o escritor e o mercado: paratextos e autoficÇÃo · um primeiro momento da escrita autobiográfica...

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Departamento de Comunicação Social O ESCRITOR E O MERCADO: PARATEXTOS E AUTOFICÇÃO Aluno: Marina Burdman da Fontoura Orientadora: Vera Lúcia Follain de Figueiredo Introdução Com a popularização da internet e a preocupação crescente do mercado em divulgar produtos nas mídias sociais e na televisão, a estratégia de marketing das grandes editoras e dos próprios autores passa a ter também, cada vez mais, um foco maior nesses meios. Na literatura contemporânea, a morte do autor anunciada por Roland Barthes não se confirmou em função, inclusive, de uma nova dinâmica de divulgação das obras. Nela, o escritor assume um papel de destaque sendo, com frequência, ao mesmo tempo o personagem principal dos próprios textos e um mediador importante entre seu trabalho e o leitor. O modo mais eficiente de chamar a atenção para a obra de um autor se dá cada vez menos pela escrita de artigos por críticos literários, passando a ser responsabilidade dos próprios escritores. Aproveitando o espaço que conquistam na mídia, eles próprios chamam a atenção para si e para o seu trabalho, aparecendo em feiras literárias, festivais e redes sociais. Além da presença física em espaços públicos de divulgação das obras, os autores dão opiniões sobre assuntos atuais, publicam cartas virtuais, atualizam perfis no Facebook e integram-se na programação televisiva. Ao lado da tendência de divulgação em mídias sociais, está o crescente interesse pelo que se convencionou chamar de autoficção, cada vez mais presente na literatura brasileira contemporânea. Escritores como Ricardo Lísias, João Paulo Cuenca, Paulo Scott e Tatiana Salem Levy são alguns exemplos de autores que se enquadram nessa vertente. É possível perceber a aderência a tal modelo de narrativa por parte dos escritores do país ao analisar a revista britânica Granta número 9, destinada a jovens escritores brasileiros, na qual Lísias e Cuenca são exemplos, dentre vários outros, de autores que optaram, na edição, por contos com traços autoficcionais.

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Departamento de Comunicação Social

O ESCRITOR E O MERCADO: PARATEXTOS E AUTOFICÇÃO

Aluno: Marina Burdman da Fontoura

Orientadora: Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Introdução

Com a popularização da internet e a preocupação crescente do mercado em divulgar

produtos nas mídias sociais e na televisão, a estratégia de marketing das grandes editoras e

dos próprios autores passa a ter também, cada vez mais, um foco maior nesses meios. Na

literatura contemporânea, a morte do autor anunciada por Roland Barthes não se confirmou

em função, inclusive, de uma nova dinâmica de divulgação das obras. Nela, o escritor assume

um papel de destaque sendo, com frequência, ao mesmo tempo o personagem principal dos

próprios textos e um mediador importante entre seu trabalho e o leitor.

O modo mais eficiente de chamar a atenção para a obra de um autor se dá cada vez

menos pela escrita de artigos por críticos literários, passando a ser responsabilidade dos

próprios escritores. Aproveitando o espaço que conquistam na mídia, eles próprios chamam a

atenção para si e para o seu trabalho, aparecendo em feiras literárias, festivais e redes sociais.

Além da presença física em espaços públicos de divulgação das obras, os autores dão opiniões

sobre assuntos atuais, publicam cartas virtuais, atualizam perfis no Facebook e integram-se na

programação televisiva.

Ao lado da tendência de divulgação em mídias sociais, está o crescente interesse pelo

que se convencionou chamar de autoficção, cada vez mais presente na literatura brasileira

contemporânea. Escritores como Ricardo Lísias, João Paulo Cuenca, Paulo Scott e Tatiana

Salem Levy são alguns exemplos de autores que se enquadram nessa vertente. É possível

perceber a aderência a tal modelo de narrativa por parte dos escritores do país ao analisar a

revista britânica Granta número 9, destinada a jovens escritores brasileiros, na qual Lísias e

Cuenca são exemplos, dentre vários outros, de autores que optaram, na edição, por contos

com traços autoficcionais.

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Departamento de Comunicação Social

Luís Augusto Fischer aponta essa edição da revista como significativa para entender o

cenário da literatura brasileira atual. Segundo ele, a Granta número 9 mostra uma

padronização do perfil, das referências e do estilo dos autores1:

A Granta parece ter fotografado um momento cosmopolitizante, antipovo e autorreferente, na

geração mais nova, que surfa num mercado muito mais maduro do que jamais foi, em todos os

níveis, na renda, nos circuitos de difusão, no consenso da importância da leitura.

A análise de Fischer mostra que, dos vinte contos publicados na revista, seis ou sete

podem ser enquadrados no campo das narrativas de autoficção. Além disso, onze desses vinte

autores escreveram contos com narradores em primeira pessoa, e metade das histórias do

livro apresenta personagens escritores.

Essa primeira pessoa que tem lugar de destaque na literatura contemporânea assume

características diversas da que se afirmou na literatura modernista como contraponto ao ideal

de objetividade do realismo. A primeira pessoa que agora ganha popularidade, considerada

por alguns teóricos como um gênero narrativo, a “autoficção”, destaca-se pela intenção

explícita de remeter o leitor para a figura do autor empírico através da construção de

narradores que com ele se confundam, sem, no entanto, ter um compromisso total com uma

verdade biográfica.

Os textos que apresentam essas características de aproximação ambígua entre escritor e

personagem, portanto, não podem ser enquadrados nem ao gênero de ficção e nem ao de

biografia. Phillipe Lejeune defende que a definição do gênero de uma obra deve ser feita de

acordo com o pacto estabelecido entre o autor e o leitor. Na contramão da sugestão do teórico,

o escritor de autoficção embaralha as fronteiras dos gêneros, cultivando a ambiguidade em

relação ao estatuto de seu discurso: nega-se a estabelecer qualquer pacto prévio à leitura da

obra, cabendo ao leitor lidar, a seu modo, com essa indefinição.

Considerando que os limites entre ficção e biografia sempre foram tênues, e que o

entrelaçamento entre a personalidade “ficcional” do artista e o seu trabalho também não é um

fenômeno novo, pretende-se investigar, no âmbito deste trabalho, as características que tais

interseções assumem na literatura brasileira contemporânea.

Com este objetivo, serão analisadas estratégias de presentificação do autor tanto em

obras designadas como ficção como em paratextos encontrados em outros espaços como a

internet ou a televisão. Como corpus de análise foram selecionados dois blogs – o do

1 FISCHER, Luís Augusto. Letras em números. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 set. 2012. Ilustríssima.

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Instituto Moreira Salles (IMS) e o da série Amores Expressos, que apresentam relatos

autoficcionais; o programa de televisão Nada tenho de meu, espécie de reality show que conta

com a participação de escritores na frente das câmeras; a nona edição da revista literária

Granta destinada a jovens escritores brasileiros; e os romances Divórcio, de Ricardo Lísias, e

Habitante Irreal, de Paulo Scott.

Por meio dos paratextos publicados na internet, a vida do autor passa a ser vista e

entendida como parte importante de sua obra. O escritor de autoficção presente em diferentes

mídias incita a curiosidade sobre sua figura – relata o que pensa, o que faz e até como se

comporta. Ao mesmo tempo em que desperta a curiosidade do leitor no que diz respeito à sua

vida pessoal, satisfaz essa mesma demanda por informações quando expande as

possibilidades de trabalho para outras plataformas, o que faz com que a presença do autor

como personagem seja massiva não só nos livros, mas também nos blogs das grandes

editoras, redes sociais e canais de televisão ligados à arte. Como observou Lejeune, se antes

conhecíamos a obra e imaginávamos o autor, hoje, a tendência é conhecermos o autor para

imaginarmos a obra, que muitas vezes não leremos2.

Esses paratextos, não estando restritos apenas ao livro de papel, de fato atraem um novo

público e acompanham a tendência do mercado de se dirigir ao consumidor presente nas

mídias não tradicionais. Porém, um outro dado fundamental que se deve levar em conta

quando se reflete sobre obras de autoficção é que algumas delas apresentam questionamentos

das noções de identidade, sujeito e de verdade a partir das contradições e semelhanças que

apresentam com a verdade biográfica. Desse modo, alguns autores, ao assumirem o papel de

personagem principal de seus trabalhos, vão além da busca por sucesso mercadológico,

lançando mão deste procedimento para acentuar a reflexividade, o que pode ser visto, por

exemplo, em Nada tenho de meu. No reality, os participantes, mesmo assumindo as próprias

identidades, frequentemente se questionam sobre a veracidade dos fatos mostrados.

Diana Klinger observa que “cada narrativa de si se posiciona de diferente maneira

segundo a ênfase que coloque na exaltação de si mesmo, na autoindagação, ou na restauração

da memória coletiva”. Desse modo, ainda segundo ela, as obras de autoficção podem atender

simultaneamente e paradoxalmente3 a críticas filosóficas e ao narcisismo midiático que

caracteriza o final do século XX e início do século XXI.

2 LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 3 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2a edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 22.

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O que se vê, portanto, no cenário da literatura brasileira contemporânea, é um número

cada vez maior de trabalhos e projetos de editoras e dos próprios autores que, ao mesmo

tempo em que dão ênfase ao questionamento de ideias como as de sujeito e de verdade,

expandem-se para diversas plataformas e acabam tendo como resultado a circulação de um

número cada vez maior de obras que giram em torno da figura do próprio autor.

1. O gênero de autoficção

Apesar de ganhar maior visibilidade quando expandida para diversas plataformas, a

presença da figura do autor em obras literárias não é um fenômeno novo. A participação do

escritor como personagem dos próprios trabalhos varia durante diferentes fases da escrita de

si. O modo como esse autor aparece em suas obras muda a cada geração e acompanha, entre

outros fatores, a visão vigente das noções filosóficas de sujeito, verdade e identidade.

Klinger aponta três momentos desse tipo de escrita na América Latina4. Alguns livros

do gênero de autoficção escritos por autores contemporâneos e, consequentemente, os

paratextos autoficcionais, seriam, portanto, parte do momento mais recente das narrativas de

si e estariam relacionados tanto ao questionamento de noções filosóficas quanto ao narcisismo

midiático do sujeito contemporâneo.

O modernismo brasileiro dos anos 1920 e 1930, segundo Silviano Santiago5, representa

um primeiro momento da escrita autobiográfica no Brasil e mostra uma visão mais

conservadora da sociedade patriarcal brasileira. Para Santiago, essa fase não está restrita ao

retrato de uma experiência pessoal do indivíduo e foca também nas vivências do clã ao qual

ele pertence.

Já o segundo momento das narrativas de si se afasta do conservadorismo da primeira

fase e é vista com o objetivo de, sob a forma de relatos testemunhais, reconstruir a memória

de acontecimentos. Esse segundo momento dá valor ao depoimento de pessoas que ganham

voz a partir de uma experiência vivida, como aquelas que vivenciaram as ditaduras militares

vigentes na América do Sul nas décadas de 1970 e 1980.

Beatriz Sarlo observa que o sujeito, nessa segunda fase, ganha visibilidade como

alguém que relata as próprias vivências e ajuda, a partir de seu discurso, a reconstruir

momentos históricos. Desse modo, fica evidente, nesse momento, a importância do relato

pessoal para a produção de conhecimento sobre uma época ou geração. Sarlo também afirma

que esse tipo de narrativa exige que o autor do relato tente aproximar seu depoimento da

4 KLINGER, op. cit., p. 19. 5 Idem.

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verdade biográfica e, consequentemente, ganhe a confiança do leitor. Para ela, “se o núcleo de

sua verdade deve ser inquestionável, também seu discurso deveria ser protegido do ceticismo

e da crítica”6.

Esse compromisso com a verdade que tem o narrador da segunda fase da escrita de si é

um dos pontos que faz com ele se diferencie das obras de autoficção que ganham força neste

terceiro momento. A falta de compromisso do gênero com a verdade biográfica faz com que a

legitimidade da obra não fique comprometida pelo grau de sinceridade de quem escreve.

Apesar de muitas vezes falar em nome do autor, a obra de autoficção não pretende

relatar a realidade, o que torna o discurso atraente para um público que busca o real sem

obrigatoriamente acreditar em tudo o que é apresentado nas obras. Para Klinger, a narrativa de

autoficção se afasta da verdade biográfica e é baseada na construção de mitos7:

A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a

“mentira” e a “confissão”. A noção do relato como criação da subjetividade, a partir de uma

manifesta ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite pensar, como veremos

a seguir, a autoficção como uma performance do autor.

O autor do gênero de autoficção, acredita ela, faz uma dramatização de si em suas

obras, o que faz com que seu personagem seja resultado de uma construção e, portanto, fique

dividido entre o sujeito real e o fictício8. A criação desses mitos sobre a vida do autor provoca

no leitor uma curiosidade não só pela sua obra, mas também pela sua figura. Ele passa a se

perguntar o que o autor realmente fez ou quis dizer com certas frases e isso faz com que, neste

terceiro momento das narrativas de si, a imagem do autor seja frequentemente colocada em

destaque e se torne muitas vezes, mesmo que de forma secundária, um tema de interesse do

leitor.

As narrativas de autoficção, portanto, não confirmam o apagamento da figura do autor

nas obras literárias que o estruturalismo considerava condição da escrita do texto. Para Roland

Barthes, por exemplo, o escritor não deve influenciar as possíveis interpretações da obra feitas

pelo leitor, sendo, assim, um signo vazio. Barthes aponta a literatura como a destruição da

voz de quem escreve e associa a valorização excessiva da figura do autor à busca por

reconhecimento9:

6 SARLO, Beatriz. Tempo passado. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 47. 7 KLINGER, op. cit., p. 46. 8 KLINGER, op. cit., p. 50. 9 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 1.

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O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em

que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da

Reforma, ela descobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da

<<pessoa humana>>. É pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo

e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à <<pessoa>> do autor.

Segundo Barthes, as biografias de escritores, entrevistas para revistas e manuais de

história literária, por exemplo, têm a preocupação de associar a pessoa que escreve a sua obra,

atitude que traria como consequência uma cultura centrada na figura do autor. No pensamento

estruturalista de Barthes, no entanto, quem deve falar é somente a linguagem, e não o autor,

que seria suprimido em proveito da escrita. Para ele, o texto não deve possuir um sentido ou

mensagem única baseada na intenção do autor.

É possível observar, portanto, que a obra de autoficção, ao incitar a curiosidade do leitor

sobre detalhes da vida de quem escreve e ter como resultado, em alguns casos, a busca a

possíveis semelhanças entre escritor e personagem, reforça a importância da figura do autor

como um sujeito que participa da obra, característica que vai contra o que propunha Barthes

ao defender a desassociação entre o autor e o texto.

Michel Foucault problematiza as noções de obra e escrita e também levanta a discussão

sobre qual deveria ser o papel do escritor nas obras literárias. Ao tomar como premissa a

morte do autor, ele investiga quais funções ainda podem ser desempenhadas pelo escritor no

espaço vazio deixado pelo desaparecimento proposto por Barthes. Neste contexto, apresenta a

função autor, que institucionaliza a figura do autor e aponta diferentes papéis que ela pode

exercer em relação ao discurso10

:

Não mais colocar a questão: como a liberdade de um sujeito pode se inserir na consistência das

coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, do interior, as regras de uma linguagem e

manifestar assim as pretensões que lhe são próprias? Mas antes colocar essas questões: como,

segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem

dos discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e

obedecendo a que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto) seu papel

de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso.

10 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.20.

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Foucault defende a importância da função autor em diferentes momentos. O nome do

autor, por exemplo, para ele, não pode desaparecer por completo e ser tratado como um

simples nome próprio, já que caracteriza o modo de ser do discurso e, entre outras funções,

permite que diferentes textos se relacionem entre si.

Já Lejeune aponta o nome do autor como elemento fundamental para que seja

estabelecido um pacto de leitura, que é o que, segundo ele, define como as obras literárias

devem ser classificadas. É no nome próprio que, para ele, “se resume toda a existência do que

chamamos de autor: única marca do texto de uma realidade extratextual indubitável,

remetendo a uma pessoa real”11

. Lejeune defende que, em textos biográficos, o nome na capa

do livro adquire importância para que o leitor possa ler a obra de modo que identifique a

relação existente entre escritor, narrador e personagem. O pacto autobiográfico, desse modo,

teria o objetivo de manter essa relação clara e explícita para que o leitor não tenha dúvidas se

a obra deve ser lida como sendo biográfica ou ficcional.

Com o gênero de autoficção, no entanto, o contrato proposto não pode ser estabelecido,

já que as obras não apresentam uma identificação assumida entre autor, narrador e

personagem. Nas obras autoficcionais, cabe apenas ao leitor buscar possíveis semelhanças e

diferenças entre ficção e realidade, baseando-se no conhecimento prévio ou na pesquisa de

dados sobre a vida do autor. Para Lejeune, os romances em que autor e personagem

apresentam o mesmo nome, sem, no entanto, assumir um caráter biográfico, como é o caso

dos textos autoficcionais, constituem em obras que não podem ser caracterizadas nem como

biografia, nem como romance, e que resultam em um jogo de ambiguidade12

.

Ao se deparar uma narrativa cujo autor e personagem têm o mesmo nome ou

apresentam outras semelhanças, o leitor muitas vezes busca saber mais sobre a vida de quem

escreve, seja na internet, em matérias jornalísticas, em redes sociais ou por meio de pistas

presentes no próprio texto. A autoficção, portanto, faz com que a figura do autor seja central

e, muitas vezes, excessivamente valorizada. Ao mesmo tempo, o gênero pode, ao confundir as

fronteiras entre realidade e ficção, entre sujeito empírico e autor, levantar questionamentos

sobre as noções contemporâneas de sujeito, identidade e verdade. Isso faz com que, segundo

Klinger, ele apresente um paradoxo13

:

Para além da relação que se pode estabelecer entre o retorno do autor e o exibicionismo da cultura

midiática, devemos também situá-lo no contexto discursivo da crítica filosófica do sujeito, que se

11 LEJEUNE, op. cit., p.23. 12 LEJEUNE, op. cit., p. 32. 13 KLINGER, op. cit., p. 22.

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produziu ao longo do século XX, e que chegou até sua negação com o estruturalismo, o anúncio da

“morte do autor” na literatura e da “morte do sujeito” na filosofia. As narrativas de que nos

ocupamos não se apresentam como expressão de uma singularidade dona de si mesma e da sua

escrita, o que permite esboçar uma primeira hipótese: estes textos parecem responder ao mesmo

tempo e paradoxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito.

Essa situação fica cada vez mais evidente com a expansão das narrativas de autoficção

para outras plataformas além do livro impresso. Seja física ou virtualmente, com a

participação massiva em eventos literários ou em programas de televisão, blogs ou redes

sociais, a visibilidade da figura do escritor aumenta. Na realidade ou na ficção de sua própria

autoria, a presença do autor é constante e não se limita aos livros impressos. Agora, é possível

para o leitor se familiarizar ainda mais com a imagem do escritor e ter contato com suas

opiniões e hábitos, isso é, saber o que ele pensa e como se comporta antes de ter lido algum

livro de sua autoria.

Neste contexto, parte dos escritores contemporâneos, com a imagem exibida de forma

recorrente em diversas plataformas, não pode ser considerada apenas “famosa” por suas

obras. É possível concluir que muitos deles se encontram no patamar de celebridades, sendo

suas próprias vidas um meio de chamar a atenção do leitor. Não se pode afirmar, contudo, que

as obras de autoficção sempre buscam apenas essa atenção para a figura do autor, ou que

correspondam somente a uma estratégia de marketing ao ter, como tema central,

acontecimentos da vida de quem escreve.

Ricardo Lísias é um exemplo de autor conhecido pela produção de textos autoficcionais.

Em O céu dos suicidas, o protagonista do livro se chama Ricardo, um acadêmico paulista que

perdeu recentemente o melhor amigo, André, e busca se recuperar do trauma. O leitor, então,

questiona-se sobre as semelhanças entre o comportamento do personagem e a personalidade

do autor – também chamado Ricardo e também um acadêmico nascido em São Paulo – tal

como este se apresenta na sua performance como homem público.

Pistas das semelhanças da história do livro com sua vida pessoal podem ser encontradas

em outras obras do autor, como em O livro dos mandarins, anterior ao lançamento de O céu

dos suicidas. Nos agradecimentos do romance, Lísias cita e homenageia um amigo, André,

que “resolveu interromper a própria vida”.

O livro mais recente de Lísias é também uma obra autoficcional. O romance Divórcio

trata da separação do personagem Ricardo da então esposa, uma jornalista, após encontrar um

diário escrito por ela que continha diversas críticas a ele. No livro, Lísias dá pistas sobre a

identidade da ex-mulher e revela detalhes sobre sua intimidade, como um possível caso que

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ela teria tido fora do casamento com uma fonte de trabalho, jurado de um festival de cinema.

Uma pequena busca na internet torna possível descobrir que o autor foi, de fato, casado com

uma jornalista que fez a cobertura desse festival.

O romance também revela outras semelhanças entre Lísias e o personagem, como o

despertar do interesse pelo atletismo. No livro, para se recuperar do trauma da separação,

Ricardo recorre à corrida e se interessa cada vez mais pelo esporte. Em sua conta no

Facebook, Lísias tem fotos de sua participação em competições de atletismo, inclusive as

mesmas citadas no livro, o que comprova uma aproximação entre a história do personagem e

a verdade biográfica.

Divórcio, portanto, é um exemplo de obra que transcende os limites da ficção e traz para

o leitor, de forma direta ou indireta, detalhes sobre a vida do escritor. O livro produz em quem

lê o efeito de curiosidade sobre a situação vivida por Lísias sem, no entanto, ter como

consequência a perda de qualidade da obra.

Outros exemplos de escritores brasileiros contemporâneos que produzem obras

autoficcionais são João Paulo Cuenca, Paulo Scott e Tatiana Salem Levy. Tatiana, em seu

primeiro romance, A chave de casa, constrói uma personagem descendente de judeus turcos e

filha de comunistas brasileiros, história que apresenta semelhanças com a da própria autora.

Paulo Scott, em Habitante Irreal, narra a trajetória de um jovem, também chamado Paulo, que

vive em Porto Alegre, cidade natal do autor.

Já Cuenca, no conto publicado na revista Granta destinada aos melhores jovens

escritores brasileiros, não constrói um personagem homônimo a ele, mas deixa claro que o

texto apresenta semelhanças com sua vida. No livro, ele conta parte da história da cidade do

Rio de Janeiro e de Tomás Anselmo, um escritor que, enquanto observa a decadência da

cidade, sente vontade de fugir, já que não vê mais o Rio como um lugar ideal para viver. O

personagem, porém, teme que a fuga o faça ser esquecido pelos amigos, fãs e imprensa.

Esse desejo de abandonar a cidade que o conto atribui a Tomás Anselmo já foi citado

por Cuenca em outras obras do autor, sendo inclusive apresentado como uma vontade própria

nas cartas trocadas com Chico Mattoso no Blog do IMS, em que mostra grande insatisfação

com o Rio de Janeiro:

Sobre essa cidade, não dá mais – não dá mais há uns 160 anos. Agora, está ficando mais cara que

SP, ou seja, mais cara que todas as outras as cidades do mundo. Mas como para o carioca, a grande

musa de si mesmo que nasce com antolhos grudados na cabeça, “mundo” é um conceito rarefeito,

isso pouco importa. Na minha rua, todos os restaurantes lotam todos os dias, Chico. O brasileiro

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faz fila para pagar os preços mais caros do mundo pela pior comida do mundo. Lá fora, todo

mundo histérico, babando espuminha de chope e eu desistindo, ligando o ar condicionado e me

dando o direito de estar olimpicamente de saco cheio. Eu sempre cito o Salinger nessas horas: tudo

o que eu mais queria é que todo mundo voltasse pra casa.

Na mesma edição da revista, o conto escrito por Lísias também apresenta semelhanças

entre autor e personagem, como nome e profissão. Em certo momento do texto, porém, o

autor constrói uma narrativa na qual o personagem, mesmo mantendo as diversas

semelhanças com a identidade do escritor, vive experiências que fogem completamente à

verdade biográfica.

Na história, Lísias narra em primeira pessoa que, após escrever o Livro dos mandarins,

desistiu da literatura por não acreditar mais na possibilidade de se conhecer por meio dela.

Depois de uma série de tentativas para buscar o autoconhecimento, como a dedicação ao

xadrez, que é uma atividade de fato praticada pelo autor, o personagem foi ao Cazaquistão

juntar-se a uma comunidade nômade para viver experiências espirituais. Assim, ele afirma ter

conseguido, finalmente, encontrar a paz interior, mantendo votos de silêncio e parando de

escrever em função dos rituais da comunidade:

Aqui na comunidade, a gente perde a noção de tempo. Sei quando é natal porque apenas nessa

época do ano podemos escrever. Normalmente um mensageiro traz um pequeno bloco de papel e

cada um de nós manda uma carta para casa. É o que imagino, já que não conversamos. Sempre

envio notícias para a minha mãe. A comunidade vai bem. Anatoly e Tólia não têm pressa. Outro

dia fizemos uma comunhão do Olho Interno com as Águas Sagradas no lago Balkhash e eu soube

que existem cerca de doze Mestres do Olho Interno perdidos pelo mundo.

O conto, portanto, mistura acontecimentos verídicos e ficcionais. Lísias usa elementos

biográficos, como o nome de um livro escrito por ele, a profissão e a paixão por xadrez, todos

citados no texto, para criar uma história totalmente nova. Isso mostra que a autoficção, apesar

de revelar elementos possivelmente verdadeiros da vida do autor, pode também mudar

completamente a história sem causar qualquer problema para o entendimento do leitor.

A curiosidade despertada em quem lê os livros do gênero, aliada a essa mistura entre

realidade e ficção que resulta tanto em questionamentos filosóficos de noções

contemporâneas quanto em um narcisismo maior do sujeito, são, portanto, características

desse terceiro momento da escrita de si, que ganham ainda mais força com a expansão do

gênero para outras plataformas.

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2. Os paratextos e o mercado

Em texto publicado no jornal português Expresso, em 25 de janeiro de 2014, sobre a

série multimídia Nada tenho de meu, destaca-se a seguinte frase: “’Nada Tenho de Meu’

assume-se como um verdadeiro objeto artístico multimédia: não basta ver, é preciso ler; não

basta ler, é preciso imaginar”. A afirmação, também utilizada para divulgar a série nas redes

sociais, coloca o aspecto multimídia de Nada tenho de meu como positivo e aponta a presença

do texto em cada plataforma como importante para a compreensão do sentido da obra.

A série, que tem como personagens principais Cuenca, Tatiana Levy e Miguel

Gonçalves Mendes, foi feita inicialmente no formato de webserie. Hoje, estende-se para além

de uma única mídia e está disponível para o leitor na televisão, na internet, no livro impresso

e também no formato de filme. O texto do Jornal Expresso afirma ainda que a presença da

série em diversas plataformas não ocorre de forma repetitiva, mas, sim, complementar:

O livro segue a estrutura do filme de Miguel Gonçalves Mendes, apropria-se de suas imagens, dos

seus fotogramas (numa paginação que remete para as anacrônicas fotonovelas), mas não é um

mero espelho em papel do que podemos ver no DVD. Há elementos da série que desaparecem no

livro – e vice-versa. Certas frases soltas que vamos ouvindo, tanto de Tatiana como de Cuenca,

ganham outro sentido quando as descobrimos nos textos completos de onde foram retiradas.

O sucesso que o programa alcança em Portugal é comemorado na página do Facebook

do programa, que mostra que ele está presente na lista dos dez mais vistos no canal em que é

exibido. Com o número crescente de obras multimídia no cenário da produção cultural

contemporânea e o sucesso que obtêm com os leitores, é possível perceber que a ideia de uma

obra não fechada, que foge aos limites impostos pelo livro impresso, é bem aceita pelo

público. Como os trabalhos multimídia têm muitas vezes a intenção de se complementar nas

diversas plataformas em que estão presentes, as possibilidades de interpretação e participação

do leitor na obra, portanto, também aumentam. Desse modo, o público interage com o autor

em diferentes meios e isso faz com que a obra seja vista por parte dos leitores como um

trabalho interessante.

Vera Figueiredo observa que o trânsito de narrativas entre diferentes suportes não é um

fenômeno recente, porém fica ainda mais evidente com as tecnologias digitais. Segundo ela, a

interseção entre campos da produção cultural já era vista, por exemplo, na relação entre

literatura e jornalismo estabelecida no século XIX, que abriu espaço para mudanças

decorrentes do entrelaçamento entre prosa literária e reportagem, como a divisão do gênero

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romance em capítulos sob a forma de folhetins e o surgimento do conto policial e da crônica

moderna.14

Figueiredo aponta ainda que a ideia de libertação do texto da submissão à obra literária

que propunha Barthes ao defender a independência do texto ajuda a compreender as

transformações no modo de circulação das narrativas com as tecnologias digitais15

:

Ao falar de um texto ideal, em que redes seriam múltiplas e se entrelaçariam, sem que nenhuma

pudesse encobrir outras, de um texto que não tem início, sendo reversível, no qual penetramos por

diversas entradas, sem que nenhuma possa ser considerada a principal, mobilizando códigos que se

perfilam a perder de vista (1992, p.39), remete o leitor do início do século XXI, inevitavelmente,

para os novos modos de circulação dos textos na internet.

Ela defende, portanto, que essa ideia de obra fragmentada e inacabada que ganha força

com a facilidade de migração dos textos entre diferentes plataformas pode ser considerada

herança do movimento iniciado pela arte modernista, que se contrapõe à ideia de obra como

objeto finito e com sentido fechado. Isso poderia afetar inclusive o modo de escrever e

produzir dos autores, que entendem que a forma de recepção dos textos também está em

transformação.

Para Figueiredo, o computador vem tomando espaço como o meio de convergência das

narrativas. O intercâmbio de recursos entre as mídias, segundo ela, diminui a distância entre

os campos artísticos e faz com que eles estejam centralizados no computador, que armazena e

distribui a produção artística:16

Como o sentido de uma obra depende de seus aspectos materiais, formais e de conteúdo, que são

indissociáveis, ao serem liberados dos suportes físicos tradicionais, como, por exemplo, o papel e

a película, as formas culturais pré-digitais passam por transformações que as reconfiguram. O

computador é, então, algo mais que um simples atravessador, ou operador de passagens, é o ponto

de partida para a constituição de uma cultura eletrônica com características próprias.

A importância das tecnologias digitais para a divulgação da série Nada tenho de meu se

dá também, entre outros fatores, por meio da página do programa no Facebook, que exibe

14 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p,12. 15 FIGUEIREDO, op. cit., p. 14. 16 FIGUEIREDO, op. cit., p. 18.

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comentários sobre o sucesso da série e divulga a audiência, a programação e as matérias

jornalísticas e artigos que foram escritos sobre ela.

Em Nada tenho de meu, o fato de o programa ser multimídia e a proximidade da série

com a linguagem das narrativas do gênero de autoficção facilitam a interação e o sentimento

de participação do leitor na obra. No programa, Cuenca, Levy e Mendes fazem uma espécie

de diário de bordo em uma viagem a Macau e levantam questões pessoais como tema

principal da série. Os autores de Nada tenho de meu, portanto, aparecem também como

personagens principais do programa.

Desse modo, nos paratextos autoficcionais, a presença multimídia do texto faz com que

a exibição da imagem do autor se torne recorrente não apenas no livro impresso, mas também

em outras plataformas. Tanto na própria obra quanto na divulgação feita nas redes sociais e na

televisão, a imagem e os pensamentos dos autores aparecem como destaque e como um meio

de atrair o público, o que valoriza cada vez mais a figura do autor. Ao analisar a presença do

autor em mídias como rádio e televisão, Lejeune defende que ela tem como efeito um

interesse ainda maior do leitor pela sua figura:17

Será que, ao tornarem o autor contemporâneo acessível a todos, o rádio e a televisão exercem uma

função salutar, dissipando o efeito de mistério engendrado pela escrita? Só na aparência. Pois, na

realidade, a mídia incentiva fatalmente a ilusão biográfica que leva a buscar a solução do mistério

no próprio autor.

Ainda segundo Lejeune,18

Na televisão, enfim, voz e imagem se reuniram. Nada mais a ser imaginado: o autor do livro que

lemos ou, com mais frequência, do livro que não lemos e que não leremos está ali, em carne e osso

e ao vivo. Se ainda restar algo a ser imaginado, será, paradoxalmente, o que ele terá escrito.

Assim, é possível perceber que a migração de alguns leitores entre plataformas é feita

muitas vezes para acompanhar o trabalho e as opiniões de um escritor específico. A expansão

das obras literárias para diferentes mídias pode trazer para elas leitores que, antes, estavam

concentrados em apenas um meio.

Em Nada tenho de meu, o tema da dissolução das fronteiras entre realidade e ficção é

recorrente. Na série, questões pessoais dos autores se misturam e confundem com os conflitos

17 LEJEUNE, op. cit., p. 195. 18 LEJEUNE, op. cit., p.194.

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dos personagens que interpretam, o que impossibilita a classificação do programa como

biografia ou ficção e gera a ambiguidade típica das narrativas de autoficção. Ao mesmo

tempo em que elementos biográficos, como fotos dos participantes do reality em diferentes

momentos da vida, são exibidos durante o programa, há também elementos puramente

ficcionais, que podem ser percebidos logo no primeiro episódio. No início do capítulo, um

telejornal anuncia a chegada de um asteroide que causaria um forte impacto na terra.

Os personagens, então, são apresentados pelo narrador com objetivos diferentes para

encarar a viagem e o suposto fim do mundo. Todos, porém, apresentam questões ligadas às

noções de esquecimento, fuga ou perda de identidade. Durante a série, as noções de sujeito e

verdade são questionadas não só pela fala dos participantes, mas também por entrevistados e

pelo narrador do reality.

O programa mostra os escritores em busca de soluções para as próprias vidas. Levy quer

inspiração para escrever, Mendes procura esquecer um amor e Cuenca usa novamente a ideia

de fuga, que se concretiza no final do programa, quando ele desaparece e deixa os outros

participantes terminarem a viagem sozinhos. Enquanto aguardam o impacto do asteroide, os

personagens produzem reflexões sobre o que seria o real e colocam em dúvida a veracidade

do que está sendo abordado no programa.

A intenção de Levy com a viagem a Macau é apresentada pelo narrador da série como

uma busca por liberdade e inspiração. Ela diz querer escrever um romance passado em Macau

e se questiona sobre qual seria o protagonista ideal para a obra. A escritora, então, pensa em

escrever sobre um homem português que está em Macau para esquecer um amor, personagem

que tem semelhanças com a história que o narrador da série apresenta como sendo de Miguel

Gonçalves Mendes. Uma outra possibilidade de protagonista do romance pensada por Levy é

a de uma escritora brasileira que busca inspiração para um livro, características que coincidem

com a da própria autora:

Se eu escrevesse sobre mim, a viagem, o filme que estamos fazendo? De novo a questão da

realidade e da ficção. Vão me perguntar se a história é real. A eterna insistência em separar as duas

coisas, quando a vida não as separa. Mas há pessoas que ainda insistem em colocar a realidade de

um lado e a ficção de outro. Eu escrevo e em um instante as coisas passam a existir. Se eu não

escrever, o Miguel não vai existir. As coisas passam a existir.

Ao longo do reality, é recorrente a afirmação de que a realidade é uma construção e

que é possível desempenhar vários papéis e ter diversas identidades, o que incita o espectador,

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justamente por meio da utilização de uma linguagem autoficcional, a refletir sobre a diluição

das fronteiras entre realidade e ficção.

Além de abordar o tema de sua fuga em Nada tenho de meu e na Granta, Cuenca, na

correspondência trocada com Chico Mattoso no Blog do IMS, como foi visto, faz uma

reflexão sobre a vontade de sair do Rio de Janeiro. Isso mostra que o assunto é recorrente na

obra do autor, e é um exemplo de como um desejo pessoal de quem escreve pode virar tema

de seu trabalho, fato que reforça a aproximação com o leitor, que se sente participando da

vida e das dúvidas do escritor.

Apesar de, no Blog do IMS, os autores publicarem cartas assinadas, o que deveria ser

um relato considerado verdadeiro, é possível afirmar que elas correspondem às narrativas de

autoficção. A partir do momento em que Cuenca, assim como os outros autores, escreve

cartas não com o objetivo de se corresponder com o destinatário, mas de se direcionar a ele

com a intenção de que sejam lidas por terceiros, vê-se uma obra de ficção. O autor passa a ser

um personagem da carta que escreve, que deixa de ser uma conversa particular com alguma

outra pessoa. Na seção do blog dedicada a essas correspondências, portanto, os autores trocam

experiências e opiniões sobre assuntos variados e conversam por meio de cartas que são, na

verdade, destinadas principalmente ao leitor.

No caso de Cuenca e de Mattoso, que se corresponderam por dois meses em

publicações semanais, os autores levantaram questões centradas nas próprias vidas e na

relação de amizade entre eles. Enquanto Cuenca faz uma análise de sua vida no Brasil,

Mattoso fala sobre como é ser um estrangeiro na cidade de Chicago. Cuenca relata até

dificuldades que tem para dormir:

Quatro horas de sono por dia é dureza. Tomara que essa fase já tenha passado. Eu tenho dormido

seis horas. Não seis horas e meia ou cinco horas e quarenta e cinco minutos, mas seis horas,

exatamente. Se eu dormir à 1h da madrugada, acordo às 7h. Depois fico remoendo sonhos na cama

– ou aqueles primeiros pensamentos tenebrosos do dia – e tento dormir de novo. Quase nunca

consigo. Antes eram só os sonhos que me mandavam recados (hoje briguei aos pontapés com

cachorros e crianças), mas agora é o meu corpo que também quer dizer alguma coisa.

Um outro exemplo de obra que se expande para diversas plataformas e tem como

efeito a valorização da imagem do escritor é o Projeto Amores Expressos. Para participar

dele, autores viajaram por um mês para diferentes países com o objetivo de, lá, escreverem

um romance. Mesmo que a meta principal fosse o lançamento de um livro por autor, o projeto

não ficou restrito à plataforma impressa e se expandiu para a televisão e a internet. Cada

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escritor, durante a estadia no país no qual deveria escrever o romance, atualizou um blog com

a intenção de fazer dele uma espécie de diário com as experiências vividas fora do Brasil.

Desse modo, autores como Cuenca, Mattoso e Scott, que viajaram para Tóquio, Havana

e Sidney, mantiveram os leitores informados sobre as impressões que tiveram da cidade e

como foi o processo de apuração para escreverem os livros. Durante a estadia na Austrália,

Scott fez uma postagem no blog intitulada “O que restou de domingo”, que contava aos

leitores detalhes sobre a cidade, sobre ele próprio, a rotina no exterior e o livro que escrevia:

Descobri um bar onde se bebe vinho branco gelado em copo-martelinho. Descobri, ao acaso, um

lugar onde se amontoam os brasileiros. A história já está mais ou menos pronta na minha cabeça.

Os primeiros dias enchem o migrante (eu) de desarmonia e exílio, os sonhos são todos trágicos e

completos de história pessoal. Pretendo voltar com desenhos lunares que servirão para forrar as

molduras que guardam minha coleção de desenhos do Guazzelli, do Jaca, do Fabio Zimbres.

Caminhei até a praia e vi os pais ensinando seus pequenos de cinco a sete anos a vencer as ondas.

Cena linda, de verdade. Hoje, acordei as oito e dez.

O Projeto Amores Expressos também pode ser visto em formato de série de televisão.

Cada episódio do programa mostra o depoimento de um escritor sobre como foi a experiência

de participar do projeto. Esse espaço para o autor tanto nas páginas na internet quanto na

televisão, portanto, reforça a ideia de Lejeune de que a mídia colaboraria para a sacralização

da imagem do autor.

O grande número de obras que se expandem para diversas plataformas e de narrativas

do gênero de autoficção pode apontar não só para uma característica narcisista do próprio

autor, mas também para um aspecto mercadológico, isso é, uma estratégia de marketing das

editoras. É possível perceber, muitas vezes, um esforço por parte dessas editoras para

reafirmar o status de celebridade de alguns escritores. O “autor famoso” atrai um maior

público e aumenta as vendas dos produtos quando se encontra presente em sites, blogs e

outros paratextos que muitas vezes dão foco maior a sua figura do que ao seu trabalho.

Pierre Bourdieu analisa a história das relações entre escritor, obra e mercado. Ao relatar

o processo de autonomização do campo artístico na França do século XIX, apresenta uma

submissão de alguns escritores aos interesses do mercado e das classes dominantes, que,

segundo ele, eram por vezes hostis à produção intelectual:19

19 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 1a edição. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 69.

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Trata-se doravante de uma verdadeira subordinação estrutural, que se impõe muito desigualmente

aos diferentes autores segundo a sua posição no campo, e que se institui através de duas mediações

principais: por um lado, o mercado, cujas sanções ou imposições se exercem sobre as actividades

literárias ou directamente, através dos números de vendas, o número de entradas, etc., ou

indirectamente, através dos novos postos oferecidos pelo jornalismo, a edição, a ilustração e todas

as formas de literatura industrial; por outro, as relações duradouras, assentes nas afinidades de

estilo de vida e de sistema de valores, que, por intermédio nomeadamente dos salões, unem pelo

menos uma parte dos escritores a certas fracções da alta sociedade, e contribuem para orientar as

generosidades do mecenato de Estado.

Os escritores, portanto, para ganharem visibilidade, produziam muitas vezes trabalhos

que atendiam aos interesses da burguesia e do mercado. Para Bourdieu, isso simplificava e

diminuía a qualidade das obras literárias:20

Os industriais da escrita fabricam, segundo o gosto do público, obras escritas num estilo cursivo,

de aparência popular, mas não excluindo nem o cliché <<literário>> nem a busca de efeitos, e

<<cujo valor se ganhou o hábito de medir de acordo com as somas que renderam>>.

Na literatura brasileira contemporânea, o aumento do número de obras autoficcionais

que exibem excessivamente a figura do autor em diversas plataformas pode constituir um

outro tipo de dependência do mercado, porém não mais feita para simplificar as obras, e, sim,

entre outros fatores, para atrair um maior público que busca cada vez mais informações sobre

o autor e não se vê mais concentrado em apenas uma plataforma.

Bourdieu afirma que uma obra é considerada comercial quando responde a uma procura

preexistente e segue uma forma preestabelecida. Ele divide as obras bestseller entre aquelas

que são “investimentos seguros a curto prazo”, que seriam as obras comerciais, e os

“investimentos arriscados a longo prazo”, que seriam as obras de arte “puras”. Segundo ele,

no entanto, não é possível classificar uma obra como totalmente independente ou totalmente

subordinada ao mercado21

:

No termo do processo de especialização que levou ao aparecimento de uma produção cultural

especialmente destinada ao mercado e, em parte em reacção contra esta, de uma produção de obras

<<puras>> e destinadas à apropriação simbólica, os campos de produção cultural organizam-se,

muito geralmente, no estado actual, segundo um princípio de diferenciação que não é outra coisa

senão a distância objectiva e subjectiva das actividades de produção cultural em relação ao

20 BOURDIEU, op. cit., p. 74. 21 BOURDIEU, op. cit., p.169

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mercado e à procura expressa ou tácita, distribuindo-se as estratégias dos produtores entre dois

limites que, na realidade, jamais são atingidos, a subordinação total e cínica à procura e a

independência absoluta perante o mercado e as suas exigências.

Os paratextos autoficcionais, como tem como características a migração do texto e a

busca do leitor por mais informações sobre a vida pessoal do autor, acabam, portanto, sendo

também parte de uma lógica de mercado que se baseia na figura do escritor midiático e

contribui para a fabricação do autor celebridade. Como afirma Lejeune, afinal, “o autor nos

leva ao livro e o livro ao autor”22

.

Conclusões

A escrita de si, apesar de antiga na literatura, vive um momento no qual o escritor fala

por si mesmo, porém nem sempre como um testemunho ou visando um retrato da verdade

biográfica. Por meio do uso da linguagem de autoficção, que transita entre o biográfico e o

ficcional, o escritor promove, ao apresentar-se como personagem da própria obra sem assumir

qualquer compromisso com o real, uma reflexão sobre as noções de sujeito, verdade e

realidade. Em Nada tenho de meu, essa discussão é tema do programa, já que, por meio do

discurso dos próprios personagens, que são também os autores do reality, há um

questionamento da busca do espectador pelo retrato do real, que, segundo eles, não existe. Os

escritores também levantam dúvidas sobre as próprias identidades e defendem que não há

diferença entre eles e os personagens que representam no programa.

Outros paratextos, mesmo que não tenham sido feitos com a intenção de levantar tais

questões, acabam promovendo reflexões sobre o que seria a realidade pelo fato de se

apresentaram como uma versão dela que, no entanto, não pode ser classificada como uma

biografia. É o caso das cartas trocadas entre escritores no Blog do IMS, que, apesar de serem

apresentadas como uma correspondência pessoal, podem ser classificadas como obras

autoficcionais. Os autores, ao escreverem cartas assinadas com o objetivo de publicá-las em

um blog, passam a ser também personagens, já que a correspondência deixa de ser uma

conversa particular com alguma outra pessoa e passa a ser escrita com a intenção de ser lida

por um público que vai além do destinatário.

O crescente número de textos de autoficção no Brasil pode ser observado tanto em

narrativas curtas, como se vê em coletâneas de contos, como a revista Granta, quanto nos

romances, de que são exemplos Divórcio, de Ricardo Lísias, e Habitante Irreal, de Paulo

22 LEJEUNE, op. cit., p.196.

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Scott. O primeiro gira em torno do divórcio do autor, fato biográfico divulgado nas redes

sociais e tematizado pelo próprio escritor. No segundo, o narrador partilha com o autor da

obra o nome próprio e dados biográficos conhecidos pelo leitor.

O Projeto Amores Expressos é outro caso em que se apostou na busca dos leitores por

um maior contato com a vida do autor. O texto produzido pelos escritores em viagens a outros

países não ficou restrito apenas ao livro impresso. Os autores, como parte do projeto,

escreveram blogs e participaram de um programa de televisão, o que permitiu que o leitor

interagisse com a obra em diversas plataformas. O mesmo acontece, por exemplo, em Nada

tenho de meu, presente em diferentes mídias, o que mostra que o texto não tem mais

necessariamente uma plataforma fixa e que a obra, ao assumir essas características e

encontrar-se em constante migração, não pode ser entendida como objeto fechado e acabado.

Quando a linguagem autoficcional se expande para diversas mídias, a exaltação à

imagem do autor pode ser percebida de maneira ainda mais forte. Assim, é possível observar

que a figura de alguns escritores atrai leitores que buscam saber cada vez mais sobre a vida

pessoal de quem escreve, o que muitas vezes coloca o autor em um patamar de celebridade. A

utilização desse status pelas editoras e canais de televisão pode constituir, em alguns casos,

uma estratégia visando atender aos interesses do mercado, que se encontra cada vez mais

aberto a esse tipo de narrativa. Os paratextos autoficcionais, como se pôde observar, estão em

expansão no mercado e tanto atualizam tendências antigas no campo literário quanto

assumem novos matizes em decorrência das chamadas tecnologias digitais, o que faz deles

um fenômeno tipicamente contemporâneo.

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