o duplo e a autoficÇÃo em la verdad de agamenÓn

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS LITERÁRIOS NEOLATINOS O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. RIO DE JANEIRO 2011

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Page 1: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS

LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS LITERÁRIOS NEOLATINOS

O DUPLO E A AUTOFICÇÃO

EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

RIO DE JANEIRO

2011

Page 2: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

O DUPLO E A AUTOFICÇÃO

EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

Volume 1.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Mestre (Estudos Literários

Neolatinos, opção: Literaturas Hispânicas)

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de

Arcuri.

RIO DE JANEIRO

2011

Page 3: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

Lima, Carla Vidal Oliveira de.

O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. / Lima, Carla Vidal

Oliveira -- Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2011.

09, 112f.: 1il pb;

Orientador: Profa. Dra. Silvia Inês Cárcamo de Arcuri.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de

Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2011.

1. Javier Cercas 2. Literatura Fantástica 3. O duplo

I. Carcamo, Silvia Ines (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Programa de Pós-Graduação, FL. III. La Verdad de Agamenón

Page 4: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literaturas

Hispânicas).

Aprovada em:

__________________________________________

Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)

__________________________________________

Prof. Dr. Julio Aldiger Dalloz

Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)

__________________________________________

Profa. Dra. Ana Isabel Guimarães Borges

Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)

__________________________________________

Profa. Dra. Eline Marques Rezende - Suplente

Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)

__________________________________________

Profa. Dra. Lívia Maria de Freitas Reis - Suplente

Universidade Federal Fluminense (FL/UFRJ)

RIO DE JANEIRO

2011

Page 5: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

A todo meu povo que luta, acredita e persegue a vitória.

Muito obrigada àqueles que são parte da minha

caminhada: ao passado, pelo esforço na construção de

uma base sólida; ao presente, pelo apoio e compreensão

nos momentos de grande dificuldade; ao futuro, por ser o

combustível da chama e do desejo de ser e fazer sempre

algo melhor. Essa vitória é dedicada a todos nós!

Page 6: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela permissão de alcançar esse momento. Pai, obrigada por toda a dificuldade

porque ela serve para buscar e melhorar a forma de caminhar.

Ao meus antepassados, que com seus pés descalços abriram as primeiras trilhas.

Aos espíritos de luz que trabalham e ajudam a iluminar os trechos sombrios da estrada.

Aos meus avós, que como agricultor, vendedor de livros, lavadeiras e donas de casa

valorizaram o estudo.

Aos meus pais e minha irmã, por me amar, ensinar, orientar e acreditar em todos os

momentos.

Ao meu marido, que aguentou e sobreviveu à minha impaciência e insônia. Muito obrigada

pela compreensão e pelo apoio silencioso.

Àqueles me ajudaram a aparar algumas arestas. Minha prima Elaine, que em muitos finais de

semana e muitas madrugadas leu e opinou sobre a pesquisa. Muito obrigada, minha revisora

de plantão.

Ao meu tio Esequiel por aquela caneta.

À minha querida professora, Silvia Cárcamo, pela valiosa orientação, pela paciência e sua

grande generosidade.

Muito obrigada a todos!

Page 7: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

“ O verdadeiro conhecimento, como qualquer outra coisa

de valor, não é para ser obtido facilmente. Deve-se

trabalhar por ele, estudar por ele, e mais que tudo, rezar

por ele.”

Thomas Arnol

Page 8: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

LIMA, Carla Vidal Oliveira de. O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. Rio

de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

Indagamos sobre o sentido da conjunção de literatura fantástica e da proposta autoficcional

em La verdad de Agamenón, um conto longo do escritor espanhol Javier Cercas. Por

intermédio do duplo - que por sua natureza sobrenatural remete à tradição da literatura

fantástica - e da autoficção, termo cunhado por Serge Doubrovsky, fenômeno contemporâneo

de ficcionalização crítica, Cercas sinaliza para a necessidade das novas estratégias narrativas,

condicionadas pelas transformações ocorridas no processo de escritura e de leitura. As

aparições do autor em suas ficções confirmam uma tendência da literatura atual que consiste

na coincidência do autor, do narrador e do protagonista, sem, no entanto, deixar de ser um

relato de ficção. A literatura acompanha a transformação cultural que tem sua origem no

desenvolvimento tecnológico e na democratização do conhecimento na sociedade da imagem

e do consumo. O insólito e a ficcionalização da crítica se encontram nesse conto que

questiona tanto o racionalismo quanto o fazer literário na atualidade. Embora o corpus esteja

constituído por esse conto, estabelecemos relações com os textos ficcionais, críticos e híbridos

em nossa reflexão. O objetivo da pesquisa é averiguar a relação existente entre o duplo, a

autoficção e a Espanha atual. A busca de novas estratégias narrativas, em nossa proposta,

explica a utilização do duplo vinculada à crítica da realidade do mundo literário, o escritor, o

leitor, a circulação de obras na cultura pós-moderna.

Palavras-chave: Duplo, autoficção, Javier Cercas.

Page 9: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

LIMA, Carla Vidal Oliveira de. The double and the autofiction in La Verdad de Agamenon.

Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

We questioned about the meaning of the conjunction of fantasy literature and the

autoficcional proposal in La verdad de Agamemnon, a long tale of the Spanish writer Javier

Cercas. Via the double - that for your supernatural nature refers to the tradition of fantasy

literature and autofiction - a term coined by Serge Doubrovsky, contemporary phenomenon of

critical fictionalization, Cercas signalize the need for new narrative strategies, conditioned by

the changes occurring in the process writing and reading. The entrances of the author in his

fictions confirm a style in current literature is the coincidence of the author, narrator and

protagonist, without, however, not to be a story of fiction. The literature accompanying the

cultural transformation that has its origin in technological development and diffusion of

knowledge in society image and consumption. The unusual and fictionalization of this work

are critical questions that both rationalism and literary do today. Although the corpus is made

up of this tale, we have established relationships with fictional texts, and hybrids in our

critical reflection. The objective of this research is to investigate the relationship between the

double, the autofiction and the Spain today. The search for new narrative strategies, in our

research, explains the use of dual reality linked to criticism of the literary world, that is, the

writer, the reader, the circulation of works in postmodern culture.

Keywords: Double, Autofiction, Javier Cercas.

Page 10: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 10

1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA _______________________________ 13

1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA _________________________ 15

1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO ______________________________ 22

1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES ____________________________________ 27

1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO ______________________________________ 28

2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À AUTOFICÇÃO _________ 31

2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE _____________________ 33

2.2 A AUTOFICÇÃO E A PÓS-MODERNIDADE ______________________________ 43

2.3 A AUTOFICÇÃO EM JAVIER CERCAS __________________________________ 54

3 ANÁLISE DE LA VERDAD DE AGAMENÓN___________________________________ 58

3.1 A VERDADE ________________________________________________________ 58

3.2 - ESCRITOR E NARRADOR PÓS-MODERNO _____________________________ 62

3.3 PERSONAGENS: FICÇÃO E REALIDADE. _______________________________ 70

CONCLUSÃO ____________________________________________________________ 76

REFERÊNCIAS __________________________________________________________ 79

ANEXOS ________________________________________________________________ 84

ANEXO A – CAPA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN ________________________ 85

ANEXO B – CÓPIA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN ________________________ 86

Page 11: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

INTRODUÇÃO

Javier Cercas é para a literatura espanhola o autor de um dos romances mais famosos

do início do século XXI: “Soldados de Salamina”. Nesse romance, o escritor narra a história

do fuzilamento frustrado de Rafael Sánchez Mazas, ideólogo e fundador da Falange

Espanhola. Cercas se apresenta como narrador-personagem para abordar e ficcionalizar os

sucessos históricos da Guerra Civil Espanhola e o processo de construção do romance. A

leitura do romance despertou o interesse em buscar mais informações sobre o autor e sua

produção literária e percebemos que a ficcionalização da figura do autor e a discussão literária

são uma constante em sua obra.

A obra de Javier Cercas é diversificada e reúne desde narrativas ficcionais curtas como

“El móbil” (1987), um livro de contos que é sua primeira obra publicada, a textos mais longos

como o romance como “La velocidad de la luz” (2005). É interessante observar também

experiências como Anatomia de um instante (2009), uma crônica sobre a tentativa de golpe de

estado ocorrida em 1981, seu mais recente lançamento, e a contribuição na edição catalã do

jornal El país. A atuação como professor de literatura nas universidades de Illinois e Gerona

compõe uma bagagem cultural e conhecimento técnico que permitem que o autor utilize o

discurso da crítica literária como matéria ficcional em sua escrita. Pela particularidade, iniciar

uma investigação mais detalhada sobre a obra de Javier Cercas contribui e participa do

desenvolvimento dos estudos literários, sobretudo em literaturas hispânicas.

À luz dos estudos e análises comparativas entre teorias sobre o fantástico e do duplo, a

autoficção e a cultura pós-moderna, objetivamos explicar uma orientação da narrativa

espanhola na atualidade. Embora nosso corpus seja constituído pelo conto La verdad de

Agamenón, baseada no caráter exploratório da investigação, a metodologia adotada é a

pesquisa bibliográfica e a leitura de textos ficcionais e híbridos .

Período de convivência de várias estéticas, na pós-modernidade há novos contornos e

formas de narrar as mesmas histórias. A utilização da figura do duplo tornou-se frequente na

narrativa contemporânea e nossa pesquisa está interessada em averiguar a relação existente

entre a autoficção e a Espanha atual nesse conto. Nosso objeto de estudo é a autoficção do

autor Javier Cercas que se realiza através do duplo no conto fantástico La verdad de

Agamenón.

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Ao tomar a autoficção como uma tendência que mescla a realidade e a imaginação

para refletir sobre a figura do escritor e as transformações ocorridas no processo de escrita,

trabalhamos inicialmente com duas hipóteses: na primeira, entendemos a autoficção como

uma nova dimensão narrativa para explorar a realidade e na segunda, uma forma de

revalorizar a figura do escritor. Compreendemos que há vínculos contraditórios que

constituem o intelectual na contemporaneidade porque, paralelamente, ocorre a valorização da

consciência crítica e negação de se pensar como um produtor de livros para o mercado.

A produção literária e a sua divulgação se dão através dos grandes meios de

comunicação e a literatura de Javier Cercas se move dentro dessa lógica. A busca de novas

estratégias narrativas, em nossa reflexão, explica a utilização do duplo e da autoficção

vinculada à problemática da realidade do mundo literário: a complexidade que envolve a

figura do escritor, a necessidade de inserção na lógica mercadológica de circulação de obras e

a construção de uma tradição que faz parte do mesmo sistema que critica.

O autor sinaliza que o avanço tecnológico influencia o individuo, sua escrita e a

necessidade de buscar novas estratégias narrativas na sociedade da imagem e do consumo.

Observamos que a conjunção de elementos de períodos cronológicos díspares, o duplo e

autoficção constituem importantes temas de investigação literária. Desta forma, buscamos

justificar, mais uma vez, a importância da pesquisa através do diálogo entre textos capitais

sobre a literatura fantástica e sua importância como precursora das mudanças sociais e

inovação de recursos literários; a autoficção como fenômeno gestado na passagem da

modernidade à pós-modernidade, que dentre vários questionamentos, problematiza a figura do

escritor e da literatura como instituição mercantilizada para finalmente chegar à análise do

conto fantástico, que é a nossa interpretação respaldada na teoria.

No primeiro capítulo, realizamos a revisão teórica sobre a literatura fantástica, a

importância do surgimento da figura do duplo nesse gênero literário e algumas de suas

interpretações e significados. Nesse capítulo figuram textos que valorizam o fantástico em sua

dimensão social, literária e estética. Nossa revisão parte do estruturalismo, o estudo da obra de

Tzvetan Todorov cujos postulados despertam o interesse teórico e crítico sobre a literatura

fantástica. Em nossa leitura, passamos das perspectivas psicanalíticas e linguísticas à

perspectiva antropológica de Ana María Barrenechea. Observamos estudos nos quais o

fantástico é avaliado no marco de referencia histórica e social no qual está inserido até

perspectivas mais recentes na visão pós-moderna. Não deixamos de considerar a contribuição

dos psicanalíticos estudos de Otto Rank e Zigmund Freud que permeiam questões do

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12

narcisismo primário e a potência que visa contrariar a consciência da efemeridade, que

demonstram as preocupações com a identidade.

No segundo capítulo, pensamos nas formas literárias de representação biográfica que

aprofundam a discussão sobre a fragmentação do sujeito. Concentramo-nos na autoficção

como uma das formas que apontam para a mudança da modernidade para a pós-modernidade

e a necessidade de tornar explícita a complexidade que envolve a criação da imagem que o

sujeito faz de si e do seu entorno, sobretudo o escritor. Para tanto, recorremos a estudos sobre

autobiografia e romance uma vez que em ambos a autoficção encontra elementos

constitutivos. No capítulo, acompanhamos o desenvolvimento da autoficção como um

processo global, concentramo-nos na particularidade do âmbito hispânico e a forma como está

refletida na obra de Cercas.

Por último, buscamos atar as teorias e compreender de que forma o autor espanhol as

manipula para compor uma imagem do cenário espanhol da literatura contemporânea. Em

nossa análise, refletimos sobre os elementos textuais e para textuais, que em conjunto,

influenciam a formação do cenário espanhol da literatura contemporânea. Da capa à escolha

do gênero literário, o conto fantástico La verdad de Agamenón demonstra a preocupação de

um escritor em lançar um segundo olhar, mais minucioso, àquilo que lhe é cotidiano.

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1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA

A literatura, assim como outras formas de manifestação artística do fantástico, nasce

como resposta ao desencanto provocado pelo choque entre o racionalismo do período da

Ilustração e o subjetivismo romântico, no final do século XVIII e início do século XIX. Na

Ilustração são enfatizadas ideias de progresso, que buscam aprimorar o ser humano através da

defesa do conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e ideologias

tradicionais. O Romantismo se desenvolve confrontando a rigidez da realidade, cultivando a

imaginação e o subjetivismo.

Até o século XVIII, o verossímil inclui a natureza e o sobrenatural de forma coerente

através da religião. No Século das Luzes, estes dois universos se opõem. Durante o período da

Ilustração, ocorre uma mudança radical com relação ao sobrenatural. Com o domínio do

racionalismo, o homem deixa de crer na existência destes fenômenos, deixando em descrédito

a religião e a superstição como meios para explicar e interpretar a realidade.

Para compreender a abrangência, transformação e conflitos dos modelos culturais

entre os século XVIII e XIX é necessário fazer referências às metamorfoses sociais e

antropológicas que incidiram profundamente na mentalidade e na sensibilidade coletivas. Tais

alterações com raízes fincadas na vida social, contribuem para a construção da nova

concepção do trabalho, do amor e da morte. As explicações religiosas e sagradas entram em

choque com o crescente ceticismo às explorações filosóficas e científicas, à importância que

assumiram os problemas da consciência, da verdade e do duvidoso. Ainda que Iluminismo e

Romantismo compartilhassem do objetivo de alcançar uma sociedade igualitária e feliz, o

caminho seguido pelos românticos não é o cultivo da razão para indagar sobre as facetas

ocultas do homem.

O fantástico fornece ao imaginário do século XIX a possibilidade de representar

momentos de inquietação, deixando essa tradição como espólio para modernidade. Remo

Ceserani (2006) destaca que há duas tendências contrapostas na crítica literária quanto à

identificação do fantástico. A primeira é referente à “literatura fantástica do romantismo

europeu”, que reduz o fantástico a um gênero limitado a alguns textos do século XIX. A

segunda, estende o fantástico, sem limites históricos, a toda produção literária, do romanesco

ao fabuloso, da ficção científica ao metarromance contemporâneo.

Conforme o estudioso é importante pensar no florescimento do romance gótico como

antecedente do gênero fantástico que tem Horace Walpole como seu principal representante

Page 15: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

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com a publicação da obra O castelo de Otranto em 1764. Entre as características deste tipo de

romance estão o gosto pelo cenário histórico, estilo de ornamentação da Idade Média e do

Renascimento, gosto ambiguamente iluminado pelas manifestações do sobrenatural, visitação

e presença de espíritos, atração pelo mistério da maldade humana, perversão dos instintos e do

caráter. Esse imaginário gótico recebe particular enriquecimento na França pré-revolucionária

por meio de uma ampla exploração da sensibilidade romântica.

Na Alemanha reúnem-se as tendências do romance gótico inglês e francês dando

origem a uma síntese equilibrada que serve de modelo para a Europa. Na obra de Ernest

Hoffmann, escritor alemão e um dos expoentes da literatura fantástica, é possível observar

procedimentos e temas da literatura fantástica, pois em seus textos o inexplicável está inserido

na vida cotidiana realista e burguesa. Procedimentos de hesitação fazem parte da técnica

narrativa, problematizando pontos de vista, utilizando a potencialidade da linguagem criativa

em elementos geradores do efeito fantástico. No século XIX, através de Peças noturnas e o

conto O homem de Areia, o autor contribuiu para a difusão da literatura fantástica com temas

como o duplo, a loucura, a vida após a morte. No mesmo período, também as obras As

aventuras da noite de São Silvestre e Os elixires do diabo são textos basilares para o início da

discussão sobre o fantástico.

No decorrer dos decênios do século XIX, a produção literária fantástica mescla-se a

gêneros literários cuja percepção de mundo, individualidade e construção social é mais

otimista como o autobiográfico ou romance de costume, por exemplo. Com isso, o fantástico

antecipa experiências da literatura moderna como a representação subjetiva do tempo,

fragmentação de personagens unitários e coerentes. Neste sentido, o surrealismo é um

movimento de vanguarda que leva ao extremo a escritura automática, linguagem e as imagem

dos sonhos, elementos dos quais compartilha o gênero fantástico.

Na Espanha do século XX, merece destaque o cineasta surrealista Luis Buñuel que

demonstra também em sua escritura a valorização da imagem em poemas visuais como

“Redentora” (1974) que une imaginação, realidade e questão religiosa. Em nossa

interpretação do poema, o pecado é representado pela cor vermelha e fúria assassina do cão

que o persegue, enquanto a fé representa a redenção através da pomba branca e do amor

fraternal. O texto nos oferece uma visão peculiar da vida na qual a arte reflete a liberdade

imaginativa para descrever o conflito de sentimentos e as sensações do autor em relação ao

catolicismo, crença religiosa na qual está inserido culturalmente.

Page 16: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

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1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA

O interesse pela literatura do insólito gera um corpus amplo de aproximação entre

diversas correntes teóricas como estruturalismo, crítica psicanalítica e sociologia. Como

resultado, há uma grande variedade de definições, que ilumina vários aspectos do gênero

fantástico. Entretanto, não encontramos uma definição que considere em conjunto as muitas

da literatura fantástica.

Em Ceserani (2006), observamos que nos anos 50 e 60 do século XX, Pierre-Georges

Cartex, Roger Callois e Louis Vax propõem definições e foram predecessores nos estudos

sobre o gênero fantástico1. Entretanto, são os postulados de Todorov (1980) que despertam

interesse teórico e crítico sobre a literatura fantástica. Para refletir sobre o gênero literário,

ainda que seja para revisar certos conceitos e refutar outros, Introdução a literatura

fantástica(1980) é o texto basilar deste estudo.

Segundo Tzvetan Todorov, o fantástico é a vacilação experimentada, frente a um

acontecimento sobrenatural, por um ser que não conhece além das leis naturais. O efeito do

fantástico nasce da dúvida entre a explicação natural e sobrenatural dos fatos narrados. Diante

desse fenômeno, narrador, personagens e o leitor implícito são capazes de discernir se o texto

representa uma ruptura das leis do mundo objetivo ou se fenômeno pode ser explicado

mediante a razão. Entretanto, quando o leitor elege uma das opções, entramos em terrenos

vizinhos - o estranho ou o maravilhoso. O estranho aceita a explicação pelas leis da realidade

e o maravilhoso, quando o sobrenatural é aceito.

Existe ainda a subdivisão em estranho puro, fantástico estranho, fantástico

maravilhoso e maravilhoso puro. Dessa forma, o fantástico é uma categoria evanescente que

se define pela percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos relatados,

compartilhados com um narrador ou personagem. São três premissas básicas para que se

produza o efeito do fantástico: O leitor deve considerar o mundo dos personagens e vacilar

entre a explicação natural e sobrenatural; a vacilação está representada no texto, ou seja, é

sentida pelo personagem e o leitor deve rechaçar a interpretação alegórica ou poética. A

maioria dos críticos coincide na ideia de que para que se produza o efeito fantástico é

1 Segundo Pierre-Georges Cartex, o fantástico é caracterizado pela invasão repentina do mistério na vida real,

geralmente ligado a estados mórbidos da consciência que através de pesadelos e delírios projeta diante do

individuo imagens de suas angustias e horrores. Enquanto Roger Callois considera o fantástico como a ruptura

da ordem reconhecida, irrupção do inadmissível dentro do cotidiano, Louis Vax amplia o campo do fantástico

modificando os conceitos de Callois de inadmissível e indizível. Vax entende o fantástico uma sedução e não

apenas uma irrupção no real.

Page 17: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

16

necessária a presença do sobrenatural. Para que uma história seja considerada fantástica, o

ambiente do leitor deve ser assaltado por um fenômeno que o desestabiliza.

Todorov propõe uma aproximação estruturalista frente aos estudos predecessores de

Roger Callois e Louis Vax, que fundamentam-se no aspecto temático. A contribuição de

Todorov é a elaboração de um conjunto de características do gênero fantástico. Devido a essa

limitação de características do fantástico, há teóricos, como veremos a continuação, que

compartilham da ideia de que é necessário levar em consideração o contexto sociocultural.

Seguindo um critério cronológico para recuperar alguns textos referenciais do gênero,

recorremos à obra Teorías de lo fantástico (2001) de David Roas. Nesta obra, é apresentado

um conjunto de textos fundamentais de teóricos como Irène Bessière, que parte da perspectiva

sociológica, apresentando o fantástico como um tipo de relato que explora as dualidades e as

contradições culturais. Além da base estruturalista proposta por Todorov, figuram em nossa

revisão teórica a dimensão psicanalítica de Bellemin-Nöel, a linguística de Campra e

Bozzetto, a ficcional de Reisz e a expressão de alteridade de Jackson e Nandorfy. Por último,

os novos caminhos do fantástico, os estudos de Jaime Alazraki sobre neofantástico.

Conforme Bessière (2001), no estudo El relato fantástico: Mixto de caso e adivinanza,

a vacilação é um dado não específico para qualificar o fantástico, pois exclui o conteúdo

cultural. Nesta perspectiva, o fantástico não se distingue das manifestações do imaginário ou

expressões da tradição popular e, assim, não deve ser associado a meditações ou ao discurso

do subconsciente, pois está dominado interiormente “por uma dialética de constituición de la

realidad y desrealización propia del proyecto del autor (ibid, p.85)”.

O relato fantástico utiliza marcos sociológicos que definem o natural e sobrenatural

que variam segundo a época. Leem-se nas estrelinhas o novo universo elaborado na trama, o

jogo de imagens, afetos e contradições. O fantástico nasce da relação dialogal entre o sujeito,

suas crenças e incongruências. A esse respeito, a autora afirma:

Símbolo de un cuestionamiento cultural, gobierna formas de narración particulares,

ligadas siempre a los elementos y argumento de las discusiones - fechadas

históricamente – sobre el estatuto del sujeto y de lo real. No contradice las leyes del

realismo literario, pero muestra que esas leyes se convierten en las de un irrealismo

cuando la actualidad es tenida como totalmente problemática. (BESSIÈRE, op. cit.,

p. 87)

Bessière entende que para um estudo ou definição do fantástico, não se deve

privilegiar o exame da condição do sujeito e, a propósito dessa afirmação, utiliza A

metamorfose de Kafka, publicado pela primeira vez em 1915. Para a autora, no conto de

Kafka a consciência do homem transformado em inseto permanece intacta, dando importância

Page 18: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

17

apenas ao enigma do acontecimento. Assim, o estranho não é senão a circunstância, o indício

de transtorno do mundo.

O texto kafkiano se apresenta como separado da realidade. Desse modo, classificado

como maravilhoso na medida em que indica uma regulamentação que escapa à ruína e

fracasso do mundo concreto. A fim de excluir a ruína da ordem tida como natural, o texto

exerce a função sociocultural e representa a emancipação da representação literária do mundo

real.

O relato fantástico é um discurso coletivo e disparatado que concentra tudo aquilo que

não se pode dizer na literatura oficial, a exigência de uma ordem permanente. Os temas de

monstros e de outros mundos traduzem não apenas o medo e o afastamento da autoridade,

mas também a fascinação que exerce e a debilidade que suscita. Desse modo, o insólito expõe

a debilidade do indivíduo autônomo. A duplicidade se revela no estatuto literário já que em

uma sociedade laica, liberal e não hierarquizada diferentes tipos de texto tem valor

semelhante. Medos e incertezas calculadas e o desconhecido se convertem em organização

lúdica.

A narrativa fantástica marca o limite da leitura individual e privada e sem função

coletiva explícita, reafirmando a liberdade total do imaginário. Bessière (2001) adverte que

ainda para que o fantástico seja subversivo, não se deve confundir a modernidade literária e a

inovação estética como portadoras de uma mudança ideológica.

Há interpretações do fantástico como uma das formas de linguagem do inconsciente,

apontando sobretudo alguns aspectos temáticos deste tipo de narrativa e reconhecendo nelas

fáceis transcrições simbólicas dos sonhos e pesadelos do inconsciente coletivo. O crítico

francês Jean Bellemin-Nöel busca conjugar algumas concessões freudianas do inconsciente e

análises das estruturas narrativas e retóricas do fantástico e sustenta que o fantástico é

estruturado como o fantasma psíquico.

Na hipótese desenvolvida no texto de Rosie Jackson, Lo <<oculto>> de la cultura, o

gênero fantástico é menosprezado pelos críticos por ser considerado adesão à loucura,

irracionalidade ou narcisismo. Há ainda a implícita associação com o bárbaro e não humano,

o que exila o fantástico dos limites da cultura literária. Assim, as fantasias que adentram o

maravilhoso são as únicas toleradas, pois preenchem a lacuna da atualidade como algo

desordenado e insuficiente. Para compor seu argumento, a estudiosa recorre à A República,

pois nesta obra Platão expulsa as energias transgressoras como erotismo, loucura e o riso,

excessos que são expostos através do fantástico.

Page 19: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

18

A emergência da literatura fantástica em períodos de relativa estabilidade aponta para

a relação direta entre representação cultural e energias transgressoras. Conforme Jackson, a

fantasia tem a função de apresentar um revés da formação cultural do sujeito e complementa a

argumentação de que as identidades desconstruídas, demolidas ou divididas se opõem à

categoria de sujeitos unitários e revelam um sujeito em processo, ou seja, com outras

possibilidades. A autora compartilha da ideia de Todorov (1980) de que a fantasia está entre

realismo e a literatura:

(...) las fantasías imaginan la posibilidad de una transformación cultural radical, a

partir de la disolución o la destrucción de las líneas de demarcación entre lo

imaginario y lo simbólico. Se rechazan las categorías de lo <<real>> y sus

unidades. ( JACKSON, 2001, p.149)

A proposta linguística de Campra (2001) sugere que se agrupem os temas fantásticos

segundo categorias substantivas e predicativas. As substantivas remetem às situações

enunciativas que estabelecem oposições no eixo da identidade do sujeito (eu/outro), do tempo

(antes/depois) e do espaço (aqui/ali). As predicativas são referentes às dicotomias

concreto/abstrato, animado/inanimado, humano/não humano. Tal terminologia difere daquela

utilizada por Todorov como matéria e espírito ou real e irreal. Entende-se por concreto tudo

que está sujeito às leis de tempo e espaço, volume e lugar que ocupa no espaço. Abstrato, ao

contrário, aquilo que foge a essas especificidades.

Em Lo fantástico: una isotopia de la transgresión, a autora afirma que na atualidade

predomina o grupo de temas que constituem as categorias da enunciação (substantivas),

proliferação de desdobramentos, usurpações do eu e inversões temporais. Referindo-se à

instância narrativa do fantástico, a autora suscita o problema da percepção uma vez que a

realidade percebida é a realidade dos sentidos, portanto, uma aparência ou uma imagem

parcial. A organização do nível semântico está composta em função da experiência que se

contrapõe à verdade científica. O choque entre ambas significa a inconsistência de uma delas

e pode seguir combinações partindo do personagem, do narrador e do destinatário para o

acontecimento fantástico.

Recebe maior destaque a perspectiva do narrador que se coloca como primeira pessoa

no texto:

La primera persona siempre es sospechosa, porque nada, a excepción de ella

misma, garantiza lo narrado. ¿Cómo saber si el suyo es un testimonio

desinteresado? Esta característica se acentúa en el caso de identidad entre el

narrador y el protagonista. Todo lo que él vive y narra puede atribuirse a una

percepción distorsionada. ¿Por qué no definirlo como un loco o charlatán? La

realidad de la transgresión se reduce, tal vez, a una proyección de su mente, y

Page 20: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

19

permanece en los confines de lo abstracto. La primera persona protagonista tiene el

fatídico don de contaminar de duda la existencia misma del acontecimiento.”

(CAMPRA, 2001, p.170)

A verossimilhança no texto fantástico se deve à necessidade de afirmar sua existência,

explorando de modo particular aquilo que Roland Barthes chama de efeito de realidade.

Pode-se encontrar em textos narrativos sequencias descritivas sem finalidade de ação, apenas

para criar a ilusão de realidade. O relato fantástico oferece uma discrepância entre o aspecto

semântico e o sintático, consiste na inversão temporal - o fato que desencadeia a ação é

revelado ao final. Campra afirma ainda que, de modo geral, o relato fantástico se apresenta

como uma longa preparação que leva a um desenlace brevíssimo.

A passagem do fantástico predominantemente semântico ao fantástico do discurso é o

resultado da integração dos níveis formais. O nível semântico é referente à identificação de

motivos como monstros, vampiros e etc. No nível sintático, aquilo que diferencia o fantástico

de outros tipos de texto é a relação inicial de equilíbrio, ruptura e retorno ao equilíbrio que

nem sempre se completa. Tais transgressões aparecem como isotopia, ou seja, o mesmo plano

temático, que atravessa os limites em diferentes níveis do texto, permitindo a manifestação do

fantástico. Através do gênero se pode chegar a uma percepção do mundo representado na

escrita.

O horizonte cultural do produtor e receptor ajuda na categorização do fenômeno

fantástico. Compartilhando da opinião de que o fantástico nasce do confronto entre esferas

excludentes e antonímicas, os autores adotam diferentes nomenclaturas: natural e sobrenatural

para Todorov; normal e anormal, para Barrenechea; real e maravilhoso provável, segundo

Bessière e finalmente, Reisz2 que opta pela denominação possível e impossível.

Conforme Ana María Barrenechea(1985), na escrita fantástica é importante considerar

o marco de referencia histórica e social em que está inserida, pois o autor seleciona, elabora e

manipula informações para guiar o leitor e levá-lo a aceitar um contrato especial de leitura.

Ese marco de referencia le está dado al lector por ciertas áreas de la cultura de su

época y por lo que sabe de las de otros tiempos y espacios que no son los

suyos(contexto extratextual). Pero además sufre una elaboración especial en cada

obra porque el autor_ apoyado también en el marco de referencia específico de las

tradiciones del género_ inventa y combina, creando las reglas que rigen los mundos

imaginarios que propone(contexto intratextual). (BARRENECHEA, 1985, p.45)

2 Cf. Las ficciones fantásticas y sus relaciones con otros tipos ficcionales. In: ROAS, David. Teorías de lo

fantástico. (2001) p.193-221.

Page 21: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

20

Seguindo a teoria de que a literatura fantástica depende também dos códigos culturais,

normal ou anormal estão diretamente ligados aquilo que é socialmente aceito, portanto não se

deve perder de vista que as crenças de uma sociedade não são homogêneas. Ainda que

organize um mundo distante no tempo e no espaço, o texto sempre é lido em contraste com o

tempo e o lugar da leitura. Como exemplo, podemos recorrer à interpretação da lenda cristã.

Tais relatos são considerados ficção somente para aqueles que não fazem parte do universo

religioso. Outro apontamento difere o conto de fadas da lenda porque desde o início é distante

do cotidiano e familiar. Os modos de começar os contos de fadas sugerem que as histórias

ocorreram em qualquer lugar concreto, um tempo que é todos os tempos e por intermédio de

expressões como “era uma vez”, “em um lugar distante” e “há muito tempo”, o narrador

renuncia à pretensão fática. O final feliz satisfaz a situação de que as coisas deveriam

acontecer sempre de uma mesma maneira, demanda primordial. Nas ficções fantásticas a

situação é inversa. Os impossíveis se localizam sempre dentro de situações de casualidade que

se apoiam nas ações cotidianas do homem de nossa época e cultura.

Reisz discorda da opinião de Todorov no que concerne ao narrador e justifica

afirmando que o narrador em primeira pessoa não necessariamente faz parte do universo

narrado, pode ser somente instância narrativa e não protagonista. Por isso, a visão ambígua

depende mais do “modo” narrativo que da “voz” narrativa. Não é indiferente que o autor

esteja presente no texto. O fundamental é que se adote ou não o ponto de vista correspondente

ao personagem.

Um dos pontos distintivos do fantástico é o fato de que o acontecimento impossível

esteja representado de maneira que não se possa afirmar se ocorreu ou não. É fundamental

que a ocorrência possível ou efetiva apareça apresentada como transgressora dentro de certas

coordenadas históricas e culturais precisas. Neste sentido é retomanda A metamorfose de

Kafka porque há o questionamento de mundos em duas direções. Por um lado, a realidade

subjacente da conduta dos personagens e a denúncia desse mundo que propõe a revisão das

noções de realidade e normalidade.

Em “¿Un discurso de lo fantástico?” (2001), Roger Bozzeto afirma que todo texto

literário manifesta uma intenção precisa e original e o fantástico infere uma dimensão

específica da relação do homem com o mundo. Assim como o trágico encontra sua forma

apropriada no drama, o lírico na poesia, o gênero fantástico encontra na narração curta, o

conto, sua forma apropriada. Logo, sua intenção específica pode ser descrita como a discussão

do universo da representação.

Page 22: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

21

A proposta do autor é opor o discurso mimético, seus pressupostos e estratégias e o

discurso fantástico e suas especificidades. O primeiro pressuposto da ficção mimética é que

tudo é representável e o segundo, a representação passa a ser análoga, ou seja, a fabricação de

uma metáfora do mundo referencial. Como o objetivo de parecer o mundo concreto,

homogêneo, coerente são dadas muitas informações sobre a solidez do mundo dos

personagens.

Sob a ótica de Nandorfy em La literatura fantástica y la representación de la

realidad, o fantástico parece destinado a construir uma categoria negativa projetada contra

tudo que é normal, natural e objetivo. Sua proposta é dirigir-se aos problemas teóricos

derivados da tendência logocêntrica de excluir experiências da indeterminação da linguagem

tomando como base os estudos de Todorov (1980), Jackson (2001) e Alazraki (2001).

Ao falar de literatura oscilamos entre a noção de realidade, mundo da ação, e

representação, modalidade artística sujeita a convenções. Todorov (1980) ao considerar o

fantástico do ponto de vista estrutural se esquiva das consequências filosóficas sobre a

natureza da realidade. No século XX, a partir de várias disciplinas a separação é entendida

como ordem arbitrariamente imposta. Daí a tese de Jackson (2001) afirmar que o fantástico

não desapareceu, mudou de forma.

“La obra literaria es un producto social y también un espejo que refleja nuestros

deseos inconscientes, y que, en consecuencia, señala la vía de una cura para los

males de la sociedad:<<Desmitificar el proceso de lectura de relatos fantásticos

nos ofrecerá la entusiasmante posibilidad de neutralizar muchos textos que opera

forma inconsciente sobre nosotros.. Ello debería conducir en una última instancia,

una transformación social real.>>” ( Ibid, p.254 )

Nandorfy afirma que os estudos de Todorov (1980) e Jackson (2001) valorizam

critérios estritamente formais e sociais e, por isso, relegam o fantástico à condição de

alteridade negativa da realidade ou da cultura. Para a autora o significado mais preciso do

fantástico “ya sea en un contexto científico o artístico, será pues, „potencial‟; un potencial

susceptible de actualización en la experiencia y en la expresión, en tanto en cuanto no se vea

sometido a la práctica racional de la exclusión.” (NANDORFY , 2001, p. 259)

Em síntese, boa parte da produção literária recente converte em inoperantes as

distinções estruturais e lógicas entre o mimético, o fantástico e o maravilhoso uma vez que

permite que a indeterminação da linguagem entre em jogo. A partir do momento em que o

sujeito descentralizado deixa de ser reprimido e passa a ser desenvolvido nos personagens de

ficção, o fantástico pode ser incluído em novas análises de uma realidade enriquecida pela

diferença.

Page 23: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

22

O texto de Jaime Alazraki, ¿Qué es lo neofantástico?, aponta para novos caminhos

para a literatura fantástica extraindo o critério do medo como fundamental à literatura do

insólito. Teóricos como Lovecraft (apud ALAZRAKI, 2001), reclamam o medo nesse gênero

literário como elemento que o distingue do maravilhoso, já que é o resultado ruptura da ordem

natural e desencadeando o questionamento daquilo que se crê como produto da imaginação.

Na atualidade, há controvérsias quanto a essa opinião. Baseado em A metamorfose,

Todorov (1980) sinaliza que no século XIX a literatura fantástica perde a função de

manifestar temas tabus, partindo da premissa de que a psique humana sofreu mudanças com o

advento da psicanálise, provocando alterações na censura social. O texto de Kafka é exemplar

porque rompe o paradigma da literatura fantástica tradicional, pois parte do sobrenatural para

o natural. Sem explicação, o protagonista Gregor Samsa é transformado em inseto e, diante da

transformação, não ocorre nenhuma vacilação nem assombro dele ou de sua família.

No universo do texto kafkiano o fantástico deixa de ser exceção e passa a ser uma

regra de funcionamento. Do mesmo modo, autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar

tem uma nova maneira de cultivar o gênero fantástico; Alazraki (2001) os define como

neofantástico e acrescenta:

“Una perplejidad o inquietud sí, por lo insólito de las situaciones narradas, pero su

intención es muy otra. Son, en mayor parte, metáforas que buscan expresar atisbos,

entre visiones o intersticios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la

comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a

contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diario.”

(ALAZRAKI, 2001, p.277)

A literatura fantástica contemporânea se inserta na visão pós-moderna da realidade na

qual o mundo é indecifrável. Através de mecanismos diferentes, a literatura fantástica

tradicional ou contemporânea indica mudanças de uma sociedade.

1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO

O gênero fantástico se contrapõe à realidade na medida em que utiliza o sobrenatural,

induzindo a vacilação do leitor. Neste gênero, nos interessa tratar sobre o duplo, ou

doppelgänger, artifício frequente na narrativa contemporânea. A essa pesquisa interessa

averiguar a relação existente entre o duplo, a autoficção e a Espanha atual. Para tanto,

observamos o duplo como estratégia por intermédio da qual se realiza a autoficção no conto

fantástico La verdad de Agamenón (2006), de Javier Cercas.

Page 24: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

23

A preservação da identidade é uma das grandes questões do indivíduo moderno, que

parte de suas idiossincrasias para identificar-se com um determinado grupo concreto de

pessoas ou ainda para diferenciar-se da coletividade. A literatura, a partir de uma reflexão

romântica, nos convida a indagar sobre quem somos, reconstruindo a realidade habitual a

partir da imaginação. O motivo do duplo, que de modo bastante genérico pode ser definido

como cópia idêntica ou desdobramento do ser, é fruto dessa indagação. Suas manifestações

podem ser representadas por intermédio das máscaras que o homem utiliza para representar

papéis sociais em diferentes contextos, reflexos especulares, sombras, irmãos gêmeos. Essa

polissemia da imagem adquire, em cada obra, sentidos diferentes. As inquietações causadas

pelo duplo vão além do estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias

da fragmentação do sujeito, revelando que fragilidade, temores e frustrações fazem parte de

todo ser humano.

Os textos canônicos nos quais figura o duplo datam em sua maioria do século XIX.

Citamos o célebre William Wilson (1839) de Edgar Allan Poe, que narra a história de um

jovem que conhece um indivíduo que, exceto pela voz, se assemelha a ele em tudo. Tal

indivíduo o acompanha em todos os lugares e, na medida em que se corrompe, o protagonista

passa a entender seu duplo como um perseguidor.

Muitas análises da literatura fantástica privilegiam a perspectiva psicanalítica,

marginalizando o componente fantástico e reduzindo-o a casos clínicos. Entretanto, é

importante não perder de vista o valor estético. Para estudar o motivo do duplo, é necessário

levar em consideração por um lado, suas raízes míticas e antropológicas, que interpretavam a

alma humana, as sombras, reflexos e as lendas. Por outro, a sua fundação literária, originada

na insatisfação dos postulados da Ilustração, que homogeneizava o homem, suprimindo a

liberdade de criação artística. Para a literatura da época o motivo obriga o homem a se dar

conta de uma faceta irracional e colocando em xeque a confiança na razão.

Através do estudo do doppelgänger, percebemos a mudança das noções de sujeito na

passagem da modernidade para a pós-modernidade. Uma das razões fundamentais para

proceder a uma investigação sobre o motivo idôneo é a reescritura de uma tradição e do jogo

referencial que elucida a recorrência questão da crise da identidade na modernidade. Desde a

antiguidade, o medo da duplicação assola a humanidade e permanece frutífero e ainda hoje

com o avanço da tecnologia em vários setores e a possibilidade de clonagem.

É necessário estabelecer um termo diáfano e coerente para explicar o doppelgänger.

Segundo o estudo de Rebeca Martín-López (2006), a dificuldade da crítica literária de

identificá-lo como tema ou motivo do fantástico advém das tradições alemãs e anglo-

Page 25: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

24

saxônicas. Em resumo, se distingue tema como matéria em torno da qual se desenvolve um

argumento ou uma fábula com o protagonismo de um personagem e o motivo como

elementos históricos que conservam sua unidade em diferentes obras.

O duplo costuma aparecer com efeitos concretos como o encontro com o original, a

usurpação da identidade no âmbito público e privado e a dúvida sobre a própria identidade.

Martín-López (2006) opta pelo termo motivo porque goza de uma forma concreta,

paralelismos e interações que remetem o leitor a elaborações. A autora justifica sua escolha:

“El doble adquiere dicha calidad cuando se erige en el eje central que estructura la

narración, tal y como sucede por citar dos obras paradigmáticas en Willian Wilson

(1839) y El Doble (1846). Tanto para Poe como para Dostoievski sirven del motivo

para plantear temas universales que trascienden los límites del texto” (MARTÍN-

LÓPEZ, op. cit, p. 15).

Conforme Martín-López, embora sejam variadas as designações para definir o duplo,

que vão desde alter ego e sósia, a partir das comédias de Plauto ou o outro ou segundo eu

para aproximar-nos a Borges, o termo essencialmente romântico doppelgänger foi cunhado

por Jean Paul Friedrich Richter(1796), no romance “Sieblenkais”. É difícil ter uma definição

do duplo a partir de seus estudos críticos. O motivo se insere na linha de questionamentos

entre as noções de identidade e unidade do sujeito. Nestes termos, configura-se como um

mecanismo de linguagem e literário para veicular e dar uma forma coerente à digressão de tais

noções.

Ocupamo-nos de doppelgänger como personagem nascido no romantismo porque

ainda que suas origens reportem às comédias de Plauto, é no século XVIII que ele é adotado

como ponto de reflexão que condensa velhas tradições para tornar-se modelo canônico que irá

influenciar formulações posteriores. A proposta de estudo de Martín-Lopéz (2006) surge

principalmente das fontes de textos literários fundacionais como o de Jean Paul (1796) e a

crítica de disciplinas como a antropologia e psicanálise. Suas análises destacam, por exemplo,

o tratamento dado por a E.T.A Hoffmam em Os elixires do diabo (1815) e O Homem de areia

(1817) ; Edgar Allan Poe em William Wilson (1839) e O retrato oval (1842); Theóphile

Gautier em A morte amorosa(1836); El doble de Dostoieviski (1846); Aurelia de Nerval

(1855). A autora resume e analisa os textos esclarecendo sua importância no estudo do

doppelgänger.

O estudo crítico do conto O homem de Areia feito por Sigmund Freud deu origem ao

ensaio O estranho (1919). O primeiro, narra a história do estudante alemão Natanael desde

suas primeiras experiências infantis, passando pelos tormentos da vida de estudante até a

Page 26: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

25

trágica morte quando cai da torre. Para Freud, o texto é caracterizado como estranho, pois

suscita no leitor o efeito de incerteza intelectual. A análise de Freud nos conta duas histórias

paralelas de um jovem que é levado ao suicídio pelo poder maligno do homem de areia e a

gradual deterioração psíquica de um jovem fixado em seu pai pelo complexo de castração.

Ambas histórias estão relacionadas entre si pelo caráter ambíguo entre aquilo que é latente e o

que é manifesto à consciência e desse modo, O homem de areia (1817) é resultado do

complexo de castração. Neste são trabalhados temas dos olhos e da perspectiva de visão, a

cisão do eu e a formação do duplo/ sósia, das presenças e coincidências sobrenaturais.

Em As aventuras da noite de São Silvestre podem ser destacados os procedimentos

narrativos das transformações ou metamorfoses interiores e exteriores dos personagens, o

contínuo jogo de espelhos entre aparência e realidade, constante debate sobre a identidade dos

personagens. É refinada a elaboração dos temas relativos ao duplo como personagens que se

refletem em outros personagens, personagens duplicados e outros que se transformam na

própria sombra ou imagem.

A chegada dos contos de Edgar Allan Poe, radicados na sensibilidade gótica,

promoveram uma grande mudança nos gostos literários e introduziu novas formas no

fantástico. Dividido em duas partes, O retrato oval (1842) tem como tema central a relação

entre a vida e a morte, permeada pela relação entre a vida e arte. Na primeira parte o

protagonista narra ter passado uma noite em um castelo de aparência gótica e adornado com

muitos quadros e no qual havia um livro que continha a explicação de cada um. Um quadro

oval de uma jovem senhora exerceu sobre ele um efeito especial, pois parecia ter vida. Na

segunda parte, o anônimo narrador do conto relata a história da mocinha casada com um

pintor. Na medida em que era pintada na tela, perdia vitalidade até a morte declarada com o

término da pintura. O relato do livro coloca em crise a explicação fácil e sinaliza para o tema

da arte que se nutre da vida.

Em a Morte amorosa(1836), o protagonista-narrador é um homem convicto e

fervoroso em suas crenças religiosas que se refere à história de um monge, apresentando o

relato como advertência. O tema central é o duplo que joga com a relação de uma

personalidade diurna e outra noturna de Romualdo, pároco que no momento de fazer os votos

vê pela primeira vez Clarimunda, uma vampira e belíssima cortesã. Durante o dia leva a vida

normal de um padre e à noite, em seus sonhos, torna-se amante de Clarimunda.

Há três variantes classificatórias que tentam dar conta da riqueza do motivo do duplo

segundo Rebeca Martín-López. A primeira variante prega que os dos indivíduos coexistem

em diferentes dimensões espaço-temporais que acabam por fundir-se como nos contos As

Page 27: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

26

montanhas escabrosas (1844), de Poe, A esquina Alegre (1908) de Henry James, Lejana

(1951) de Cortázar e El outro (1975) de Borges. A segunda, dois indivíduos homomórficos

coexistem na mesma dimensão, modelo seguido por Hoffman em Os Elixires do diabo

(1815). Já a última variante atesta que o indivíduo que assiste ao seu próprio funeral e

contempla a si mesmo morto. De acordo com o estudo de Rebeca Martín-López (2006) essa

variante é parte do acervo espanhol.

O estudo menciona as diferenças entre o duplo subjetivo e o objetivo, bastante útil na

descrição literária. O subjetivo apresenta as formas interna e externa. A personalidade

múltipla ou possessão são de ordem interna enquanto a externa é representada na forma física.

É importante relembrar que o duplo interno, em muitos casos é analisado como crítica

psicanalítica. Martín-López(2006) entende que o romance O estranho caso do Dr. Jekyll e

Mr. Hyde(1886) é um caso particular no estudo do duplo, pois nele é possível apontar a

carência de duplicação e presença sincrônica que mais se assemelham ao transtorno

psicológico que ao motivo literário.

O estudo de Todorov (1980), por exemplo, marca essa tendência destacando que no

século XIX, a literatura fantástica perde sua função porque os temas tabus por ela explorados

passam a ser explicados pela psicanálise. O duplo objetivo é quando o protagonista

testemunha uma duplicação alheia como em “O homem de Areia”(1817). Tal tipo de

duplicação é muito peculiar quando se pensa na reificação da mulher amada como em

retratos, estátuas .

As raízes antropológicas do duplo são muito anteriores a sua constituição como

motivo literário, pois remetem à mitologia e ao folclore universais como mito dos gêmeos e o

simbolismo que existe entorno da alma e suas representações como sombra, espelho e estátua.

Em ambas está associada a ideia do homem como ser binário. Devemos acrescentar as origens

míticas e lendária que dão fundamentos ao imaginário popular, o mito de Narciso, pares

independentes como D. Quixote e Sancho Panza e a tradição teatral. Segundo Rank (1914) e

Freud (1919), o instinto de conservação é a razão das origens ancestrais do duplo

antropológico.

O idealismo subjetivo e suas posteriores reinterpretações são uma manifestação da

consciência de cisão e duplicidade que caracterizam o motivo romântico. No século XIX , a

atração pelo doppelgänger não surge apenas das inquietações estéticas mais também de suas

obsessões e medos, objetivados pela ameaça de alienação e perda de vontade e no marco da

inquietação filosófica e científica centrada na psique humana que formou parte do acervo

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27

literário daquele período 3 . Na Espanha o desenvolvimento da literatura fantástica e,

consequentemente, do duplo estão diretamente ligados ao desenvolvimento em suas

fronteiras.

O conto La verdad de Agamenón é também uma forma de demonstrar a dificuldade de

conciliar a vida social e a dedicação literária. Cercas utiliza o duplo para refletir sobre o

posicionamento do escritor frente sua obra e a vida cotidiana. Doppelgänger se faz presente

para substituir o protagonista, incapaz de sustentar a fachada de artista que construiu. Em “La

verdad de Agamenon”(2006), Cercas busca fugir de uma vida que o aborrece e desfrutar da

clandestinidade. A indiferença inicial do narrador se transforma em raiva quando percebe que

o duplo possui talento e uma capacidade de trabalho superiores às suas.

1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES

As distinções entre o doppelgänger e outros seres sobrenaturais está em sua própria

essência, pois é o aspecto físico que lhe dá sentido. A crítica psicanalítica extingue os

aspectos estéticos do duplo, entretanto, os estudos de Otto Rank e Sigmund Freud

transcendem as estreitas barreiras da psicocrítica e até hoje, oferecem importantes dados à

investigação literária. Otto Rank (1914) foi pioneiro no estudo do duplo no contexto literário,

pois sua perspectiva antropológica e histórica continuam a oferecer indispensáveis recursos

para chegar a gênese do doppelgänger. O estudo de Freud (1919) também tem importantes

reflexões sobre obras capitais na história do sobre a literatura fantástica e do duplo.

Em 1914, Otto Rank em seu estudo Don Juan et le doublé estabelece a ligação entre o

eu e a morte. Já para Freud em O estranho (1919) , contraria a pulsão de morte, sendo o

narcisismo primário. O duplo funciona nessa relação como uma potência que visa contrariar a

consciência da efemeridade e finitude do eu. O relato fantástico provoca o medo físico e o

medo intelectual. O medo metafísico define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo

doppelgänger e o temor da perda da identidade será desenvolvido na narrativa através da

descrição das sensações, pensamentos e atitudes do protagonista.

O duplo se insere no estudo dos temas do eu, caracterizados pela realização dos

desejos entre o homem e o mundo. Na autoficção de Javier Cercas (2006), a trama do gênero

fantástico é tecida em torno da relação desenvolvida entre o narrador e seu duplo. O conto

narra a história de um escritor insatisfeito tanto no campo profissional como no pessoal. Essa

figura, conforme Todorov (1980), cumpre duas funções. Na primeira, é signo de perigo e

3 Cf. Martín-López,2006, p. 150

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28

morte, resultado do isolamento com o mundo concreto. Descrito como o mundo no qual está

inserido, o narrador-personagem, que precisa corresponder às exigências manter-se no sistema

com novos romances e entrevistas; na segunda, a possibilidade de recuperar o contato estreito

com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem do mesmo sistema.

A palavra alemã Heimlich analisada linguisticamente no estudo de Freud (1919)

significa, simultaneamente, aquilo que é familiar e agradável e o que está oculto e se mantém

fora da vista. Assim, a natureza estranha do duplo está radicada na transformação daquilo que

é familiar, o corpo do indivíduo, naquilo que é incompreensível, a presença sinistra da

duplicação. Refletindo a ambivalência de sentimentos provocada pela presença do

doppelgänger, sua concepção como produto da cisão entre o familiar e o estranho, ou seja, o

consciente do inconsciente está ligada a aplicação literária do conhecimento de si mesmo e as

consequências desse ato. Utilizam-se diferentes máscaras a depender da situação e a

identidade é construída em contextos determinados. O aparecimento do duplo obriga o

indivíduo a observar-se, revelando aspectos desprezíveis de sua personalidade como em

Willian Wilson (1839).

1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO

No período de esplendor do romantismo, o protagonista da literatura sobre o duplo é

antagônico ao herói clássico, hipersensível e incapaz de discernir o real do imaginário. No

textos de Hoffman, Nataniel, de O homem de Areia; Medardo, de Elixires do diabo e em

menor grau Willian Wilson de Edgar Allan Poe são exemplos de anti-herói, personagem

introspectivo e de imaginação exacerbada torna-se característico da literatura fantástica.

Se considerarmos que o indivíduo modela sua identidade em função do seu entorno, a

presença do duplo modifica o vínculo com tudo aquilo que o rodeia. É dessa forma que o

duplo mostra sua face sombria, pois começa por apropriar-se da vida privada até suplantar a

existência pública do original. Por isso, do ponto de vista narrativo, predomina o relato

homodiegético e, quanto ao caráter subjetivo da experiência do desdobramento, parece mais

oportuno partir da perspectiva do eu.

O gênero fantástico se apoia na estética realista para conseguir o efeito verossímil,

pois seus ambientes são construídos com técnicas realistas. Doppelgänger demonstra que o

desconhecido não surge somente do cenário de aparência gótica, mas também da natureza

humana. A literatura fantástica nos coloca em contato com cenas insólitas para nos

surpreender e fazer com que dessa surpresa seja desencadeada uma reflexão sobre o real.

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29

Jean Baudrillard (1991) afirma que o duplo é uma figura imaginaria que como a alma,

a sombra, a imagem no espelho, persegue o sujeito como o seu outro, fazendo com que faz

com que seja ao mesmo tempo ele próprio e nunca o mesmo. Conforme seu raciocínio, a

riqueza e poder do duplo encontram maior ressonância na sua imaterialidade, ser e

permanecer um fantasma. Isso equivale ao jogo de estranheza e intimidade do sujeito consigo

mesmo, ou seja, aquilo que lhe é natural e aquilo que lhe causa inquietação.

As manifestações do duplo estão ligadas ao gênero fantástico não apenas pelos

mecanismos de repetição do semelhante e acúmulo de coincidências, mas também pela função

subversiva de desmascaramento moral e social aos quais o protagonista é submetido com o

aparecimento da figura fantástica. É próprio do nosso tempo querer exorcizar este e outros

fantasmas e para tanto, é necessário torná-lo material, dar-lhe um corpo de carne e osso. Essa

necessidade é um contrassenso porque significa mudar a lógica do duplo que equivale a

trocar a morte do outro pela eternidade do mesmo. Umas das interpretações que cercam

doppelgänger é o pressagio de morte iminente do original ou real. Ao contrário, na escrita de

Cercas(2006) é o elemento fantástico o eliminado.

Em La verdad de Agamenón (2006) , as inquietações causadas pelo duplo vão além do

estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias da fragmentação do

sujeito no mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor. Tal elemento,

testemunha a insuficiência do ser. Utilizando a forma de diálogo, a inserção de dados e locais

reais como Los Manueles y El diván de Tamarit na região de Granada, o narrador envolve o

leitor na atmosfera do fantástico e cria um terreno propício para seu desenvolvimento.

Conforme Felipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa, a linguagem cotidiana,

o detalhamento das circunstâncias e a ideias de testemunho são estratégias adotadas para

estabelecer o pacto de leitura. O autor afirma que documentos, referências factuais e

testemunhos são recursos à autoridade daquele que escreve, são processos que buscam

adequar os dados insólitos à realidade objetiva, contribuindo para contaminar e cooptar o

leitor.

O nome permite que o protagonista seja crítico de sua própria obra, demonstrando o

caráter metanarrativo do texto. O protagonista Javier Cercas sempre desejou a fama e o

privilegio de ser consagrado como escritor e quando consegue abandona a pulsão de escrever.

Neste sentido, o elemento fantástico vem solucionar problemas de ambas as esferas nas quais

está inserido: a primeira que precisa corresponder às exigências de manter-se no sistema

literário e mercantil com novos romances e entrevistas; na segunda, a possibilidade de

Page 31: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

30

recuperar o contato estreito com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem

do mesmo sistema e cumprindo a função de reconciliação com o ambiente familiar.

O primeiro nível da usurpação tradicional promovida pelo elemento fantástico é a

existência na vida privada. Enquanto o narrador Javier Cercas, protagonista, inicia o convívio

com a família do duplo e assume suas responsabilidades profissionais como zelador na

universidade, paralelamente, o outro reconquista sua esposa e filho, anulando sua existência

privada. O medo metafísico que define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo

doppelgänger é a identidade do sujeito. Além do nome, o traço que os unirá definitivamente

será a literatura. A identidade do narrador-personagem é totalmente assumida pelo duplo com

a publicação do romance La velocidad de la luz (2005)4, corresponde à invasão do último

espaço protegido, a vida pública.

Segundo a opinião de Felipe Furtado (1980), a hesitação construída pelo fenômeno

encenado é fruto do discurso verossímil que é construído e desconstruído, sucessivamente, e é

este efeito que é responsável pela percepção do leitor. Doppelgänger, no conto simbolizando

a impostura do narrador, é portador de aniquilação e morte. O desaparecimento progressivo

do narrador-personagem é resultado da incapacidade de assumir seu fracasso como escritor.

Em forma de um diálogo entre o protagonista e um interlocutor cuja identidade não é

revelada, o conto é construído com riqueza de detalhes e com um desenlace muito breve,

como convém não somente à narrativa de cunho fantástico como também ao romance policial.

Todorov (1980) afirma que, embora o romance policial com enigmas se relacione com o

fantástico, é ao mesmo tempo, seu oposto. Nos textos fantásticos, inclinamo-nos à explicação

sobrenatural, enquanto no romance policial, uma vez concluída, a explicação não deixa

dúvida alguma quanto à ausência de acontecimentos sobrenaturais.

Incapaz de manter a fachada de artista, o narrador abandona sua ambição literária e

muda de vida como doppelgänger para fugir do aborrecimento, desfrutando da

clandestinidade. A indiferença do escritor é transformada em raiva na medida em que constata

que o duplo tem capacidade laboral superior e talento para desempenhar bem seu papel social:

“Me llamo Javier Cercas, igual que tú. Te escribo para que sepas de mi existencia;

yo sé de la tuya desde hace tiempo. Soy aficionado a la literatura, y cuando

apareció tu primera novela la compré y la leí. Me gusto. Luego leí la segunda y me

gustó menos, igual que la siguiente. (...) Perdona que te hable con tanta franqueza,

pero supongo que el hecho de llamarme como tú me da el derecho a hacerlo, ¿no te

parece?(...) pero tenemos muchas afinidades, sobre todo literárias”. (CERCAS,

2006, p.270)

4 A edição original data de 2005. Utilizamos CERCAS, Javier. A velocidade da luz; tradução: Antonio Fernando

Borges. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

Page 32: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À

AUTOFICÇÃO

Dentre as diversas formas de representação biográfica, nos interessa pensar de que

modo os homens representam suas vidas na contemporaneidade utilizando a linguagem, em

outras palavras, os modelos de construção do percurso vital com os quais criamos nossas

histórias pessoais. O ato de narrar envolve a elaboração de uma figura interior e outra exterior,

que não deve ser confundida com facticidade das experiências. No estudo Filiações e

rupturas do modelo autobiográfico na pós-modernidade, Delory-Momberger parte de dois

pressupostos para explicar os modelos que impregnam as construções biográficas bem como o

processo que desencadeou a sua transformação.

O primeiro pressuposto é que os homens não têm uma relação direta com o vivido,

eles o apreendem a partir de esquemas e figuras que tomam a forma de narrativas. As formas

às quais os indivíduos recorrem para biografar suas experiências são de dimensão histórica,

cultural e social. O segundo pressuposto é que os modelos biográficos variam de acordo com

os tipos e os modos de relação que os indivíduos mantêm com a coletividade segundo as

épocas e as culturas. No desenrolar de seu argumento, a autora toma como exemplo a

clivagem histórica que marca a passagem do período pré-moderno para o moderno, que

permite fazer a distinção entre o modelo de construção heterônomo e autônomo.

A teoria está baseada nas diferenças entre a Idade Média e Renascimento. O homem

medieval, exemplo do modelo heterônomo, busca seu principio de construção nos moldes de

tipos históricos e funcionalidades sociais conforme os parâmetros das sociedades feudais. O

processo que o torna um indivíduo, sua identificação, busca aproxima-se o máximo possível

de figuras típicas como o santo, o cavaleiro e o rei. Ao contrário, desde o principio da época

moderna, que se inicia com o Renascimento, a tendência do indivíduo é buscar em sua própria

experiência recursos para sua individualização.

Delory-Momberger afirma que as narrativas ou romances de formação são

exemplares ao demonstrar as etapas de desenvolvimento da individualidade e aprendizagem,

que através das experiências, corroboram o principio dinâmico do desenvolvimento pessoal.

De acordo com esse princípio, o romance de formação, herança da noção alemã de Bildung, é

o padrão biográfico da modernidade, ao mesmo tempo familiar e distante para o público não

germânico. Familiar porque é a base que inspira a prática narrativa desde o século XVIII e

distante por guardar em sua forma pressupostos históricos e filosóficos do contexto alemão.

Page 33: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

32

Bildungsroman 5, o modelo germânico de narrativa, é formado pelo relato do processo

de formação de um ser humano, desde a situação primaria de inocência e inexperiência até a

maturidade, fase na qual consegue viver em harmonia consigo e com o ambiente ao qual

pertence, contexto europeu do final do século XVIII. A Europa, nesta fase evolutiva do

modelo biográfico, é marcada pelo aumento do poder da burguesia nas esferas política,

econômica e cultural. O princípio que rege o indivíduo impulsionado pela sociedade burguesa

liberal é a de um ser autônomo e responsável, que integra as noções de concorrência, luta pela

vida e busca alternativas. Tais características estão baseadas na relação de transformação do

mundo pelo capital. Esse modelo de projeção propagado pelo capitalismo será a base da

representação e das práticas biográficas modernas.

Daí se justifica o pensamento de Biuldung, entendido como o processo de formação

com a finalidade de desempenho de atividade produtiva na sociedade, ser o modelo que

impregna as práticas biográficas contemporâneas. A partir da retrospectiva, a relação dialogal

estabelecida entre situação final de adequação e harmonia e a inicial de inexperiência, a

relação de causa e efeito dá sentido de orientação e significação à didática do movimento de

aprendizagem. Na era moderna, a narrativa de formação corresponde a um estágio sócio-

histórico da relação entre o indivíduo e a sociedade, gerando o sentimento de identificação

pessoal atrelado ao percurso profissional.

Até os anos 70 do século XX, as narrativas biográficas apresentavam um padrão com

estrutura linear, contínua e orientada na qual a atividade profissional tinha a função de

integração e organização. Esta fase responde à concepção de que o indivíduo tem um lugar na

sociedade e que deve encontrá-lo através da experiência. No período posterior, denominado

pós-modernidade, as sociedades ocidentais iniciaram o processo de transformação que alterou

profundamente suas estruturas. O percurso biográfico e as atividades sociais são conduzidos

por relações temporárias e reversíveis de inserção em subsistemas como os de classe social e

gênero, que reduziu a capacidade de organizar uma narrativa de vida unificada.

A mudança da heteronímia para a autonomia, assim como a passagem do moderno ao

pós-moderno, trazem consequências como a perda de parâmetros e hierarquia. O compêndio

dessas transformações, unidos às descontinuidades dos percursos pessoais e profissionais

contribuem para a diversidade de tipos biográficos na atualidade. Surgem novos e variados

tipos de narrativa de representação biográfica às quais recorre o homem pós- moderno. Uma

5 Bildungsroman é a forma especificamente alemã do romance de educação, ideia de formação através da

vivencia. Podemos citar como um dos mais célebres exemplos a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm

Meister(1796), de Johann Wolfgang Von Goethe.

Page 34: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

33

vez que são indissociáveis as experiências pessoais e as contribuições do meio social do qual

somos portadores, a consciência reflexiva do indivíduo pós-moderno é resultado dessa tensão

que resulta na construção da imagem de si e seu lugar na sociedade, a construção de figuras e

valores desse mesmo mundo.

Sob a denominação de escritas do eu, diferentes tipos de textos como confissões,

memórias, cartas e autobiografias são exemplos de narrativa biográfica que, além de

socializar a experiência individual, refletem a necessidade tornar explícita a complexidade

que envolve a criação da imagem que o sujeito tem de si e do seu entorno. Dessa forma, a

autoficção se torna um meio para realizar o desejo de narrar experiências vividas, conflitos e

inquietações sem ônus autobiográfico. Em La verdad de Agamenón(2006), o autor Javier

Cercas faz o jogo de esconder e mostrar, questionando a figura do escritor e a posição do

mesmo na produção cultural na pós- modernidade.

2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE

Em termos literários, a passagem da época moderna à pós-moderna significou a busca

de novas formas literárias que demonstrassem as novas configurações sociais e culturais. As

relações entre o homem e o mundo, a natureza crítica da ficção e os elementos a ela

vinculados se converteram em solo fértil para narrativas que mesclam realidade e ficção na

construção de novas subjetividades. A autoficção constitui uma estratégia literária capaz de

sugerir a identificação irônica do autor com o narrador, transgredir a autobiografia e a

referencialidade do nome próprio, uma vez que imita e subverte o pacto autobiográfico

proposto por Philippe Lejeune (1975). Por se tratar de uma estratégia relativamente recente,

os teóricos discutem ainda se a autoficção seria um gênero autônomo ou uma categoria em

formação.

Independente da concepção adotada, é importante ressaltar que proposta autoficcional

reforça a ideia da fragilidade identitária e a produtividade da confusão

autor/narrador/protagonista. Seu centro de discussão é a confusão entre a pessoa real e o

personagem escritor, a figura pública. A autoficção induz a reflexão sobre os limites entre o

referente e sua representação literária, em outras palavras, ficção e realidade.

Antes de iniciar o estudo da autoficção é necessário revisar e compreender os alguns

dos problemas teóricos acerca da autobiografia, gênero com o qual compartilha

procedimentos. O debate sobre o ato autobiográfico está orientado em diversas direções

porque são muitos os problemas teóricos que o tema confronta tais como a referencialidade, o

Page 35: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

34

estabelecimento do pacto entre autor e leitor, recuperação do passado e a estruturação do eu.

Todos esses estudos buscam apoio em ciências como a história, antropologia, psicologia e

filosofia para desenvolver sua argumentação e garantir sua validade. Por isso, convém

comentar brevemente as principais propostas que tentam responder às indagações acerca

desse tipo de escrita e que consideramos pertinentes a nossa análise. Em seguida, vamos

observar a teoria de Lejeune por ser aquela o ambiente propício para o desenvolvimento da

autoficção.

O primeiro grande modelo de obra autobiográfica surge na Idade Média, século IV,

com a obra Confissões (AD 397 ou AD 398) de Santo Agostinho. Embora teóricos não

tenham chegado a um consenso sobre o objetivo do escrito ou a existência de um elemento

unificador, é possível perceber diversos temas conectados entre si através de toda a obra. A

finalidade original poderia ser descrever a conversão de Agostinho do maniqueísmo ao

cristianismo católico. Outra teoria aponta para a possibilidade da obra ser a breve história das

origens do monacato africano. Entretanto, há aqueles que defendam com a razão o

reconhecimento da atuação da graça divinal na salvação alma humana e, com isso, a

utilização de episódio da própria vida para ilustrar a postura teológica.6

Confissões é amplamente estudada por destacar as complexas relações entre o

indivíduo e a sociedade, demasiado problemática ainda hoje, mesmo que o interesse se

estenda somente ao reconhecimento de sua vida ilustre em uma antropologia teológica que

não oferece a um leitor mais curioso informações biográficas bastante relevantes. Adquire

simbolismo porque seu conteúdo expõe a eterna disputa entre a vida terrena e a

espiritualizada, a constituição interior do ser humano e a constituição externa da sociedade.

Ainda que não proporcione uma autobiografia na acepção contemporânea da palavra, Santo

Agostinho contempla pontos fundamentais que serviram de base para o desenvolvimento da

autobiografia como gênero literário.

Antes de comentar as teorias sobre a autobiografia vamos tentar localizá-las dentro de

uma linha evolutiva que compõe a palavra. O empenho em estabelecer traços constitutivos da

autobiografia faz com que muitos autores se dediquem ao seu estudo. Assim, seus pontos de

vista e, consequentemente, suas conclusões são diferentes quanto aos problemas levantados

pelo gênero. No ensaio Problemas teóricos de la autobiografia, como aponta a postura crítica

de Loureiro (1991), são variados os recursos aos quais recorrem os teóricos para justificar a

6 Cf. STREFLING, Sergio Ricardo. A atualidade das Confissões de Santo Agostinho. In: Telecomunicação,

Porto Alegre, v37, nº 156, págs 259-272, junho de 2007. Disponível em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/fefid/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2707/2058. Acesso:17/01/2011.

Page 36: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

35

capacidade cognitiva da autobiografia. Como apoio para sua argumentação W. Dilthey recorre

a História; Georges Gusdorf, Antropologia; Phillipe Lejeune, ao Direito, Elizabeth Bruss se

fortalece nas Teorias da Linguagem e Paul Eakin se baseia na Psicologia para estabelecer

diálogos entre as ciências, a fim de explicar as articulações do sujeito como o mundo, a

referencialidade, a constituição do sujeito, a expressividade e etc.

No ensaio citado, Loureiro segue uma linha da investigação e comenta os críticos e as

teorias das três etapas que correspondem à formação do vocábulo autobiografia: autos, bios e

grafé. A primeira etapa contemplada é bios que diz respeito a reconstrução da biografia e

releitura da experiência, não apenas considerando os dados, mas na interpretação do entorno

no qual está inserido o autobiografado. O foco está na relação entre texto e história. A etapa

seguinte, autos, está centrada na conexão entre o texto e o sujeito, logo a questão fundamental

será entender de que maneira o sujeito é representado pelo texto e se essa representação é

realmente possível. Nesta fase, o estudo da autobiografia prioriza elaboração que o autor faz

dos fatos no momento em que escreve. A etapa grafé observa a linguagem e o sujeito,

reforçando a ideia de que é impossível captar a totalidade do ser.

Loureiro menciona W. Dilthey como responsável pela inauguração da etapa bios, pois

seu postulado elevou a autobiografia como base fundamental para compreender o processo

histórico de organização da experiência e modos de interpretação da realidade histórica. No

entanto, há tendências díspares no entendimento e interpretação dos problemas suscitados

pela autobiografia. No início dos estudos acerca do gênero autobiográfico, a ênfase foi a

reconstrução da vida e devido a isso as leituras e interpretações das obras autobiográficas

eram realizadas de modo comparativo. Exatidão e sinceridade foram palavras-chave para

investigar em fontes externas ao texto autobiográfico e em que medida ele era uma

representação do momento histórico.

Buscava-se encontrar a interseção entre aquilo que era narrado e os elementos

externos ao texto, ou seja, comprováveis fora do texto. O objetivo era compreender e

reconstruir um dado momento histórico, perceber e conhecer, através do texto, os valores e as

condições sociais de desenvolvimento do homem.

Em 1956, Georges Gusdorf desloca a base da discussão e a autobiografia passa a ser

entendida como uma leitura da experiência. Uma vez que, se não é possível reconstruir o

passado tal qual ocorreu, tampouco há a possibilidade de alcançar objetividade. O estudioso

observa que ao eu que vivencia a experiência é acrescentado um segundo eu criado pela

experiência da escrita e conclui que o mote da autobiografia deve ser: “Crear, y al crear ser

creado.” (GUSDORF apud LOUREIRO,1991,p.3)

Page 37: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

36

Na linha evolutiva do estudo da autobiografia, autos não prioriza o fato passado, mas

elaboração do autor no momento da escrita. A linguagem é mediadora entre autor, texto e

leitor e esse fator nos leva a tentar entender em que medida ela serve não só como instrumento

para o sujeito, mas também como parte fundamental para sua construção. A memória

funciona como elemento fundamental no diálogo entre passado e presente na atribuição de

sentido.

Na etapa bios, há rupturas nas estruturas que tem o texto como história e o autor como

proprietário e portador de uma visão privilegiada. O leitor passa a ser um intérprete e não

receptáculo. Neste ínterim, surgem os trabalhos de Phillipe Lejeune e Elizabeth Bruss que

valorizam a atuação do leitor e que versam sobre a necessidade de dar uma definição e reunir

características gerais do gênero. Ambos insistem na coincidência nominal entre autor,

narrador e personagem essencial e peculiar na identificação da autobiografia. Também no

decorrer desta etapa, Olney chama atenção para autocriação do autobiógrafo no momento

também destacando a necessidade da participação do leitor.

A etapa grafé trata dois problemas: a linguagem e o sujeito. De um lado, linguagem

cria uma relação paradoxal, pois é através dela que o homem transmite sua experiência e, ao

mesmo tempo, o torna consciente de que a palavra não capta a totalidade do ser. Outra

questão é o desdobramento do eu, como narrador e objeto narrado. Dessa forma, o texto

autobiográfico, ao invés de reproduzir ou criar uma vida, na realidade, leva à desapropriação.

O texto não responde às indagações do sujeito e cria novas.

Paul de Man é um dos grandes expoentes dessa etapa. Sua teoria sustenta que os

obstáculos clássicos das teorias provêm do equívoco daqueles que consideram a biografia

como produto mimético de um referente. Para o crítico, autobiografia não é um gênero, mas

uma forma de textualidade que possui uma forma do conhecimento e da leitura.

Conforme Georges Gusdorf, autobiografia é um gênero literário que surge como

produto tardio do ocidente a partir do Renascimento. O homem desse período, consciente de

sua individualidade, procura dar conta de si mesmo tendo em mente seus atos e suas

motivações internas. Esta visão entende que o ato autobiográfico é resultado de preocupações

metafísicas e que, por isso, está associado à doutrina cristã de exame da consciência que

defende a confissão e consequente liberação da culpa.

O valor dado ao estudo do autobiográfico assume a perspectiva histórica e

antropológica para o estudioso. Acerca da posição teórica de Gusdorf, Betina Pacheco

acrescenta que , o autobiógrafo recorda sua vida lhe outorga transcendência histórica quando

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37

toma a si mesmo como modelo, medida e valor expostos no texto sem desconhecer as

“implicações psicológicas” (op. cit, p.40).

A busca do ser humano no interior de si remete ao mito de Narciso, que para a

psicanálise é capital na formação da individualidade infantil. No espelho, a criança começa a

esboçar o aspecto essencial da identidade que é separar interior e exterior. “Da mesma forma,

a autobiografia se torna o espelho em que a pessoa reflete sua própria

imagem.”(GUSDORF, 1991, p. 11, tradução nossa) Os valores históricos se antepõem aos

valores literários no sentido de que os primeiros exigem objetividade e os últimos traduzem

um estilo em particular. A interseção entre ambos os valores é o veículo que conduz a busca

de si e é ali que a crítica deve indagar sobre seus significados.

Do ponto de vista literário, a autobiografia pode ser considerada como obra de arte e

edificação do eu, que implica por um lado uma confissão voluntaria de ser fiel à verdade e por

outro, uma autojustificativa. Ao reconstruir e decifrar a unidade de uma vida ao longo do

tempo a memória permite recapitular experiências. A apresentação dos fatos passados é feita

no presente. Isso traz novos significados, diferentes do momento em que aconteceu. Ou seja,

uma “segunda” leitura da experiência. Os obstáculos encontrados pela autobiografia são de

ordem psicológica(a seleção de detalhes e deformação da memória) e ética da imparcialidade.

A constituição do autobiografar deve ser mensurada desde o ponto de vista artístico, por

conseguinte, mais importante que a função histórica e objetiva.

A pertinência da classificação de textos em gêneros literários deve ser, para todos os

efeitos, uma ferramenta para auxiliar no melhor aproveitamento das leituras e facilitar seu

entendimento. O estudo e agrupamento dos textos não pode ser um critério rígido e inflexível

uma vez que a uma mesma estrutura podem ser atribuídas várias formas e funções. No estudo

Actos literários, Elizabeth Bruss leva em consideração a dificuldade da condição da

autobiografia devido à multiplicidade de formas nas execuções individuais e a reconhece

como gênero representativo tanto em continuidade como em ruptura. As perspectivas de

continuidade e ruptura são observáveis na história literária com a queda no uso da epístola e

da apologia como gêneros independentes. Ambas foram assimiladas pela autobiografia. Da

mesma forma, o realismo do romance burguês despojou da autobiografia o uso da primeira

pessoa como perspectiva de enunciação.

Bruss considera que o ato autobiográfico está condicionado pelas escolhas do autor e

do leitor quanto ao estilo, ao tema e às funções do texto. Reunidas essas características, que

são definidas pelo contexto de realização do ato, cada época reflete sua concepção de

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38

autobiografia e permite estabelecer as expectativas do receptor em relação à obra. Dessa

forma recorre à linguística para aproximar a funcionalidade da linguagem e a literatura.

As ações de afirmar, ordenar, prometer e perguntar são realizadas por intermédio da

linguagem em contextos determinados. A literatura possui também um sistema de ações

cumpridas pelos gêneros, daí que num ato literário devem ser identificados papéis e

propósitos dentro de uma comunidade de leitores e escritores. Tendo em vista que os gêneros

literários são variáveis, para que haja autobiografia, é necessário reunir alguns traços

genéricos regidos pelas regras e convenções. Baseada neste fator Bettina Pacheco afirma:

“Sin olvidar que los géneros son variables y que el acto autobiográfico se realizará

siempre dentro de su naturaleza continua a la vez cambiante. De ahí que en nuestro

tiempo y continuidad literaria se pueda considerar a la autobiografía como un

género autónomo con sus funciones específicas, sobre todo porque puede

distinguirse de otros actos ilocutórios” (PACHECO, 2001, p. 50)

Se a autobiografia pertence ao sistema simbólico que configura nossa concepção de

literatura e cultura, é necessário estabelecer regras gerais para as funções que os textos podem

assumir que, de acordo como o estudo de Bruss são: o autobiógrafo representa o duplo papel

de ser responsável pela criação e organização de seu texto e ser tema do mesmo; aquilo que

afirma no texto tem valor de verdade ainda que se possa comprovar ou duvidar de sua

autenticidade; independente da recepção ou credibilidade que o leitor conceda ao texto, o

autobiógrafo dará a entender que crê naquilo que afirma.

Neste prisma, o ato autobiográfico está determinado pelo meio no qual se realiza, pela

comunidade literária e tradição cultural no qual se inscreve. Ainda que recebam tais

delimitações, autores e leitores de autobiografia contribuem para sua renovação do ato, pois

não há apenas novas obras mas também novas formas de lê-las. A autora completa sua

reflexão contrastando as autobiografias de John Bunyan, Boswell, Thomas de Quincey y

Vladimir Nabokov por serem de diferentes períodos históricos e pela articulação do ato

literário com as atitudes e esperanças dos autores e que provocam conceitos e interpretações

distintos sobre o ato autobiográfico.

A conclusão do estudo é que, ao analisar a linguagem adotada nos textos

autobiográficos, podemos compreender melhor o ambiente no qual foram produzidas as obras.

Elementos como o uso de determinadas pessoas gramáticas, títulos, as formas como os

autores buscavam envolver o leitor são índices que marcam as posições frente a discursos e

interpretações em uma época, definem atos de escrita e leitura.

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39

Em contrapartida, Paul de Man confere à autobiografia uma posição de menor valor

em relação à tragédia e à comédia e entende como limitantes algumas das posturas teóricas

adotadas, principalmente as que a elevam à categoria de gênero literário. Seu posicionamento

está baseado na dificuldade de definições teóricas que a seu ver são ainda experimentais. A

teoria da autobiografia está marcada por uma série de interrogações e aproximações

problemáticas.

Outro fator relevante na discussão proposta por Paul de Man é que a infrutífera

distinção entre autobiografia e ficção. Para o estudioso, não é a vida que produz a

autobiografia, mas a autobiografia que produz a vida. O interesse do autobiógrafo não é ser

veraz, mas demonstrar que a totalidade é impossível. Se partimos da ideia de que o autor está

limitado pelos recursos e pela tradição escritural da época e da sociedade na qual está imerso,

é possível que projeto autobiográfico seja definitório para sua vida. Dessa forma, “la

autobiografía no es un género o un modo, sino una figura de lectura y entendimiento que se

da, hasta cierto punto, en todo texto.” (Op. cit., p. 114)

Nesta ótica, o problema da autobiografia está relacionado à linguagem e significação.

A linguagem entendida como figura, metáfora ou prosopopeia, não é mais que uma

representação, por conseguinte, não corresponde à realidade. Ao reelaborar as experiências

vividas, evocadas pela memória, o autor cria ficções e confere novos e significados diferentes

daqueles que os fatos tiveram no momento em que foram vivenciados.

No processo de recuperação da vida, paralelamente, revela e oculta a face do autor.

Paul de Man parece admitir que autobiografia é composta por elementos que não obedecem a

realidade ou verdade dos fatos, por isso, é uma figura. Uma figura é uma imagem construída

pelo autor, considerando a visão e o juízo que faz de si mesmo. Ao mesmo tempo, desfigura

porque é uma imagem distorcida que não corresponde à pessoa real.

Paul John Eakin afirma que a postura de Paul de Man se soma àquelas que versam

sobre problemas de identidade do eu que escreve. Dada a impossibilidade de existir um

sujeito autônomo e transcendente, surge a posição extrema da morte da autobiografia. Sua

argumentação parte da revisão teórica Paul de Man. Compartilhando da ideia de que é

legítima a recriação do eu através da linguagem, ele adere à noção contemporânea de que o

sujeito autobiográfico e a linguagem estão mutuamente unidos na construção simbólica. O

autor destaca ainda Elizabeth Bruss e sua identificação entre o eu e a autobiografia como

estruturas linguísticas análogas.

A proliferação e o interesse acadêmico pela autobiografia não significa que se tenha

alcançado um consenso sobre esse tipo de escrita. Os ensaios de Philippe Lejeune ao longo de

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40

30 anos de investigação, além de prova de reflexão e pesquisa, são formas de legitimar o

gênero que foi tido como literatura menor. A teória tem a virtude de tentar fixar pautas

precisas de leitura e escrita para distinguir obras biográficas, autobiográficas, romances e

casos intermediários. A proposta de Lejeune se distingue daquelas que qualificam a

autobiografia como uma forma de ficção ou que decretam sua impossibilidade, haja vista que

não há sujeito estável, unificado ou introspecção verdadeira.

O primeiro livro de Philippe Lejeune dedicado ao tema data de 1971,

L‟autobiographie en France. Além de um inventario de textos autobiográficos com o objetivo

de compreender seu funcionamento, a obra busca legitimar o gênero. Com a mesma

finalidade, Le pacte autobiographique, seu ensaio mais conhecido, se torna um texto

fundamental para todo e qualquer estudo sobre o tema. O rigor e a busca pela neutralidade

traduzem a preocupação com o objetivismo acadêmico.

Em “O pacto autobiográfico”(2008), conforme sua teoria, o delinear da fronteira entre

gênero autobiográfico e ficção está baseado na relação leitor e ato de leitura, ou seja, Philippe

Lejeune tem como base a perspectiva do leitor para estabelecer o caráter contratual do gênero

autobiográfico. A definição de autobiografia da qual parte o autor põe em jogo elementos

pertencentes a quatro categorias diferentes e somente o cumprimento de todas elas qualifica

uma autobiografia. A definição e suas características são:

“Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,

quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua

personalidade.

1- Forma da linguagem- a) narrativa, b) prosa.

2- Tema tratado- vida individual, história de uma personalidade.

3- Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e

do narrador.

4- Posição do narrador- a) identidade do narrador e do personagem principal; b)

perspectiva retrospectiva da narrativa.” ( LEJEUNE, 2008, p.14)

O corpus analisado por Lejeune parte das autobiografias clássicas, aquelas que são a

maioria do gênero, compostas por textos em primeira pessoa (Eu). A condição primordial para

que um texto seja lido como autobiográfico é que autor-narrador-personagem sejam

identificados pelo leitor como a mesma pessoa, independente da forma gramatical a partir da

qual emita seu discurso (Eu, Tu, Ele). É importante advertir que, embora não se tenha relatos

escritos inteiramente em segunda pessoa (Tu), esse tipo de narrativa marca a diferença entre o

sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, que será tratado como destinatário da

narrativa. A proposição do estudioso chama a atenção para as distintas consequências geradas

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41

pelo uso da terceira pessoa (Ele) como efeitos de contingencia, desdobramento ou

distanciamento.

Quando englobamos ao texto o nome do autor, passamos a dispor de um critério

textual geral, que será uma questão profunda no estudo lejeuniano. A expressão pacto remete

à ideia que o gênero autobiográfico é contratual porque é um acordo implícito entre autor e

leitor que determina o modo e os efeitos atribuídos a um texto. Assim, este tipo de texto é ao

mesmo tempo uma forma de leitura e um tipo de escrita. Neste estudo são apresentados quatro

tipos de pacto autobiográfico, um que é a tônica do ensaio e outros três que lhe servem de

apoio.

O pacto autobiográfico é a afirmação identidade do narrador e personagem principal

da história no texto que remete ao nome do autor, que consta na capa do livro. Essa noção de

pacto foi a solução encontrada para estabelecer distinções entre os discursos fictício e factual,

posto que, conforme a declaração do próprio estudioso, não há diferenças estrutural entre o

texto autobiográfico e romance.

O pacto autobiográfico funciona como um contrato estabelecido entre autor, que se

compromete a ser sincero em sua narrativa vital e leitor, que aceita como verazes as

informações contidas no texto. Respondendo ao principio de identidade, inferimos que aquele

que diz eu é ao mesmo tempo autor, narrador e protagonista e a mesma pessoa que assina o

livro e que se responsabiliza por seu conteúdo.

Esse tipo de pacto pode ser estabelecido de forma implícita ou explícita. A forma

explicita não requer comentários. A implícita se dá de duas formas. Uma delas é a utilização

de títulos ou da primeira pessoa gramatical, que remetem ao nome do autor. Outra forma de

identificação que pode ser utilizada é a seção inicial onde é selado o compromisso com leitor,

uma espécie de declaração.

É no nome próprio que pessoa e discurso se articulam e, portanto, é em relação ao

nome que devem ser situados os problemas da autobiografia, de acordo com teoria de

Lejeune. Esse elemento está ligado pela convenção social ao comprometimento de

responsabilidade de uma pessoa real cuja existência é comprovada e verificável pelo registro

em cartório. Outro ponto que merece destaque é que construção identidade como

personalidade individual, familiar e social que se realiza através do nome e dessa forma:

“Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só

tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define

como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e produtor

de um discurso.” (LEJEUNE, 2008, p.23)

Page 43: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

42

Simetricamente, Lejeune (2008) afirma que o pacto romanesco vai de encontro ao

autobiográfico. Há a prática patente de não identidade, ou seja, mesmo que haja semelhanças,

autor e personagem não têm o mesmo nome. Outro ponto que merece destaque é o atestado de

ficcionalidade, preenchido geralmente pelo subtítulo romance. Essas são duas formas de

distinguir romance autobiográfico e autobiografia.

Em sua proposta figuram ainda outros dois pactos que se referem às articulações entre

autobiografia, biografia e ficção, o pacto referencial e o fantasmático. Autobiografias e

biografias são tipos de textos que fornecem informações a respeito de uma realidade externa

ao texto e, por isso, podem ser submetidas a verificações, são textos referenciais. O pacto

referencial é, portanto, a relação entre as declarações do texto e sua comprovação na realidade

externa ao texto. Enquanto o pacto referencial tem o objetivo de chegar a uma imagem do

real, o pacto fantasmático convida a uma leitura do romance como uma forma de desvendar

os fantasmas do indivíduo. Daí a ideia propagada do romance ser mais verdadeiro que a

autobiografia.

Uma vez esclarecidos os pactos da teoria lejeuniana, expomos na sequencia o quadro

classificatório, (quadro 1, p. 23), no qual o autor demonstra uma grade de possíveis

combinações. Os eixos determinados são o nome do personagem principal igual ou diferente

ao do autor e a natureza do pacto, romanesco ou autobiográfico. São duas as casas vazias, que

correspondem a casos excluídos por definição. Interessa-nos tratar daquela que dá origem à

autoficção, é dizer, a identidade nominal entre autor e o personagem principal.

Quadro 1 – Quadro classificatório (LEJEUNE, 2008, p.28) Nome do personagem

Pacto

= nome do autor = 0 ≠ nome do autor

Romanesco 1 a

Romance

2 a

Romance

= 0 1 b

Romance

2 b

Romance

3 a

Autobiografia

Autobiográfico 2 c

Autobiografia

3b

Autobiografia

O ponto cego dessa teoria levanta uma questão: o herói de um romance declarado

como tal poderia ter o mesmo nome do autor? Conforme Lejeune, “nada impediria que a

coisa existisse e seria talvez uma contradição interna da qual se poderia obter efeitos

interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo me vem à mente(...)” (LEJEUNE, 2008, p.

31). Em textos posteriores como O Pacto Autobiográfico (Bis), o estudioso demonstra uma

postura mais flexível que admite ambiguidades e transições.

Page 44: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

43

Retomando sob novas bases a combinação do tipo de pacto com o emprego do nome e

contando com um exemplo, Ph. Lejeune preenche umas das casas vazias com o romance Fils

(1977). Dessa forma a autoficção tornou-se uma das formas de concretizar o desejo do autor

de narrar a si próprio sem o ônus da autobiografia e aproveitando a produtividade do jogo de

esconder e mostrar. A construção do sujeito pleno é ilusório, mas o desejo de falar sobre si é

real e está presente em autores de autobiografias e de autoficções.

2.2 A AUTOFICÇÃO E A PÓS-MODERNIDADE

O uso da autoficção como estratégia literária é um forte indício do impulso

autobiográfico na literatura contemporânea. Serge Doubrovsky (1977), criador do neologismo

e do primeiro romance considerado autoficcional – Fils, é responsável pelo preenchimento de

uma das lacunas existentes nos estudos realizados sobre a autobiografia por Philippe Lejeune.

A autoficção que consiste em tomar as características da autobiografia e do romance, dois

grande gêneros narrativos, suscita a reflexão sobre a figura do escritor e as transformações

ocorridas no processo de escrita.

Dentre vários teóricos como Vincent Colonna, Jacques Lecarme, Philippe Gasparini,

Philippe Vilain, que, atualmente, discutem as questões referentes ao gênero, recorremos à

teoria de Manuel Alberca(2007) por ser um estudioso que trabalha com a área de

concentração de nosso interesse, literaturas hispânicas. Desde a publicação do artigo

homônimo do livro utilizado como nossa base de estudo, El pacto ambíguo: de la novela

autobiográfica a la autoficción, na década de noventa, Manuel Alberca tornou-se uma

referencia obrigatória para investigação do campo autoficcional. Seu estudo combina história

literária, teoria e uma visão do panorama artístico, cultural e intelectual em que se desenvolve

a autoficção na Espanha.

Nesta obra, Alberca define e caracteriza a prática da autoficção espanhola buscando

relacioná-la com relatos afins. O teórico nos guia pelo território entre os pactos romanesco e

autobiográfico, flexibilizando as fronteiras entre ambos. Seu interesse reside nas escritas do

eu que estão submetidas ao pacto ambíguo: o romance autobiográfico, a autoficção e

autobiografia fictícia. Ao observar as nuances entre essas formas textuais de expressão da

subjetividade criativa do autor, Alberca tenta aperfeiçoar os limites entre as narrativas para

prevenir o uso indiscriminado dos termos.

Page 45: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

44

O envolvimento do autor na obra altera a percepção que o leitor tem da realidade e da

ficção, que implica a abolição das fronteiras canônicas dos níveis entre ambas esferas. O

cruzamento dos gêneros configura o espaço narrativo dos perfis contraditórios porque

conforma o distanciamento entre autor e personagem do pacto ficcional e contraria o principio

de veracidade do pacto autobiográfico. Sua proposta tipológica está baseada na

permeabilidade dos limites de modo que o campo autoficcional é resultado da implicação,

integração ou superposição do discurso fictício e autorreferencial que gera a autoficção

biográfica, a auto bio ficção e a autoficção fantástica.

Manuel Alberca parte da Era burguesa como marco fundamental da representação do

autor em sua obra. No século XIX, o escritor e os artistas de forma geral se consagram como

figuras de maior relevância e prestígio social porque encarnam o idealismo e o individualismo

burguês. A meta do artista moderno consiste em fazer de si mesmo e de sua vida uma obra de

arte e, dessa forma, essa figura e sua subjetividade são matéria-prima da criação artística.

Construir uma personalidade artística significa também transgredir barreiras sociais e

desafiar instituições, criando a atmosfera e modelos de rebeldia e insatisfação e, nesse

contexto de valorização, a assinatura do artista adquire valor mercantil. A necessidade de se

fazer presente e notável desencadeia o processo confundir entre vida pública e privada e

abolir a intimidade. A difusão da imagem pública e de fácil reconhecimento e o conceito de

autoria compõem a estratégia de promover o artista como proprietário e beneficiário

econômico bem como responsável civil de sua produção.

Após a Segunda Guerra Mundial, já no século XX, sob maior pressão e interesses

mercantilistas, a arte e a literatura se convertem em meios para difundir a imagem e a

assinatura do artista, que significa o objeto artístico mais valorizado que o próprio conteúdo

da obra. Em consequência há a perda da imagem heroica e o artista passa a ser visto como

uma pessoa comum e sem maiores atrativos. Exemplo, disso são os textos nos quais o escritor

é improdutivo, frágil ou conformado como uma carreira burocrática.

Em A morte do Autor, Roland Barthes defende a ideia que o autor é a expressão da

ideologia possessiva e egoísta do individualismo burguês que, portanto, limitava a livre

circulação da obra e seus significados. Personagem produzido pela sociedade moderna e

capitalista, a figura do autor não deve ser considerada como a origem do texto e sim como

mais um reflexo da forma de atuação a expressão do cenário dominante. Retirou-se a possível

autoridade do autor para dá-la ao leitor. Devido a grande influencia do ensaio, o

individualismo se torna mal visto:

Page 46: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

45

“Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas,

oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em

paródia, em contestação, mas o lugar onde se reúne, e esse lugar não é o autor, como

se disse até o presente, é o leitor: é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que

nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto

não está em sua origem, mas em seu destino, mas esse destino não pode mais ser

pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é

apenas alguém que mantém em um único campo todos os traços de que é constituído

o escrito.” (BARTHES, 1988, p. 70)

Em resposta à posição extrema, Michel Foucault (1969) indaga sobre ¿Qué es un

autor? e demonstra os diferentes pesos e valores atribuídos a presença da assinatura no

decorrer dos tempos. Na Idade Média, os textos adquirem valor de verdade com a condição de

estar marcados como o nome do autor. Ao contrario, no século XVII e XVIII, o campo

científico lança mão do nome apenas para batizar novas descobertas.

Sua sugestão é entender o autor como uma chave de recepção, uma função-autor,

signo e referencia que ajuda a compreender o texto, não sua origem ou depositário de seu

sentido original. Na literatura, exerce um papel em relação ao discurso, determina a forma

como o texto deve ser lido e designa. O autor é, sobretudo, uma função que limita os poderes

do leitor. A necessidade da figura é justificada como uma forma de evitar a proliferação

descontrolada de sentidos e a postura arbitrária da crítica:

“Una carta privada puede un firmante, pero no tiene un autor; un contrato puede

tener un garante, pero no tiene un autor. Un texto anónimo que leemos en la calle

sobre una pared tendrá un redactor, no tendrá un autor. La función autor es pues

característica del modo de existencia, de circulación y de funcionamiento de ciertos

discursos en el interior de una sociedad.” (FOUCAULT, 1969, p. 46)

Na literatura espanhola, o processo de recuperação do escritor é desigual e

contraditório porque oscila entre momentos de exaltação e esvaziamento da figura e neste

contexto, a autoficção adquire importância nos últimos trinta anos. O ato autobiográfico

reativa cenário contraditório. Por um lado, há o choque entre a postura de desconstrução da

noção tradicional de autor e, por outro, a necessidade que o leitor sente da presença autor e

sua figura textual como chave interpretativa.

A subjetividade e a personalidade se convertem em objeto mercantil;

consequentemente, mudamos ou adquirimos novas identidades por razões igualmente

mercantis. O auge da autoficção é a interseção entre a propagação da ideia de morte do autor e

a o auge da autobiografia. A partir dos anos setenta houve uma expansão no fenômeno

autobiográfico nas literaturas ocidentais, que segue os ditames de uma sociedade orientada ao

prestígio do individualismo. Na Espanha, este momento coincide com o final do franquismo,

Page 47: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

46

o processo de transição democrática e desencantos das causas políticas e, com isso, alguns

escritores produzem material de teor mais íntimo e pessoal. O propósito fundamental do livro

é descrever os principais aspectos constituintes da autoficção e explicar suas conexões com o

campo literário e cultural espanhol, levando em consideração sua relação com outros relatos

novelescos e autobiográficos.

O autor de autoficção se protege sob um pacto narrativo que, em muitos pontos,

configura um antipacto autobiográfico, que simultaneamente leva à maior liberdade de

imaginação e maior valorização do pacto ficcional. Não se deve perder de vista que o pacto

ambíguo das autoficções questiona tanto a referencialidade externa das autobiográficas quanto

a autonomia dos romances.

O recurso da onomástica adquire valor funcional no estatuto narrativo e na pragmática

da leitura da autoficção. O nome é também suporte da individualidade, nos assegura direitos

civis, sendo também um elemento de controle social uma vez que é através dele que são

imputadas responsabilidades jurídicas. A veracidade que pressupõe o autobiográfico é a

característica mais específica diante dos textos de ficção. Mesmo pertencendo ao campo

literário e podendo ser reconhecida uma estrutura artística, a autobiografia está inscrita nos

campos da ética e da justiça que acarretam consequências reais fora do texto.

No artigo Verdade, mentira e ficção em autobiografias e romances autobiográficos,

Ruth Klüger indaga sobre o momento em que nossa sensibilidade estética e o sentido de

realidade se dividem. A verdade e a mentira de textos regidos pelo pacto autobiográfico não

são uma questão de estilo ou adaptação literária porque a difamação e perjúrio, além de causar

danos a outrem, põem em risco o prestigio do escritor.

Os romances do eu são um tipo peculiar de autobiografias e/ou ficções consideradas

com terra de ninguém entre dois pactos. Tendo em vista a necessidade de descrever o estatuto

da autoficção e das formas vizinhas a ela, é necessário relacionar em suas coincidências e

divergências entre os pactos narrativos mais importantes.

O pacto autobiográfico, conforme a teoria de Lejeune, é concebido na relação dialogal

entre autor, narrador e texto. Nesta relação, o autor propõe que se leia e interprete as

informações como fidedignas porque ele se compromete em narrar a verdade. Neste contrato

unilateral têm elevada importância os para textos, os dados textuais e extratextuais. É o

conjunto coeso desses elementos que compõem o cenário que autoriza a autobiografia como

registro factual.

A modo de simplificação, Philippe Lejeune esclarece que “una autobiografía no es

cuando alguien dice la verdad sobre su vida, sino cuando dice que la dice.” (apud

Page 48: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

47

ALBERCA, p. 66) Implicitamente, além de anunciar e prometer a verdade, aquele que

escreve solicita a confiança daquele que lê. A fórmula funde os princípios de veracidade e de

identidade, pois autor, narrador e protagonista compartilham a mesma identidade, reafirmando

o desejo de convencer o leitor de que o eu que escreve é o mesmo que assina o livro, portanto,

é responsável por se conteúdo.

O nome próprio é um elemento que recebe grande destaque na teoria de Alberca

porque está intimamente ligado à construção de nossa personalidade individual e social,

fundamental na distinção entre autobiografia e romance:

“La importancia de la identidad nominal no es en la autobiografía, ni tampoco en la

vida cotidiana, una mera cuestión de registro civil, sino que es un tema de profundo

calado, pues no existimos socialmente hasta que no detentamos una identidad

administrativa y, por consiguiente, un nombre. Nuestra identidad se constituye en

torno a un nombre y el afán de muchos hombres de hacer famoso el suyo, además

de dotar de estructura argumental sus vidas, se convierte en el signo del ascenso y

el logro sociales.” (ALBERCA, 2007, p. 68)

As autoficções e demais romances do eu podem ser analisadas também a partir da sua

relação como o pacto ficcional. Em movimento contrário ao da autobiografia, o autor se

distancia do narrador, cedendo a ele seu lugar e função na narrativa. O romancista vai

gradativamente desaparecendo o que implicitamente pode ser tornar uma declaração de não

responsabilidade, ou seja, não pode haver reclamações ou acusações que recaiam sobre ele.

No romance, podemos citar nome como dado distintivo. Ainda que haja parentesco

entre os nomes, o autor não é o herói do relato. Mesmo que dados biográficos do escritor

sejam identificados sob o disfarce do personagem fictício ou que os se percebam

aproximações nominais, o parecido não é igual em termos de identidade. Todo relato de

ficção, seja romance ou conto, é narrado a imagem e semelhança da realidade. O leitor busca

coerência de ordem estética e não factual:

“El pacto de ficción nos deja mucho más libres, no tiene sentido preguntarnos si es

verdadero o no, nuestra atención no está focalizada en el autor, sino en el texto y la

historia, de la que podemos alimentar más libremente nuestro imaginario.”

(ALBERCA, 2004, p. 272)

O romancista sabe a história que conta é literalmente falsa, entretanto, engendra

recursos que para torná-la o mais verossímil possível. Por sua vez o leitor, mesmo sabendo os

dados da narrativa romanesca são irreais, suspende sua incredulidade e os recebe como

possíveis. A informação para textual da declaração genérica facilita a adesão ao pacto

ficcional.

Page 49: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

48

O autor de autoficções questiona os princípios do eu do romance e do eu da

autobiografia. Alberca distingue e põe em evidencia as três mais importantes modalidades de

romances do eu que guardam funções e significados diferentes: a autobiografia fictícia, o

romance autobiográfico e a autoficção. Os critérios utilizados são a identidade nominal

(explícita ou implícita) e grau de proporção da mescla dos pactos (autobiográfico e ficcional).

A autobiografia ou memória fictícia tem como pioneira a obra Lazarillo de Tormes.

Conforme Puerta Moya, na tradição cultural espanhola, o romance picaresco é a manifestação

do direito da burguesia urbana de narrar sobre si mesma. Tais romances evidenciam o caráter

ficcional e retórico coformado com o uso da primeira pessoa, antecipando e consolidando

técnicas de narração e discurso no intuito de organizar textualmente o curso vital. Dessa

forma, romance de pícaros serve como protótipo de modelo para compreender a criação de

uma história baseada em uma vida real.

Lazarillo de Tormes é uma obra anômina, em forma epistolar que data do século XVI

e sugere várias interpretações e significados. Uma das sugestões do romance picaresco é que,

independente do estrato social, qualquer indivíduo pode narrar sua história e dessa forma se

desloca o olhar da biografia das grandes personalidades para as existências “irrelevantes”.

Ideologicamente, está se formando um eu cuja diretriz é o individualismo que oscila entre a

realidade autobiográfica e a ficção, que perpassa as manifestações artísticas e ganham novos

contornos nos dias atuais.

Naquilo que concerne à simulação, encontramos correspondência entre Lazarillo e os

romances de primeira pessoa, pois ambos adotam os mesmos procedimentos: a identificação

narrador personagem através do uso do pronome eu, simulação de uma história real; a forma

de autobiográfica de retrospectiva contando a vida ou episódios dela; a composição

personagem com elementos biográficos criados.

Alberca afirma que as autobiografias ou memórias fictícias costumam trazer no título

o indicativo referente à vida e à indicação do nome do personagem narrador como a

Autobiografia del General Franco, de Manuel Vásquez Montalbán e Memorias de Adriano,

de Ramón de Valle-Inclán. Em ambos os casos não se trata de um texto histórico, mas da

invenção de uma vida íntima do personagem feita pelo romancista, que goza de liberdade para

representar pensamentos e sentimentos.

O estudo dos romances autobiográficos é mais complexo pela variação de vozes

narrativas e possíveis nomes, porque contempla narrativas em primeira ou em terceira pessoa

anônimas ou com nomes expressos. É necessário levar em conta o conteúdo do relato, ou seja,

é fundamental ter conhecimento sobre a biografia do romancista para identificar o

Page 50: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

49

autobiografismo do texto. Quando o narrador permanece inominado, a falta de indicação para

textual acerca do gênero narrativo, se romance ou autobiografia, aumenta a vacilação do leitor

diante do relato. Quando o protagonista do romance tem nome distinto do autor se acentua o

distanciamento que é próprio do romance e o caráter fictício é também ratificado, mesmo que

do ponto de vista argumental incorpore material biográfico do autor.

Podemos situar como pertencentes ao pacto ambíguo desde o romance histórico

clássico até falsos relatos biográficos ou pseudo-históricos, que fundem fatos históricos e

inventados. Essa foi a escolha de Javier Cercas em Soldados de Salamina, cujo narrador

protagonista é homônimo do autor, com simulada com ingenuidade que seu romance será um

relato real. Apesar de reclamar uma leitura ficcional, o romance recomenda a observação dos

fatos históricos, pois aspira revelar a verdade histórica que permaneciam o texto e a relevância

real ou simbólica dos personagens: o reconhecimento dos heróis anônimos da Guerra Civil

Espanhola que como Miralles, permaneceram à margem.

Na autobiografia fictícia, o ato autobiográfico é modelado pela imaginação, ou seja, a

história é formulada com o objetivo de parecer, ao máximo, com uma autobiografia real, mas

não tem correspondência real com a vida do autor. No romance autobiográfico, o escritor cria

baseado em fatos reais, se inspira em dados de sua biografia para criar uma fábula. Daí o uso

indiscriminado e abuso do termo romance autobiográfico. As generalizações do tipo “toda

literatura é autobiográfica” contribuem para que o processo de desenvolvimento do romance

autobiográfico não seja compreendido de forma adequada.

A tradição aristotélica, com respeito à natureza conceitual, separa historia e ficção. O

romance autobiográfico foi censurado por essa tradição devido a sua constituição, que é

confluência destes dois modos de representação. O resultado foi que o romance

autobiográfico, muito frequente no século XIX, não recebeu suficiente atenção da teoria e da

crítica literárias porque não pertencia ao cânone de orientação aristotélica para a qual a

literatura era formada por textos puramente fictícios, excluindo aqueles que tinham caráter

histórico.

A corrente formalista que predominou nos estudos literários na centúria posterior,

menosprezou os valores que não estavam em conformidade com os ideais de clareza textual e

estruturas puras, ou seja, informações subjetivas de caráter pessoal, social ou histórico.

Durante este período, foi decretada a superioridade da ficção sobre textos de conteúdo

histórico ou biográfico. Naturalmente, os relatos narrativos intermediários e híbridos não são

tão valorizados quanto as categorias literárias puras.

Page 51: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

50

Sob essa ótica, as autobiografias e os romances autobiográficos, exemplares como

narrativas híbridas, são avaliados como literatura menor e isso explica a postura indecisa dos

escritores espanhóis. Ao mesmo tempo, a ampla utilização do termo romance autobiográfico

reflete a vigência, utilização e discriminação. O gênero autobiográfico e, por extensão, o

romance autobiográfico sofrem retaliações teóricas pela alegação de pureza literária. Ambos

foram igualmente reprovados partindo também de posições religiosas e morais que na

Espanha foram consideradas atos de vaidade e soberba dos autores. Seguindo tal pensamento,

o romance autobiográfico é um paradoxo que mostra a urgência de expressão individual e

necessidade de ocultação dado o contexto social.

No século XXI, é consensual a liberdade de falar e escrever sobre si. A valorização da

ficção em relação à literatura factual e à oportunidade de desviar da responsabilidade do ato

autobiográfico colaboram para que a fórmula do romance autobiográfico siga vigente. O

escritor reivindica falar sobre si mesmo e o realiza de forma segura sob o disfarce da ficção,

dissimula dados pessoais e coincidências suficientes para estabelecer uma relação entre ele e

seu personagem.

Encontramos ressonância no pensamento de Ana María Barrenechea (1982) que

enfatiza que crise do personagem na obra pode ser interpretada como transposição da crise do

sujeito na sociedade de massa. Tal perspectiva aceita a obra literária como reflexo da

sociedade na qual está inserida. A relação entre sociedade e literatura, entendida como uma

relação de causa e efeito, pode aceitar muitas outras interpretações. Uma delas é a repercussão

das mudanças no processo de comercialização, produção e distribuição dos livros. Outra, a

quebra dos antigos códigos em favor da nova articulação da arte contemporânea.

A quebra do contrato mimético nos chama a atenção para as alterações na estrutura

romanesca que tematiza e aprofunda as relações entre a linguagem, a literatura e o mundo. A

crise do contrato mimético afeta o nexo entre a obra e seu referente, sua composição interna e

realça a base intertextual, ou seja, o diálogo entre textos. Esse processo gera duas tendências

díspares na produção artística na atualidade. Uma vertente se concentra na relação obra e

mundo, conjetura sobre a função social da arte e os sentido que adquire a figura do escritor

dentro do circuito de produção e comercialização da arte. Outra vertente bloqueia a noção e o

reconhecimento no qual o mundo remete à obra e a obra remete ao mundo. Encontramos

ressonância no texto de Puerta Moya:

“El auge experimentado por la autoficción responde no sólo a la re-

individualización que coincide con el apogeo del sistema liberal como pensamiento

único(político, económico e ideológico) que se propugnan como factible en

Page 52: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

51

exclusiva, sino también a motivaciones estéticas, que tienen que ver con el rutinario

encasillamiento en que en que las modalidades autobiográficas habían caído siendo

previsibles y tópicos sus resultados en muchas ocasiones, lo que obliga a romper

moldes y esquemas, empezando por esas transgresión de los márgenes entre de la

ficción, de modo que resultase un a duda metódica sobre la veracidad de lo relatado

en un texto supuestamente autobiográfico con la cercanía con los modelos de

narración novelesca.” (PUERTA MOYA. 2003, p. 640-641)

Houve um salto qualitativo entre o romance autobiográfico e autoficção, que passa da

dissimulação e ocultação para a simulação e aparência de transparência. A dificuldade de

definição genérica da autoficção reside na situação fronteiriça que ocupa, sua posição instável

é fruto dessa situação.

Ao inventariar e classificar romances em língua espanholas como autoficções, Alberca

aponta para um modelo genérico dinâmico, variações criativas e expectativas de leitura em

formação diante das quais autores, editores e leitores todavia permanecem resistentes. Essa

classe de textos poderia indicar o desejo de inovação na autobiografia espanhola ou uma

renovação novelística.

A proposta de definição da qual parte Manuel Alberca (2007) é de caráter formal e

tem consequências na recepção do leitor: una autoficción es una novela o relato que se

presenta como ficticio, cuyo narrador y protagonista tienen el mismo nombre que el autor

(ALBERCA, 2007, p.158). Baseado na mescla gêneros contraditórios, autobiográfico e

ficcional, se produz a impressão de romper com os habituais esquemas receptivos e de leitura.

A permeabilidade dos limites entre os gêneros vizinhos resulta uma grande variedade

de formas e registros. Na tentativa de esboçar uma tipologia Alberca define três tipos de

autoficção: autoficção biográfica, auto bioficção e autoficção fantástica. Para melhor

exemplificar a complexidade das autoficções, expomos a continuação uma fusão dos quadro 2

do artigo ¿Existe la autoficción en hispanamérica?(2005-2006) e do quadro 4 do livro El

pacto autobiográfico(2007) traduzidos e ampliados, sob nossa responsabilidade. Como forma

de exemplificar e comprovar suas contribuições teóricas, Manuel Alberca recorre a autores

como Cesar Aira, Francisco Umbral, Vargas Llosa, Javier Cercas e Carlos Barral.

Conforme a aproximação ou afastamento do centro, os elementos fictícios e

autobiográficos se fazem mais reconhecíveis. Quando o leitor se inclina a interpretação mais

referencial, autoficção biográfica, ao contrário, vai ao encontro da autoficção fantástica.

Podemos observa no quadro a continuação.

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52

Quadro 2 – Quadro 2 ¿Existe la autoficción en hispanamérica?

≠Pacto

Autobiográfico

Pacto Ambíguo

Campo Autoficcional

Pacto

Romanesco Memórias

Biografia

Autobiografias

Autoficção Ficções em geral:

Romances,

Contos

Autoficção

biográfica

Auto bio ficção

Autoficção

fantástica

Referência

extratextual

A=N=P

A=N=P

A=N=P

Referencial textual

Menos invenção

Mais próximo do

autobiográfico

Mescla

indissolúvel de

elementos

autobiográficos e

fictícios

Mais invenção

Mais próximo do

ficcional

Exemplos de literatura autoficcional

Contra paraíso de

Manuel Vicent

La otra de Sonia

García Soubriet

La tía Julia y el

escribidor de Vargas

Llosa

La velocidad de la luz de Javier Cercas

Cómo me hice monja

de César Aira

Dafne y ensueños de

Gonzalo Torrente Ballester

O campo autoficcional é resultado da implicação, integração e superposição do

discurso fictício no autorreferencial e vice-versa. Nesse contexto, há a ambiguidades textuais

e para textuais em diferentes maneiras e graus. A integração de elementos fictícios e

autobiográficos e seu caráter indissolúvel podem deixar o leitor vacilante no momento de

decifrar os elementos do texto.

Conforme Manel Alberca, a autoficção biográfica tem como ponto de partida a vida do

escritor, sofrendo alterações para melhor adaptar-se à estrutura ficcional. Talvez por isso,

tome muitas vezes a forma de relato de infância. A trilogia de Manuel Vicent formada por

Contra Paraíso(1993), Tranvía a la Malvarrosa(1994) e Jardín de Villa Valeria (1996),

Escenas de cine mudo (1994), de Julio Llamazares e La otra (1987), de Sonia García Soubriet

são exemplos típicos para demonstrar que, embora haja aspectos que tornem evidente a

invenção de episódios ou aspectos isolados, a declaração de autobigrafismo encoberto, o grau

de aproximação com as autobiografias é elevado. Com isso, a crítica literária costuma

confundi-las com romances autobiográficos. O objetivo dessa estrutura é fazer com que o

leitor acredite que está diante de um relato autobiográfico.

No outro extremo, estão as autoficções fantásticas. A expressão é um empréstimo da

classificação de Vicent Colonna que declara: “el escritor se encuentra en el centro del texto

Page 54: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

53

como en una autobiografía(es el heróe), pero transfigura su existencia y su identidad en una

historia irreal, indiferente a la verosimilitud biográfica” (Apud ALBERCA, 2007, p. 190).

Neste ponto, há divergência entre essa afirmação e a teoria de Alberca porque para Colonna,

as autoficções fantásticas podem ter como ponto de partida a biografia do autor. A

característica fundamental desse tipo de texto é o modo radical com que se afastam dos

elementos autobiográficos do autor, que inventa uma história e uma personalidade

radicalmente diferente. Da mesma forma que um sósia grotesco ou duplo o representa. Cesar

Aira (1993) é citado como grande expoente na literatura hispanoamericana pela mescla

deliberada de sua biográfica com dados irreais. O romance Cómo me hice monja (1993) é

destacado como uma dessas suas narrativas, pois nela Aira se identifica como o narrador

protagonista (César-Cesítar) e sugere que o protagonista masculino se transformará em uma

religiosa. Nesse espaço também se abre a oportunidade de criar um mito familiar e pessoal.

Gonzalo Torrente Ballester em Dafne y ensueños, utilizando um relato infantil, evoca através

de Gonzalito as origens familiares e pessoais para justificar sua dedicação à literatura.

A diferença das autoficções biográficas e fantásticas que deslocam do autobiografismo

ao ficcional, as auto bio ficções se caracterizam por forçar ao máximo a hibridação da

autobiografia e ficção. La tía Julia y el escribidor (1977), de Mario Varga Llosa e La

velocidad de la luz (2005) de Javier Cercas são romances diferentes quanto às estratégias de

ficcionalização. La tia Julia y el escribidor (1977) tem como eixo de construção episódios da

vida amorosa de Mario Vargas Llosa que rememora seu precoce matrimonio aos 18 anos

como a recém divorciada e ex esposa de seu tio, que contava quase 30. Paralelamente à sua

história romântica, são narradas historias da serie radiofônica de Pedro Camacho. As histórias

radiofônicas e a do casal apaixonado são ecos e contrapontos que terminam por convergir.

La velocidad da Luz (2005) narra a história de um escritor que busca sobreviver à

culpa e ao sucesso vendo a escrita como único caminho possível para redimir-se dos erros

cometidos. Embora não se faça nenhuma referência explícita ao nome do narrador-

personagem, é possível encontrar correspondência com a biografia do escritor espanhol Javier

Cercas que durante os anos de 1987 e 1989 em uma universidade de Illinois, meio-oeste

americano, compartilhou uma sala com um ex-combatente do Vietnã, Rodney Falk,

personagem, protagonista e eixo da narrativa, que encarna a figura do perdedor americano

cujos resquícios de sua participação na guerra, a culpa, o excesso de lucidez e a exigência

pessoal o levam ao suicídio.

A história de Rodney se entrelaça à história do personagem narrador, que atraído pela

peculiaridade do colega, tenta escrever um romance. Quinze anos após sua estada em Illinois,

Page 55: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

54

o narrador alcançou fama e conheceu o fracasso pessoal e percebe que para ele o sucesso é

quase tão letal quanto a guerra foi para Rodney. A história do narrador-personagem tem

correspondência real com sabores e dissabores da positiva acolhida de crítica e de público da

obra Soldados de Salamina (2001) e, ainda que inominado, nos remete ao autor Javier Cercas.

O conjunto de elementos biográficos, pseudobiográficos e fictícios nos impedem discernir até

onde chega a identificação e a partir de que pontos ocorre o distanciamento, haja vista que a

autoficção não pode ser qualificada como discurso real tampouco ficcional.

Apesar de estabelecer explicitamente a correlação nominal, em Soldados de Salamina,

a construção de uma personalidade serviu para o desenvolvimento do romance, que por

intermédio de um molde pode engendrar referencias históricas e fictícias. Em La velocidade

de la Luz (2005), o uso da experiência particular sobrepõe o desafio ético sobre o estético

porque não é um fio condutor da história e sim o centro da análise sobre êxito e fracasso.

Embora tenham tramas diferentes, ambas as obras tratam o universo de relações que

envolvem um romance. Tal reflexão novamente será retomada como o objeto do nosso

estudo, o conto La verdad de Agamenón (2006), no qual o autor seguindo o caminho da

autoficção, joga com a possibilidade de um duplo perfeito.

2.3 A AUTOFICÇÃO EM JAVIER CERCAS

A ficcionalização da figura do autor e a discussão literária são constantes na produção

literária do espanhol Javier Cercas. Em Soldados de Salamina (2001), a narrativa versa sobre

o episódio do fuzilamento frustrado de Rafael Sánchez Mazas, ideólogo e fundador da

Falange Espanhola. No romance, o autor cria um narrador-personagem homônimo para

abordar e ficcionalizar sobre acontecimentos da Guerra Civil Espanhola. A identificação

nominal explícita e transparente serviu como um recurso a serviço da construção do texto,

trata-se somente de uma figura narrativa que conduz a historia e investigação.

Em La velocidad da luz (2005), a relação de identificação entre o autor e o

personagem narrador do romance é estabelecida de maneira tácita e encontra comprovação

nos elementos extratextuais. A utilização da própria experiência representa o desafio ético

sobre o estético, a narrador autor é o centro da reflexão de que o êxito público pode

representar o fracasso pessoal. A partir da ficcionalização de uma situação real, o autor

sinaliza a mudança de uma postura rígida sobre os acontecimentos, dos quais emerge discurso

descrente sobre o conhecimento e a história. La velocidad da luz tangencia a guerra do Vietnã,

Page 56: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

55

tendo como eixo central não o fato histórico, mas a forma como afetou os indivíduos,

valorizando a realidade do acontecimento e a ficção da criação de histórias e personagens nele

envolvidos de forma indistinta.

Se retrocedermos na exegese do romance autobiográfico para a ficção biográfica,

receptivamente, perceberemos sua ocorrência nas duas obras: Soldados de Salamina e La

Velocidad da Luz. Seus narradores representam dois entes distintos. O primeiro é o molde

para organizar referenciam históricas e fictícias, enquanto o segundo serve de pretexto para

dissimular e criar uma ficção. Ambas assinalam e balizam a formação de uma personalidade

literária com a qual o escritor Javier Cercas joga com a imagem de si mesmo e critica a

complacência e vaidade. No conto La verdad de Agamenón, o duplo perfeito é uma estratégia

da autoficção.

La verdad de Agamenón (2006) é o texto que dá nome ao livro, um conjunto de textos

agrupados por temas do quais grande parte de seu conteúdo provém do jornal El País. A obra

La verdad de Agamenón está dividida em Autobiografías, Cartas de Batallas, Por la Realidad,

Nuevos Relatos Reales, Los Contemporáneos e Un cuento (A modo de Epílogo), “La Verdad

de Agamenón”. A seleção dos textos e a decisão de publicá-los em forma de livro é uma

tentativa de prolongar sua existência dada a natureza efêmera dos jornais e revistas para os

quais foram concebidos. No prólogo, Cercas afirma que sua iniciativa de selecionar, corrigir e

ordenar textos próprios equivale a buscar uma direção, um sentido comum, realizar um

experimento consigo mesmo.

Para compreender os significados do duplo e da autoficção na Espanha contemporânea

é capital recorrer à pós-modernidade, marco cultural em que se inserta o texto. A pós-

modernidade caracterizou as culturas ocidentais ou ocidentalizadas nas décadas de oitenta e

noventa gerando a ilusão homogeneização, a sistemática ficcionalização da realidade e

amnésia histórica. A produção e posse dos objetos são valorizados como sinônimo de bem

estar, introduzindo no imaginário atual a satisfação dos desejos como prioridade imperante.

A criação e recriação do eu no imaginário são alimentados pelo capitalismo. Há a

escravidão ansiada pela perfeição que exige a necessidade contínua de renovação. Na

Espanha, nação onde as opiniões modernas de democracia são ainda recentes, a liberdade

individual se confunde com extrema de facilidade de consumo. A possibilidade de remodelar

o corpo a gosto, copiando ou se apropriando de personalidades ou físicos de prestígio é um

fenômeno social tão potente e imbricado nos meios de comunicação que tem a mesma

velocidade das mudanças da moda. A literatura acompanha a transformação cultural gerada

Page 57: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

56

pelo desenvolvimento tecnológico e a democratização do conhecimento na sociedade da

imagem e do consumo.

Indagamos sobre o sentido da conjunção de literatura fantástica e da proposta

autoficcional em La verdad de Agamenón, um conto longo de Javier Cercas. O duplo remete à

tradição da literatura fantástica e a autoficção está conectada à ficcionalização crítica. Cercas

sinaliza para a necessidade das novas estratégias narrativas, condicionadas pelas

transformações ocorridas no processo de escritura e de leitura. O insólito e a ficcionalização

da crítica se encontram nessa obra que questiona tanto o racionalismo quanto o fazer literário

na atualidade.

Há uma vertente da crítica literária que considera que a literatura espanhola como

realista. Entretanto, é necessário relativizar a afirmativa, pois quanto mais quis ser realista,

mais alucinação ela mostrou. Encontramos exemplos no romance picaresco, na literatura de

Galdós e Clarín, e antes, com Quixote. No ensaio La retórica del realismo: Galdós y Clarín,

John W. Kronik argumenta que sucessivas gerações se apegaram ao costume de buscar na

escrita realista a fonte fidedigna de conhecimento absoluto, quando é necessário ter em mente

a participação dos indivíduos responsáveis pela recriação da realidade. Assim para

romancistas tão complexos e profundos como Benito Pérez Galdós e Leopoldo Alas(Clarín) a

função “imitar” e a criação poética são indissociáveis no território textual. O realismo

ultrapassa o aspecto restrito do movimento literário da segunda metade do século XIX no qual

o escritor capta a vida tal como é, suprimindo suas observações subjetivas. Ambos autores

harmonizam as crenças do período decimonônico no mundo objetivo que o considera que

indivíduo passa a conhecer através da experiência dos sentidos.

A inovação sugerida por Javier Cercas é a utilização do elemento fantástico como

ferramenta crítica. A desfiguração, se retomamos a terminologia de De Man, toma corpo e

personalidade através do duplo. Ao retomar o doppelgänger e mencionar autores

paradigmáticos como Philip Roth, Poe, Dostoievski e Borges, Javier Cercas deixa claras as

suas referências. O escritor busca ainda legitimar seu discurso critico atento à problemática do

mundo, ou seja, a representação da figura do autor, a circulação de obras e a construção de

uma nova tradição.

Na atualidade, é impossível que um escritor desconsidere as teorias acerca de pontos

que tangenciam a produção de sua obra como a transitoriedade do processo de identificação

do sujeito na pós-modernidade e as questões estéticas e éticas que envolvem o aparecimento

do autor em sua obra. Cercas não ignora a ideia pós-moderna de que não há experiências

porque tudo é mediado pelos grandes veículos de circulação de informação, cultura e lazer

Page 58: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

57

como a imprensa, cinema e internet. Dessa forma, emerge o questionamento de como

construir a figura do escritor que deixa de ter experiências sociais para ter somente

experiências literárias como feiras, viagens, jantares. Isso nos remete por exemplo à questão

ética suscitada pelas interseções entre romance VS autobiografia.

A tecnologia exerce grande influencia sobre a literatura, desencadeando o surgimento

de gêneros predominantes na cultura de massa. A narrativa biográfica independente da forma

que assuma, além de espaço de aprendizagem, veicula a socialização da experiência

individual. Esse tipo de leitura reclama um leitor que aprecie e suporte o jogo duplo de

propostas contrárias sem a exigência de uma solução total, pois falar muito de si mesmo é a

melhor maneira de se esconder.

Na medida em que o autor expressa a ironia e a fragilidade de sua posição, se

aproxima do público e acaba com a ilusão de que aquele que escreve é de alguma forma

superior. É interessante observar que os textos de Javier Cercas têm como característica

fundamental sua dimensão relacional tanto na reincidência do ato de escrever como a

centralidade do personagem escritor. Manuel Alberca afirma que na Espanha a autobiografia é

vista como literatura menor devido às circunstancias de sua formação social e política, a

ideologia católica que cerceia a livre expressão do sujeito e posteriormente o controle do

regime ditatorial. Logo, dessa forma é natural que para a maioria dos espanhóis o eu

autobiográfico seja suspeito de soberba e narcisismo.

O nome próprio no espaço da ficção reforça a necessidade de afirmação do autor que

busca complacência do leitor ao mostrar-se vulnerável, pois explora publicamente questões

pessoais sem sofrer as consequências do ato. Ao mesmo tempo, representa a necessidade de

autoconhecimento e construção de uma personalidade literária em crise, oscilando entre o

narcisismo e a introspecção.

Paralelamente, ocorre a valorização da consciência crítica. Entretanto, isso é feito

dentro de um sistema, pois a produção de literatura de consumo e sua divulgação se dão

através dos grandes meios de comunicação. O escritor não tem consciência somente do seu

papel como produtor de bens simbólicos, mas também da impossibilidade da arte

transformadora da realidade.

Page 59: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

3 ANÁLISE DE LA VERDAD DE AGAMENÓN

“A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu

porqueiro.

Agamenon: - Conforme.

Porqueiro: - Não me convence7”

Iniciamos nossa análise observando alguns pontos acerca da escolha do título, da capa,

do gênero conto e seus possíveis significados. O título é uma alusão ao engenho filosófico

com que Antonio Machado inicia a obra Juan de Mairena, comentada por Cercas8 no prólogo

da obra homônima: “Mi libro está escrito contra el cinismo hipócrita, arrogante, feroz,

mentiroso y solemne de la verdad de Agamenón. O sea, contra la verdad oficial”.

A sentença inicial indica que a verdade independe das diferenças entre os homens.

Mas a prática demonstra que apenas Agamenon tem nome próprio, enquanto o porqueiro, não

tem nome, não é proprietário dos porcos ou de si mesmo, é simplesmente um servo. O

tratador de porcos sabe que a verdade do poder é a “única” verdade, mas conserva o desejo de

não se deixar convencer.

3.1 A VERDADE

No estudo Notas sobre la verdad del poder y el poder de la verdad9, Jorge Larrosa supõe

que o autor da afirmativa acerca da verdade é o filósofo. O filósofo é mais um servo do

soberano, ele é responsável por garantir sua força simbólica, ou seja, seu poder sobre a mente

e consciência dos súditos. Assim o que faz o servo de Agamenon é fixar as regras do jogo da

verdade ou as condições da luta pela verdade. A partir daí são propostas, no texto de Javier

Cercas, reflexões sobre a influência e o poder da palavra na época da globalização informativa

e comunicativa e sua influencia do universo literário e os elementos a ele relacionados.

Podemos entender a sociedade da comunicação como aquela em que os aparatos midiáticos

como os periódicos, o rádio, o cinema, a televisão e também os aparatos culturais e

educacionais são determinantes para a produção, a reprodução e também para a dissolver

aquilo que é considerado realidade.

7 Tradução nossa do original contido na abertura do libro “La verdad de Agamenón”. La verdad es la verdad,

dígala Agamenón o su porquero. Agamenón: - Conforme. Porquero: - No me convence.

9

Disponível em <http://e-educador.com/index.php/artigos-mainmenu-100/98-agamenon-e-seu-porqueiro.>

Acessado em 22/06/2010.

Page 60: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

59

Neste contexto, emerge o questionamento de como construir a figura do escritor:

Todo escritor que no acepte ser un mero escribano(…) contrae un apasionado

compromiso con el lenguaje, pero al contraerlo contrae también, lo sepa o no –y

más le vale saberlo, un apasionado compromiso con la realidad”, pues “entraña la

toma de unas decisiones que no son únicamente lingüística, las que asume el

usuario de un lenguaje “tenso y exacto y ávido de verdad y de significación”.

(Prólogo de “La verdad de Agamenón.( CERCAS, 2006, p.18)

É interessante observar que nas obras Soldados de Salamina e La velocidad de la luz,

Javier Cercas tem como característica fundamental sua dimensão relacional tanto na

reincidência de buscar o significado do ato de escrever e do personagem escritor. Ao mesmo

tempo, representa a necessidade de autoconhecimento e construção de uma personalidade

literária em crise, oscilando entre o narcisismo e a introspecção, marcando a consciência dos

vínculos contraditórios que constituem o intelectual na contemporaneidade.

Observamos que há valorização da consciência crítica. Entretanto, sua atitude de

questionamento é desenvolvida dentro do sistema literário já estabelecido. Acreditamos que

seu objetivo é também demonstrar de que forma tais fatores afetam o sujeito e a escrita por ele

produzida, na medida em que o autor expressa a ironia e a fragilidade de sua posição.

Ilustração 1 – Capa do livro “La Verdade de Agamenón”

Em relação à capa, a fotografia é utilizada como paratexto que não explica o título ou

conteúdo do livro, mas é uma pista para que o leitor deduza sua finalidade. Com a cabeça na

Page 61: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

60

boca do canhão, Buster Keaton, no filme El maquinista de la General, de 1927 representa um

momento de insensatez que se assemelha à postura de confrontar abertamente lógica

mercadológica. A imagem que inaugura o livro serve para atar as pistas do título e do engenho

filosófico à declaração implícita: opiniões e comentários comprometidos com a realidade

vivida pelo autor e lógica mercadológica, um ataque declarado contra a realidade da literatura

espanhola, equivale a colocar a cabeça em lugar perigoso e acarreta inúmeros problemas.

Pensamos na escolha do gênero textual, narrativa em prosa de menor extensão. Uma

vez que a construção de uma personalidade literária já estava presente nos romances Soldados

de Salamina(2001) e La velocidade de la luz (2005), procuramos pensar o porquê de utilizar a

forma de conto como um epílogo da obra La verdad de Agamenón. Parece coerente afirmar

que a opção do escritor se deve a fatores como explicitar e reforçar sua relação com o jornal,

origem principal dos textos contidos na obra, a adequação ao ritmo da vida moderna, que

estão atrelados à escassez de tempo, ao mercado e ao consumo. Tirando proveito dos

principais traços do conto literário: concisão, precisão e unidade de efeito, o final torna-se um

dispositivo para ultrapassar o sentido obvio do conto, a justificativa para um assassinato.

Apesar de ser un gênero firmemente estabelecido, acerca do qual narradores e críticos

refletem, não encontramos para o gênero conto uma teoria que integre elementos como o

texto, o leitor, o escritor e seu contexto social e cultural. O artigo de Gerald Gillespie realiza

uma revisão teórica sobre a questão terminológica do gênero, que nas línguas europeias é de

especial complexidade. Se considerarmos que os gêneros não têm tradução, os nomes

equivalentes, em distintos idiomas, marcam também diferenças de registro cultural e a

tradição literária. Seu objetivo é discutir as sutis diferenças de forma e analisar a evolução do

termo << novela corta >> comparando-o com outros termos próximos da literatura europeia.

Do século XV até começo do XVIII, a palavra britânica novel é utilizada como

substantivo com duas acepções: algo novo, uma novidade ou uma noticia. Entre os séculos

XVI e XVIII surge uma terceira acepção, espanhol novela, que aludia a relatos, contos e

outros tipos de textos que seguem o mesmo estilo. Devido à variedade e amplo significado o

termo novela engloba do relato à narração fictícia em prosa com personagens e ações

representativas da vida, no passado ou no presente.

Entre novela e romance se mantém a distinção baseada na extensão daí a definição de

Chesterfield, de 1774: Una novela es una especie de abreviación o compendio de un

<<romance>>( GILLESPIE,1997, p.133). Ademais da característica de designar um tipo de

ficção, ao longo do século XVIII, a elaboração da forma acompanha o desenvolvimento do

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61

conceito. Pode-se fazer uma observação interessante ao comparar a literatura inglesa e a

espanhola porque a Espanha é a principal nação que utiliza o termo novela para referir-se à

ficção longa. As novelas encontram referência especialmente na contribuição da Novela

Picaresca e Don Quijote no desenvolvimento da literatuta inglesa do período.

A questão terminológica torna-se mais complexa se consideramos que na Espanha há

escritores de novella. Miguel de Cervantes é exemplar nesta questão, pois se destaca na

escrita desde o conto à narrativa mais extensa. Conforme Gillespie, os espanhóis sob a

categoria de novela não atentam para a distinção genérica entre narrativas menores e maiores

e para exemplificar sua tese recorre aos romances de Cervantes, La Galatea(século XV) e

Persiles e Segismunda(século XVI), que figuram como novelas. O autor esclarece ainda que

romance em língua espanhola serve para designar composições poéticas, sobretudo épicas,

que permanecem ligada a materiais antigos. Em sentido moderno, o termo romance transferiu

sua significação para novela e mais recentemente, novela corta, para designar ficções que são

demasiado curtas para estar sob a nomenclatura conto. Ao contrário, as literaturas italiana,

francesa e alemã têm um conjunto de designações mais elaboradas para a prosa de ficção.

A designação novella aplica-se tanto às produções mais antigas quanto mais recentes,

isto é, abarca das hitórias aos relatos mais elaborados. Românticos alemães como Johann

Wolfgang von Goethe, impulsionados pela doutrina da ironia cultivaram uma tensão entre as

facetas objetivas e subjetivas da novella. O raciocínio seguido por Gillespie(1997) expõe o

questionamento sobre se há diferenças estruturais ou unicamente de extensão nas

nomenclaturas utilizadas para ficções.

Partindo da genealogia do conto e dada a complexidade da investigação, a

denominação conto, curto ou longo, limitada ao número de páginas é ainda vaga. Optamos

por chamar o texto La verdad de Agamenón de conto longo.

De acordo com o estudo de Pozuelo Yvancos, Escritores y teóricos: La establidad del

gênero cuento, o conto literário, desenvolvido no século XIX, nasce vinculado a publicações

periódicas como jornais e revistas, que como é sabido, tem uma limitação espacial. Tal fator

favoreceu a permanência da contenção e condensação estrutural para a adaptação a um

número máximo de palavras ajustadas a uma página ou coluna. A atenção do leitor e o

chamado súbito na ação do conto continuaram indispensáveis já que o leitor era um

consumidor de um periódico e, nesse sentido, o conto implica uma extensão comercial. No

conto La verdad de Agamenón, o escritor Javier Cercas chama a atenção para relação entre o

comércio e a literatura e sua própria adesão e questionamento desse sistema.

Page 63: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

62

A abrangência do conto, em nossa opinião, também contribuiu para a utilização do

gênero. Independente do nível cultural, poucas pessoas deixaram de ter contato com a

narrativa curta na vida infantil, familiar ou escolar. Por mais rápidas que sejam as

transformações, com a velocidade da vida cotidiana, sempre há 10 ou 15 minutos para

apreciar uma narrativa que se adéqua ao tempo disponível do homem moderno: entre um

compromisso ou outro, ainda no percurso entre a residência e o trabalho, antes de dormir. Por

isso, é clara a identificação do conto com a escassez de tempo dos habitantes das grandes

urbes, também a linguagem e acessível, a estrutura de começo, meio e fim claramente

determinados.

Outro aspecto explorado nos contos é o final, que funciona como um dispositivo de

abertura a espaços simbólicos de maior transcendência, ou seja, projeta significados e

interpretações que estão além do sucesso narrado. Dessa forma, a facilidade de circulação e a

intenção de narrar uma segunda historia nas entrelinhas da primeira encontram explicação na

extensão da narrativa:

El tamaño reducido del cuento no perjudica su representación o imagen de la

totalidad a la que alude, antes al contrario, la potencia, porque explotando la

diferencia entre dimensión mínima y significación máxima, proyecta su

interpretación simbólica a una esfera más rica que la anécdota, momento, emoción

o episodio que le sirve de base.(POZUELO-YVANCOS, 2004,p.70)

A utilização do gênero conto demonstra intenção do autor em marcar a adaptação da

literatura ao ritmo da vida moderna, sem abandonar consciência crítica que cerca a obra de

arte.

3.2 - ESCRITOR E NARRADOR PÓS-MODERNO

Vivemos uma época de relatividade na qual o conceito de verdade está em constante

discussão e ato de narrar tornou-se um grande desafio. Os textos de Walter Benjamin e

Theodor Adorno, O narrador (1980) e Posição do narrador no romance contemporâneo

(1980), respectivamente, esclarecem o porquê. A perda da capacidade de narrar se deve ao

fato de que já não há experiência a ser compartilhada uma vez que esta é fruto da relação vital

com objetos culturais via tradição, ou seja, vida comunitária e relações com o entorno do

período pré-capitalista e urbano. Em substituição, ganhamos a vivência característica do

individualismo da sociedade capitalista.

A função da narrativa era transmitir experiências orientadas ao trabalho, distante no

tempo e no espaço dispensando explicações. Em contrapartida, a velocidade gerada pelo

Page 64: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

63

avanço tecnológico é intensa, valorizando a informação como ferramenta construtora da

realidade. A nova escrita é modelada pelas forças produtoras e formas de trabalho do mundo

capitalista, refletindo o término do mundo harmônico com destinos, lugares e papéis

determinados. Na narração da atualidade, já não há ordem e a arte tampouco é responsável

pelo seu reestabelecimento. Não são admitidos elementos sem transformação ou

posicionamento.

No mundo dominado pela tecnologia e utilitarismo, o poeta e o homem de letras

adquirem nova importância porque oferecem outra visão dos aspectos cotidianos da vida, sua

essência. Assim, o poeta e o homem de letras são considerados o tipo de herói genuinamente

moderno (SANTIÁNEZ, 2002, p.170). Pelas atuais condições de trabalho que lhes permite

gozar de uma reputação mundial e viver com comodidade material, o protagonismo social e

político daqueles que se dedicam ao labor intelectual aumentaram em comparação a etapas

anteriores da modernidade. Ainda que a imagem de contestação do profissional

intelectualizado esteja associada ao imaginário coletivo nem todo homem de letras é um

herói, apenas aqueles que têm uma função social decisiva. Neste ínterim, é necessário

ressaltar que há aqueles que são assimilados pelo sistema e aqueles que vivem à margem dele.

A literatura de Javier Cercas é ladina e paradoxal, pois não adota uma postura radical.

Nessa nova configuração surge nas letras europeias o personagem artista, do

profissional de letras ou personagem sensível alienado pela sociedade ou que se opõe a ela,

heróis decadentes, protótipos que obedecem inseridos em uma realidade concreta: “la toma de

conciencia del hombre de letras y del artista de su ambigua posición en una sociedad regida

por las leyes del mercado, por valor del dinero y por un mentalidad práctica en esencia”.

(SANTIÁNEZ, 2002.p 173). O personagem literário está vinculado ao fenômeno complexo

impulsionado pela modernidade e começa a aparecer de maneira mais sistemática na Espanha

a partir do século XIX, fase em que artistas e escritores refletem acerca de suas ideias

literárias, filosóficas e artísticas.

A estrutura histórica apresenta modificações que se sobrepõe na passagem do tempo.

Há porém a continuidade da figura o herói decadente, que sem abandonar seu caráter

reflexivo, adquire novos contornos no panorama atual. A produção e posse dos objetos

culturais são valorizadas como sinônimo de bem estar e por isso, a realidade passou a ser uma

representação e o indivíduo não um agente, mas um ator dentro dessa representação.

Na escrita de Javier Cercas, por exemplo, esse personagem literário é apresentado de

formas distintas obedece a um modelo, utilizando a autoficção como recurso. La verdad de

Agamenón o personagem vai de encontro aos valores mercantis e modernos dados à literatura

Page 65: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

64

e a seus produtores. Daí a utilização de um protagonista que não esboça posicionamento ou

ideias políticas. Uma vez abandonadas as grandes narrativas que mobilizaram a humanidade,

surge o problema de como justificar o saber na sociedade contemporânea, enfatizando a

influência da tecnologia sobre o saber e a transmissão/circulação de conhecimentos.

Surgem questionamentos sobre o que determina a autenticidade de um texto, quem

pode narrar uma história, se é aquele que experimenta ou aquele que observa e quem a

autenticidade é atribuída. Na concepção de Silviano Santiago, o narrador pós-moderno

observa a ação como espectador, não como atuante. Isso ocorre porque na medida em que a

sociedade se moderniza o diálogo entendido como uma troca de informações vivenciadas

torna-se mais difícil. Encontramos ressonância dessa teoria na escrita de Javier Cercas.

Através de mecanismos diferentes, tanto a literatura fantástica tradicional como aquela que se

desenvolve em nossos dias indica mudanças de uma sociedade. Pretendemos analisar que tipo

de mudanças o conto La Verdad de Agamenón sinaliza através da retomada do duplo com

estratégia de autoficção do escritor para refletir sobre a figura do escritor e o fazer literário.

Conforme estudo de Silviano Santiago, o narrador pós-moderno é também um

ficcionalista na medida em que a verossimilhança é produto da lógica interna do relato.

Consciente de que “real” e “autêntico” são construções de linguagem, é preciso dar

legitimidade a uma ação que não tem respaldo na vivência e, por isso, a ficção existe para

falar da incomunicabilidade de experiências do autor, do narrador, do personagem:

A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência. Pelo olhar, o

narrador, homem atual, oscila entre o prazer e a crítica, guardando sempre a

postura de quem, mesmo tendo se subtraído à ação, pensa e sente, emociona-se com

o que nele resta de corpo e/ou cabeça. (SANTIAGO, 2002, p. 59)

A produção artística de Cercas é astuta ao abordar a obra literária como produto

mercantil, buscando uma literatura que se mova dentro dessa realidade. O discurso literário é

mais rico e intenso, pois sua relação com a história e o contexto político e social é construída

de forma cifrada. Em La verdad de Agamenón, é a exigência do mercado que pressiona o

artista a “produzir” novos textos e faz surgir o desejo de quer ser outro. O autor evidencia sua

preocupação em encontrar uma forma de escrever sem abandonar o tom crítico.

Iniciamos nossa análise do conto La verdad de Agamenón fazendo uma digressão que

consideramos interessante porque nos conecta à tradição literária espanhola. Recorremos ao

célebre El Conde Lucanor, um livro de contos moralizantes do escritor e político Don Juan

Manuel, que data do século XIV. As narrativas que compõem a obra buscam ilustrar lições de

sabedoria ou ética, utilizando personalidades imaginárias ou reais de índoles diversas.

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65

Destacamos o conto XI- “Lo que sucedió a un deán de Santiago con don Illán, el mago de

Toledo”10 por apresentar a estrutura in media res, a mesma utilizada no texto de Javier Cercas.

Inicia-se a narrativa no meio da história na qual o Conde Lucanor conversa com

Patronio, seu conselheiro, e lhe expõe um problema. A fim de ajudá-lo, o conselheiro conta

uma história da qual pode extrair um ensinamento. Através de uma viagem no tempo, o

futuro, se transmite o ensinamento: “Cuanto más alto suba aquel a quien ayudéis, menos

apoyo os dará cuando lo necesitéis”. Narrativa contada por Patronio versa sobre um

estudioso que, desejando aprender a arte da necromancia, busca como mestre Don Illán, mago

de Toledo. Para convencer o mago a transmitir seus ensinamentos, o estudioso garante que em

troca pode conceder-lhe qualquer benefício que desejar. Após diversas escusas, Don Illán

aceita o estudioso como aprendiz, revelando que é necessário um lugar isolado para ministrar

os ensinamentos. Ambos seguem para um aposento subterrâneo, onde permanecerão durante o

tempo necessário a aprendizagem.

A curta estadia no salão de estudos, cuja caracterização revela a experiência insólita, é

uma espécie de túnel do tempo no qual acontecimentos e atitudes futuras serão antecipadas. O

estudioso de Toledo, sucessivamente, ascende a cargos superiores na Igreja Católica até

chegar a papa. Entretanto, ele não honra o compromisso assumido com Don Illán e ameaça

prendê-lo por ser herege e mago. Diante disso, o mago de Toledo demonstra, através da

experiência de viagem no tempo, que não poderia confiar na palavra do estudioso.

La verdad de Agamenón, já nas primeiras linhas, apresenta o narrador-personagem

Javier Cercas que busca relatar detalhada e objetivamente sua história a um interlocutor não

identificado. A narrativa promete ser o relato verídico da história entre ele e seu duplo, que

serve para justificar a motivação de um assassinato do qual se furtam maiores informações,

em principio, por parecer um caso conhecido.

O diálogo inicial entre o narrador e seu interlocutor é realizado com discurso direto,

deixando claras as falas de ambos. Esse tipo de discurso cumpre, simultaneamente, duas

funções. A primeira, iniciar a construção do fantástico na narrativa através da linguagem

cotidiana e o esclarecimento da circunstância em que se dá o relato. A segunda função é

facilitar que o leitor identifique do leitor com o protagonista pela ideia de testemunho.

“- Quiero contárselo todo- dijo-. Usted lo entenderá.

- Claro.

10 Cf. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-conde-lucanor--0/html/ acessado em

19/07/2011.

Page 67: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

66

- Le advierto que es una historia larga. Usted sólo conoce una parte. La que

importa es la que no conoce.- No se preocupe- dije-. Cuéntemelo todo. Tengo mucho

tiempo.

- No sé por donde empezar.

- Empiece por el principio.

Entrecerró los ojos en un gesto de fatiga; reflexionó un momento, mirando sin ver la

mesa con la jarra de agua y el vaso vacío que había entre nosotros; dijo:

- El principio es una carta (…)” (CERCAS, 2006, p. 269)

O equilíbrio entre narração e descrição são pontos que acrescidos à precisão da

linguagem compõem a atmosfera verossímil. Enquanto a narração faz progredir uma história,

a descrição consiste justamente em interrompê-la, detendo-se ora nos personagens ora no

cenário captando traços peculiares e significativos. No conto, a descrição tem a função

visualizadora que pode ser cumprida em modos e graus diferentes, uma vez que o ambiente

influencia a força dinâmica da trama. Anderson Imbert argumenta que “la descripción y la

narración son dos aspectos del modo de ser del cuento en el mundo literario, de igual manera

que el cuerpo y el alma son dos aspectos del modo de ser del hombre en el mundo real”.

(ANDERSON IMBERT,1979, p.330). Exemplo disso, em La verdad de Agamenón é a

locomoção dentro da cidade de Granada, o percurso dos ambientes e de pontos referencias

como Palacio de los Condes de Gabia, o restaurante Los Manueles e Divan de Tamarit, que

surgem para situar o leitor não apenas no ambiente físico mas também no caminho intelectual

que será seguido na narrativa.

Transitar por conhecidos pontos granadinos é demonstrar conhecimento sobre suas

peculiaridades. É interessante notar a forma como o narrador menciona a província de

Estremadura e as cidades de Granada e Madrid, mas não se detém em sua descrição como se

elas fossem seus atributos, uma extensão da personagem. De forma semelhante, transitar pelas

cidades significa também percorrer autores e esclarecer quais foram tomados como paradigma

para a construção do texto, o caminho seguido. Dessa forma, o escritor Javier Cercas exibe

com desenvoltura o caráter intertextual de sua escrita, dialogando com autores como Philip

Roth, Poe, Dostoievski e Borges que compõem sua formação intelectual.

O autor espanhol demonstra conhecimentos sobre crítica literária, transformando a

bagagem teórica em matéria ficcional para sua escritura. Daí uma das características que se

destaca é a imediata conexão do conto La verdad de Agamenón com a literatura sobre o duplo

e autoficção, promovendo a convivência entre clássicos mais tradicionais como Poe e

Dostoievski e referentes mais contemporâneos como Borges, Auster e Roth, feitas as devidas

ressalvas. Nos célebres William Wilson de Poe e O Duplo de Dostoievski , conto e romance,

os autores não são matéria ficcional para o desenvolvimento da obra enquanto em El otro yo

Page 68: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

67

de Borges, A Cidade de vidro, de Auter e Operação Shylock, de Roth ocorre justo ao

contrário.

Receber a carta de um leitor, fato trivial para todo escritor alcança alguma projeção no

mercado editorial, é a situação que serve à ação narrativa. Esse elemento, que é a primeira

conexão entre o remetente e o destinatário, confronta aberta e simultaneamente o campo

pessoal e profissional do protagonista. O sentimento de perplexidade, comum à narrativa

fantástica, é um dos veículos que torna possível a reflexão sobre o questionamento da

realidade em nossos dias e o significado desse questionamento.

O protagonista toma ciência de que existe um homem com o qual compartilha muitas

afinidades. A carta torna claro que identidade é tema central, aproveitando a coincidência

nominal para produzir o efeito de estranheza. Conforme a informação contida no conto, o

sobrenome Cercas é pouco comum e o fato de não se tratar de uma ramificação familiar, torna

ainda mais rara e instigante a duplicidade dos nomes. Também a meia idade, o convívio

acadêmico, a condição de chefe de família e a afeição literária são pontos comuns a ambos.

A partir do momento em que se estabelece o diálogo entre o protagonista e seu duplo a

distinção entre as vozes das personagens se torna menos marcada. O diálogo entre eles ocorre

de forma constante na narrativa, dando a sensação de ser complementares, mais um dos

indícios da dificuldade de distingui-los. Restam apenas os sinais de pontuação para indicar as

pausas, sem, no entanto, ter a intenção de tornar mais evidentes as falas do personagem Javier

Cercas e seu doppelgänger.

Ao contrário, as intervenções do interlocutor não identificado, aquele a quem o

protagonista revela sua história, se tornam mais espaçadas na narrativa, precedido sempre de

algum recurso visual que esclarece que não se trata das sentenças dos personagens principais.

Em nossa reflexão, o interlocutor inominado ocupa na narrativa o lugar do leitor passivo cujas

breves interferências servem não para crítica ou julgamento, mas para sua melhor

compreensão sobre o caso. Essas intervenções são também indícios da realidade que

paulatinamente se revela no texto. O escritor está obrigado a cumprir prazos e produzir textos

e é por causa dessa pressão que o personagem cria uma segunda personalidade para assumir

suas tarefas e compromissos.

“Fue un error, porque el caso es que ya no faltaba mucho tiempo para que venciera

el plazo acordado y yo ni siquiera había empezado a escribir. Ni tenía intención de

hacerlo. Así que cuando vi que mi tocayo tenía una novela inédita pensé que tal

vez… Pero no me atreví a hacerlo.

- ¿Por qué?

Dudó un momento, se encogió de hombros.

- No lo sé.

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68

- Y , entonces, ¿ cómo salió del aprieto?

- No salí: me sacaron. Es lo iba a contarle. Pero antes déjeme que le cuente

otra cosa, porque si no a lo mejor no entiende cómo acabó todo.”(CERCAS, 2006,

p. 289)

A falta de habilidade com o ambiente familiar assim como a recusa do personagem em

integrar-se ao convívio social chama a atenção para sua tendência ao isolamento.

Interpretamos que a insatisfação e o distanciamento com respeito ao mundo gera o desejo de

querer ser outro. O autor explora o conflito do narrador-personagem para abordar umas das

dificuldades do universo literário: a conciliação da arte e da vida, em outras palavras, o

profissional e pessoal porque, conforme o personagem central, a escrita é um sonho

excludente. É interessante observar que a insatisfação do narrador não se refere às etapas da

infância ou da juventude, mas ao momento presente, a vida madura com suas

responsabilidades e compromissos.

Os recursos da linguagem demonstram a tênue fronteira entre a interioridade do ser

humano (frágil, fragmentado e que zela por sua individualidade) e seu posicionamento crítico

(pensador e profissional das letras absorvido na lógica do mercado). Dessa forma, o duplo é

utilizado como um recurso da autoficção do autor Javier Cercas para refletir sobre ambos os

domínios. O trabalho de selecionar e ordenar torna singulares os elementos manipulados no

conto e funciona como um filtro subjugado aos critérios do escritor. O olhar lançado sobre um

objeto, que neste caso é a realidade da produção literária espanhola na atualidade, é

participativo e integrante do sistema sem estar isento de intenção. É necessário, portanto

esclarecer que o resultado, sua visão, é também parcial e a imagem do descrito se transforma

e se reinventa sob o cristalino do descritor. Em conjunto, o vocabulário e a forma de conduzir

a narrativa são formas inserir seu estilo e dar graça ao conteúdo a seu texto.

O protagonista Javier Cercas deixa de ter experiências interpessoais na medida em que

se compromete com entrevistas, jantares, feiras literárias de divulgação. O duplo configura a

possibilidade de desvencilhar-se de um conjunto de editores, leitores, críticos que

representam„un humillante papelón de literato que me impedía llegar a ser del todo quién por

entonces creía que quería ser‟. (CERCAS, 2005, p.274).

O ponto alto da narrativa fantástica é o encontro entre o original e cópia. As

circunstâncias do encontro revelam o conhecimento e destreza do manejo da narrativa

fantástica. A ambientação e a situação cotidiana do estabelecimento de conversas, degustação

de aperitivos e bebidas no restaurante Los Manueles; o entorpecimento, o acontecimento

extraordinário que assalta o cotidiano. O vocabulário indica utilização do campo semântico

que envolve o duplo na literatura fantástica relacionando-o ao olhar. A cena que de forma

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69

incisiva declara a existência de doppelgänger, que em La Verdad de Agamenón é indivíduo

fisicamente idêntico, de existência autônoma em relação ao original, faz alusão à superfície do

espelho; o consumo do whisky e a vertigem do encontro sugerem a uma falha nas faculdades

mentais e a loucura do protagonista.

A troca de vidas significa retornar a uma vida simples e sem as responsabilidades

implícitas ao papel de escritor e por outro lado, a chance de alcançar o reconhecimento e

fama. A contribuição quinzenal para o suplemento dominical de um periódico é único vínculo

que o narrador-personagem mantém com a antiga rotina e também o último a ser eliminado

entre o original e a cópia. Definitivamente, o elo de ligação literatura.

O distanciamento do narrador Javier Cercas e o doppelgänger se realiza

paulatinamente e pode ser percebido também na mudança do meio de comunicação entre

ambos: em primeiro lugar a carta, de tom mais íntimo, pessoal e físico; depois o telefone que

está ainda em um nível de concretude e permite a comunicação à distancia; por último, e-mail,

mensagem virtual de grande abrangência que pode ser emitida e recebida a partir de qualquer

lugar do planeta. O canal de comunicação entre eles é o e-mail, forma eficaz e segura que está

inserida no contexto informativo da pós-modernidade, elucida uma sociedade cada vez mais

individualista que valoriza o saber racional e científico.

A tecnologia traz inúmeros benefícios, mas junto a eles há também o processo cada

vez maior de isolamento dos indivíduos. No conto, essa representação aparece com a

transmissão de notícias e dados pela internet. Já não há a necessidade do encontro para trocar

informações e, sobretudo, o conteúdo mais relevante transmitido virtualmente é o artigo. Este

último é uma forma de apontar para a influência da tecnologia no cotidiano. A menção do

artigo é importante para vincular o caráter mercantil e inserir a literatura neste contexto.

“(...) escribir un artículo quincenal para el suplemento dominical de un periódico:

como era una fuente de ingresos importante de la que no convenía prescindir,

acordamos que seguiría escribiendo el artículo y que yo se lo enviaría a él por

correo electrónico para que él se lo enviara por el mismo procedimiento al

periódico, de forma que este no notara cambio alguno en el remitente.”(CERCAS,

2006, p.282)

Ainda que haja outros fatores, a morte do pai antecipa o sentimento de usurpação do

protagonista que acompanha o funeral à distancia. A descrição da cena é utilizada como

pretexto para retornar ao início do conto, que faz alusão ao lançamento do romance La

velocidad de la luz e esse fator assinala também a estrutura do conto dentro do conto.

Ironicamente, autor qualifica La velocidad de la luz como superior a Soldados de Salamina

quando na realidade ocorre ao contrario: Soldados de Salamina lança um novo olhar sobre a

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70

Guerra Civil Espanhola, narrativa apaixonante que é parte da cultura e formação do escritor,

enquanto La velocidad de la luz repete a fórmula do romance anterior de forma empobrecida

porque a história de um veterano da Guerra do Vietnã não é parte do acervo cultural do Javier

Cercas.

(…)vi pasar a unos metros de mí a mi mujer y a mi hijo y a mis hermanas y sobre

todo distinguí la irritación inconfundible del llanto en los ojos de mi tocayo, cuando

sentí por primera vez una nostalgia hiriente de mi otra vida, de mi vida anterior y

verdadera, de mi mujer y de mi hijo y mi hogar y mi trabajo de escritor y también de

mi padre, y la tristeza y la nostalgia se me confundieron con una furia asesina

contra mi tocayo, como si hubiera sido él quien me hubiera robado la vida sin aviso

y no yo quien hubiera insistido en que me prestase la suya a cambio de que yo

hiciera lo mismo con él. (CERCAS, 2006, p.290)

Na medida em que constata que o duplo tem capacidade laboral e talento superiores

aos seus para desempenhar, a indiferença do narrador-personagem é transformada em raiva.

Ao se dar conta de que o duplo desempenhou o papel de órfão com perfeição, o narrador

percebe que está preso em uma a armadilha hermética:

“(...) Me he cansado: quiero recuperar a mi mujer verdadera, quiero recuperar a

mi vida verdadera y a mi hijo verdadero y mi trabajo verdadero, quiero recuperar a

mi vida de verdad. ¿Pero no te das cuenta? Aunque quisieras, tu mujer ya no es tu

mujer, tu hijo ya no es tu hijo, tus libros ya no son tus libros. Tu vida ya no es tu

vida: es la mía. Yo soy tu tú. ¿No lo entiendes?” (CERCAS, 2006, p.292)

3.3 PERSONAGENS: FICÇÃO E REALIDADE.

Não há escrita sem intenção. Todo discurso tem uma dimensão ideológica que

relaciona as marcas deixadas no texto com as suas condições de produção. A literatura opera

nessa dimensão, pois mescla entre o empírico e o imaginário, convertendo-se assim em

veículo apropriado para tratar de questões complexas. A relação entre a literatura e o

mercado, a construção do campo cultural, pertencimento a uma tradição e a influência da

tecnologia na produção artística são alguns dos pontos tocados nessa estreita relação.

No senso comum, o termo ideologia é sinônimo conjunto de ideias, de pensamentos

ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo para orientar práticas sociais e

políticas. Em sua concepção crítica, pode ser considerado um instrumento de dominação que

aliena a consciência humana, mascarando a realidade. Neste sentido, o fazer literário combate

o pensamento conformista:

“A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na

realidade social sendo, no entanto, sua outra face. A arte abre uma dimensão

inacessível a outra experiência, uma dimensão em que seres humanos, a natureza e

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71

as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida.

Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na

sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens

distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda

não é percebido, dito e ouvido na vida diária.” (MARCUSE, s/d, p.78)

A obra de arte tenta operar na conscientização dos sujeitos da mudança. La verdad de

Agamenón é uma forma de protestar contra os valores mercantis dados a literatura e a seus

produtores que nas personagens encontra maior nitidez e torna mais livre a ficção. Daí a

utilização de um protagonista sem de ideologia e opinião, que assume um posicionamento

crítico. Annatol Rosenfeld (1970, p.29), afirma que é através da personagem de ficção que a

camada imaginária se adensa e se cristaliza e, por isso, “(...) as personagens ao falarem,

revelam-se de um modo bem mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem

ou procuram disfarçar a sua opinião verdadeira”.

Dessa forma, interpretamos o protagonista Javier Cercas como insatisfeito no campo

pessoal e profissional, alheio ao seu entorno. Doppelgänger, seu antagonista, personificação

da necessidade do escritor de manter-se no mercado literário e adotar uma posição crítica

também com relação ao seu ofício. A mulher do duplo, personagem sem nome, representa o

leitor formado pela literatura facilitada, que na Espanha coincide com a transição

democrática.

O período de transição do regime ditatorial ao democrático (1975 a 1981) constituiu

uma nova etapa cultural para Espanha, pois a morte de Franco e a subsequente evolução

política afetaram radicalmente as regras que condicionavam a criação artística 11 . O

desenvolvimento econômico e a incorporação à nova ordem mundial se converteram em meta

nacional e tais elementos estão diretamente relacionados a um movimento de democratização

da literatura.

Uma nova etapa literária se inicia com a democracia comprometendo a história

política com a literatura. O estudioso parte da premissa de que há correspondência entre a

nova ideologia política democratização e a paralela produção literária. A transição de um

regime a outro impacta diferentes níveis de comportamento social, expressão do imaginário e

discurso narrativo. Desse modo, houve a necessidade de adaptação dos escritores a um perfil

comercial sem abandonar a tônica de sua literatura.

O valor literário de uma obra e seu valor como mercadoria é polêmico. A questão

contribui para a desqualificação do produtor de literatura de consumo, taxada como

11 Cf. MONLEÓN, José B. Del franquismo a la posmodernidad. Ediciones Alcalá, 1995. p.5

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descomprometida com a tradição literária. Diante da crítica, com relação à tradição culta

estabelecida, a popularização de obras com interesses comerciais foi o motivo de serem

descritas como obras menores. O mercado editorial se ampliou e produção literária periférica

acompanhou tal crescimento. Neste ínterim, no século XX houve a busca pela construção de

uma nova configuração do literário.

O início da escrita de Cercas está inserido neste processo de transformação e

adaptação ao meio europeu de contexto especificamente espanhol. Durante os anos de 1980 e

1990, o leitor foi formado pela leitura facilitada de best-sellers, romance policial e histórico,

que são transpostas à linguagem fílmica com o objetivo de atingir as grandes massas. Em uma

sociedade na qual é muito fácil publicar é necessário confrontar o comportamento passivo

formado na sociedade da imagem e se deseja um leitor participativo, que compartilhe da

discussão da obra.

Citar a primeira obra do escritor Javier Cercas enriquece a discussão sobre a crítica

literária, a participação do leitor na obra e amplia a compreensão da escrita do autor espanhol.

A primeira edição de El móbil data de 1987 e conta com cinco textos. Utilizamos a edição de

2003 que é constituída apenas pelo conto que lhe dá nome. Em El móbil (2003), toda a trama

é desenvolvida como um jogo que serve para refletir sobre os mecanismos da literatura e a

contradição que consiste em abandonar a humanidade pelo reconhecimento da obra. Álvaro, o

escritor que protagoniza a trama, tem o objetivo de escrever um romance de verdade, uma

obra definitiva que redimisse suas tentativas anteriores frustradas. O escritor fictício concebe

a história de um crime, escolhe seus vizinhos como modelos reais para seus personagens e

extrai da observação de suas vidas o material para sua obra.

Na medida em que avança na redação do texto, o protagonista constrói uma densa

relação entre a realidade e a ficção que foge ao seu controle ao longo da narrativa. Javier

Cercas arquiteta o texto de forma que os personagens manipulados entendam que Álvaro, o

protagonista, enlouquece com suas obsessões. A necessidade de representar um crime real na

ficção leva o escritor Álvaro a provocá-lo na vida real. O real motivo do crime é a literatura,

um crime sem perdão.

Em seus estudos sobre a obra de Javier Cercas, Nei Duclós faz a defesa da literatura de

Cercas estabelecendo relações entre El móbil e o ilustre “Crime e Castigo” de Dostoievski e

acrescenta que as obras compartilham o mesmo mote: um solitário sente-se injustiçado pela

sociedade e precisa encontrar nisso os motivos para o seu isolamento. Descobre que essa

doença é geral, todos estão confinados em suas vidas medíocres e encerra seu argumento

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afirmando que Javier Cercas é um “escritor raro, que tem o principal motivo para fazer

literatura: contar toda a verdade, mesmo que isso pareça ser apenas um sinistro parque de

diversões”.

Retomando a análise de La verdad de Agamenón e tomando novamente a literatura

como fio condutor de todas as ações, a morte do pai é o acontecimento pessoal que promove a

nostalgia e o desejo de retornar à vida anterior e verdadeira. Entretanto, é o lançamento do

livro La velocidade de la luz o fator determinante para a ruptura do pacto e desejo de encerrar

da experiência.

A narrativa remete ao período que sucede o lançamento de Soldados de Salamina e

contabiliza pouco mais de um ano desde o início, o recebimento da carta e o suposto

assassinato do duplo. Por fim, o único pedido do protagonista Javier Cercas é não ser visto

como um louco. Em sua alucinação, ele crê que matou um homem e, por isso, merece ser

castigado:

Estoy perfectamente cuerdo. Entiendo que tengo que ser castigado: He matad a un

hombre y tengo que ser castigado. No pido perdón. Lo único que pido es que no me

tomen por loco, que me crean, que usted por lo menos me crea, que crea que todo lo

que le he contado es la verdad, la pura verdad, sólo le pido eso. Usted me cree,

¿no?

- Claro (CERCAS, 2009 ,p. 294)

Um diagnóstico científico explicaria que todo o relato é a alucinação de um

esquizofrênico. Em nossa análise, entendemos que o cenário que alberga a narrativa é a cela

de um manicômio e que o interlocutor não identificado é o psiquiatra ou enfermeiro

responsável pelo cuidado e tratamento do paciente. Nesta perspectiva, a armadilha hermética,

o pesadelo a qual se refere o narrador-personagem se torna real e é o resultado do seu

progressivo isolamento.

Em resumo, a esquizofrenia é um transtorno psíquico que se manifesta através de

alterações do pensamento, promovendo alterações no contato com a realidade e a distinção

entre experiências internas e externas. Na teoria freudiana, a origem desse transtorno é a

ausência de relações interpessoais satisfatórias, que justifica recorrer à figura do duplo como a

possibilidade de resgatar o convívio social e familiar. Neste sentido, é também interessante

observar o esmero de compor ambos os personagens, Javier Cercas e o doppelgänger,

assinalando hábitos diferentes. Enquanto é possível notar no protagonista o comportamento de

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ansiedade e algumas compulsões como fumar, beber, roer e as unhas; o duplo não os

apresenta, representando a autocrítica e qualificando-o como superior.

Especialistas afirmam que não existe apenas um fator responsável pelo transtorno.

Admite-se que várias são as causas que colaboram para seu aparecimento como quadro

psicológico (consciente e inconsciente). Dessa forma, acreditamos que os elementos inseridos

no conto como a ambientação das cenas, o histórico de doença familiar (a internação do pai

em uma residência de anciãos), a possibilidade do uso de substâncias (bebidas alcoólicas)

consumidas no desencadeamento de surtos e afloração de quadros psicóticos podem reforçar a

ideia de que a narrativa é um delírio.

Reconstruindo a realidade habitual a partir da imaginação, a literatura nos convida a

indagar sobre quem somos. Nessa “lógica”, a obra de ficção é “um espaço privilegiado no

qual o homem pode “viver” e contemplar, por intermédio de personagens variadas, a

totalidade de sua condição” (ROSENFELD, 1970:29). Retornando a reflexão inicial, o

mundo que conhecemos é regido por leis naturais rígidas e imutáveis onde se buscam

respostas baseadas na lógica e na ciência. Em contrapartida, o espaço do imaginário é um

imprevisível universo de possibilidades que precisam do leitor para realizar-se.

A fase em que é gestada a produção literária de Javier Cercas é marcada pela intensa

busca por novos caminhos e formatos literários que possam melhor expressar a realidade do

mundo capitalista e suas contradições. Neste ínterim, a literatura muda o foco do interesse

pelas relações entre o homem e mundo para uma crítica da natureza da própria ficção. A

transformação cultural gesta o nascimento de diferentes modos de articulação e discursos

sobre o real.

O estudo O dualismo, Kalina e Kovadloff (1989) afirma que o dualismo é uma

condição inerente ao ser humano e seu sentido deve ser considerado como resposta ao

enfrentamento das circunstâncias vivenciadas. Em relação à arte os autores afirmam que ao

contrapor a visão cotidiana do mundo e a visão estética, podem ser observados ao menos dois

sentidos: o que é dado pelo costume e o que é conferido pelo assombro ao redescobri-lo.

Assim, graças à arte e à vida cotidiana, a realidade se bifurca revelando-se ante nós como

dualidade semântica. Enquanto na arte, a técnica e o saber estão colocados a serviço do

inusual, na vida cotidiana, a técnica e o saber asseguram a vigência do usual, isto é, ratificam

a crença do domínio pleno da natureza e de si mesmo.

O duplo do homem do nosso tempo não escapa ao temor da morte, das incertezas e

ambivalências da vida afetiva, descontrole das emoções, a necessidade de afirmação da sua

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identidade. A conjunção da literatura fantástica e da autoficção indicam uma nova estratégia

literária. A literatura fantástica foi utilizada para questionar a racionalidade dando uma nova

significação ao duplo, uma segunda personalidade crítica. A autoficção moderniza a questão

identitária partindo da figura do escritor dentro da transformação cultural como personagem

não unificado, em constante processo de construção.

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CONCLUSÃO

Segundo Tzvetan Todorov, uma das referências fundamentais nos estudos do

fantástico, o gênero teve seu auge no século XIX. A partir desse momento, desenvolve-se a

problemática da irrupção do fato inexplicável segundo as leis naturais no mundo que

conhecemos. Diante da afirmação de que o fantástico é vacilação entre aceitar uma explicação

natural ou sobrenatural dos fatos narrados, na proposta de Todorov, narrador, personagens e

leitor implícito são capazes de discernir se o texto representa a ruptura das leis do mundo

objetivo ou se fenômeno pode ser explicado mediante a razão. A partir do momento em que se

aceita o sobrenatural, entramos no terreno do maravilhoso; do contrário, no estranho.

A literatura fantástica demonstra uma nova percepção do mundo, da individualidade e

construção social, fornecendo ao imaginário a possibilidade de representar momentos de

inquietação deixados como espólio para a modernidade. Nesse viés, é fundamental considerar

as referências históricas e sociais em que um texto está inserido, base da teoria de Ana María

Barrenechea. Independente da organização de espaço e tempo, todo texto é lido em contraste

com o tempo e o lugar da leitura e, por isso, depende também dos códigos culturais. Dessa

forma, as noções de normal ou anormal estão diretamente ligadas àquilo que é socialmente

aceito.

Dentre as contribuições do gênero fantástico para a modernidade, observamos mais

atentamente a questão identitária. No conto La verdad de Agamenón, Javier Cercas explora o

tema da identidade do autor na atualidade. Indagamos o modo como o escritor utiliza o

fantástico no século XXI. Tentando responder a essa pergunta, desenvolvemos a presente

dissertação.

A construção e a preservação da identidade são preocupações do indivíduo moderno.

O duplo (doppelgänger), figura fantástica definida como cópia idêntica ou desdobramento do

ser, reflete essa preocupação e adquire em cada obra sentidos diferentes. Na literatura de

Cercas, a ficcionalização do autor e da crítica são recorrentes. La verdad de Agamenón

representa a personificação da crítica como segunda personalidade. Buscamos compreender

de que forma o fantástico e a identidade do autor estão relacionados à autoficção, estratégia

literária que sugere a identificação irônica entre narrador e autor. A proposta autoficcional

utiliza a produtividade da confusão autor/narrador/protagonista para reforçar a ideia da

fragilidade da identidade, que tem como centro de discussão a confusão entre a pessoa real e o

personagem escritor, a figura pública.

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No conto, a conjunção de literatura fantástica e da proposta autoficcional constitui

uma inovação sugerida por Javier Cercas, que utiliza o elemento fantástico como método

crítico. Ao longo da dissertação, nos perguntamos que tipo de conflito está sendo manifestado

no texto. Percebemos a preocupação em demonstrar o conflito do produtor de bens

simbólicos, por isso, Cercas une o problema da identidade com a complexidade que envolve a

criação da figura do escritor na contemporaneidade. O autor constrói uma personalidade

literária em crise, valorizando pensamento crítico sem deixar de perceber que o mesmo está

inserido na lógica de produção e comercialização da literatura.

Tomando como base a teoria de Manuel Alberca, a autoficção consiste em tomar as

características da autobiografia e do romance e suscita a reflexão sobre a figura do escritor e

as transformações ocorridas no processo de elaboração da narrativa. A proposta autoficcional

é uma tendência que explora os limites entre o referente e sua representação literária, em

outras palavras, ficção e realidade, numa nova configuração da literatura. A análise do

estudioso explicita de que maneira se desenvolve a autoficção espanhola, oferecendo uma

visão do panorama artístico, cultural e intelectual da Espanha no período histórico de sua

gestação, a transição democrática.

O período de transição do regime ditatorial ao democrático (1975 a 90) constituiu uma

nova etapa cultural para a Espanha, pois a morte de Franco e a subsequente evolução política

afetam também as regras que condicionam a criação artística. A passagem de um regime a

outro impacta diferentes níveis na economia e no comportamento social com reflexos na

expressão do imaginário e discurso narrativo. A mudança significou maior liberdade tanto

individual quanto para o debate de ideias, conquista sociais como reforma da educação,

concessão de bolsas de estudo e ajudas a camadas desfavorecidas que contribuem também

para novos hábitos de consumo.

A questão do consumo está presente na teoria de Jean-François Lyotard, que entende

parte da pós-modernidade como fenômeno próprio da sociedade tecnológica para a qual

grande das produções tem como finalidade o mercado consumidor. A principal crítica de

Lyotard é referente ao saber, que passa a ser valorizado não para a construção dos

metanarrativas, entendidas como discursos de liberdade e humanidade, mas para tratar

diretamente de técnicas e produtos. Ao longo da pesquisa, mostramos que a tecnologia exerce

grande influencia sobre a literatura, desencadeando o surgimento formas literárias que operem

nessa lógica.

Na Espanha, o processo de desenvolvimento da autoficção coincide com a transição

democrática e paulatino desencanto do discurso político, que são demonstrados na literatura

Page 79: O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN

78

através do conteúdo mais íntimo e pessoal na literatura sem, no entanto, ter o mesmo ônus do

autobiográfico ou adoção de uma postura política determinada. Na pós-modernidade

diferentes estilos e técnicas são aceitos com a intenção de formar um mesmo mercado

consumidor e a ideia de eliminar fronteiras se faz muito presente. Em La verdad de

Agamenón há uma integração entre o duplo e a autoficção. Ao mesmo tempo é interessante

observar que essa junção de elementos rompe com o realismo que se costuma atribuir à

literatura espanhola uma vez que utiliza introduz um elemento fantástico.

Dessa forma, emerge a reflexão de como construir a figura do escritor que representa a

necessidade de autoconhecimento e construção de uma personalidade literária em crise. As

manifestações do duplo e a autoficção têm a função subversiva de desmascaramento moral e

social da situação em que se encontra o escritor na atualidade. Essa perspectiva vai ao

encontro da primeira hipótese formulada, a valorização da figura do escritor. Chegamos à

conclusão de que Javier Cercas tem consciência não apenas do seu papel como produtor de

bens simbólicos, mas também da impossibilidade da arte transformadora da realidade. Na

medida em que o autor expressa a ironia e fragilidade de sua posição acaba com a ilusão de

que aquele que escreve é de alguma forma superior.

É necessário confrontar o comportamento passivo gerado pela facilidade de circulação

e consumo de obras. A literatura de Javier Cercas, gestada nesse processo de democratização

do conhecimento, faz surgir a necessidade da formação de um leitor participativo. A proposta

autoficcional valoriza e subverte os pactos romanesco e autobiográfico, reclama um leitor que

aprecia e suporta o jogo duplo de propostas contrárias, valorizando o pensamento crítico.

Embora o foco de nossa investigação tenha sido a obra do escritor Javier Cercas,

comprovamos que contexto social, político e a realidade literária da Espanha aparece também

em outros autores. A preocupação em produzir uma literatura que reclama uma forma distinta

de leitura é compartilhada, por exemplo, por Juan José Millás e Enrique Vila-Matas,

contemporâneos de Cercas e autores com os quais busca dialogar através de sua literatura.

Uma futura investigação dará lugar ao questionamento sobre de que forma essa literatura

contribui para a formação do novo leitor, aquele que compartilha da discussão da obra.

O percurso de planejamento, desenvolvimento e conclusão do nosso trabalho é mais

uma etapa do longo e contínuo processo de amadurecimento intelectual. Por isso, oferecemos

uma possibilidade de interpretação do texto La verdad de Agamenón sem a pretensão de

esgotar o tema e com o desejo de contribuir e participar de futuras investigações.

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ANEXOS

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Anexo A – CAPA DO LIVRO LA VERDAD DE AGAMENÓN

Ilustração 2 – Capa do livro La Verdad de Agamenón

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Anexo B – CÓPIA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN

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