipe e seus funcionrios. Tudo se baseia ento em consideraes pessoais.Os prprios privilgios outorgados pelo soberano so considerados provisrios.(1)

    Weber considerava o antigo Egito e o Imprio Chins como as formas maisdesenvolvidas de patrimonialismo. A seu ver, tambm o Estado russo evoluiu para assumiressa forma depois de Ivan IV, isto , da polarizao em torno de Moscou, a partir do sculoXIV. Contudo, a identificao dos Estados Patrimoniais seria obra de seus seguidores, entreos quais Wittfogel. A contribuio deste ltimo ser referida adiante, por dizer respeito, emespecial Rssia.

    O vassalo, observa Weber, no sentido literal e especfico do termo, teve que ser umhomem livre, isto , um homem no submetido ao poder patrimonial de um senhor. A pardisto, como a relao feudal, em seu carter pleno, somente pode pertencer a uma camada desenhores, agrega-se quela primeira qualificao a exigncia de um modo de vida senhorial(cavalheiresca) e, especialmente, a eliminao de todo trabalho desonroso que no consista noexerccio das armas. Com a impossibilidade de atender a toda a descendncia dessa camada debares feudais, a prtica do domnio feudal ir requerer, subseqentemente, ascendncia nobrecada vez mais dilatada.

    O fato de que o direito do vassalo nos distritos clssicos do feudalismo europeu sebaseava num contrato, estratificou a diviso de poderes de forma mais avanada que aestrutura patrimonial. Foi portanto mais importante, prossegue Weber, esta penetrao, emtodo o sistema, do esprito de uma garantia da posio ocupada pelo feudatrio, mediante umcontrato bilateral, garantia que ultrapassava de muito a concesso de privilgios, pelo senhor,condicionada por circunstncias meramente tradicionais. E conclui: Trata-se do que faz comque a estrutura feudal frente ao domnio patrimonial puro, baseado na coexistncia, por umlado, da dupla vinculao pela tradio e pelos direitos apropriados e, por outro, do livrearbtrio e da graa do senhor se aproxime a uma organizao jurdico-pblica pelo menosrelativamente constitucional.(2)

    Outra caracterstica distintiva do feudalismo, apontada por Weber, consiste nareduo ao mnimo de suas funes administrativas. O feudalismo de vassalagem somente seinteressa pela sorte de seus sditos na medida em que isto diz respeito aos seus prpriosinteresses econmicos. O patrimonialismo, em contrapartida, persegue a apropriaosucessiva de novas funes, desde que eqivale elevao de seu prprio poderio e de suaimportncia ideal, criando ao mesmo tempo a possibilidade de benefcios adicionais para seusfuncionrios. Por isto mesmo, assinala, o ideal dos Estados Patrimoniais o ttulo de pai do

  • 5povo, o que leva ao exerccio do que se poderia denominar de poltica social, voltada parao bem-estar das massas.

    A experincia histrica iria demonstrar que, na Europa, com as excees conhecidas,estados patrimoniais e feudais iriam marchar para a estruturao de formas legais dedominao, sob o impacto do avano do capitalismo. Contudo, a ordem de precedncia deu-senaquelas reas em que a burocracia patrimonialista se revelou mais dbil.

    A esse propsito escreve Weber: No casual que o capitalismo especificamentemoderno brote justamente pela primeira vez naquela pas, Inglaterra, onde a estruturacondicionou uma reduo ao mnimo do poder burocrtico, assim como, j o capitalismoantigo havia alcanado seu ponto mximo em anlogas circunstncias.(1)

    2. A contribuio de WittfogelKarl August Wittfogel (1896/1988) considerado um dos autores que propiciou

    desenvolvimento criativo da teoria weberiana do Estado Patrimonial.Nasceu em Woltersdorf (Alemanha) e doutorou-se na Universidade de Frankfurt em

    1928. Tornou-se pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais dessa Universidade, ondepermaneceu at 1933, emigrando para os Estados Unidos a fim de escapar do nazismo,vinculando-se inicialmente Universidade de Columbia. Em 1939 tornou-se diretor doProjeto de Histria Chinesa mantido pela Low Memorial Library, de Columbia. Depois de1947 foi professor de histria chinesa na Universidade de Washington. Publicou The NaturalFoundation of Economic History (1932) e Russia and the East (1936). Sua contribuiointelectual foi avaliada, em 1978, por G.L. Ulmen (The Science of Society: Toward andUnderstanding ot the Life and Work of Karl August Wittfogel).

    Considera-se que seu livro mais importante seja O Despotismo oriental. Estudocomparativo do poder total, cuja primeira verso apareceu em 1957.(2) Formulou compreciso o sentido de sua pesquisa atravs da seguinte pergunta: como se formaram Estadosmais fortes que a sociedade?

    A pergunta de todo pertinente porquanto fora da tradio constitucionalista doOcidente, o que se v na imensa maioria dos pases so organismos estatais que, ao invs dese colocarem a servio da sociedade, a submetem e dominam.

    Wittfogel encontrou a resposta ao estudar as civilizaes que se estruturaram emtorno da agricultura de irrigao. Essa atividade, na medida em que veio a assumir certasdimenses, exigiu um novo tipo de propriedade, que no se transmitisse por simples sucessohereditria nem se fracionasse; consolidou atividades paralelas, como a construo e amanuteno de obras hidrulicas que, por sua vez, pressupunham sistemas de defesa. Assim,em torno dessa agricultura de irrigao, em determinadas regies do mundo, formaram-segigantescas estruturas estatais, poderosas o suficiente para estender seu domnio. Wittfogel fezestudo minucioso e detido dessas sociedades, denominando-as hidrulicas, tanto no Orientecomo na Amrica, com o propsito de averiguar traos comuns e peculiaridades.

    interessante resumir algumas de suas observaes relativas Pennsula Ibrica quenos permitem, ao mesmo tempo, identificar as particularidades distintivas do que naterminologia weberiana se chama Estado Patrimonial: Antes da invaso rabe, a pennsulaibrica abrigava uma civilizao feudal primitiva, comportando uma agricultura irrigada depequena escala e, provavelmente poucas empresas hidrulicas. Diferenciando-se

  • 6profundamente, nesse aspecto, dos Momanos que dominaram a Europa Ocidental, osconquistadores rabes da Espanha conheciam perfeitamente a agricultura hidrulica eapressaram-se, no novo habitat, em levar a cabo aquelas obras que se tinham reveladoextremamente proveitosas em seu pas de origem. Sob a dominao muulmana, a irrigaoartificial foi melhorada e estendida, segundo os modelos orientais, compreendendo o empregode mtodos governamentais: sua direo era uma prerrogativa do Estado. Assim, a Espanhamuulmana torna-se mais que marginalmente oriental. Passa a constituir-se em verdadeirasociedade hidrulica, administrada de modo desptico por funcionrios nomeados e submetidaa impostos segundo os mtodos agro-estatais de taxao. O exrcito mouro passa de tribal amercenrio... Um sistema protocientfico de irrigao e de cultura teve por complementoconhecimentos extraordinariamente avanados nos domnios tipicamente hidrulicos daastronomia e da matemtica. A Europa feudal contempornea nada tinha de comparvel a lheopor.(1)

    Wittfogel indica que, com base nas informaes disponveis, sabe-se que, na segundametade do sculo XIV, a capital da Liga Hansetica, Lubeck, abrigava 22 mil habitantes eLondres cerca de 35 mil. No apogeu do califado ocidental, sua capital, Crdoba, tinhapopulao avaliada em um milho de habitantes e Sevilha, em 1248, contava com mais de 300mil.

    A Rssia esteve submetida a dois tipos de influncia desptica estruturada segundo omodelo estudado por Wittfogel: bizantina e mongol. Disso resulta uma circunstncia que emgeral se perde de vista a concentrao do poder total em mos da burocracia czarista. interessante passar em revista os fatos alinhados por Wittfogel para depois tentar descobrir emque teria inovado a burocracia sovitica.

    Na Rssia ps-mongol, isto , depois do trmino da ocupao mongol, no sculoXVI, manteve-se intacta a estrutura do Estado absoluto, at a revoluo de fevereiro de 1917,em que pese haja sido o pas submetido a sucessivas invases. A isto o autor denomina deextraordinria capacidade de sobrevivncia da burocracia czarista. Cumpre lembrar que emtoda a sua histria, o Parlamento funcionou apenas pouco mais de um lustro, no perodoimediatamente anterior primeira guerra mundial.

    A exemplo dos estados despticos originrios das sociedades hidrulicas, aburocracia detinha simultaneamente o poder poltico e o poder econmico.

    A influncia ocidental manteve-se como algo exterior, mesmo no perodosubseqente criao de indstrias e aceitao de crditos externos para financi-las etcnicas aliengenas para oper-las. As relaes entre a burocracia do Czar e as foraseconmicas privadas mantiveram-se inalteravelmente presas tradio. Quando, nos comeosdo sculo XVIII, torna-se manifesto que era vital para a defesa do pas a atividade industrial, ogoverno czarista no se contenta em regulamentar algumas novas indstrias, como o fizeramos governos da Europa Ocidental. Dispe-se a dirigir diretamente o essencial da indstriapesada e at mesmo uma parte da indstria de transformao, empregando assim a maiorparcela da fora de trabalho, que estava submetida ao regime da servido, transplantado daagricultura.

    O regime da servido seria extinto apenas na segunda metade do sculo XIX. Aofaz-lo, entretanto, a burocracia czarista mantm o meio rural submetido a um controleadministrativo tipicamente oriental. Nas ltimas dcadas do sculo, por meio de taxas diretase indiretas, estima-se que o Estado chegava a apropriar-se de cerca da metade da renda do

  • 7setor agrcola.A burocracia czarista cuidou de impedir que pudesse ser suplantada por outro grupo

    social. Neste sentido, tratou de cercear o fortalecimento econmico da nobreza rural. Assim,entre 1861 a 1914, esta chegou a perder 40% das terras que tinha em seu poder. A reformaefetivada em 1906, destinada a possibilitar a modernizao das atividades agrcolas, deveriafacultar o surgimento de um outro grupo social (denominado de kulaks, que seria oequivalente de empresrios agrcolas). Naturalmente, a burocracia czarista no imaginava quepoderia vir a contrast-la. Os soviticos, por sua vez, depois de eliminar os nobres, no tendopodido impedir o surgimento dos kulaks, simplesmente os liquidaram fisicamente.

    Embora tivesse estimulado investimentos privados na indstria, nos comeos dosculo XX o Estado czarista dirigia a parcela essencial das estradas de ferro do pas, impunhaum controle drstico s indstrias monopolistas importantes e ocupava uma posio chave nosinvestimentos estrangeiros. Por meio das garantias que facultava, o Estado dominava um teroda indstria de transformao no-monopolista e, em 1914, nunca menos de 90% da primeiradas indstrias pesadas, a extrao mineral.

    O Banco do Estado era um autntico banco central de todo o sistema de crditorusso. E conclui Wittfogel: Certamente que no necessrio avaliar a ordem social russapelo critrio nico do controle financeiro; mas certamente necessrio ter presente que umnico bureau do aparelho de Estado czarista controlava todo o sistema financeiro do pas.Se se considera, de outra parte, qual era o papel da burocracia czarista na sociedade rural eurbana, no se pode deixar de concluir que, nos comeos do sculo XX, os homens doaparelho do Estado eram mais fortes que a sociedade.(1)

    Wittfogel supe que os lderes mais importantes da revoluo bolchevista deram-seconta da virtual impossibilidade de arrancar a Rssia de seu caminho asitico. Lembra queLenine, entre outras coisas, considerava que o atraso russo somente seria superado se osocialismo se tornasse vitorioso na Europa industrializada. Bukharin e seus amigos deesquerda tambm levantaram a voz contra o avano da centralizao burocrtica. A seu ver,contudo, disso no se pode concluir que a Rssia tenha alcanado um patamar socialistainicial para depois regredir ao velho despotismo asitico. Ao contrrio: a nova eliteburocrtica logo conquistou posies de domnio sobre a sociedade ainda mais fortes que aburocracia czarista.

    Assim escreve Wittfogel na medida em que os dirigentes da Rssia soviticaperpetuam um dos traos-chave da sociedade agro-estatal, a saber, a posio monopolista desua burocracia dominante, faziam mais que a simples perpetuao dessa sociedade. Mesmoantes da coletivizao da agricultura, os aparatchiki(2) soviticos dispunham de um sistemamecanizado de comunicao e de produo industrial que os colocava numa posio superior alcanada pela burocracia agro-hidrulica. O aparelho industrial estatizado lhes forneciaarmas novas de organizao, propaganda e coero, aptas a permitir a liquidao dospequenos produtores agrcolas enquanto categoria social. A coletivizao transforma oscamponeses em trabalhadores agrcolas submetidos a um nico padro: o novo aparelho doEstado. O despotismo agrrio da antiga sociedade aliava o poder poltico total a um controlesocial e intelectual ilimitado. O despotismo industrial da sociedade de aparelho estatal totalalia o poder poltico absoluto ao integral controle social e intelectual.(3)

    Deste modo, a inovao introduzida pela burocracia sovitica consiste em se haverapropriado dos segmentos da atividade econmica (a indstria e os servios industriais) que

  • 8lhes permitiram promover a eliminao ou a pulverizao daquelas foras sociais, tantourbanas (burguesia industrial) como rurais (aristocracia, camponeses ricos e campesinato emgeral), que poderiam lhe opor qualquer sorte de resistncia. Persistentemente o Estadosovitico conseguiu transformar a sociedade numa massa amorfa, alcanando assim umaconsistncia com a qual a burocracia czarista no havia sequer sonhado, desde que, ao longode sua histria, preservaram-se segmentos relativamente estruturados na sociedade.

    provvel que a derrocada do regime sovitico venha a promover a renovao dointeresse pela obra de Wittfogel, que se reveste de inquestionvel atualidade. O comunismo,afinal de contas, talvez no tenha passado de uma virtualidade do Estado Patrimonial.

  • 9II A PRSSIA COMO ESTADO PATRIMONIAL TPICO

    O governo representativo que seguiu o caminho da democratizao e do sucessivoaprimoramento corresponde, como indicamos, a contribuio original do Ocidente, sendotambm a melhor forma de convivncia social inventada pela humanidade. Mesmo noOcidente, contudo, floresceu a antpoda desse modelo, o Estado Patrimonial.

    Como se sabe, o criador de sua doutrina, Max Weber, ocupou-se apenas de fixar atipologia. Seus discpulos que assumiram a responsabilidade de aplic-la s circunstnciasque se encontravam mais prximas, como o caso do Brasil e de outros pases da AmricaLatina. Simon Schwartzman, destacado representante da Escola Weberiana Brasileira, definiucom muita preciso o Estado brasileiro como Estado Patrimonial.(1) Ricardo VlezRodriguez, por sua vez, indicou as caractersticas singulares de que se revestiu na Amricaespanhola, em especial Mxico e Colmbia. Aqui vou limitar-me a referir a forma queassumiu na Prssia, valendo-me inclusive de indicaes do prprio Weber.

    A histria da Prssia acha-se associada da Ordem Militar dos CavaleirosTeutnicos, que nos comeos do sculo XIII domina o territrio correspondente ao Norte daPolnia, Estnia, Letnia e Litunia. No sculo XV a Ordem prestou obedincia ao Rei daPolnia e, em 1525, seu chefe torna-se protestante. Por ter passado a pertencer mesma CasaReal, fundem-se em 1618 a Prssia e Brandenburgo, cuja capital era Berlim. Comea desdeento a subseqente ampliao territorial. Em 1701 passa a denominar-se Reino da Prssia ej domina vasta extenso situada na Europa Central e do Leste.

    Nesse sculo (XVIII) d-se a ascenso da Dinastia Hobenzollern que ir valer-se datradio para fazer da Prssia um Estado de carter burocrtico e militar. O primeiro dessesmonarcas Frederico William (1713/1740) realiza a proeza de constituir um exrcito de 80mil homens, efetivo que equivalia a 4% da populao. A formao de tal exrcito, alm de darcontinuidade contratao de mercenrios, inaugura a prtica do servio obrigatrio para oscamponeses, que desde ento fornecero a soldadesca. Ao mesmo tempo, o oficialato reservado nobreza. Esta se havia constitudo, historicamente, provindo de modo integral dosgrandes proprietrios de terra, tornados conhecidos como junkers, embora a designaoabrangesse, de incio, apenas o segmento integrado pelos jovens.

    Frederico William inaugura um sistema fiscal apto a assegurar o atendimento snecessidades das caractersticas assumidas pelo Estado. Seu herdeiro Frederico II, quepassou histria como Frederico, o Grande (1740/1786) aperfeioa a mquina estatalexistente. Tendo recebido do pai as finanas saneadas, preservou o sistema fiscal, mas seocupou tambm das fontes de onde provinham os impostos. O sistema produtivo passa asubmeter-se gide do Estado, apoiando-o na grande propriedade agrria e colocando aservio desta o sistema de comercializao. Adiante veremos como as disputas entre os doisgrupos sociais no cessariam com o tempo, sem que a hegemonia dos junkers se deixasseabalar, j que a exercitava atravs do Estado, uma estrutura permanente.

    Frederico, o Grande tornou a Prssia um personagem capaz de influir nos destinos daEuropa. Ampliou sucessivamente o territrio original, anexando a Silsia (arrebatada ustria) e assegurando um lugar na partilha da Polnia. Sob Frederico, o Grande, o exrcitoprussiano passa a contar com l60 mil homens, o dobro do efetivo deixado pelo pai. Em 1775,a Prssia tinha cerca de 5 milhes de habitantes. Adquiriu crescentemente notoriedade noplano cultural. As guerras napolenicas abrem caminho sua sucessiva projeo.

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    Seria sob a liderana da Prssia que se dar a unificao da Alemanha. AConstituio Imperial de 1871 correspondeu, na verdade, generalizao do seu sistema,consolidado ao longo do tempo.

    A elite prussiana valeu-se das prerrogativas intervencionistas na economia, de quedispunha o Estado, para estimular e proteger a industrializao da Alemanha unificada.Acresce que a Reforma Universitria empreendida precedentemente assegurava a sualiderana na pesquisa cientfica, desde ento associada s empresas. De modo queimplantavam-se as bases requeridas pela preservao da liderana conquistada.

    No Ocidente, as Ordens Militares ganharam muita fora durante a fase em que seorganizaram as Cruzadas.(1) Sendo uma instituio baseada na fora e, ao mesmo tempo,religiosa, punha em causa justamente o grande mrito que Franois Guizot (1787/1874)apontara na forma como a Igreja institucionalizou-se, sem se constituir num cl separado,selecionando os seus membros nos diversos grupos sociais.(2) No processo de formao doEstado Moderno, essas Ordens foram dissolvidas, colocadas as Foras Armadas ao servio doEstado.

    A origem militar e religiosa da Prssia iria marcar em definitivo a organizao sociala que se ajustou. A elite dominante tornou-se uma verdadeira casta, sendo constituda pelosjunkers. Estes, alm de serem grandes proprietrios, depois de monopolizar o oficialato doExrcito, segundo foi referido, acabaram estendendo-o s principais funes pblicas.Somente seus descendentes podiam tornar-se oficiais superiores das Foras Armadas; ocuparas altas funes da Magistratura do mesmo modo que os cargos chaves do Executivo. Essaelite cultivou um nacionalismo exacerbado que iria desembocar na crena da suasuperioridade racial.

    A organizao poltica baseava-se na velha tradio das tribos germnicas de eleger ochefe militar, quando devesse ser substitudo. Essa tradio envolvia, certamente, umelemento democrtico. Com a formao do Sacro Imprio, os regentes dos principados emque se subdividia a Alemanha passaram a ser denominados de eleitores, porquanto lhesincumbia eleger o Imperador. A partir dessa tradio, constituiu-se na Prssia um rgochamado Dieta, que era integrado pelos eleitores (vale dizer, os mandatrios) das reasincorporadas ao seu territrio. Na prtica, a Dieta servia para reforar o poder dos junkers. Erao rgo consultivo do Kaiser (Rei), que provinha do mesmo grupo social.

    Somente em meados do sculo XIX constituiu-se o Parlamento (Reichstag).Contudo, enquanto durou o Imprio este nunca desfrutou de maior poder. No lhe competiaescolher o Chanceler (Chefe do governo), nomeado pelo Kaiser. Depois da unificao, oChanceler que a liderou Otto Von Bismarck (1815/1898) prescindiu inclusive daaprovao do oramento pelo Reichstag.

    A unificao da Alemanha sob a gide prussiana e a imposio ao pas daquilo queequivaleria ao seu estilo administrativo viria a ser duramente criticado por Weber, quando selhe apresentou uma oportunidade de abordar o tema da perpetuao da simbiose entre osgrandes proprietrios agrcolas e o Estado. Tal se deu em 1890, da forma adiante resumida.Uma associao de estudiosos (Verein fur Sozialpolitik) obteve resposta a um detalhadoquestionrio sobre as atividades econmicas (predominantemente agrcolas) das provncias doLeste. A produo de cereais provinha das grandes propriedades que tinham problemas comos trabalhadores agrcolas e com as Bolsas de Mercadorias. Weber procedeu a uma anliseminuciosa desses questionrios, de que se valeu para elaborar um amplo estudo sobre a

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    economia agrcola da regio considerada como do papel das Bolsas.(1) Reinhard Bendix(2)efetiva uma detalhada caracterizao desse primeiro grande estudo de Weber, pelaimportncia de que se reveste no curso ulterior de sua investigao.

    Para os propsitos da presente caracterizao do Estado Prussiano como EstadoPatrimonial, suficiente referir a crtica que Weber desenvolve poltica oficial de proteoaos grandes proprietrios. Reconhece o papel que os junkers desempenharam na unificao daAlemanha, ainda que destaque que "muitas figuras proeminentes na Prssia se haviam oposto sua integrao no Reich, por temerem pela preservao do estilo de vida prussiano". Apropsito desse grupo social diz claramente tratar-se de "uma classe cruel e dominadora comoresultado da luta secular pela sobrevivncia em um meio hostil".

    Escreve Weber: "Embora a influncia pessoal e poltica desse grupo dirigente aindafosse considervel, o declnio de sua base econmica fez com que essa influncia se tornassegradativamente mais pretensiosa e, tanto poltica como moralmente, discutvel. No momento,meios polticos eram utilizados para favorecer uma classe dominante que estava ameaada emsuas bases econmicas".(3)

    Valendo-se de sua influncia poltica, os junkers haviam obtido proteo contra aimportao de cereais estrangeiros mais baratos. Conseguiram no s manter como aumentara produo, numa poca em que o livre-cambismo adotado em carter precursor pelaInglaterra, h cerca de meio sculo , encontrava acolhida por toda a Europa. Weber no scritica essa poltica como mostra que a atividade agrcola liderada pelos junkers no semodernizara. A baixa remunerao atribuda aos trabalhadores alemes fazia com que estespreferissem emigrar. Para suprir essa lacuna, acolhiam poloneses e outras etniastradicionalmente hostis, demonstrando que o seu patriotismo era de fato limitado. E mais:tratavam de convencer s autoridades que as Bolsas de Mercadorias agiam de mododesonesto, o que afetaria os seus interesses, o que Weber comprova tratar-se de acusaoinfundada. Mais grave que tudo a poltica a seguir referida.

    Para deter o fracionamento da terra por sua infinita diviso entre os herdeiros, oEstado Prussiano criou a figura do "fideicomisso" pelo qual passaria a pertencer ao Estado,sempre que se apresentasse aquela circunstncia (fracionamento desmedido). O postulante desua administrao (cuja escolha teria que ser aprovada pelo prprio Kaiser, ao invs doMinistro correspondente) no podia alien-la ou hipotec-la. Esse sistema apoiava-se emtradies seculares, a exemplo do morgadio.(4) Weber reconhece o fato mas enfatiza que"assumira um significado maior na Prssia a Leste do Elba somente a partir de meados dosculo XIX". Apurou que, quando da efetivao do inqurito que lhe incumbia analisar, umadcima sexta parte do territrio alemo estava comprometida. O expediente tornou-se umaforma de proteger os junkers diante de sua incapacidade de acompanhar a modernizao daagricultura, oferecendo-lhes a oportunidade de tornarem-se arrendatrios sem perder osprivilgios tradicionais. Mas tambm de permitir que famlias abastadas ingressassem naaristocracia, porquanto os detentores da administrao de terras em fideicomisso, cuja rendaalcanasse determinados nveis, qualificavam-se para obteno de um ttulo de nobreza. Osmembros dessas famlias passavam automaticamente a ter acesso a uma carreira no serviopblico. Intervindo no processo, o Kaiser reforava a sua base de apoio.

    Ainda que considerasse embaraoso discutir esses aspectos numa publicaocientfica, Weber sente-se no dever de protestar contra aquilo que equivalia perpetuao dopatrimonialismo e consagrao da "prtica administrativa prussiana", que retrata deste

  • 12

    modo: "abuso da autoridade oficial no tratamento dos "sditos" com um patriotismo e umalealdade ao Monarca meramente formais."(1)

    A Repblica de Weimar (1919/1933) enfraqueceu os poderes dos junkers. Contudo,impossibilitada de reconstituir o antigo Exrcito, no teve possibilidade de intervir nessa rea.De modo que, quando Hitler decide recusar-se a continuar dando cumprimento a tal exignciae tratou de reconstituir a mquina militar, o oficialato originrio acabaria inevitavelmente porascender antiga posio no Exrcito, do denominado Terceiro Reich (Alemanha nazista).

    O interesse na caracterizao e anlise do Estado Prussiano advm do fato de quetenha sido abolido em 1947 como unidade territorial, em decorrncia do acordo entre osaliados que derrotaram a Alemanha na guerra. Essa deciso de destruir a mais notriaexperincia dissonante do processo constitutivo do Estado Moderno na Europa provenientedo contrato de vassalagem o que o impediu de tornar-se forte o bastante para subjugar asociedade , como no poderia deixar de ser, trouxe a debate a tese de que o EstadoPatrimonial no se desfaria por si mesmo. Tal desfecho requereria o concurso de uma foraexterna. Essa no uma questo meramente terica, em pases onde o Estado assumiu talcaracterstica. Os opositores tese recorrem ao exemplo da Espanha, que sendoinquestionavelmente dotada de Estado Patrimonial, conseguiu modernizar-se pelo concursodas prprias foras polticas internas.

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    III A QUESTO DA INEXISTNCIA DE FEUDALISMO,EM PORTUGAL E SUAS IMPLICAES

    1. Principais estudos dedicados ao tema

    a) Uma distino fundamental

    Nos estudos dedicados questo da existncia ou no de feudalismo na PennsulaIbrica, em especial em Portugal, o resultado fundamental a que se chegou parece consistir nadistino entre regime senhorial e regime feudal.

    No estudo de que se dar idia mais ampla, adiante, Manuel Paulo Mera explica adistino em apreo deste modo: O feudo um benefcio cuja concesso veio juntar-se,como condio sine qua non, obrigao de vassalagem expressa no juramento de fidelidade,criando dependncia pessoal e voluntria, com os deveres de prestao de servios nobres,sobretudo o servio militar excludas as prestaes pecunirias ou de valor pecunirio emperodos certos , em troca de fidelidade, proteo e justia prometidas pelo suserano.

    Mas o senhorio pode existir sem o contrato feudal e neste que reside a essncia dofeudalismo.

    Deste modo, em Portugal inexistia o vnculo expresso no contrato de vassalagem,justamente o que permitiu que as relaes entre os nobres estivessem previamenteestabelecidas, impedindo portanto o arbtrio real, ou, pelo menos, como se deu na Inglaterra,que se firmasse uma tradio capaz de sustentar a resistncia contra violaes das regrastornadas costumeiras.

    Naturalmente h outros aspectos, notadamente as reduzidas dimenses do territrio,de certa forma impeditivas da efetivao de atividades agrcolas capazes de proporcionarrendas expressivas aos detentores do senhorio, razo pela qual, como aponta Oliveira Viannae referiremos, aspiravam a que os descobrimentos criassem novas alternativas.

    b) Caracterizao dos estudos sobre o tema,Efetivada por Marcelo Caetano

    No livro que acabou tornando-se edio pstuma e que no teve prosseguimento Histria do Direito Portugus (Volume I. Fontes do direito pblico. Lisboa: Editorial Verbo,1982), Marcello Caetano (1906/1980) resume e comenta os estudos dedicados questo daexistncia ou no de feudalismo, na Pennsula Ibrica e, especialmente, em Portugal. Adianteacha-se transcrita a parcela essencial de tais consideraes.

    O PROBLEMA DO FEUDALISMONO EXTREMO OCIDENTE EUROPEU

    Marcello CaetanoI. Existiu no extremo ocidente da Pennsula Ibrica, onde se implantou Portugal, o

    feudalismo? A resposta est ligada, em grande parte, ao que se concluir relativamente aosreinos de Leo e de Castela.

    Pode dizer-se que quem primeiro se props examinar a fundo a questo foi

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    Alexandre Herculano. At ele, autores como Coelho da Rocha ou Silva Ferro admitiam aexistncia do regime feudal da Idade Mdia portuguesa, mas sem anlise detida do problema.

    Herculano tomou posio nas Cartas sobre a Histria de Portugal (III), e depois emvrios passos da sua Histria de Portugal, sustentando sempre que no existiu o feudalismona monarquia leonesa e nos pases dela desmembrados, embora alguns laivos do regimepossam ser encontrados. Mas onde tencionava pronunciar-se com mincia sobre o problemaera no estudo Da existncia ou no existncia do feudalismo nos reinos de Leo, Castela ePortugal que comeou a redigir em 1875, como srie de artigos destinada a publicao numarevista que entretanto desapareceu, e que se props continuar em 1877, deixando ao morrer otrabalho inacabado, depois coligido no volume V dos Opsculos.

    II. Herculano escreveu o seu estudo a propsito do aparecimento em 1873 do 1volume do livro do historiador espanhol Francisco de Cardenas, sobre a histria dapropriedade territorial em Espanha,(1) no qual o autor sustenta terem existido na PennsulaIbrica os elementos essenciais do feudalismo e a organizao feudal mais ou menos acabadae perfeita, embora com formas e denominaes diferentes das do resto da Europa em cujacivilizao, porm, a civilizao espanhola se integraria.

    O mtodo seguido por Herculano para criticar esta opinio consiste em comear pordeterminar as condies impreterveis, a ndole e os caracteres exclusivos do feudalismo.

    Reproduz ento a definio de Cardenas, que parte da separao entre o domnio tile o domnio direto da terra, pertencendo ao senhorio direto a faculdade de exigir, do possuidordo domnio til, fidelidade e servios militares e polticos, alm de lhe andar inerente umaparte maior ou menor da autoridade pblica em relao aos indivduos que na terra habitem. Afaculdade de dispor de qualquer dos dois domnios sofre importantes restries.

    Herculano compara esta definio com o que Guizot apresentara na 32 lio deHistoire de la civilisation en France depuis la chute de lEmpire romain. Segundo este, oregime feudal caracterizar-se-ia pela natureza especial da propriedade territorial que, emboraplena e hereditria, era havida de outrem, considerado superior do proprietrio e em relao aoqual este ficava adstrito a certas obrigaes pessoais. O proprietrio do solo, em relao aosque nele habitavam, exercia todos ou quase todos os poderes pblicos que hoje consideramossoberanos. Daqui resultava um sistema hierrquico que ligava entre si suseranos e vassalos,sucedendo que nos escales intermedirios se encontrassem pessoas reunindo as duasqualidades como vassalos de um senhor mais poderoso, de quem tivessem tido benefcios, esoberanos de vassalos prprios que houvessem beneficiado dos seus haveres.

    Comparando as duas definies, Herculano nota ter Guizot considerado o fato comopublicista, buscando a influncia exercida pelo feudalismo no modo de ser da sociedade,enquanto Cardenas raciocina como jurisconsulto e v a projeo do feudalismo no modo deser da propriedade. Mas enquanto as caractersticas apontadas por Guizot so essenciais eexclusivas da sociedade feudal, no sucede o mesmo com as propostas por Cardenas, segundoprocura seguidamente demonstrar.(2)

    O historiador portugus formula ento a sua concepo do feudalismo comoorganizao social e diz: Foi o despotismo de uma aristocracia anrquica, que, de longe evisto atravs do prisma das nossas idias atuais, nos aparece debaixo do falso aspecto desistema poltico. Dentro do seu feudo, e satisfeitas as condies com que hereditariamente oadquirira, o feudatrio era soberano absoluto. Leis, fazia-as ele ou admitia as que lheconvinham. A administrao pblica e o poder judicial estavam nas suas mos. Tributava a

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    seu bel-prazer, batia ou falsificava a moeda e fazia a guerra aos outros feudatrios, e em certashipteses ao prprio suserano, ou celebrava pazes e formava alianas conforme o seu caprichoou os seus interesses. A monarquia, a imagem do poder central, existia; mas na dependnciados grandes feudatrios e no como manifestao e instrumento da unidade social ...

    Esta viso do sistema seguida por uma anlise das suas origens em que Herculanope em destaque o papel do benefcio, do sculo V at ao sculo IX, isto , no perodo dasinvases germnicas, da runa e desmembrao do Imprio Romano e das lutas travadas entreos Brbaros sobre a posse dos fragmentos da grande construo poltica de Roma.

    Na essncia, o benefcio aparece como concesso de terras feita a ttulo de retribuiode servios: Era o soldo, o ordenado, o vencimento, a gratificao, pagos em troca deservios, entre os quais, naquela poca tormentosa, avultava, mais que todos, o trato dasarmas. O beneficirio, em vez de receber do Estado ou do poderoso a quem servia umaretribuio pecuniria, recebia diretamente em trabalho, em produtos ou em moeda, dotributrio, do colono ou do servio da gleba, do produtor em suma que fecundava a terra, oque nos tempos modernos recebe do errio ou da bolsa do opulento. (Pg. 228.)

    Todos os indivduos que constituam a hierarquia administrativa, judicial e militarrecebiam bens de raiz a ttulo de benefcio e mais o direito de desfrutar uma poro dostributos pblicos, tanto de origem romana como de raiz germnica.

    Herculano refere, depois, como os detentores dos benefcios procuraram tornar aposse deles hereditria e sacudir a incmoda supremacia dos reis nas monarquias brbaras deunidade dbil e, muitas vezes, com monarcas eletivos. Aps a morte de Carlos Magno, oretalhamento da autoridade processou-se rapidamente, usurpando o funcionrio os poderespblicos que lhe haviam sido cometidos, para passar a us-los como inerentes propriedadedo antigo benefcio. E a capitular de Kierny (Junho de 877), ao reconhecer a hereditariedadedos cargos pblicos com todas as suas atribuies e direitos, veio sancionar a situao criadade fato, originando o feudalismo.

    Examinada a origem do feudalismo em Frana, cuja evoluo vai do sculo VII aosfins do sculo IX, Herculano prope-se analisar se, na Pennsula Ibrica onde nesse perododecorre a ltima fase da monarquia visigtica, a sua runa pela invaso muulmana e o incioda Reconquista com a fundao do reino de Oviedo-Leo, ocorreram as causas que no resto daEuropa conduziram ao regime feudal.

    Justamente Cardenas, examinando as leis visigticas, deduz delas que, embora apropriedade entre os visigodos no tivesse todos os sinais caractersticos do feudalismo,encerrava, como em incubao, todos os germens dele. Isso leva o historiador portugus auma erudita e lcida dissertao sobre o Cdigo Visigtico, ou Livro dos Juzes, para chamara ateno para as diferentes pocas das leis nele compiladas e para o fato de no dever serconsiderado repositrio do Direito efetivamente praticado, quer por no consistir em recolhados costumes tradicionais, quer por refletir em muitos casos um propsito de racionalizao ede modernizao do Direito transmitido aos juzes que pudessem conhecer alguma cpiamanuscrita.

    Os vocbulos instituies, direito, lei e outros anlogos (escreve Herculano)despertam em ns a idia de preceitos, de regras da vida civil, escritos nalguma parte,absolutos, precisamente definidos, com data sabida, promulgados com solenidade e aplicadospermanentemente aos casos previstos nesses preceitos ou regras. Nas relaes jurdicas, omodo de ser das novas sociedades em via de formao era diverso. Na minha opinio, os

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    cdigos brbaros, considerados cumulativamente e no todo de cada um deles, longe derepresentarem as instituies jurdicas iniciais, espontneas, de vrias tribos germnicas que,avassalando as provncias do Imprio, comeavam a constituir as naes atuais, representamantes a luta da esplndida civilizao que expirava e dos arrebis da civilizao que ia nascer,com a barbrie triunfante. (Pgs. 269-270.)

    De modo que, na monarquia ovetense-leonesa, instituies e praxes que nos ho deparecer novas explicar-se-o facilmente pela persistncia de duas tradies jurdicasextralegais mantidas pelos costumes: a germnica, representada principalmente pelosforagidos nas Astrias, e a romana, representada sobretudo pelos morabes, que deviampertencer na sua grande maioria raa hispano-romana, como oportunamente terei ocasio demostrar. (pg. 287).

    Era a partir destes princpios que Herculano ia passar a discutir a interpretao dada aalguns preceitos do Cdigo Visigtico em que Cardenas fundava a sua teoria. Mas a morteimpediu-o de continuar.

    III. Em 1885, no 1 volume da sua Histria da Administrao Pblica em Portugalnos Sculos XII a XV, Henrique da Gama Barros retoma o assunto no ttulo consagrado aoPoder do Rei, alegando que s depois de conhecermos at que ponto essa organizaosocial (o feudalismo) exerceu influxo entre ns, poderemos verdadeiramente apreciar oslimites que de fato circunscreviam coroa o exerccio da soberania. (2 ed., I, pg. 165).

    O historiador desenvolve o tema sua maneira: segundo anlise meticulosa dostextos de onde extrai o maior nmero possvel de fatos que lhe permitam deduzir conclusessobre as quais possa afirmar solidamente uma opinio. Mas, de acordo com o ttulo da obra, oseu estudo vai desde antes do sculo XII, em que pesquisa o regime poltico da monarquialeonesa-castelhana em confronto com a situao paralela na mesma poca em Frana, at aosculo XV.

    ..........................................................Gama Barros nota que outros textos, como a Histria Compostelana (sculo XII) e

    memrias histricas dos sculos XIII, XIV e XV, empregam por vezes a palavra feudo, eprocura averiguar qual o sentido que lhe dado e a que realidades corresponde.

    E conclui: Existindo, para o monarca em relao aos seus vassalos diretos e para ossenhores particulares em relao aos seus vassalos prprios, a obrigao de pagar o servio(militar) e no consistindo a remunerao dele por parte da coroa nas doaes, importa saberquais eram os proventos que representavam o estipndio. Eram evidentemente: as tenncias,que vimos serem amovveis; os prstimos, isto (em um dos sentidos da palavra), o usufrutotemporrio ou vitalcio de rditos ou de terra em retribuio de cargo ou servio pblico; asprestaes certas em dinheiro ou em gneros; as consignaes de determinados rendimentosfiscais, aquilo a que as Partidas chamam tierra e honor. E acrescenta: Nada disto, porm,era feudal. (Pg. 350.)

    Em resumo, diz o nosso autor que o nico fato substancial que aproximou o regimeportugus do sistema feudal foi os senhores estarem revestidos do poder pblico em seusdomnios prprios. Mas, por um lado, estes domnios correspondiam a um direito depropriedade no dependente de encargos nem inserido numa hierarquia de terras nobres; poroutro, o exerccio do poder pblico estava subordinado nos senhorios autoridade domonarca, mesmo que esta fosse exercida mais de direito que de fato.

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    A supremacia do monarca resultou da sua chefia militar afirmada durante a guerra daReconquista; do interesse do clero em conservar essa autoridade mantenedora da ordem esegurana em todo o territrio; e no desenvolvimento das instituies municipais quecontrariava as pretenses dos senhores e contra elas buscava aliana nos reis.

    Mas, observa o ilustre historiador, no se deve perder de vista que estudamos umapoca em que a fora valia muito mais que o direito. Por isso, as fraquezas e dificuldades deum monarca eram logo aproveitadas pelos poderosos e em Portugal em certos perodos asclasses privilegiadas estavam nos seus domnios prprios numa situao anloga, a muitosrespeitos, dos bares nos seus feudos e at, em parte, mais favorecida do que a destes (pg.363). Tanto mais que a nobreza no podia deixar de ser acessvel s influncias dos costumese instituies de alm dos Pireneus, donde vinham prncipes, bispos e guerreiros.

    De modo que conclui achamos nas relaes da classe nobre para com a coroadiferenas radicais com o sistema feudal, mas, considerado nos seus domnios prprios, ohomem nobre apareceu-nos numa situao que tem manifesta analogia com a dos senhoresfeudais, na imunidade, no exerccio dos direitos jurisdicionais e nos encargos e servios. quelhe deviam os moradores e cultivadores das suas terras. Embora na origem esta situao fossede todo alheia ao regime do feudalismo, reconhecemos o influxo dele na extenso dos direitose prerrogativas que se foram arrogando em Leo e Castela os senhorios particulares. Nestesreinos e no de Portugal, a ao e reao entre o princpio feudal, que era dominante em grandeparte da Europa, e as circunstncias peculiares da Pennsula que repeliam aquele princpio,produziram um sistema poltico especial, que no era o feudalismo porque lhe faltavam oscaracteres essenciais, mas que tambm proporcionava aristocracia elementos vigorosos deresistncia ao desenvolvimento do poder do rei, nos amplssimos privilgios de que a nobrezaestava revestida (pg. 372).

    A anlise de Gama Barros continua a ser, nos nossos dias, elemento valioso nadiscusso do problema do feudalismo em Portugal.

    IV. um jovem estudioso da Histria do Direito, Manuel Paulo Mera, que, em1912, vai retomar o assunto num opsculo intitulado Introduo ao problema do feudalismoem Portugal Origem do feudalismo e caracterizao deste regmen (Coimbra, 1912).

    .......................................................

    Procedendo por eliminaes sucessivas, Mera no considera caracterstica essencialdo feudalismo:

    a) a completa absoro do poder real pelos senhores;b) a hereditariedade legal dos cargos pblicos e o seu exerccio nome prprio;c) a hierarquia de vassalos e suseranos terminando num monarca.Os caracteres do feudalismo e a torna Mera a seguir Fustel de Coulanges seriam

    pois:a) a posse do solo organizada por forma tal que o possuidor no verdadeiramente

    proprietrio, pois no pode vender, nem legar, e detm a terra sob a condio de prestar bensou servios a outrem;

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    b) a distribuio do solo em grandes domnios dentro de cada um dos quais ospovoadores obedecem ao senhor, por ele so julgados, a ele devem servio militar(senhorios);

    c) os senhorios no dependem todos igualmente do rei, porque a maior parte recebeude outros senhores os seus domnios e a eles est sujeita, originando-se uma hierarquia devassalos e suseranos em cujo vrtice reside o rei (pg. 91).

    Todavia, preciso no confundir feudo e senhorio. Ainda que a sua conjunonormal tenha dada organizao poltica dos sculos XI, XII e XIII a sua fisionomiacaracterstica, trata-se de institutos distintos. O feudo um benefcio a cuja concesso veiojuntar-se, como condio sine qua non, a obrigao de vassalagem expressa no juramento defidelidade, criando dependncia pessoal e voluntria, com os deveres de prestao de serviosnobres, sobretudo o servio militar excludas as prestaes pecunirias ou de valorpecunirio em perodos certos , em troca de fidelidade, proteo e justia prometidas pelosuserano.

    Mas o senhorio pode existir sem o contrato feudal e neste que reside a essncia dofeudalismo.

    Em resumo, o contrato feudal, pelo qual o feudo adquire existncia, no implicaessencialmente disperso de soberania, o que no impede que aparea quase sempre ligado aosenhorio.

    Finalmente, no captulo IV, o autor vai abordar a questo do feudalismo emPortugal, ligado existncia desse regime poltico-social nas outras monarquiaspeninsulares. Depois de resumir as opinies emitidas at a, limita-se (dado o carterintrodutrio do seu trabalho) a enunciar os problemas de que, em seu entender, depende asoluo. Esses problemas seriam:

    1 - Existiram em Portugal verdadeiros feudos? Caso negativo, existiu alguma coisaque se lhes assemelhasse? Nesta hiptese, quais as semelhanas e as diferenas?

    2 - Existiram em Portugal verdadeiros senhorios? O senhorio andou inerente concesso feudal ou existiu independentemente do feudo?

    3 - Em que sentido e at que ponto sofreu em Portugal limitaes o poder real?Chegaram alguns funcionrios rgios a exercer o poder pblico em nome prprio? Se issoaconteceu, at que ponto? E por que no foi mais alm?

    A resposta ao primeiro problema seria, porm, a mais importante (pg. 139).V. Mera respondeu implicitamente a estas perguntas ao emitir a sua opinio no

    estudo sobre Organizao Social e Administrao Pblica com que colaborou no volume IIda Histria de Portugal, edio de Barcelos (1929).

    A nos diz que era prprio do ofcio rgio distribuir mercs com liberalidade,cedendo no s terras, como direitos de jurisdio e outros atributos da sua soberania e nohesitavam (os reis) mesmo em o fazer a ttulo definitivo, ou seja, por meio de doaesperptuas, embora, claro, retendo sempre aquilo a que D. Dinis chama algures a justiamaior (pg. 468).

    As concesses feitas s classes privilegiadas apresentavam extrema variedade, nos pelo que respeita natureza dos direitos transmitidos, como ainda no que toca sua maiorou menor estabilidade e durao... a par das doaes hereditrias de juro e herdade havia

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    os prstamos, em regra vitalcios, as doaes em mais de uma vida e at as concessesrevogveis ad nutum (enquanto minha merc for). (Pg. 469.)

    A qualidade de rico-homem ou vassalo do rei andava sempre ligada a posse deterras ou direitos reais... e, sendo assim, natural era tambm que os que tinham terras da coroase achassem de fato constitudos para com esta, ainda mesmo quando nenhumas condies setivessem expressamente clausulado, num conjunto de deveres, nomeadamente no respeitanteao servio militar, mais precisos e estritos do que os que impediam generalidade dos sditosou naturais. (Pg. 469.)

    "Acode ao esprito a semelhana com as instituies feudais, tanto mais que osprstamos com que os reis remuneravam o servio militar seus vassalos equivaliam aosbenefcios ou feudos europeus antes de se tornarem hereditrios. Mas o prstamo no sedesenvolveu no sentido feudo, no foi a nica forma de remunerar o servio dos nobres e smuito excepcionalmente se encontra exemplo de ser concedido por outras pessoas, que no omonarca.

    Doaes feitas em termos exorbitantes, como a de Afonso III a seu filho D. Afonso,dos castelos e vilas de Marvo, Portalegre e Arronches tm carter de verdadeiros apangioscom ressaibo feudal. Mas so excees

    A verdade que em Portugal a organizao poltica nunca teve como elementoessencial o contrato de feudo, com esse ou outro nome. Uma coisa o feudo, outra o senhorio,de onde a necessidade de distinguir o regime senhorial do regime feudal, embora nos pasesde tpico feudalismo os dois sistemas apaream amalgamados e numa estreitainterdependncia (pg. 469).

    Mera conclui, pois, que Portugal, como Leo, apenas conheceu o regime senhorial,mas com uma fisionomia prpria que se denota nas relaes do rei com os sditos, naimportncia da cavalaria vil, na remunerao do servio militar pelo sistema da soldada, pelasupremacia do monarca em relao aos maiores privilegiados e pelo carter amovvel doscargos pblicos.

    Se certo que, com o andar dos tempos, cobraram vida em Portugal alguns dosfatores que, alm-Pirenus, haviam conduzido ao regime feudal-senhorial, essas tendncias,desabrochadas com atraso secular, esbarraram em obstculos insuperveis: a autoridade dacoroa, mantida firme pela permanncia do estado de guerra, e a considervel massa dehomens livres que, sobretudo depois de constitudos em ncleos municipais, serviam decontrapeso em face da nobreza.

    Mera considera, pois, fundamentalmente exatas as concluses a que, acerca dofeudalismo em Portugal, chegaram Herculano e Gama Barros (pg. 470).

    VI. Podia considerar-se pacfica a doutrina de que em Portugal, como em Leo eCastela, no existiu regime feudal mas apenas um regime senhorial.

    Sanchez Albornoz, porm, no decurso da sua extensa e original obra, ia passar denovo em revista todo o problema. So especialmente de destacar os seguintes trabalhos:

    1. La Potestad real y los seorios en Asturias, Leon y Castilla. Siglos VIII al XIII(1914).

    2. Las behetrias. La encomendacion en Asturias, Leon y Castilla (1924). 3. Fideles y gardingos erc la monarquia visigoda. Races del beneficio y del

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    vassalage hispanos (l volume da obra En torno a los origenes del feudalismo (3 vols., 1942).4. El stipendium hispanogodo y los origenes del beneficio prefeudal (1947).5. Espaa y el feudalismo carolingio (1954).Os trabalhos indicados sob os ns l, 2 e 5 foram em 1965 reproduzidos pelo autor no

    volume Estudios sobre las instituciones medievales espaolas, Mxico, e neste os citaremos.No primeiro destes estudos, em que delineia com mestria o regime senhorial

    peninsular e suas relaes com o poder real, o autor fala num feudalismo espanhol decarter peculiar (pg. 801).

    Obra de juventude, essa expresso no teria importncia se no tivesse sido mantidana nova publicao feita em 1965. Verdade seja que na concluso desse ensaio, o autorescreve: A imunidade nasce na monarquia das Astrias, como nas demais de origemgermnica, e reveste nela caracteres anlogos aos que a distinguem nos outros reinos fundadospelos Brbaros. Circunstncias especiais fazem com que no siga os outros povos na evoluoat ao feudalismo, porm ao atenuarem-se essas circunstncias, coincidindo com o perodo deapogeu da influncia estrangeira, a imunidade evoluciona tambm em igual sentido, mas eratarde, e a fora de uma tradio de mais de trs sculos fez com que nossas instituiessenhoriais resultassem diferentes das francesas, com singularidade no referente s relaes dosenhor com o soberano, mais semelhantes s que em Frana ligavam os vassalos com oproprietrio de um grande feudo que s vinculantes desses senhores ao monarca. (Pg. 821).

    E quais so as caractersticas do referido apogeu da influncia estrangeira? So, noltimo tero do sculo XI, o matrimnio de Afonso VI de Leo com D. Constana, e os desuas filhas Urraca e Teresa com dois nobres borgonheses, D. Raimundo e D. Henrique, osquais introduziram na corte idias e prticas francesas. A vinda dos monges de Cluny e debom nmero de clrigos francos, como os que trouxe consigo D. Bernardo, primeiro arcebispode Toledo reconquistado, vindo de Roma. O estreitamento de relaes com a cria pontifcia,originando unificao de ritos e a presena freqente na Pennsula de legados do papa, aomesmo tempo que um nmero aprecivel de eclesisticos peninsulares viajava Cidade de S.Pedro ou ia estudar alm-Pirenus. Cavaleiros e aventureiros franceses incorporaram-se nashostes leonesas da Reconquista, da Frana vieram povoadores a fundar novas localidades naEspanha ou a formar importantes ncleos de habitantes nas velhas cidades castelhanas e,finalmente, as peregrinaes a Santiago de Compostela mantinham um fluxo contnuo degente proveniente de pases onde existia o regime feudal, incluindo senhores e bispos (pgs.799-800).

    Na seqncia dos seus estudos, optar pela expresso instituiesvasslico-beneficiais em vez do discutido termo feudais. Segundo ele, j na monarquiavisigtica se desenvolveram relaes pr-vasslicas e os reis fizeram concessespr-beneficiais. A propsito das primeiras desenvolveu em vrias ocasies a tese de que osgardingos eram clientes dos reis godos e faziam parte da respectiva comitiva, como oscomits e os seniores. Havia, pois, uma relao de patrocnio entre o monarca e estesrecomendados, assim como os magnates nobres e eclesisticos do Reino tinham tambm osseus bucelrios e saies.

    Estes recomendados recebiam dos patronos (ou patres) soldadas ou terrasrecompensa dos seus servios e durante o tempo em que os prestavam; assim aparecem osbenefcios concedidos in stipendio, diferentes dos bens doados em plena propriedade. Mas os

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    funcionrios tambm recebiam compendia ou soldadas em dinheiro.As concesses estipendirias eram outorgadas por prazo incerto e dilatado, gratuitas e

    revogveis, implicando a prestao de um servio, pelo que Sanchez Albornoz entende teremsido feitas segundo a clssica figura jurdica romana do precarium e no pela precariavisigoda, verdadeiro contrato agrrio, remuneratrio e com prazo fixo. Houve, alis, namonarquia visigoda autnticos benefcios militares para remunerar o servio a cavalo.

    Assim apareceriam, antes do feudalismo carolngio, a vassalagem (on clientela) e obenefcio, na monarquia visigtica, j nos sculos VI e VII.

    A Reconquista veio fazer estacionar o processo feudalizante hispano. Mas os reis dasAstrias (718-910) e de Leo (910-1037) continuam rodeados de fiis. Na segunda metade dosculo X e no comeo do sculo XI, as relaes de patrocnio entre os magnates e os seusinfanes ou milites constituem uma situao normal e generalizada, e em 1029 usa-se otermo vassalo no sentido tcnico-jurdico corrente ao norte dos Pirenus, em vez de miles, quetodavia continua a ser empregado no mesmo sentido.

    Os vassalos ou milites dos reis ou dos magnates asturo-leoneses e, depois, doscastelhanos receberam dos seus patronos ou senhores estipndios territoriais honras, seconcedidos pelo monarca, prstamos e atondos quando o eram por magnates alm, segundoparece, de outras vezes receberem alimentos e soldadas.

    Os reis asturo-leoneses, herdeiros da tradio visigoda, outorgaram concessesbeneficirias temporrias relacionadas com a condio de familiares, servidores ou protegidosdos beneficirios. O termo benefacere correspondia concesso de benefcios por um senhoraos seus vassalos, quer sob a forma de entrega de uma terra, quer pela participao na casa ena mesa do senhor, ou pelo pagamento de soldada em metlico. Encontram-se em Castela, nossculos XII a XIV, duas classes de vassalos, os criados, em casa do senhor e por estemantidos, e os assoldadados, que recebiam a paga peridica em dinheiro, e este usocorresponderia decerto a prticas antigas, asturo-leonesas.

    Mas at ao princpio do sculo XI no se tinha chegado unio, de direito, entre asrelaes pessoais de vassalagem e as concesses beneficirias de terras, pois estas eram feitascom freqncia a quem no era vassalo e os vassalos eram com mais freqncia aindarecompensados em dinheiro.

    E as concesses beneficirias asturo-leonesas feitas aos fiis do rei ou aos milites dossenhores duravam s enquanto perdurassem as relaes de vassalagem e s excepcionalmenteeram vitalcias.

    Tais concesses beneficirias, revogveis por vontade rgia, no receberam a velhadenominao hispano-goda, stipendium, nem as novas em uso alm-Pirenus, benefcio,feudo: so chamadas encomendas ou comendas, prstamos ou atondos.

    At ao sculo IX, o servio militar no podia deixar de ser obrigao de todos os quepodiam tomar armas, porque a guerra contra os Muulmanos era permanente. S depois dissopodem aparecer no reino asturo-leons as vinculaes do dever de ir guerra concesso deum prstamo ou ao pagamento de soldada, como veio a suceder com os infanes castelhanos.

    Assim, se no sculo VII as instituies pr-feudais hispanas se podem considerarmais avanadas que as sincrnicas instituies merovngias, as instituies feudais do reino deLeo (910-1037) afastam-se do maduro regime feudal europeu contemporneo. As sociedadesfeudais, dos dois lados dos Pirenus, cerca do ano 1000, diferem tanto entre si, como estavam

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    prximas as instituies pr-feudais hispano-godas do sculo VII das galo-francas do sculoVIII.

    As grandes diferenas do regime vasslico-beneficial asturo-leons relativamente aofeudalismo contemporneo de alm-Pirenus, tanto podem atribuir-se paragem de evoluoda sociedade hispana por obra da Reconquista e do repovoamento do territrio, como aosprocessos sociais e polticos que ocorreram nos domnios do Imprio Carolngio.

    A anlise de Sanchez Albornoz, a quem se devem estudos basilares sobre arecomendao e o patrocnio, o benefcio e a imunidade originria dos senhorios, na Espanhavisigoda e nos reinos da Reconquista, revela que houve uma gnese peninsular do regimefeudal cuja evoluo foi interrompida de modo a produzir-se um regime diverso que todavia,em certa altura, sob influncia estrangeira, incluiu instituies, prticas e designaes feudais.

    No fundo, a mesma concluso de Gama Barros.(1)VII. Desta linha de pensamento discordaram os sectrios do determinismo histrico e

    do materialismo dialtico.VIII. Num estudo de Histria do Direito no deve deixar de ser considerado o aspecto

    jurdico do sistema feudal, embora sem o divorciar das circunstncias em que se apresentou edas conseqncias que dele se seguiram. Alis, a tentativa de definir o sistema tendo apenasem conta os fatos econmicos, destacando de entre estes as relaes entre os elementosprodutivos, no parece coroada de sucesso. A lei da renda feudal surge como simplesmanifestao do esquema marxista bsico: uma classe que se apropriou abusivamente dosmeios e objetos de produo social e que por esse motivo explora a outra classe forada aprestar o seu trabalho aos donos do capital, os quais se locupletam com a diferena entre ovalor integral do trabalho prestado e aquilo que deixam ao produtor correspondente snecessidades do mnimo vital.

    Para se compreenderem alguns aspectos que, dentro da ptica marxista, poderiamparticularizar as incidncias desta lei durante a Idade Mdia europia, necessrio mostrarcomo se formaram os domnios senhoriais, como e porque se deu a apropriao dos meios eobjetos de produo social e as razes que levaram aceitao da supremacia de certosvalores sociais sobre outros. E isso s a Histria do Direito (ou a Histria Poltico-Social)podem esclarecer.

    As anlises recentes do sistema feudal, fruto da reviso a que foram submetidas asconcluses formuladas no princpio do sculo XIX sobretudo em Frana, sistematizaram eenriqueceram o que j se sabia, mas no alteraram substancialmente as idias fundamentaisdadas por adquiridas.

    Destes revisores de justia citar, em primeiro lugar, Marc Bloch, cujo livro sobreLa socit fodale (2 vols., I, La formation des liens de dependence, e II, Les classes et legouvernement des hommes, 1939-1940) hoje de imprescindvel leitura ao estudioso dosproblemas medievais.

    Uma obra largamente espalhada, a do belga F. L. Ganshof, Qu'est-ce que laFodalit?, 3 ed., 1957 (traduzida em portugus por Jorge Borges de Macedo, Que oFeudalismo?), proporciona uma viso panormica bastante fiel dos conhecimentos sobre oassunto na segunda metade do nosso sculo.

    A leitura destes trabalhos revela, porm, a solidez dos conhecimentos apurados emPortugal por Gama Barros e Paulo Mera. Pode a viso de agora ser mais ampla, abrangente

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    de novos aspectos, mas o esqueleto fundamental da questo, tal como o desenharam osmestres portugueses, continua de p.

    IX. Vamos tentar uma sntese em que se contenha o essencial do feudalismo. Paraisso procuraremos em primeiro lugar definir as circunstncias que o originaram; depois assolues institucionais de resposta a essas circunstncias; finalmente as conseqncias que daresultaram.

    A) Circunstncias em que nasceu o feudalismo:a) polticas: enfraquecimento do desempenho das funes de segurana, justia e

    bem-estar da organizao poltica, originando a obliterao da noo romana de Estado (respublica) e da autoridade do rei que a representava;

    b) sociais: insegurana das vidas humanas e dos direitos de propriedade e de possedos mais fracos, por deficincias de um poder que impusesse o respeito da lei aos mais fortes;

    c) econmicas: predomnio da agricultura e dos meios rurais, contrastando com adecadncia dos centros urbanos; povoamento em geral irregular, sendo freqentes as manchasde ocupao separadas entre si por distncias de difcil transposio; tendncia para aformao de grandes domnios territoriais, cada um dos quais pertencentes a um proprietrio,e onde se procura a auto-suficincia, consumindo o que se produz localmente e utilizando olabor dos artfices existentes no prprio domnio; escassez de moeda metlica;

    d) militares: necessidade de dispor de exrcitos baseados numa cavalaria cujoarmamento e manuteno por conta dos cavaleiros eram dispendiosos.

    B) Resposta institucional s circunstncias (instituies vasslico-beneficiais):a) polticas: aparecimento de intermedirios entre o monarca, que no consegue

    realizar as funes do Estado, e os povos desamparados, assumindo os proprietrios dosdomnios, a par da tradicional autoridade sobre os seus servos, a que tem de ser exercida sobreos restantes habitantes, cobrando os impostos, administrando justia e conduzindo-os guerra: os domnios territoriais, por fora do costume respeitado por todos (honras) ou deimunidades concedidas pelos reis (coutos), convertem-se em senhorios;

    b) sociais: para fugirem insegurana que ameaa suas vidas e pe em risco seusdireitos, os homens livres indefesos procuram o patrocnio de vizinhos fortes e poderosos que,sem perda da sua liberdade, os protejam contra violncias e vexames e ao mesmo tempo lhesfaam bem (benefacere) sustentando-os, alojando-os ou cedendo-lhes bens mveis ouimveis; essa proteo obtida mediante o ato de recomendao, que tanto pode ser praticadopor plebeus que entregam seus bens ou parte deles ao patrono para, continuando a fru-los,mediante as vantagens econmicas concedidas, receberem a desejada proteo, como porpessoas de classe superior que se propem prestar servios considerados nobres ao senhor, dequem se tornam, jurando-lhe fidelidade, milites, vassalos, fiis..., assim se criando laospessoais de dependncia entre patrono e cliente que constituem uma das redes bsicas da vidasocial;

    c) econmicas: a carncia de moeda metlica e a relativa abundncia de terra, emgrande parte carecida de trabalho para se tornar produtiva, leva os reis e poderosos a retribuiros servios dos seus vassalos mediante a concesso do uso e fruio de bens cuja propriedade

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    nominalmente retm, originando a distino mais tarde feita, quanto aos imveis, entredomnio til (do concessionrio) e domnio direto (do concedente); essa concesso, feita,portanto, sem outro encargo que no seja o da obrigao de prestar servios nobres (governode distritos, servio militar, culto divino, funes da corte...), constitui o benefcio, que naEuropa Central se chamar posteriormente feudo e na Pennsula Hispnica prstamo ouatondo; os benefcios eram inicialmente concedidos apenas enquanto durasse a funo de queos seus rendimentos constituam salrio, ou ento a titulo vitalcio; os benefcios em terras doassim aos beneficirios o direito a receberem dos que trabalham nessas. terras uma srie deprestaes de bens (sados da produo) e de servios;

    d) militares: a necessidade de recursos econmicos considerveis para manter cavaloe armas e poder servir fora de casa quando o dever militar o exigisse origina a formao deuma classe de cavaleiros nobres, que recebe benefcios em bens ou em renda pecuniria eoutras vantagens e privilgios de modo a que possa dedicar-se profisso da guerra; obenefcio recebido torna-se a fonte dos deveres de lealdade e de fidelidade do vassalo paracom o seu suserano, deveres traduzidos na obrigao de o ajudar na guerra e na paz e de oaconselhar no governo e na administrao da justia, o que tudo prometido no ato solene dehomenagem (hominium).

    C) Conseqncias possveis (sociedade feudal tpica):a) polticas: a juno do benefcio ou feudo com os poderes senhoriais acrescidos das

    funes governativas locais primitivamente conferidas pelo rei mas depois usurpadas pelossenhores que as exerciam, e tudo abusivamente tornado hereditrio, criou aos senhores umaposio de quase independncia em relao ao monarca cuja suserania reconheciamnominalmente, mas que no podia exercer qualquer jurisdio direta sobre os sbditos queestivessem colocados na imediata dependncia dos seus senhores e s a estes obedientes;assim, a um poder real enfraquecido e impotente correspondem os poderes dos senhoresfeudais, quase onipotentes nos respectivos domnios, onde fazem leis, declaram a guerra,ministram justia, cunham moeda...;

    b) sociais: atravs das formas de recomendao e da concesso de benefcios pelossenhores aos seus vassalos, cria-se uma estrita hierarquia social, na base da qual esto osservos, depois os homens em situao de semiliberdade (juniores, colonos), os homens livresincludos na clientela de um senhor, os burgueses (proprietrios de bens alodiais,mercadores,...), os cavaleiros e escudeiros vassalos, os senhores (ricos-homens e infanespoderosos), o rei e sua famlia, devendo notar-se que havia uma hierarquia eclesisticaparalela, com importantes senhorios eclesisticos de bispos, de ordens monsticas e de ordensmilitares, e com benefcios ou comendas confiados a clrigos e por vezes a leigos;

    c) econmicas: o domnio senhorial, leigo ou eclesistico, tende a ser a unidadeeconmica fundamental, abrangendo as zonas diretamente ocupadas ou exploradas pelosenhor e um maior ou menor nmero de pequenas exploraes a cargo de recomendados oubeneficirios; a atividade agrria dominante e o domnio procura ser auto-suficiente,produzindo o necessrio ao prprio consumo e mantendo mesmo os artesos convenientes aosservios e s rudimentares formas de tecnologia e indstria; os laos pessoais de dependnciaso aqui reforados pelos vnculos resultantes do desdobramento do direito de propriedade emvrios direitos menores, desdobramento criador de encargos que oneram as terras e com elasse transmitem aos possuidores, originando relaes reais permanentes entre eles; toda aeconomia do domnio tende a favorecer o senhor, credor de prestaes de bens e de servios edetentor de privilgios, entre os quais figuram monoplios de certas atividades (fornos,

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    lagares...) ou prioridade em determinados comrcios (como o do vinho);d) militares: a sociedade feudal dominada por duas classes a dos clrigos, que

    tem a seu cargo o culto divino, e a dos cavaleiros, que constituem uma casta possuidora de umcdigo severo de ideais, costumes e regras morais; mas a classe dos cavaleiros nobres, tendode justificar a sua existncia e a dos seus privilgios, procura ocasies de ser empregada nasguerras externas ou privadas, nas justas e torneios, etc.

    O esquema que traamos ajudar, segundo cremos, a formar juzo sobre o problemadebatido. Na medida em que, em qualquer pas da Europa crist na Idade Mdia severificaram as circunstncias enunciadas na alnea A, houve tendncia para aparecerem, commaior ou menor vigor revestindo por vezes modalidades caractersticas, as instituiesvasslico-beneficiais referidas precedentemente. (letra B)

    Mas s nalguns pases resultaram, da prtica conjugada dessas instituies, asconseqncias enumeradas em C e que consideramos prprias da sociedade feudal tpica.

    Quer dizer que, como alis hoje comea a ser corrente entre historiadores, necessrio distinguir entre as instituies vasslico-beneficiais, ou feudo-vasslicas, e asociedade feudal, podendo verificar-se a existncia daquelas sem por isso se caracterizar otipo desta.

    Seria antecipar a exposio das instituies medievais portuguesas procurar dizernesta altura o que nelas houve de vasslico-beneficial que, por brevidade, designaremos porfeudal. No decorrer do estudo a que vamos proceder anotaremos o que a tal respeito forsurgindo, podendo desde j observar que a influncia das prticas ou idias feudais se vaifazer sentir at tarde (final do sculo XV) sem, todavia, se poder encontrar nunca umasociedade feudal tpica.

    Alis, sabido que a Idade Mdia no propcia repetio de formasestandardizadas de vida e de governo. A mentalidade dos nossos dias exige nos regimes aobedincia a certos modelos segundo uniformidade institucional e coerncia lgica. Nadadisso se encontra nos tempos medievais. Quando Portugal se destacou da monarquia leonesa,no final do sculo XI, o regime feudal j evolura no Centro da Europa e, no tendo havido noOcidente peninsular evoluo natural anloga, nunca poderamos a encontrar mais que amistura de certas frmulas adiantadas enxertadas por importao com concepes arcaizantesremanescentes de tempos passados, e que correspondiam s solues encontradas paracircunstncias semelhantes s que haviam feito eclodir as instituies feudo-vasslicasnoutros pases.

    (Transcrito de Histria do Direito Portugus, Vol. I,edio citada, pgs. 149-174)

    2. Implicaes da ausncia de feudalismo em Portugal

    No livro que escreveu como Introduo Histria Social da EconomiaPr-Capitalista no Brasil (Rio de Janeiro, Jos Olmpio, 1958), Oliveira Viana (1883/1951)examinou as implicaes, no que se refere aos valores que orientariam a atuao da eliteurbana brasileira, do fato da inexistncia de feudalismo em Portugal. Ainda que talinvestigao obedea a esse propsito especfico, seus resultados aplicam-se generalidade docomportamento da chamada pequena nobreza, que constituiria a maioria.

    De um modo geral, a nobreza europia, inclusive a portuguesa, no era uma classe deagricultores, de pessoas ligadas ao trabalho da terra, como poderia parecer primeira vista.Era constituda de pessoas que viviam de rendas. Embora senhores rurais, cobrando

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    prestaes in natura de agricultores arrendatrios ou servios pessoais dos servos, eram"puros rentistas e no produtores: praticavam uma economia de consumo e no de produo.Tinham rendas mas no tinham lucros; e isto importante no ponto de vista social" escreveo socilogo fluminense.

    Sob pena de perda dos privilgios que desfrutavam, os nobres no podiam dedicar-seao comrcio ou ao trabalho manual. Trata-se de um autntico tabu e a desnobilizao erainevitvel.

    No caso de Portugal, a situao da nobreza singularizava-se por ser reduzida emedocre a sua base econmica. Adianta Oliveira Viana: Dada a restrio da base territorialdesta pequena nobreza agrria, agravada ainda por estes tabus de vivncia nobre, tudo istodeixava a nobreza peninsular freqentemente numa situao constrangedora. Bastava uma altade preos ou uma quebra do valor da moeda coisa alis freqentssima, quase normalnaquela poca para que o equilbrio dos oramentos domsticos desta nobreza se rompesse ea maior parte dos seus membros se visse constrangida a viver uma vida parasitria, recebendopequenos favores, habitao e mesmo vesturio dos ricos homens e dos cavaleiros mais ricos,e, quando mais felizes, dos prncipes ou do Rei. No enquadramento de classe em que viviam,era o meio que se lhes abria de evadirem-se sano desclassificadora dos preconceitos contrao trabalho manual ou contra a profisso mercantil, esta tida por aquela poca como vilssima.(l ed. citada, p. 165/166).

    A alternativa plausvel era colocar-se ao servio da Coroa. Oliveira Viana cita FreiLus de Souza que viveu na segunda metade do sculo XVI e nas primeiras dcadas doseguinte, autor de obras histricas de grande importncia que escreve num de seus livros: "Anobreza destes reinos toda se emprega em servir Coroa e, em geral, possui poucas rendas".

    A nobreza portuguesa no veio a ser o elemento social que, segundo Weber, levou aoconstitucionalismo, isto , uma classe dotada de suficiente poder econmico para enfrentar oRei e a burocracia da Corte. Em Portugal tornou-se caudatria dessa burocracia. Comoescreve Oliveira Viana: Esta pequenez da base territorial e agrria, sobre que se assentava osistema de vivncia da nobreza lusitana, que explica, antes de tudo, a no constituio de umregime propriamente feudal em Portugal. Este foi discutido com erudio e profundeza, porvelhos historiadores, como Herculano e Gama Barros e, modernamente, por Manuel Mereia eFortunato de Almeida. Vrias causas histricas e polticas foram apontadas para estaindefinio do sistema feudal na Pennsula. E a verdade, porm, que foi justamente estareduo da sua base territorial, de que decorria a insuficincia das suas rendas agrrias, queobrigou a nobreza lusa a ceder no seu orgulho anterior para ser apenas uma classe dependente,de apaniguados e comensais da Coroa, destituda de recursos pecunirios, de meios de luta, dacombatividade e do senso de independncia dos landlords ingleses, que nunca se curvaramdiante do Rei; antes, pelo contrrio.(p. 169/170).

    Oliveira Viana avana outra concluso da maior relevncia ao indicar que o brevesurto mercantilista a que foi atrado Portugal, pela pilhagem das riquezas da ndia, em vista desua breve durao, serviu sobretudo para reforar os tabus tradicionais contra o trabalho e olucro. A esse propsito afirma o seguinte: "O fim do sculo XVI e o comeo do sculo XVIIpuderam assistir, com efeito, reintegrao da nobreza nos seus tradicionais preconceitosantimercantilistas expressa no seu retorno s suas velhas tradies agrrias e de feudalismoterritorial. Este movimento, que tivera incio sob a influncia do fracasso das ndias, dirigiu-seinteiramente para o Novo Mundo para a colonizao do Brasil". (p. 184).

    Este outro registro do notvel estudioso de nossa sociedade da maior relevncia:

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    mesmo sob o mercantilismo a nobreza portuguesa nunca se transformou em classe comercial.Durante o delrio das ndias continuou pr-capitalista e aristocratizada como na fase damonarquia agrria. O seu af de rpido enriquecimento nutria-se apenas do desejo de fomentaro consumo conspcuo. No se tratava de promover a acumulao, a que se dedicoupreferentemente a elite de outras naes europias.

    O resultado de tal experincia assim descrito por Oliveira Viana: Os homens danobreza, retrados cada vez mais dessas atividades mercantis, preferiram encaminhar-se, denovo, para os cargos da administrao e para os postos militares, seu velho domnioprivilegiado, sempre considerados salvo durante o breve intercurso dos "fumos da ndia" como nicos compatveis com a condio nobre. O novo continente, com as suas ilimitadaslarguezas, com a terra farta, frtil e ilimitada, iria dar a essa nobreza urbana, empobrecidapelo luxo da Corte, e a esta nobreza campestre, tambm sem meios e sem recursos, a baseterritorial com que poderia reverdecer as suas vergnteas e redourar os seus brasesesmaecidos. (p. 186). Tal seria, pois, o ncleo fundamental a partir do qual se constitui a eliteurbana brasileira.

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    IV A DISCUSSO RELATIVA POSSIBILIDADE DE CARACTERIZAR-SEO ESTADO BRASILEIRO COMO ESTADO PATRIMONIAL

    1. As limitaes do estudo pioneiro de Faoro

    O debate terico acerca da oportunidade da aplicao da categoria de EstadoPatrimonial ao quadro nacional comea de fato com Simon Schwartzman, em 1975, emborano tenha deixado de consignar a precedncia que de direito cabia a Raimundo Faoro(1925/2003).(1) Contudo, Schwartzman eximiu-se de avali-la criticamente, o que medisponho a fazer, convencido que estou de que no fora o aparecimento de outrascontribuies, do prprio Schwartzman e de Lobo Torres, entre outros, o assunto teriamorrido por a, tamanha a arbitrariedade de que se reveste a sua dmarche terica.

    O grande mrito de Faoro consiste em haver chamado a ateno para a importnciada tradio cultural no adequado entendimento do processo histrico e, ao mesmo tempo, emter recorrido inspirao de Max Weber, abandonando as fastidiosas anlises de cunhopositivista-marxista, que se tornaram a nota dominante na abordagem da nossa realidadepoltico-social neste ps-guerra. Contudo, no af de enfatizar a novidade que trouxe a debate,adotou uma atitude extremamente radical ao deixar de reconhecer o carter modernizador queo patrimonialismo luso-brasileiro chegou a assumir em certos momentos de sua histria. Maisgrave, parece-me, a perda do sentido histrico da evoluo do liberalismo na crtica experincia do sistema representativo, sob o Imprio, desde que a efetiva do ponto de vistaque a doutrina liberal veio a assumir, muito mais tarde. Finalmente, ofuscado pela magnitudeda prpria descoberta, inclina-se por torn-la uma espcie de lei inexorvel de nossodesenvolvimento, ou ento, uma herana a repudiar em sua inteireza.

    Por tudo isto, o ponto de vista expresso em Os donos do poder (1958)(2) requerconsideraes mais pormenorizadas.

    O Estado portugus, mostra Faoro, desde os primrdios, conseguiu formar imensopatrimnio rural, cuja propriedade se confundia com o domnio da casa real. A coroa separavanos nobres a qualidade de funcionrio da qualidade de proprietrio. Os cargos eram, dentro detal sistema, dependentes do prncipe, de sua riqueza e de seus poderes. Extremava-se talestrutura da existncia na Europa contempornea, marcando um trao prematuro demodernidade. O rei, quando precisava do servio militar da nobreza, pagava-o como se paga aum funcionrio. Formou-se em Portugal, portanto, um Estado patrimonial e no feudal.Portugal, como diria Alexandre Herculano, no conheceu o feudalismo.

    Segundo Faoro, o desenvolvimento histrico desse patrimonialismo, estruturado econsolidado nos primeiros sculos da histria lusitana, consistiu na formao de estamento decarter marcadamente burocrtico. Burocracia no no sentido moderno, como aparelhamentoracional, mas de organizao descomunal. Semelhante realidade, impedindo a calculabilidadee a racionalidade, tem efeito estabilizador sobre a economia. Dela, com seu arbtrio e seudesperdcio de consumo, no flui o capitalismo industrial, nem com este se compatibiliza. Ocapitalismo possvel ser a empresa do prncipe. Com a independncia, parece-lhe malograda,no Brasil, a tentativa de fazer brotar uma nova tradio, atravs do sistema representativo.

    Resumindo essa tese, escreve: O predomnio do soberano, legitimado no PoderModerador, a centralizao articulada, na corte, pela vitaliciedade, o voto manipulado, nocriam, como entidades feitas de vento, o sistema poltico. Este assenta sobre a tradio,

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    teimosa na sua permanncia de quatro sculos, triturando, nos dentes da engrenagem, velhasidias importadas, teorias assimiladas de atropelo e tendncias modernizadoras, avidamenteimitadas da Frana e Inglaterra. Mas a tradio no se alimenta apenas da inrcia, seno defatores ativos, em movimento e renovao, mas incapazes de alterar os dados do enigmahistrico. Sobre as classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogo poltico, vela umacamada poltico-social, o conhecido e tenaz estamento burocrtico nas suas expanses e nosseus longos dedos. Nao, povo, agricultura e comrcio obedecem a uma tutela, senhora edetentora da soberania.(1)

    Faoro dispensou-se de uma anlise mais acurada da passagem de Pombal pelogoverno portugus, notadamente de sua reforma da Universidade. Limita-se a dizer que oempenho de reconquista da independncia perdida, "perdida ao mercador ingls e alienadapelo sistema mercantil", no reinado de D. Jos I, "pela mo de seu duro ministro", no passa, aseu ver, de "obra to quimrica como o plano de companhias de D. Joo IV", com apeculiaridade de que agora se busca "a modernizao implantada do alto".(2) No esquema deanlise montado em Os donos do poder no h lugar para o papel modernizador que oestamento assumiu sob Pombal, o que o faz perder de vista a alterao fundamental, prenhe deconseqncias para a evoluo posterior, que introduziu na mentalidade desse agrupamento.

    Na crtica ao sistema representativo ensaiado durante o Imprio, Faoro invoca oargumento do baixo percentual da massa de votantes (Captulo X), fazendo caso omisso dofato, muito oportunamente acentuado em livros recentes por Vicente Barretto,(3) de que oliberalismo em sua feio originria acha-se dissociado da idia democrtica; porquanto aclasse proprietria que se fazia representar no poder legislativo. A consideraodesapaixonada do tema ir demonstrar que a elite imperial evitaria cuidadosamente omonoplio da representao pela aristocracia rural, democratizando os mecanismosreguladores das eleies nas cidades. Enquanto no campo o censo alto exclua a grande massade populao, nas cidades introduziu-se a noo de "renda presumida", que chegou a seridentificada taxativamente com a dispensa de prova, abrangendo a totalidade dofuncionalismo civil e militar, excetuadas as praas de pr e os serventes; os membros doPoder Legislativo, da Magistratura e da Igreja; o corpo docente das Academias; os habilitadoscom diplomas cientficos ou literrios; juzes de paz e vereadores, etc. Graas a isto as zonasurbanas chegaram a dar uma feio reformadora representao liberal oriunda dessescentros, que se manteve em expanso, conforme observa Joo Camilo de Oliveira Torres:

    Vamos comparar Minas, Rio e Rio Grande do Sul em trs eleies. Em 1881, comvitria liberal: Minas teve 14 deputados liberais e seis conservadores; Rio Grande, todosliberais; Rio (Corte e Provncia), dez conservadores e dois liberais. Em 1884 com discretamaioria liberal: eleio quase empatada em Minas, com 12 liberais, sete conservadores e umrepublicano; Rio Grande do Sul, todos liberais (eram os "maragatos" de Silveira Martinsdominando tudo). Em 1886, esmagadora vitria conservadora: Minas, 11 liberais e noveconservadores; Rio, 12 conservadores; Rio Grande, cinco conservadores e um liberal. Estesdados, alis, mostram que em Minas, pelo predomnio da populao urbana, o governo denada valia. E o Rio (provncia e Corte) era dominado pelos bares do vale do Paraba.(4)

    A minimizao do significado da experincia do sistema representativo sob oImprio, segundo entendo, serve to-somente para acalentar a iluso de que a organizao daconvivncia democrtica, mediante a adoo dos mecanismos aperfeioados pelo sistemarepresentativo pode ser alcanado mediante providncias simples de carter como eleiodireta, pluralismo partidrio, etc., quando a experincia brasileira sugere que se trata de

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    mecanismos de extrema complexidade. E nada melhor para exemplific-la que a experinciaimperial, que h de ser devidamente valorizada quando nos dispusermos a contrapor algo deslido e estvel tradio patrimonialista.

    O quadro a que chega Raimundo Faoro pesado e sufocante, para manter a imagem aque recorre. O estamento, por sobranceiro s classes, divorciado de uma sociedade cada vezmais por estas compostas, desenvolve movimento pendular, que engana o observador, noraras vezes, supondo que ele se volta contra o fazendeiro, em favor da classe mdia, contra oua favor do proletariado. Iluses de tica sugeridas pela projeo de realidade e ideologiasmodernas num mundo antigo, historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos. Asformaes sociais so, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio mveis,valorizados aqueles que mais a sustentam, capazes de fornecer-lhe os recursos financeirospara a expanso da que, entre as classes se alie s de carter especulativo, lucrativo e noproprietrio. (...) O Estado, pela cooptao sempre que possvel, pela violncia se necessrio,resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, conquista dos membros reduzidos doseu estado-maior. E o povo, palavra e no realidade dos contestatrios, que quer ele? Esteoscila entre o parasitismo, a mobilizao das passeatas sem participao poltica, e anacionalizao do poder, mais preocupados com os novos senhores. Filhos do dinheiro e dasubverso, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom prncipe,dispensrios de justia e proteo. A lei, retrica e elegantemente, no o interessa. A eleio,mesmo formalmente livre, lhe recusa a escolha entre opes que ele no formulou.(1)

    V-se que, em mos de Faoro, a doutrina weberiana do Estado Patrimonialtransformou-se numa espcie de determinismo histrico, o que se no o leva a capitular diantedo marxismo pelo menos o tem habilitado a circular livremente no seio da autodenominado"esquerda", pois a libera de reconhecer o papel que de fato exerce, de caudatria dopatrimonialismo, alm de alimentar a sua fogueira com a retrica do conceito vago eimpreciso de "classe dominante".

    De sorte que Os donos do poder deixou de contribuir para encaminhar o debateacerca do Estado brasileiro na direo de negar e arquivar as fastidiosas anlises marxistas. luz do que apontou o grosso de nossa intelectualidade (ou pelo menos a sua parte maisruidosa) no se sentiu instada a explicitar qual de fato a base moral de suas convices justamente