o escritor e o mercado: paratextos e autoficÇÃo · 2014. 12. 11. · granta destinada a jovens...
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Departamento de Comunicação Social
O ESCRITOR E O MERCADO: PARATEXTOS E AUTOFICÇÃO
Aluno: Marina Burdman da Fontoura
Orientadora: Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Introdução
Com a popularização da internet e a preocupação crescente do mercado em divulgar
produtos nas mídias sociais e na televisão, a estratégia de marketing das grandes editoras e
dos próprios autores passa a ter também, cada vez mais, um foco maior nesses meios. Na
literatura contemporânea, a morte do autor anunciada por Roland Barthes não se confirmou
em função, inclusive, de uma nova dinâmica de divulgação das obras. Nela, o escritor assume
um papel de destaque sendo, com frequência, ao mesmo tempo o personagem principal dos
próprios textos e um mediador importante entre seu trabalho e o leitor.
O modo mais eficiente de chamar a atenção para a obra de um autor se dá cada vez
menos pela escrita de artigos por críticos literários, passando a ser responsabilidade dos
próprios escritores. Aproveitando o espaço que conquistam na mídia, eles próprios chamam a
atenção para si e para o seu trabalho, aparecendo em feiras literárias, festivais e redes sociais.
Além da presença física em espaços públicos de divulgação das obras, os autores dão opiniões
sobre assuntos atuais, publicam cartas virtuais, atualizam perfis no Facebook e integram-se na
programação televisiva.
Ao lado da tendência de divulgação em mídias sociais, está o crescente interesse pelo
que se convencionou chamar de autoficção, cada vez mais presente na literatura brasileira
contemporânea. Escritores como Ricardo Lísias, João Paulo Cuenca, Paulo Scott e Tatiana
Salem Levy são alguns exemplos de autores que se enquadram nessa vertente. É possível
perceber a aderência a tal modelo de narrativa por parte dos escritores do país ao analisar a
revista britânica Granta número 9, destinada a jovens escritores brasileiros, na qual Lísias e
Cuenca são exemplos, dentre vários outros, de autores que optaram, na edição, por contos
com traços autoficcionais.
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Luís Augusto Fischer aponta essa edição da revista como significativa para entender o
cenário da literatura brasileira atual. Segundo ele, a Granta número 9 mostra uma
padronização do perfil, das referências e do estilo dos autores1:
A Granta parece ter fotografado um momento cosmopolitizante, antipovo e autorreferente, na
geração mais nova, que surfa num mercado muito mais maduro do que jamais foi, em todos os
níveis, na renda, nos circuitos de difusão, no consenso da importância da leitura.
A análise de Fischer mostra que, dos vinte contos publicados na revista, seis ou sete
podem ser enquadrados no campo das narrativas de autoficção. Além disso, onze desses vinte
autores escreveram contos com narradores em primeira pessoa, e metade das histórias do
livro apresenta personagens escritores.
Essa primeira pessoa que tem lugar de destaque na literatura contemporânea assume
características diversas da que se afirmou na literatura modernista como contraponto ao ideal
de objetividade do realismo. A primeira pessoa que agora ganha popularidade, considerada
por alguns teóricos como um gênero narrativo, a “autoficção”, destaca-se pela intenção
explícita de remeter o leitor para a figura do autor empírico através da construção de
narradores que com ele se confundam, sem, no entanto, ter um compromisso total com uma
verdade biográfica.
Os textos que apresentam essas características de aproximação ambígua entre escritor e
personagem, portanto, não podem ser enquadrados nem ao gênero de ficção e nem ao de
biografia. Phillipe Lejeune defende que a definição do gênero de uma obra deve ser feita de
acordo com o pacto estabelecido entre o autor e o leitor. Na contramão da sugestão do teórico,
o escritor de autoficção embaralha as fronteiras dos gêneros, cultivando a ambiguidade em
relação ao estatuto de seu discurso: nega-se a estabelecer qualquer pacto prévio à leitura da
obra, cabendo ao leitor lidar, a seu modo, com essa indefinição.
Considerando que os limites entre ficção e biografia sempre foram tênues, e que o
entrelaçamento entre a personalidade “ficcional” do artista e o seu trabalho também não é um
fenômeno novo, pretende-se investigar, no âmbito deste trabalho, as características que tais
interseções assumem na literatura brasileira contemporânea.
Com este objetivo, serão analisadas estratégias de presentificação do autor tanto em
obras designadas como ficção como em paratextos encontrados em outros espaços como a
internet ou a televisão. Como corpus de análise foram selecionados dois blogs – o do
1 FISCHER, Luís Augusto. Letras em números. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 set. 2012. Ilustríssima.
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Instituto Moreira Salles (IMS) e o da série Amores Expressos, que apresentam relatos
autoficcionais; o programa de televisão Nada tenho de meu, espécie de reality show que conta
com a participação de escritores na frente das câmeras; a nona edição da revista literária
Granta destinada a jovens escritores brasileiros; e os romances Divórcio, de Ricardo Lísias, e
Habitante Irreal, de Paulo Scott.
Por meio dos paratextos publicados na internet, a vida do autor passa a ser vista e
entendida como parte importante de sua obra. O escritor de autoficção presente em diferentes
mídias incita a curiosidade sobre sua figura – relata o que pensa, o que faz e até como se
comporta. Ao mesmo tempo em que desperta a curiosidade do leitor no que diz respeito à sua
vida pessoal, satisfaz essa mesma demanda por informações quando expande as
possibilidades de trabalho para outras plataformas, o que faz com que a presença do autor
como personagem seja massiva não só nos livros, mas também nos blogs das grandes
editoras, redes sociais e canais de televisão ligados à arte. Como observou Lejeune, se antes
conhecíamos a obra e imaginávamos o autor, hoje, a tendência é conhecermos o autor para
imaginarmos a obra, que muitas vezes não leremos2.
Esses paratextos, não estando restritos apenas ao livro de papel, de fato atraem um novo
público e acompanham a tendência do mercado de se dirigir ao consumidor presente nas
mídias não tradicionais. Porém, um outro dado fundamental que se deve levar em conta
quando se reflete sobre obras de autoficção é que algumas delas apresentam questionamentos
das noções de identidade, sujeito e de verdade a partir das contradições e semelhanças que
apresentam com a verdade biográfica. Desse modo, alguns autores, ao assumirem o papel de
personagem principal de seus trabalhos, vão além da busca por sucesso mercadológico,
lançando mão deste procedimento para acentuar a reflexividade, o que pode ser visto, por
exemplo, em Nada tenho de meu. No reality, os participantes, mesmo assumindo as próprias
identidades, frequentemente se questionam sobre a veracidade dos fatos mostrados.
Diana Klinger observa que “cada narrativa de si se posiciona de diferente maneira
segundo a ênfase que coloque na exaltação de si mesmo, na autoindagação, ou na restauração
da memória coletiva”. Desse modo, ainda segundo ela, as obras de autoficção podem atender
simultaneamente e paradoxalmente3 a críticas filosóficas e ao narcisismo midiático que
caracteriza o final do século XX e início do século XXI.
2 LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 3 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2a edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 22.
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O que se vê, portanto, no cenário da literatura brasileira contemporânea, é um número
cada vez maior de trabalhos e projetos de editoras e dos próprios autores que, ao mesmo
tempo em que dão ênfase ao questionamento de ideias como as de sujeito e de verdade,
expandem-se para diversas plataformas e acabam tendo como resultado a circulação de um
número cada vez maior de obras que giram em torno da figura do próprio autor.
1. O gênero de autoficção
Apesar de ganhar maior visibilidade quando expandida para diversas plataformas, a
presença da figura do autor em obras literárias não é um fenômeno novo. A participação do
escritor como personagem dos próprios trabalhos varia durante diferentes fases da escrita de
si. O modo como esse autor aparece em suas obras muda a cada geração e acompanha, entre
outros fatores, a visão vigente das noções filosóficas de sujeito, verdade e identidade.
Klinger aponta três momentos desse tipo de escrita na América Latina4. Alguns livros
do gênero de autoficção escritos por autores contemporâneos e, consequentemente, os
paratextos autoficcionais, seriam, portanto, parte do momento mais recente das narrativas de
si e estariam relacionados tanto ao questionamento de noções filosóficas quanto ao narcisismo
midiático do sujeito contemporâneo.
O modernismo brasileiro dos anos 1920 e 1930, segundo Silviano Santiago5, representa
um primeiro momento da escrita autobiográfica no Brasil e mostra uma visão mais
conservadora da sociedade patriarcal brasileira. Para Santiago, essa fase não está restrita ao
retrato de uma experiência pessoal do indivíduo e foca também nas vivências do clã ao qual
ele pertence.
Já o segundo momento das narrativas de si se afasta do conservadorismo da primeira
fase e é vista com o objetivo de, sob a forma de relatos testemunhais, reconstruir a memória
de acontecimentos. Esse segundo momento dá valor ao depoimento de pessoas que ganham
voz a partir de uma experiência vivida, como aquelas que vivenciaram as ditaduras militares
vigentes na América do Sul nas décadas de 1970 e 1980.
Beatriz Sarlo observa que o sujeito, nessa segunda fase, ganha visibilidade como
alguém que relata as próprias vivências e ajuda, a partir de seu discurso, a reconstruir
momentos históricos. Desse modo, fica evidente, nesse momento, a importância do relato
pessoal para a produção de conhecimento sobre uma época ou geração. Sarlo também afirma
que esse tipo de narrativa exige que o autor do relato tente aproximar seu depoimento da
4 KLINGER, op. cit., p. 19. 5 Idem.
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verdade biográfica e, consequentemente, ganhe a confiança do leitor. Para ela, “se o núcleo de
sua verdade deve ser inquestionável, também seu discurso deveria ser protegido do ceticismo
e da crítica”6.
Esse compromisso com a verdade que tem o narrador da segunda fase da escrita de si é
um dos pontos que faz com ele se diferencie das obras de autoficção que ganham força neste
terceiro momento. A falta de compromisso do gênero com a verdade biográfica faz com que a
legitimidade da obra não fique comprometida pelo grau de sinceridade de quem escreve.
Apesar de muitas vezes falar em nome do autor, a obra de autoficção não pretende
relatar a realidade, o que torna o discurso atraente para um público que busca o real sem
obrigatoriamente acreditar em tudo o que é apresentado nas obras. Para Klinger, a narrativa de
autoficção se afasta da verdade biográfica e é baseada na construção de mitos7:
A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a
“mentira” e a “confissão”. A noção do relato como criação da subjetividade, a partir de uma
manifesta ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite pensar, como veremos
a seguir, a autoficção como uma performance do autor.
O autor do gênero de autoficção, acredita ela, faz uma dramatização de si em suas
obras, o que faz com que seu personagem seja resultado de uma construção e, portanto, fique
dividido entre o sujeito real e o fictício8. A criação desses mitos sobre a vida do autor provoca
no leitor uma curiosidade não só pela sua obra, mas também pela sua figura. Ele passa a se
perguntar o que o autor realmente fez ou quis dizer com certas frases e isso faz com que, neste
terceiro momento das narrativas de si, a imagem do autor seja frequentemente colocada em
destaque e se torne muitas vezes, mesmo que de forma secundária, um tema de interesse do
leitor.
As narrativas de autoficção, portanto, não confirmam o apagamento da figura do autor
nas obras literárias que o estruturalismo considerava condição da escrita do texto. Para Roland
Barthes, por exemplo, o escritor não deve influenciar as possíveis interpretações da obra feitas
pelo leitor, sendo, assim, um signo vazio. Barthes aponta a literatura como a destruição da
voz de quem escreve e associa a valorização excessiva da figura do autor à busca por
reconhecimento9:
6 SARLO, Beatriz. Tempo passado. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 47. 7 KLINGER, op. cit., p. 46. 8 KLINGER, op. cit., p. 50. 9 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 1.
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O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em
que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da
Reforma, ela descobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da
<<pessoa humana>>. É pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo
e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à <<pessoa>> do autor.
Segundo Barthes, as biografias de escritores, entrevistas para revistas e manuais de
história literária, por exemplo, têm a preocupação de associar a pessoa que escreve a sua obra,
atitude que traria como consequência uma cultura centrada na figura do autor. No pensamento
estruturalista de Barthes, no entanto, quem deve falar é somente a linguagem, e não o autor,
que seria suprimido em proveito da escrita. Para ele, o texto não deve possuir um sentido ou
mensagem única baseada na intenção do autor.
É possível observar, portanto, que a obra de autoficção, ao incitar a curiosidade do leitor
sobre detalhes da vida de quem escreve e ter como resultado, em alguns casos, a busca a
possíveis semelhanças entre escritor e personagem, reforça a importância da figura do autor
como um sujeito que participa da obra, característica que vai contra o que propunha Barthes
ao defender a desassociação entre o autor e o texto.
Michel Foucault problematiza as noções de obra e escrita e também levanta a discussão
sobre qual deveria ser o papel do escritor nas obras literárias. Ao tomar como premissa a
morte do autor, ele investiga quais funções ainda podem ser desempenhadas pelo escritor no
espaço vazio deixado pelo desaparecimento proposto por Barthes. Neste contexto, apresenta a
função autor, que institucionaliza a figura do autor e aponta diferentes papéis que ela pode
exercer em relação ao discurso10
:
Não mais colocar a questão: como a liberdade de um sujeito pode se inserir na consistência das
coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, do interior, as regras de uma linguagem e
manifestar assim as pretensões que lhe são próprias? Mas antes colocar essas questões: como,
segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem
dos discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e
obedecendo a que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto) seu papel
de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso.
10 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.20.
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Foucault defende a importância da função autor em diferentes momentos. O nome do
autor, por exemplo, para ele, não pode desaparecer por completo e ser tratado como um
simples nome próprio, já que caracteriza o modo de ser do discurso e, entre outras funções,
permite que diferentes textos se relacionem entre si.
Já Lejeune aponta o nome do autor como elemento fundamental para que seja
estabelecido um pacto de leitura, que é o que, segundo ele, define como as obras literárias
devem ser classificadas. É no nome próprio que, para ele, “se resume toda a existência do que
chamamos de autor: única marca do texto de uma realidade extratextual indubitável,
remetendo a uma pessoa real”11
. Lejeune defende que, em textos biográficos, o nome na capa
do livro adquire importância para que o leitor possa ler a obra de modo que identifique a
relação existente entre escritor, narrador e personagem. O pacto autobiográfico, desse modo,
teria o objetivo de manter essa relação clara e explícita para que o leitor não tenha dúvidas se
a obra deve ser lida como sendo biográfica ou ficcional.
Com o gênero de autoficção, no entanto, o contrato proposto não pode ser estabelecido,
já que as obras não apresentam uma identificação assumida entre autor, narrador e
personagem. Nas obras autoficcionais, cabe apenas ao leitor buscar possíveis semelhanças e
diferenças entre ficção e realidade, baseando-se no conhecimento prévio ou na pesquisa de
dados sobre a vida do autor. Para Lejeune, os romances em que autor e personagem
apresentam o mesmo nome, sem, no entanto, assumir um caráter biográfico, como é o caso
dos textos autoficcionais, constituem em obras que não podem ser caracterizadas nem como
biografia, nem como romance, e que resultam em um jogo de ambiguidade12
.
Ao se deparar uma narrativa cujo autor e personagem têm o mesmo nome ou
apresentam outras semelhanças, o leitor muitas vezes busca saber mais sobre a vida de quem
escreve, seja na internet, em matérias jornalísticas, em redes sociais ou por meio de pistas
presentes no próprio texto. A autoficção, portanto, faz com que a figura do autor seja central
e, muitas vezes, excessivamente valorizada. Ao mesmo tempo, o gênero pode, ao confundir as
fronteiras entre realidade e ficção, entre sujeito empírico e autor, levantar questionamentos
sobre as noções contemporâneas de sujeito, identidade e verdade. Isso faz com que, segundo
Klinger, ele apresente um paradoxo13
:
Para além da relação que se pode estabelecer entre o retorno do autor e o exibicionismo da cultura
midiática, devemos também situá-lo no contexto discursivo da crítica filosófica do sujeito, que se
11 LEJEUNE, op. cit., p.23. 12 LEJEUNE, op. cit., p. 32. 13 KLINGER, op. cit., p. 22.
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produziu ao longo do século XX, e que chegou até sua negação com o estruturalismo, o anúncio da
“morte do autor” na literatura e da “morte do sujeito” na filosofia. As narrativas de que nos
ocupamos não se apresentam como expressão de uma singularidade dona de si mesma e da sua
escrita, o que permite esboçar uma primeira hipótese: estes textos parecem responder ao mesmo
tempo e paradoxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito.
Essa situação fica cada vez mais evidente com a expansão das narrativas de autoficção
para outras plataformas além do livro impresso. Seja física ou virtualmente, com a
participação massiva em eventos literários ou em programas de televisão, blogs ou redes
sociais, a visibilidade da figura do escritor aumenta. Na realidade ou na ficção de sua própria
autoria, a presença do autor é constante e não se limita aos livros impressos. Agora, é possível
para o leitor se familiarizar ainda mais com a imagem do escritor e ter contato com suas
opiniões e hábitos, isso é, saber o que ele pensa e como se comporta antes de ter lido algum
livro de sua autoria.
Neste contexto, parte dos escritores contemporâneos, com a imagem exibida de forma
recorrente em diversas plataformas, não pode ser considerada apenas “famosa” por suas
obras. É possível concluir que muitos deles se encontram no patamar de celebridades, sendo
suas próprias vidas um meio de chamar a atenção do leitor. Não se pode afirmar, contudo, que
as obras de autoficção sempre buscam apenas essa atenção para a figura do autor, ou que
correspondam somente a uma estratégia de marketing ao ter, como tema central,
acontecimentos da vida de quem escreve.
Ricardo Lísias é um exemplo de autor conhecido pela produção de textos autoficcionais.
Em O céu dos suicidas, o protagonista do livro se chama Ricardo, um acadêmico paulista que
perdeu recentemente o melhor amigo, André, e busca se recuperar do trauma. O leitor, então,
questiona-se sobre as semelhanças entre o comportamento do personagem e a personalidade
do autor – também chamado Ricardo e também um acadêmico nascido em São Paulo – tal
como este se apresenta na sua performance como homem público.
Pistas das semelhanças da história do livro com sua vida pessoal podem ser encontradas
em outras obras do autor, como em O livro dos mandarins, anterior ao lançamento de O céu
dos suicidas. Nos agradecimentos do romance, Lísias cita e homenageia um amigo, André,
que “resolveu interromper a própria vida”.
O livro mais recente de Lísias é também uma obra autoficcional. O romance Divórcio
trata da separação do personagem Ricardo da então esposa, uma jornalista, após encontrar um
diário escrito por ela que continha diversas críticas a ele. No livro, Lísias dá pistas sobre a
identidade da ex-mulher e revela detalhes sobre sua intimidade, como um possível caso que
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ela teria tido fora do casamento com uma fonte de trabalho, jurado de um festival de cinema.
Uma pequena busca na internet torna possível descobrir que o autor foi, de fato, casado com
uma jornalista que fez a cobertura desse festival.
O romance também revela outras semelhanças entre Lísias e o personagem, como o
despertar do interesse pelo atletismo. No livro, para se recuperar do trauma da separação,
Ricardo recorre à corrida e se interessa cada vez mais pelo esporte. Em sua conta no
Facebook, Lísias tem fotos de sua participação em competições de atletismo, inclusive as
mesmas citadas no livro, o que comprova uma aproximação entre a história do personagem e
a verdade biográfica.
Divórcio, portanto, é um exemplo de obra que transcende os limites da ficção e traz para
o leitor, de forma direta ou indireta, detalhes sobre a vida do escritor. O livro produz em quem
lê o efeito de curiosidade sobre a situação vivida por Lísias sem, no entanto, ter como
consequência a perda de qualidade da obra.
Outros exemplos de escritores brasileiros contemporâneos que produzem obras
autoficcionais são João Paulo Cuenca, Paulo Scott e Tatiana Salem Levy. Tatiana, em seu
primeiro romance, A chave de casa, constrói uma personagem descendente de judeus turcos e
filha de comunistas brasileiros, história que apresenta semelhanças com a da própria autora.
Paulo Scott, em Habitante Irreal, narra a trajetória de um jovem, também chamado Paulo, que
vive em Porto Alegre, cidade natal do autor.
Já Cuenca, no conto publicado na revista Granta destinada aos melhores jovens
escritores brasileiros, não constrói um personagem homônimo a ele, mas deixa claro que o
texto apresenta semelhanças com sua vida. No livro, ele conta parte da história da cidade do
Rio de Janeiro e de Tomás Anselmo, um escritor que, enquanto observa a decadência da
cidade, sente vontade de fugir, já que não vê mais o Rio como um lugar ideal para viver. O
personagem, porém, teme que a fuga o faça ser esquecido pelos amigos, fãs e imprensa.
Esse desejo de abandonar a cidade que o conto atribui a Tomás Anselmo já foi citado
por Cuenca em outras obras do autor, sendo inclusive apresentado como uma vontade própria
nas cartas trocadas com Chico Mattoso no Blog do IMS, em que mostra grande insatisfação
com o Rio de Janeiro:
Sobre essa cidade, não dá mais – não dá mais há uns 160 anos. Agora, está ficando mais cara que
SP, ou seja, mais cara que todas as outras as cidades do mundo. Mas como para o carioca, a grande
musa de si mesmo que nasce com antolhos grudados na cabeça, “mundo” é um conceito rarefeito,
isso pouco importa. Na minha rua, todos os restaurantes lotam todos os dias, Chico. O brasileiro
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faz fila para pagar os preços mais caros do mundo pela pior comida do mundo. Lá fora, todo
mundo histérico, babando espuminha de chope e eu desistindo, ligando o ar condicionado e me
dando o direito de estar olimpicamente de saco cheio. Eu sempre cito o Salinger nessas horas: tudo
o que eu mais queria é que todo mundo voltasse pra casa.
Na mesma edição da revista, o conto escrito por Lísias também apresenta semelhanças
entre autor e personagem, como nome e profissão. Em certo momento do texto, porém, o
autor constrói uma narrativa na qual o personagem, mesmo mantendo as diversas
semelhanças com a identidade do escritor, vive experiências que fogem completamente à
verdade biográfica.
Na história, Lísias narra em primeira pessoa que, após escrever o Livro dos mandarins,
desistiu da literatura por não acreditar mais na possibilidade de se conhecer por meio dela.
Depois de uma série de tentativas para buscar o autoconhecimento, como a dedicação ao
xadrez, que é uma atividade de fato praticada pelo autor, o personagem foi ao Cazaquistão
juntar-se a uma comunidade nômade para viver experiências espirituais. Assim, ele afirma ter
conseguido, finalmente, encontrar a paz interior, mantendo votos de silêncio e parando de
escrever em função dos rituais da comunidade:
Aqui na comunidade, a gente perde a noção de tempo. Sei quando é natal porque apenas nessa
época do ano podemos escrever. Normalmente um mensageiro traz um pequeno bloco de papel e
cada um de nós manda uma carta para casa. É o que imagino, já que não conversamos. Sempre
envio notícias para a minha mãe. A comunidade vai bem. Anatoly e Tólia não têm pressa. Outro
dia fizemos uma comunhão do Olho Interno com as Águas Sagradas no lago Balkhash e eu soube
que existem cerca de doze Mestres do Olho Interno perdidos pelo mundo.
O conto, portanto, mistura acontecimentos verídicos e ficcionais. Lísias usa elementos
biográficos, como o nome de um livro escrito por ele, a profissão e a paixão por xadrez, todos
citados no texto, para criar uma história totalmente nova. Isso mostra que a autoficção, apesar
de revelar elementos possivelmente verdadeiros da vida do autor, pode também mudar
completamente a história sem causar qualquer problema para o entendimento do leitor.
A curiosidade despertada em quem lê os livros do gênero, aliada a essa mistura entre
realidade e ficção que resulta tanto em questionamentos filosóficos de noções
contemporâneas quanto em um narcisismo maior do sujeito, são, portanto, características
desse terceiro momento da escrita de si, que ganham ainda mais força com a expansão do
gênero para outras plataformas.
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2. Os paratextos e o mercado
Em texto publicado no jornal português Expresso, em 25 de janeiro de 2014, sobre a
série multimídia Nada tenho de meu, destaca-se a seguinte frase: “’Nada Tenho de Meu’
assume-se como um verdadeiro objeto artístico multimédia: não basta ver, é preciso ler; não
basta ler, é preciso imaginar”. A afirmação, também utilizada para divulgar a série nas redes
sociais, coloca o aspecto multimídia de Nada tenho de meu como positivo e aponta a presença
do texto em cada plataforma como importante para a compreensão do sentido da obra.
A série, que tem como personagens principais Cuenca, Tatiana Levy e Miguel
Gonçalves Mendes, foi feita inicialmente no formato de webserie. Hoje, estende-se para além
de uma única mídia e está disponível para o leitor na televisão, na internet, no livro impresso
e também no formato de filme. O texto do Jornal Expresso afirma ainda que a presença da
série em diversas plataformas não ocorre de forma repetitiva, mas, sim, complementar:
O livro segue a estrutura do filme de Miguel Gonçalves Mendes, apropria-se de suas imagens, dos
seus fotogramas (numa paginação que remete para as anacrônicas fotonovelas), mas não é um
mero espelho em papel do que podemos ver no DVD. Há elementos da série que desaparecem no
livro – e vice-versa. Certas frases soltas que vamos ouvindo, tanto de Tatiana como de Cuenca,
ganham outro sentido quando as descobrimos nos textos completos de onde foram retiradas.
O sucesso que o programa alcança em Portugal é comemorado na página do Facebook
do programa, que mostra que ele está presente na lista dos dez mais vistos no canal em que é
exibido. Com o número crescente de obras multimídia no cenário da produção cultural
contemporânea e o sucesso que obtêm com os leitores, é possível perceber que a ideia de uma
obra não fechada, que foge aos limites impostos pelo livro impresso, é bem aceita pelo
público. Como os trabalhos multimídia têm muitas vezes a intenção de se complementar nas
diversas plataformas em que estão presentes, as possibilidades de interpretação e participação
do leitor na obra, portanto, também aumentam. Desse modo, o público interage com o autor
em diferentes meios e isso faz com que a obra seja vista por parte dos leitores como um
trabalho interessante.
Vera Figueiredo observa que o trânsito de narrativas entre diferentes suportes não é um
fenômeno recente, porém fica ainda mais evidente com as tecnologias digitais. Segundo ela, a
interseção entre campos da produção cultural já era vista, por exemplo, na relação entre
literatura e jornalismo estabelecida no século XIX, que abriu espaço para mudanças
decorrentes do entrelaçamento entre prosa literária e reportagem, como a divisão do gênero
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romance em capítulos sob a forma de folhetins e o surgimento do conto policial e da crônica
moderna.14
Figueiredo aponta ainda que a ideia de libertação do texto da submissão à obra literária
que propunha Barthes ao defender a independência do texto ajuda a compreender as
transformações no modo de circulação das narrativas com as tecnologias digitais15
:
Ao falar de um texto ideal, em que redes seriam múltiplas e se entrelaçariam, sem que nenhuma
pudesse encobrir outras, de um texto que não tem início, sendo reversível, no qual penetramos por
diversas entradas, sem que nenhuma possa ser considerada a principal, mobilizando códigos que se
perfilam a perder de vista (1992, p.39), remete o leitor do início do século XXI, inevitavelmente,
para os novos modos de circulação dos textos na internet.
Ela defende, portanto, que essa ideia de obra fragmentada e inacabada que ganha força
com a facilidade de migração dos textos entre diferentes plataformas pode ser considerada
herança do movimento iniciado pela arte modernista, que se contrapõe à ideia de obra como
objeto finito e com sentido fechado. Isso poderia afetar inclusive o modo de escrever e
produzir dos autores, que entendem que a forma de recepção dos textos também está em
transformação.
Para Figueiredo, o computador vem tomando espaço como o meio de convergência das
narrativas. O intercâmbio de recursos entre as mídias, segundo ela, diminui a distância entre
os campos artísticos e faz com que eles estejam centralizados no computador, que armazena e
distribui a produção artística:16
Como o sentido de uma obra depende de seus aspectos materiais, formais e de conteúdo, que são
indissociáveis, ao serem liberados dos suportes físicos tradicionais, como, por exemplo, o papel e
a película, as formas culturais pré-digitais passam por transformações que as reconfiguram. O
computador é, então, algo mais que um simples atravessador, ou operador de passagens, é o ponto
de partida para a constituição de uma cultura eletrônica com características próprias.
A importância das tecnologias digitais para a divulgação da série Nada tenho de meu se
dá também, entre outros fatores, por meio da página do programa no Facebook, que exibe
14 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p,12. 15 FIGUEIREDO, op. cit., p. 14. 16 FIGUEIREDO, op. cit., p. 18.
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comentários sobre o sucesso da série e divulga a audiência, a programação e as matérias
jornalísticas e artigos que foram escritos sobre ela.
Em Nada tenho de meu, o fato de o programa ser multimídia e a proximidade da série
com a linguagem das narrativas do gênero de autoficção facilitam a interação e o sentimento
de participação do leitor na obra. No programa, Cuenca, Levy e Mendes fazem uma espécie
de diário de bordo em uma viagem a Macau e levantam questões pessoais como tema
principal da série. Os autores de Nada tenho de meu, portanto, aparecem também como
personagens principais do programa.
Desse modo, nos paratextos autoficcionais, a presença multimídia do texto faz com que
a exibição da imagem do autor se torne recorrente não apenas no livro impresso, mas também
em outras plataformas. Tanto na própria obra quanto na divulgação feita nas redes sociais e na
televisão, a imagem e os pensamentos dos autores aparecem como destaque e como um meio
de atrair o público, o que valoriza cada vez mais a figura do autor. Ao analisar a presença do
autor em mídias como rádio e televisão, Lejeune defende que ela tem como efeito um
interesse ainda maior do leitor pela sua figura:17
Será que, ao tornarem o autor contemporâneo acessível a todos, o rádio e a televisão exercem uma
função salutar, dissipando o efeito de mistério engendrado pela escrita? Só na aparência. Pois, na
realidade, a mídia incentiva fatalmente a ilusão biográfica que leva a buscar a solução do mistério
no próprio autor.
Ainda segundo Lejeune,18
Na televisão, enfim, voz e imagem se reuniram. Nada mais a ser imaginado: o autor do livro que
lemos ou, com mais frequência, do livro que não lemos e que não leremos está ali, em carne e osso
e ao vivo. Se ainda restar algo a ser imaginado, será, paradoxalmente, o que ele terá escrito.
Assim, é possível perceber que a migração de alguns leitores entre plataformas é feita
muitas vezes para acompanhar o trabalho e as opiniões de um escritor específico. A expansão
das obras literárias para diferentes mídias pode trazer para elas leitores que, antes, estavam
concentrados em apenas um meio.
Em Nada tenho de meu, o tema da dissolução das fronteiras entre realidade e ficção é
recorrente. Na série, questões pessoais dos autores se misturam e confundem com os conflitos
17 LEJEUNE, op. cit., p. 195. 18 LEJEUNE, op. cit., p.194.
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dos personagens que interpretam, o que impossibilita a classificação do programa como
biografia ou ficção e gera a ambiguidade típica das narrativas de autoficção. Ao mesmo
tempo em que elementos biográficos, como fotos dos participantes do reality em diferentes
momentos da vida, são exibidos durante o programa, há também elementos puramente
ficcionais, que podem ser percebidos logo no primeiro episódio. No início do capítulo, um
telejornal anuncia a chegada de um asteroide que causaria um forte impacto na terra.
Os personagens, então, são apresentados pelo narrador com objetivos diferentes para
encarar a viagem e o suposto fim do mundo. Todos, porém, apresentam questões ligadas às
noções de esquecimento, fuga ou perda de identidade. Durante a série, as noções de sujeito e
verdade são questionadas não só pela fala dos participantes, mas também por entrevistados e
pelo narrador do reality.
O programa mostra os escritores em busca de soluções para as próprias vidas. Levy quer
inspiração para escrever, Mendes procura esquecer um amor e Cuenca usa novamente a ideia
de fuga, que se concretiza no final do programa, quando ele desaparece e deixa os outros
participantes terminarem a viagem sozinhos. Enquanto aguardam o impacto do asteroide, os
personagens produzem reflexões sobre o que seria o real e colocam em dúvida a veracidade
do que está sendo abordado no programa.
A intenção de Levy com a viagem a Macau é apresentada pelo narrador da série como
uma busca por liberdade e inspiração. Ela diz querer escrever um romance passado em Macau
e se questiona sobre qual seria o protagonista ideal para a obra. A escritora, então, pensa em
escrever sobre um homem português que está em Macau para esquecer um amor, personagem
que tem semelhanças com a história que o narrador da série apresenta como sendo de Miguel
Gonçalves Mendes. Uma outra possibilidade de protagonista do romance pensada por Levy é
a de uma escritora brasileira que busca inspiração para um livro, características que coincidem
com a da própria autora:
Se eu escrevesse sobre mim, a viagem, o filme que estamos fazendo? De novo a questão da
realidade e da ficção. Vão me perguntar se a história é real. A eterna insistência em separar as duas
coisas, quando a vida não as separa. Mas há pessoas que ainda insistem em colocar a realidade de
um lado e a ficção de outro. Eu escrevo e em um instante as coisas passam a existir. Se eu não
escrever, o Miguel não vai existir. As coisas passam a existir.
Ao longo do reality, é recorrente a afirmação de que a realidade é uma construção e
que é possível desempenhar vários papéis e ter diversas identidades, o que incita o espectador,
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justamente por meio da utilização de uma linguagem autoficcional, a refletir sobre a diluição
das fronteiras entre realidade e ficção.
Além de abordar o tema de sua fuga em Nada tenho de meu e na Granta, Cuenca, na
correspondência trocada com Chico Mattoso no Blog do IMS, como foi visto, faz uma
reflexão sobre a vontade de sair do Rio de Janeiro. Isso mostra que o assunto é recorrente na
obra do autor, e é um exemplo de como um desejo pessoal de quem escreve pode virar tema
de seu trabalho, fato que reforça a aproximação com o leitor, que se sente participando da
vida e das dúvidas do escritor.
Apesar de, no Blog do IMS, os autores publicarem cartas assinadas, o que deveria ser
um relato considerado verdadeiro, é possível afirmar que elas correspondem às narrativas de
autoficção. A partir do momento em que Cuenca, assim como os outros autores, escreve
cartas não com o objetivo de se corresponder com o destinatário, mas de se direcionar a ele
com a intenção de que sejam lidas por terceiros, vê-se uma obra de ficção. O autor passa a ser
um personagem da carta que escreve, que deixa de ser uma conversa particular com alguma
outra pessoa. Na seção do blog dedicada a essas correspondências, portanto, os autores trocam
experiências e opiniões sobre assuntos variados e conversam por meio de cartas que são, na
verdade, destinadas principalmente ao leitor.
No caso de Cuenca e de Mattoso, que se corresponderam por dois meses em
publicações semanais, os autores levantaram questões centradas nas próprias vidas e na
relação de amizade entre eles. Enquanto Cuenca faz uma análise de sua vida no Brasil,
Mattoso fala sobre como é ser um estrangeiro na cidade de Chicago. Cuenca relata até
dificuldades que tem para dormir:
Quatro horas de sono por dia é dureza. Tomara que essa fase já tenha passado. Eu tenho dormido
seis horas. Não seis horas e meia ou cinco horas e quarenta e cinco minutos, mas seis horas,
exatamente. Se eu dormir à 1h da madrugada, acordo às 7h. Depois fico remoendo sonhos na cama
– ou aqueles primeiros pensamentos tenebrosos do dia – e tento dormir de novo. Quase nunca
consigo. Antes eram só os sonhos que me mandavam recados (hoje briguei aos pontapés com
cachorros e crianças), mas agora é o meu corpo que também quer dizer alguma coisa.
Um outro exemplo de obra que se expande para diversas plataformas e tem como
efeito a valorização da imagem do escritor é o Projeto Amores Expressos. Para participar
dele, autores viajaram por um mês para diferentes países com o objetivo de, lá, escreverem
um romance. Mesmo que a meta principal fosse o lançamento de um livro por autor, o projeto
não ficou restrito à plataforma impressa e se expandiu para a televisão e a internet. Cada
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escritor, durante a estadia no país no qual deveria escrever o romance, atualizou um blog com
a intenção de fazer dele uma espécie de diário com as experiências vividas fora do Brasil.
Desse modo, autores como Cuenca, Mattoso e Scott, que viajaram para Tóquio, Havana
e Sidney, mantiveram os leitores informados sobre as impressões que tiveram da cidade e
como foi o processo de apuração para escreverem os livros. Durante a estadia na Austrália,
Scott fez uma postagem no blog intitulada “O que restou de domingo”, que contava aos
leitores detalhes sobre a cidade, sobre ele próprio, a rotina no exterior e o livro que escrevia:
Descobri um bar onde se bebe vinho branco gelado em copo-martelinho. Descobri, ao acaso, um
lugar onde se amontoam os brasileiros. A história já está mais ou menos pronta na minha cabeça.
Os primeiros dias enchem o migrante (eu) de desarmonia e exílio, os sonhos são todos trágicos e
completos de história pessoal. Pretendo voltar com desenhos lunares que servirão para forrar as
molduras que guardam minha coleção de desenhos do Guazzelli, do Jaca, do Fabio Zimbres.
Caminhei até a praia e vi os pais ensinando seus pequenos de cinco a sete anos a vencer as ondas.
Cena linda, de verdade. Hoje, acordei as oito e dez.
O Projeto Amores Expressos também pode ser visto em formato de série de televisão.
Cada episódio do programa mostra o depoimento de um escritor sobre como foi a experiência
de participar do projeto. Esse espaço para o autor tanto nas páginas na internet quanto na
televisão, portanto, reforça a ideia de Lejeune de que a mídia colaboraria para a sacralização
da imagem do autor.
O grande número de obras que se expandem para diversas plataformas e de narrativas
do gênero de autoficção pode apontar não só para uma característica narcisista do próprio
autor, mas também para um aspecto mercadológico, isso é, uma estratégia de marketing das
editoras. É possível perceber, muitas vezes, um esforço por parte dessas editoras para
reafirmar o status de celebridade de alguns escritores. O “autor famoso” atrai um maior
público e aumenta as vendas dos produtos quando se encontra presente em sites, blogs e
outros paratextos que muitas vezes dão foco maior a sua figura do que ao seu trabalho.
Pierre Bourdieu analisa a história das relações entre escritor, obra e mercado. Ao relatar
o processo de autonomização do campo artístico na França do século XIX, apresenta uma
submissão de alguns escritores aos interesses do mercado e das classes dominantes, que,
segundo ele, eram por vezes hostis à produção intelectual:19
19 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 1a edição. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 69.
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Trata-se doravante de uma verdadeira subordinação estrutural, que se impõe muito desigualmente
aos diferentes autores segundo a sua posição no campo, e que se institui através de duas mediações
principais: por um lado, o mercado, cujas sanções ou imposições se exercem sobre as actividades
literárias ou directamente, através dos números de vendas, o número de entradas, etc., ou
indirectamente, através dos novos postos oferecidos pelo jornalismo, a edição, a ilustração e todas
as formas de literatura industrial; por outro, as relações duradouras, assentes nas afinidades de
estilo de vida e de sistema de valores, que, por intermédio nomeadamente dos salões, unem pelo
menos uma parte dos escritores a certas fracções da alta sociedade, e contribuem para orientar as
generosidades do mecenato de Estado.
Os escritores, portanto, para ganharem visibilidade, produziam muitas vezes trabalhos
que atendiam aos interesses da burguesia e do mercado. Para Bourdieu, isso simplificava e
diminuía a qualidade das obras literárias:20
Os industriais da escrita fabricam, segundo o gosto do público, obras escritas num estilo cursivo,
de aparência popular, mas não excluindo nem o cliché <<literário>> nem a busca de efeitos, e
<<cujo valor se ganhou o hábito de medir de acordo com as somas que renderam>>.
Na literatura brasileira contemporânea, o aumento do número de obras autoficcionais
que exibem excessivamente a figura do autor em diversas plataformas pode constituir um
outro tipo de dependência do mercado, porém não mais feita para simplificar as obras, e, sim,
entre outros fatores, para atrair um maior público que busca cada vez mais informações sobre
o autor e não se vê mais concentrado em apenas uma plataforma.
Bourdieu afirma que uma obra é considerada comercial quando responde a uma procura
preexistente e segue uma forma preestabelecida. Ele divide as obras bestseller entre aquelas
que são “investimentos seguros a curto prazo”, que seriam as obras comerciais, e os
“investimentos arriscados a longo prazo”, que seriam as obras de arte “puras”. Segundo ele,
no entanto, não é possível classificar uma obra como totalmente independente ou totalmente
subordinada ao mercado21
:
No termo do processo de especialização que levou ao aparecimento de uma produção cultural
especialmente destinada ao mercado e, em parte em reacção contra esta, de uma produção de obras
<<puras>> e destinadas à apropriação simbólica, os campos de produção cultural organizam-se,
muito geralmente, no estado actual, segundo um princípio de diferenciação que não é outra coisa
senão a distância objectiva e subjectiva das actividades de produção cultural em relação ao
20 BOURDIEU, op. cit., p. 74. 21 BOURDIEU, op. cit., p.169
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mercado e à procura expressa ou tácita, distribuindo-se as estratégias dos produtores entre dois
limites que, na realidade, jamais são atingidos, a subordinação total e cínica à procura e a
independência absoluta perante o mercado e as suas exigências.
Os paratextos autoficcionais, como tem como características a migração do texto e a
busca do leitor por mais informações sobre a vida pessoal do autor, acabam, portanto, sendo
também parte de uma lógica de mercado que se baseia na figura do escritor midiático e
contribui para a fabricação do autor celebridade. Como afirma Lejeune, afinal, “o autor nos
leva ao livro e o livro ao autor”22
.
Conclusões
A escrita de si, apesar de antiga na literatura, vive um momento no qual o escritor fala
por si mesmo, porém nem sempre como um testemunho ou visando um retrato da verdade
biográfica. Por meio do uso da linguagem de autoficção, que transita entre o biográfico e o
ficcional, o escritor promove, ao apresentar-se como personagem da própria obra sem assumir
qualquer compromisso com o real, uma reflexão sobre as noções de sujeito, verdade e
realidade. Em Nada tenho de meu, essa discussão é tema do programa, já que, por meio do
discurso dos próprios personagens, que são também os autores do reality, há um
questionamento da busca do espectador pelo retrato do real, que, segundo eles, não existe. Os
escritores também levantam dúvidas sobre as próprias identidades e defendem que não há
diferença entre eles e os personagens que representam no programa.
Outros paratextos, mesmo que não tenham sido feitos com a intenção de levantar tais
questões, acabam promovendo reflexões sobre o que seria a realidade pelo fato de se
apresentaram como uma versão dela que, no entanto, não pode ser classificada como uma
biografia. É o caso das cartas trocadas entre escritores no Blog do IMS, que, apesar de serem
apresentadas como uma correspondência pessoal, podem ser classificadas como obras
autoficcionais. Os autores, ao escreverem cartas assinadas com o objetivo de publicá-las em
um blog, passam a ser também personagens, já que a correspondência deixa de ser uma
conversa particular com alguma outra pessoa e passa a ser escrita com a intenção de ser lida
por um público que vai além do destinatário.
O crescente número de textos de autoficção no Brasil pode ser observado tanto em
narrativas curtas, como se vê em coletâneas de contos, como a revista Granta, quanto nos
romances, de que são exemplos Divórcio, de Ricardo Lísias, e Habitante Irreal, de Paulo
22 LEJEUNE, op. cit., p.196.
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Scott. O primeiro gira em torno do divórcio do autor, fato biográfico divulgado nas redes
sociais e tematizado pelo próprio escritor. No segundo, o narrador partilha com o autor da
obra o nome próprio e dados biográficos conhecidos pelo leitor.
O Projeto Amores Expressos é outro caso em que se apostou na busca dos leitores por
um maior contato com a vida do autor. O texto produzido pelos escritores em viagens a outros
países não ficou restrito apenas ao livro impresso. Os autores, como parte do projeto,
escreveram blogs e participaram de um programa de televisão, o que permitiu que o leitor
interagisse com a obra em diversas plataformas. O mesmo acontece, por exemplo, em Nada
tenho de meu, presente em diferentes mídias, o que mostra que o texto não tem mais
necessariamente uma plataforma fixa e que a obra, ao assumir essas características e
encontrar-se em constante migração, não pode ser entendida como objeto fechado e acabado.
Quando a linguagem autoficcional se expande para diversas mídias, a exaltação à
imagem do autor pode ser percebida de maneira ainda mais forte. Assim, é possível observar
que a figura de alguns escritores atrai leitores que buscam saber cada vez mais sobre a vida
pessoal de quem escreve, o que muitas vezes coloca o autor em um patamar de celebridade. A
utilização desse status pelas editoras e canais de televisão pode constituir, em alguns casos,
uma estratégia visando atender aos interesses do mercado, que se encontra cada vez mais
aberto a esse tipo de narrativa. Os paratextos autoficcionais, como se pôde observar, estão em
expansão no mercado e tanto atualizam tendências antigas no campo literário quanto
assumem novos matizes em decorrência das chamadas tecnologias digitais, o que faz deles
um fenômeno tipicamente contemporâneo.
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