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A sombria história da “peste-gay”: a autoficção de Caio Fernando Abreu e o retrato do estigma da AIDS no Brasil Letícia Gonçalves Ozório Silva (UFGD) Paulo Bungart Neto (UFGD) [email protected] [email protected] Resumo: Na década de 1980, o mundo se viu abalado diante da nova epidemia que ameaçava a humanidade: a AIDS. A maior ameaça, no entanto, consistia em lidar com o desconhecido, uma vez que a doença se diferia de outras epidemias históricas por envolver mais que o corpo físico e atingir também o gênero, a sexualidade, enfim, a subjetividade. Isso fez com que sua repercussão na sociedade fosse extremamente conturbada, instaurando-se discursos de intolerância que acabaram por oprimir os doentes, que eram encarados como merecedores de uma espécie de castigo devido às práticas sexuais consideradas imorais. Nesse problemático contexto, a maioria dos literatos brasileiros se esquivou do assunto, principalmente no que tange a textos de caráter pessoal. Sobretudo, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu não abriu mão de incluir a AIDS em sua produção literária autoficcional, mesmo após ser diagnosticado portador do vírus HIV. Sendo assim, analisando a epidemia para além da área biomédica e a reconhecendo como fato histórico, e utilizando como corpus crônicas e contos publicados em Pequenas epifanias (2012) e Ovelhas negras (2009), objetiva-se neste trabalho traçar a relação entre esse contexto e a autoficção produzida por Abreu nas décadas de 1980 e 1990, no papel de retratista do momento e desconstrutor de estigmas que envolviam as pessoas soropositivas. O apoio teórico das reflexões se baseará na obra Ensaios sobre a autoficção (2014), organizado por Jovita Noronha. Palavras-chave: Literatura; História; AIDS; Caio Fernando Abreu; Literatura Brasileira. Abstract: In the 1980s, the world has been shaken by a new epidemic that began to threaten the humanity: AIDS. The greatest threat, however, consisted in dealing with the unknown aspects, because the disease differed from other historical epidemics by involving more than the physical body, because it is related to gender, sexuality and, consequently, subjectivity. These facts contributed to an extremely troubled repercussion of AIDS in the society, bringing and exposing discourses of intolerance that eventually oppressed the patients, as if they shall deserve it, in a kind of punishment due to sexual practices considered immoral. In this problematic context, the majority of Brazilian writers avoided the subject, especially in texts with a personal approach. Above all, the writer Caio Fernando Abreu did not hesitate to include the theme of AIDS in his autofictional literary production, even after being diagnosed with HIV. Thus, analyzing the epidemic beyond the biomedical area and recognizing it as a historical fact, and using chronicles and short stories published in Pequenas epifanias (2012) and Ovelhas negras (2009), the purpose of this work is to trace the relationship between this context and the autofiction produced by Abreu in the 1980s and 1990s, as a portraitist of that moment and a writer who helped to break prejudice involving seropositive people. The theoretical support of the reflections will be based on the work Ensaios sobre a autoficção (2014), organized by Jovita Noronha. Key-words: Literature; History; AIDS; Caio Fernando Abreu; Brazilian Literature.

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A sombria história da “peste-gay”: a autoficção de Caio Fernando Abreu e o retrato do

estigma da AIDS no Brasil

Letícia Gonçalves Ozório Silva (UFGD)

Paulo Bungart Neto (UFGD)

[email protected]

[email protected]

Resumo: Na década de 1980, o mundo se viu abalado diante da nova epidemia que ameaçava

a humanidade: a AIDS. A maior ameaça, no entanto, consistia em lidar com o desconhecido,

uma vez que a doença se diferia de outras epidemias históricas por envolver mais que o corpo

físico e atingir também o gênero, a sexualidade, enfim, a subjetividade. Isso fez com que sua

repercussão na sociedade fosse extremamente conturbada, instaurando-se discursos de

intolerância que acabaram por oprimir os doentes, que eram encarados como merecedores de

uma espécie de castigo devido às práticas sexuais consideradas imorais. Nesse problemático

contexto, a maioria dos literatos brasileiros se esquivou do assunto, principalmente no que

tange a textos de caráter pessoal. Sobretudo, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu não abriu

mão de incluir a AIDS em sua produção literária autoficcional, mesmo após ser diagnosticado

portador do vírus HIV. Sendo assim, analisando a epidemia para além da área biomédica e a

reconhecendo como fato histórico, e utilizando como corpus crônicas e contos publicados em

Pequenas epifanias (2012) e Ovelhas negras (2009), objetiva-se neste trabalho traçar a relação

entre esse contexto e a autoficção produzida por Abreu nas décadas de 1980 e 1990, no papel

de retratista do momento e desconstrutor de estigmas que envolviam as pessoas soropositivas.

O apoio teórico das reflexões se baseará na obra Ensaios sobre a autoficção (2014), organizado

por Jovita Noronha. Palavras-chave: Literatura; História; AIDS; Caio Fernando Abreu; Literatura Brasileira.

Abstract: In the 1980s, the world has been shaken by a new epidemic that began to threaten

the humanity: AIDS. The greatest threat, however, consisted in dealing with the unknown

aspects, because the disease differed from other historical epidemics by involving more than

the physical body, because it is related to gender, sexuality and, consequently, subjectivity.

These facts contributed to an extremely troubled repercussion of AIDS in the society, bringing

and exposing discourses of intolerance that eventually oppressed the patients, as if they shall

deserve it, in a kind of punishment due to sexual practices considered immoral. In this

problematic context, the majority of Brazilian writers avoided the subject, especially in texts

with a personal approach. Above all, the writer Caio Fernando Abreu did not hesitate to include

the theme of AIDS in his autofictional literary production, even after being diagnosed with

HIV. Thus, analyzing the epidemic beyond the biomedical area and recognizing it as a

historical fact, and using chronicles and short stories published in Pequenas epifanias (2012)

and Ovelhas negras (2009), the purpose of this work is to trace the relationship between this

context and the autofiction produced by Abreu in the 1980s and 1990s, as a portraitist of that

moment and a writer who helped to break prejudice involving seropositive people. The

theoretical support of the reflections will be based on the work Ensaios sobre a autoficção

(2014), organized by Jovita Noronha.

Key-words: Literature; History; AIDS; Caio Fernando Abreu; Brazilian Literature.

Introdução

As pesquisas no campo da medicina e da biologia remontam a origem da AIDS a uma

espécie de chipanzés africanos que portavam o vírus SIV (vírus da imunodeficiência símia).

Quando estes eram capturados por caçadores, iniciavam uma luta corporal na tentativa de

resistência, e assim que abatidos, eram jogados sobre as costas destes homens, o que fazia com

que o sangue dos ferimentos de ambos se misturasse e o vírus SIV sofresse mutações no corpo

humano, transformando-se no mortal HIV. Entretanto, os casos de AIDS nesta época não foram

estudados. Na década de 1970 quando se iniciaram as guerras de independência de diversos

países africanos, estima-se que o vírus da AIDS tenha chegado até à Europa e à América.

No final da década, a doença começa a entrar para o imaginário público, pois foram

detectados alguns casos de uma “doença misteriosa” em jovens homossexuais nos Estados

Unidos. Apenas em 1982 as pesquisas evoluíram ao ponto de cunharem a sigla AIDS (acquired

immuno deficiency syndrome, em português: síndrome da imunodeficiência adquirida) e

finalmente substituir o nome pelo qual a doença vinha sendo chamada: GRID, sigla de gay-

related immune deficiency (em português: deficiência imunológica relacionada aos gays).

Desde então percebia-se uma grande onda discriminatória contra os homossexuais e a criação

de um estigma que ligava a sexualidade à doença, com um tom moralista e preconceituoso.

Quando a doença chegou ao Brasil, a falta de conhecimento da população e o discurso

preconceituoso vinculado pela mídia consolidou um clima de segregação das vítimas. Diante

dessa situação, várias pessoas públicas como artistas, intelectuais, jornalistas e escritores

optaram por não se manifestar a respeito do tema. Os próprios homossexuais e os soropositivos

mantiveram o silêncio. Contudo, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu encarou essa barreira

e tornou-se o primeiro literato a abordar o tema em seus romances, contos e crônicas, além de

registrar em um arquivo de cartas sua própria vivência com o vírus HIV.

Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo reconhecer, primeiramente, a AIDS

como um momento histórico de grandes consequências para os indivíduos e também para a

sociedade, e assim, mostrar como Caio Fernando Abreu produziu um retrato deste momento

no Brasil, analisando tanto em nível de obra literária como de trajetória pessoal, além de

destacar a importância do discurso desconstrutor de estigmas do qual o escritor nunca abriu

mão.

A AIDS na história: o coletivo e o individual

Quando foram registrados os primeiros casos de AIDS em meados de 1980, a falta de

literatura médica que amparasse as explicações sobre a doença e, consequentemente, orientasse

ao melhor modo para lidar com ela, fez com que se recorresse à história das grandes epidemias

que assolaram a humanidade. Porém, um dos grandes problemas ao se criar analogias com

epidemias do passado é que, segundo Bessa (1997), estabelece-se uma espécie de roteiro a ser

seguido, um repertório de ações, reações e corretivos que geram diversos tipos de preconceito,

além de priorizarem o coletivo em detrimento ao individual, desconsiderando as peculiaridades

da nova doença:

A AIDS é um fenômeno preeminentemente moderno, a “doença” do final do

século XX. Mas também é um fenômeno notavelmente historicizado, seguido

por histórias que criam e moldam as respostas a ele, e sobrecarregam as

pessoas com HIV e AIDS com um peso do passado que elas não deveriam ter

de sustentar. (WEEKS apud BESSA, 1997, p.133).

Outro problema desse retorno ao passado e a inclusão da AIDS no grupo das grandes

epidemias históricas é que estas sempre foram encaradas como “pestes”, o que ultrapassa o

nível físico e recai em uma questão ideológica perigosa: as pestes são vistas como uma espécie

de castigo imposto a um determinado grupo. A metáfora da peste se agrava no caso da AIDS,

uma vez que a principal forma de contração do vírus é através da relação sexual e, até o

momento em questão, o grupo de maior incidência da doença eram os homossexuais, ou seja,

grupo que era visto como infrator dos códigos de conduta e moral religiosa estabelecidos pela

sociedade.

Além disso, por ser uma enfermidade que parte do individual para o coletivo, os

indivíduos castigados representam uma ameaça aos demais, tanto por não corresponderem às

mesmas leis morais quanto por simbolizarem o desconhecido, o estrangeiro capaz de espalhar

suas mazelas entre os “inocentes”. Assim, a resposta social ao HIV caminhou no sentido de

eleger culpados.

Pode-se dizer que a consolidação e a difusão destes estigmas se deram principalmente

pela mídia (em especial as revistas veiculadas semanalmente), visto que ela foi a responsável

por repassar a informação de fora para a maioria da população brasileira, que já não tinha base

científica sólida sobre a doença para se apoiar e que raramente havia conhecido, naquela

ocasião, alguém soropositivo. Segundo Bessa, em Histórias Positivas: A literatura

(des)construindo a AIDS (1997):

(...) a mídia teve um papel de grande importância, pois, em uma época em que

não existiam uma literatura médica disponível, iniciativas governamentais e

não-governamentais e, muito menos casos de doentes no país, ela foi o único

meio de informação... (BESSA, 1997, p. 20).

No entanto, as notícias e informações veiculadas tinham caráter ideológico, moralista e

eram demasiadamente minuciosas, com um tom dramático e romanesco, com personagens bem

marcados e a velha história de “vilões” e “mocinhos” que acabou conquistando o público e,

consequentemente, influenciando na construção do imaginário popular sobre a epidemia. Eis o

ponto em que a AIDS se diferiu das demais epidemias da humanidade: ela vai além do caráter

biomédico, é uma “epidemia discursiva” (BESSA, 1997 p. 55), uma vez que não atingiu os

doentes apenas no nível físico, mas também psicológico e sentimental, devido ao discurso

discriminatório que se espalhou.

Levando em consideração justamente essas características peculiares da AIDS,

Nascimento procura analisar suas particularidades em As pestes do século XX: tuberculose e

AIDS no Brasil, uma história comparada (2006), compreendendo-a muito além do conceito

patológico, e sim como elemento histórico socialmente construído que extrapola os limites do

discurso biomédico e se caracteriza como evento social que impactou seu contexto histórico e

cultural.

Nascimento inicia a revisão histórica da AIDS elencando o aparato metodológico que

os historiadores vinham utilizando para tratar das questões sobre as doenças. As abordagens

mais antigas se davam através da história da medicina, que ficava restrita à produção de teorias

meramente descritivas das enfermidades, e da epidemiologia histórica que encarava as doenças

como entidades naturais e espontâneas às quais a humanidade está sujeita, ignorando o corpo

como individualidade e tratando-o apenas como objeto de estudo e contabilização

epidemiológica. No entanto, ambas as abordagens traziam prejuízos ao estudo das doenças,

pois não levavam em consideração a história pessoal, desvinculando-a da história geral e, dessa

forma, negligenciando as importantes e complexas relações da enfermidade e do enfermo com

seu contexto histórico, social e cultural.

Na verdade, essas metodologias apresentadas até então pela autora se enquadram em

visões tradicionalistas da historiografia. Adriana Clímaco, em História e Ficção em Santa

Evita, já rebate esse tipo de abordagem que reduz a história a uma “ciência do passado”,

argumentando que o objeto da história não é o passado propriamente dito, mas sim a existência

dos homens no tempo, o que também pode estender-se à história da AIDS, uma vez que não é

a doença o foco da história, mas sim o modo como ela afetou a sociedade:

Embora este (o passado) tenha grande importância para a história, esta se

volta para a existência humana no tempo, dado que os seres humanos são

históricos justamente por estarem inseridos no ponto de intersecção entre

tempo e espaço (CLÍMACO, 2014, p.22).

Para Clímaco, a função da história seria, portanto, levar os indivíduos à compreensão

da sociedade na qual eles têm de viver e lhes mostrar um grande número de fatos sociais

(CLÍMACO, 2014, p. 24). Nascimento também corrobora dessa visão da história, tanto que,

após as abordagens tradicionalistas, apresenta o conceito da Nova História, que refuta a noção

de fato histórico como algo acabado e completo, e passa a englobar em seus estudos o uso de

depoimentos, fotografias e outros documentos não-convencionais a fim de construir uma

história mais voltada às relações sociais. Essa nova perspectiva abriu espaço para se repensar,

entre outras coisas, o corpo e a sexualidade, e é a partir dela que Nascimento propõe,

definitivamente, a abordagem da AIDS como objeto de estudo da história (NASCIMENTO,

2006, p. 47).

Partindo dessa nova perspectiva sobre a história, Lindinalva Laurindo

Teodorescu e Paulo Roberto Teixeira se dedicaram à produção da obra intitulada Histórias da

AIDS no Brasil (2015), que reúne o primeiro estudo completo da história da epidemia no Brasil

e abarca desde o surgimento e seu impacto social até as políticas públicas de saúde em relação

à doença. Sobretudo, o que se destaca nessa obra desde o título (“Histórias”, no plural) é a

preocupação com a pesquisa sociológica e o recolhimento de dados a partir de entrevistas com

doentes, familiares, médicos, etc., valorizando assim as narrativas pessoais, a memória

individual e as experiências particulares, o que fez os autores chegarem à seguinte conclusão,

expressada logo no prefácio: “Percebemos, então, que, na verdade, não se tratava da história

da AIDS, mas de histórias dessa epidemia no Brasil” (TEODORESCU E TEIXEIRA, 2015,

p.16).

Uma vez que a epidemia teve impactos no âmbito social e cultural, ela repercutiu na

produção artística da época que, por diversas vezes, também foi perpassada pela temática da

AIDS e, assim, abriram-se as portas para analisar a relação da história com essas fontes. No

presente artigo, serão eleitas como fontes a literatura ficcional e a memória construída através

do arquivo. No entanto, é preciso delimitar algumas fronteiras.

Sabe-se que não é da natureza da literatura estabelecer compromisso com o real. Aliás,

quando se fala em literatura, surge a associação imediata com o ficcional, ou seja, o inventado.

Sendo assim, como pode a literatura se relacionar com um momento histórico, considerando

que a história necessita de fontes reais, de fatos comprovados? Clímaco levanta essa discussão,

ponderando que a ficção cria mundos possíveis, porém, que partem sempre do mundo real,

sendo assim uma representação dele:

Em suma, a ficção é uma criação que se realiza a partir dos atos de fingir de

seleção, de combinação e de autodesnudamento. Assim, o mundo é

representado no texto como se fosse real. O discurso ficcional difere do

histórico, entretanto história e ficção têm grande produtividade na literatura

(CLÍMACO, 2014, p. 44).

Ou seja, história e ficção não devem ser tratadas de igual para igual, pois possuem

naturezas diferentes, porém, a narrativa ficcional pode servir como representação da história.

Por outro lado, aqui também será analisada a relação do arquivo com a história. Então,

se faz necessário ressaltar que, segundo Derrida, em Mal de arquivo: uma impressão freudiana

(2001), o arquivo é o locus da memória, é espaço de armazenamento de registros marcados

pela temporalidade, carrega e conserva o passado até o porvir, e após a consolidação da

psicanálise a memória não pode mais ser encarada de forma incauta, uma vez que os arquivos,

os registros guardam o passado, ela está totalmente vinculada à história.

Um exemplo do vínculo da memória com a história é o que Seligmann-Silva aborda em

História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes (2003), em que mostra

como o holocausto desafiou a historiografia tradicional devido ao fato de que a memória,

através do testemunho dos que sobreviveram, exerceu papel decisivo na compreensão desses

fatos históricos. Segundo o autor, a historiografia tradicional se pautava em verdades que

caíram por terra durante o século XX, uma vez que este se viu marcado por grandes catástrofes,

guerras e genocídios. A desconfiança em torno de discursos universais resultou na valorização

das experiências individuais e comunitárias ligadas ao mesmo locus afetivo, deixando de lado

a tradução integral do passado para dar lugar à ascensão da memória. Em outras palavras,

passou-se a questionar as “grandes narrativas” que acabavam por ser generalizantes e

excludentes, dando espaço para outras narrativas mais voltadas para o eu, colocando a

experiência particular em detrimento à universal (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 65).

Considerando a epidemia da AIDS como uma das catástrofes do século XX, depara-

se, portanto, com um duplo impasse: primeiro, é necessário abrir mão da visão tradicional da

história que limitaria a doença a uma história biomédica e encará-la como um fato histórico

com consequências sociais e culturais. Em segundo lugar, concordando com a ideia de

Seligmann-Silva, se faz necessário também dar abertura para narrativas pessoais que forneçam

material suficiente para compreender o impacto da epidemia na vida cotidiana, nas vivências

particulares, etc.

No entanto, no caso específico da AIDS no Brasil, onde se verificou toda a situação de

preconceito e exploração midiática supracitada, as narrativa literárias, sobretudo pessoais, se

tornaram material raro, já que o clima de desconhecimento e intolerância fez com que a maioria

dos literatos da época se abstivesse do tema. Todavia, Caio Fernando Abreu, escritor gaúcho

diagnosticado soropositivo nos anos 1990, nadou contra essa corrente e não abriu mão de

manter o tom confessional e intimista pelo qual suas obras se caracterizavam e foi além: se

tornou o primeiro escritor brasileiro a incorporar o tema da AIDS em suas narrativas e a deixar

um arquivo literário repleto de cartas que retratam a sua experiência com a doença no fatídico

momento histórico de epidemia.

A AIDS na vida e na obra de Caio Fernando Abreu

No prefácio do livro Caio Fernando Abreu: Cartas (2002), o organizador Ítalo Moriconi

compara Caio Fernando a Cazuza e Renato Russo, apontando a intersecção no fato de que eles

ultrapassaram a barreira de sua produção artística e tiveram a própria a trajetória de vida como

símbolo de luta contra o preconceito, a homofobia e a AIDS, o que foi bastante influente na

evolução da mentalidade crítica do brasileiro em relação a essas questões. É justamente essa

assertiva que serve de justificativa para eleger Caio Fernando Abreu como objeto de estudo do

reflexo da epidemia de AIDS no Brasil, uma vez que é possível visualizá-lo tanto na sua

trajetória de vida, através de seus registros pessoais (arquivo), quanto na sua obra literária, o

que já foi reconhecido por Hohlfeldt, em O conto brasileiro contemporâneo (1988): “Caio

Fernando Abreu oferece importante contribuição às letras brasileiras justamente por enfocar,

com perspectiva própria, o drama que então se vivia no momento mesmo de sua ocorrência”

(1988, p.145).

Uma vez que Caio sempre priorizou uma escrita intimista, suas experiências pessoais

repercutiam diretamente na sua escrita ficcional. Em 2002, foi lançada uma edição póstuma

onde está reunida a maioria das cartas enviadas por Caio Fernando Abreu. O volume conta com

cartas que vão de 1965, quando o escritor ainda adolescente deixou a vida rural na pequena

Santiago do Boqueirão, no interior do Rio Grande do Sul, e foi estudar em Porto Alegre, até o

começo de 1996, ano de sua morte. Essas cartas têm uma grande importância no estudo da obra

do escritor gaúcho, principalmente no que tange à experiência com a AIDS, pois são a

correspondência real do que o autor ficcionalizou no literário, ou seja, elas constituem um

arquivo literário de Caio Fernando.

Através das cartas, é possível constatar que o escritor gaúcho não foi apenas mais uma

vítima da doença: como resultado de integrar a geração que inaugurou a epidemia da doença

no Brasil e de toda a falta de informações sérias, mídia compromissada com a ética, amparo

científico, governamental e até mesmo psicológico para lidar com o vírus HIV na época, Caio

vivenciou a AIDS de diversas formas ao longo de sua vida e isso teve reflexo direto na sua

produção literária.

A primeira fase da vivência de Caio Fernando com a AIDS inicia-se logo com o contato

incipiente com a doença. Desde o início dos anos 1990, rumores, especulações e relatos de

alguns casos sobre a AIDS vindos do exterior chegavam ao Brasil. Em 1982 registra-se o

primeiro caso de infecção pelo vírus HIV no país, e em 1983 a primeira morte que veio a

público: Marcos Vinícius Resende, conhecido como Markito, um dos estilistas mais influentes

no Brasil na década de 1970, morreu em Nova Iorque, onde estava tentando se tratar. O caso

chocou o Brasil, e nos dias que se seguiram à morte do estilista, os jornais já exploravam a

ideia da AIDS, em manchetes como a da Folha de São Paulo de 8 de junho de 1983, que dizia

“Doença dos Homossexuais atinge o país”, artigo no qual se relatava outros dois casos de AIDS

no Brasil. Caio Fernando começa a representar o impacto desse assunto em uma carta destinada

à Jacqueline Cantore, de junho de 1983:

Avelina, argentina, liiiiiiinda, só veste branco, uns 40 anos, desenhista de

moda (chorou muito ontem quando vimos a morte de Markito – ao que se

sabe por AIDS, a peste gay, depressão) (ABREU, 2002, p. 44).

E, mais tarde, retoma esse evento na introdução de sua marcante crônica intitulada “A

mais justa das saias”, publicada em sua coluna no Jornal O Estado de S. Paulo, no ano de 1987:

A primeira vez que ouvi falar em aids foi quando Markito morreu. Eu estava

na salinha de TV do velho Hotel Santa Teresa, no Rio, assistindo ao Jornal

Nacional. “Não é possível” — pensei — “Uma espécie de vírus de direita, e

moralista, que só ataca aos homossexuais?” (ABREU, 2006, p. 44).

Caio reproduz, desde a primeira carta, o nome pelo qual a doença ficou conhecida na

época, mesmo que ainda não houvesse informações satisfatórias sobre ela. A ideia de “peste

gay” foi abraçada pela sociedade conservadora como uma espécie de castigo aos homossexuais

e difundida graças a notícias com teor discriminatório que imperaram na imprensa, como no

título em destaque no Jornal Notícias Populares, de 12 de junho de 1983: “Peste-Gay já

apavora São Paulo”. Teodorescu e Teixeira também discorrem sobre essa situação em Histórias

da Aids no Brasil (2015):

A imprensa marrom não hesitava em produzir manchetes jocosas contra os

homossexuais, e foi logo denunciada pelos militantes gays. Um caso chocante

na época foi a edição de uma capa da revista “Isto É”, que estampava a

fotografia de um paciente de aids. O fundo da capa, todo em cor-de-rosa,

servindo de moldura à fotografia do doente, causou grande escândalo

(TEODORESCU E TEIXEIRA, 2015, p. 40).

Instaurou-se um clima de “caça às bruxas”, agravando os níveis de preconceito e

discriminação, o que simbolizou um grande retrocesso na luta pelos direitos dos homossexuais,

que havia progredido nos últimos anos. A perseguição não foi metafórica. Em 20 de novembro

de 1984, o Jornal O Dia traz a seguinte manchete: “Povo de Sidnei caça os gays por temor a

AIDS”, o que representou apenas mais um caso em meio à onda de violência contra gays e

travestis registrada nos anos 1980. Caio Fernando aborda essa situação pela primeira vez em

uma crônica publicada no Jornal do Brasil em 1985:

Pouco importa não saber ao certo de onde veio o vírus maldito. As hipóteses

não atenuam o fato: a coisa existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis

dementes o preconceito contra a mais castigada das minorias. Há qualquer

coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras medievais para queimar

os feiticeiros. Talvez consigam, lenha é o que não falta (ABREU, 1985, p.

30).

O pânico do contato físico e do relacionamento afetivo, bem como a abstenção sexual

dos homossexuais, representaram a consolidação do discurso da AIDS. Pânico este do qual o

próprio Caio foi vítima, como se pode observar através do que ele relata em carta destinada à

Maria Lídia Magliani, já no início dos anos 90: “(...) bom que você tem um namorado. Eu não,

há tanto tempo. Essa coisa de Aids realmente...” (ABREU, 2002, p.180). Objetivamente, Caio

declarou seu medo em carta a Luciano Alabarse, ao saber da contaminação de um amigo em

1985:

Diagnóstico: AIDS. É então, quando essa peste começaa sair das páginas dos

jornais para atingir pessoas conhecidas, que você pára e pensa “meu Deus, a

tal doença parece que existe mesmo”. E dá medo. Porque te ameaça no que

você tem de mais precioso: a sexualidade. Medo, medo, medo. Eu ando

inteiramente casto. Na verdade, já há algum tempo, desde que conheci o

Pedrinho [...], em julho. O último contato sexual foi com ele mesmo,

comecinho de dezembro passado (ABREU, 2002, p. 90).

Em 18 de julho de 1983, a Folha de São Paulo já noticiava o pânico causado pela

doença. Em texto de alto de página, lê-se “A AIDS torna-se psicose coletiva” e a matéria dá

atenção ao estado de alerta e tormento em que, principalmente, os norte-americanos se

encontravam com o agravamento da epidemia, além de designar os grupos de risco:

homossexuais masculinos, drogados por picadas intravenosas, pessoas sujeitas à hemorragia

por atraso da coagulação sanguínea, e até mesmo haitianos.

No entanto, é preciso destacar que, enquanto muitos homossexuais permaneceram

silenciados diante dessa situação, outros, como o próprio Caio Fernando, partiram em defesa

da ideia da desvinculação da doença de sua orientação sexual. Segundo Teodorescu e Teixeira

(2015): “Diante das notícias originárias dos Estados Unidos afirmando que a nova doença

atingia principalmente homossexuais masculinos, o ativismo homossexual tomou a frente na

luta contra a aids, cobrando respostas rápidas das autoridades da saúde” (TEODORESCU e

TEIXEIRA, p. 41).

Sentindo o peso de seu papel como figura pública e cronista de um jornal de grande

circulação, no ano em que Caio começou a escrever para o jornal O Estado de S. Paulo,

publicou a crônica intitulada “A mais justa das saias”, aqui já citada, em que buscava

desconstruir a ideia da relação entre AIDS e (homo)sexualidade, e manifestar a sua

preocupação com a repressão sexual que ela causou:

Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então

pela nossa própria sobrevivência afetiva — com carinho, com cuidado, com

um sentimento de dignidade — ô gente, vamos continuar namorando. Era tão

bom, não era? (ABREU, 2006, p. 45).

Foi nesta atmosfera que Caio Fernando Abreu escreveu a novela “Pela Noite”, parte

integrante do livro Triângulo das Águas (2010), originalmente publicado em 1983. Segundo

Bessa, a novela se destaca como o primeiro texto da literatura brasileira a falar de AIDS (2002,

p.111). O enredo se passa em uma noite paulistana de sábado, onde os personagens Pérsio e

Santiago se envolvem em um jogo de sedução. Embora atraídos um pelo outro, durante a noite

em que se desenrola a história, eles resistem à relação física, apenas compartilham experiências

e impressões de mundo. Santiago advém de uma relação homoafetiva que durou dez anos,

sendo interrompida apenas pela morte do companheiro (subentendido como soropositivo) e é

bem resolvido com sua sexualidade. Pérsio, por outro lado, é extremamente rendido aos

estereótipos gays ditados pela mídia da época: reprime sua sexualidade devido ao preconceito

que sofria desde a infância, quando ainda nem a havia consolidado. Além disso, internalizou

muitos paradigmas, como o nojo do próprio corpo e do ato sexual, além da ligação da relação

homossexual com a “peste gay”: “Tenho milhões de medos. Alguns até mais graves. Medo de

ficar só, medo de não encontrar, medo de AIDS. Medo de que tudo esteja no fim, de que não

exista mais tempo para nada. E da grande peste” (ABREU 2010, p.180). O personagem segue

o raciocínio: “a AIDS é doença de gays/ a relação homossexual é suja”. Apenas quando

Santiago ajuda Pérsio a desconstruir esses estigmas é que eles finalmente se entregam à paixão

quando a manhã chega.

No conto, a noite simboliza uma fase atribulada e perturbada que se encerra apenas com

o amor que traz a calmaria e a redenção da manhã. Assim como em outros contos de Caio

Fernando, o amor representa o agente capaz de curar os males causados pela repressão e pela

peste. Este desfecho, comum a alguns de seus contos, reflete a visão romântica na qual o

próprio Caio baseou sua vida, como ele relata em carta a Sérgio Keuchgerian:

E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou

a esperança dessa coisa, “esse lugar confuso”, o Amor um dia. E de repente

te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de

amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi

nada ainda. E não sou, sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré

todas as coisas — um romantismo que exige sexualidade e amor juntos

(ABREU, 2002, p.122).

Em 1988, é lançado Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, livro que reúne treze contos

carregados de um tom de desilusão e que retratam o ser humano em sua crua falência, trazendo

personagens e histórias que se passam no que Caio chamou de “mundo de zumbis”, no qual a

AIDS aparece nas entrelinhas. O conto que inicia o livro, intitulado “Linda, uma história

horrível”, mostra o silêncio e a solidão que encobrem a temática da AIDS. Nele, um homem

visita sua velha mãe depois de uma longa temporada, depara-se com a decadência e a solidão

da velhice e acaba por se identificar com a situação devido ao seu estado de saúde. Os sintomas

descritos no conto (perda de cabelo, fraqueza, emagrecimento, manchas na pele) indicam a

condição soropositiva do personagem, que não tem coragem de assumir a doença para a mãe.

O conto “Dama da noite” é o ponto mais alto da representação do medo do toque, do

pânico do contato, dos reflexos da AIDS na sociedade, que tanto preocuparam Caio Fernando

Abreu. Nele, a figura de uma mulher adulta, conhecida como dama da noite, derrama, em um

adolescente que acabara de conhecer em uma boate, todas as angústias e frustrações de sua

geração, além de acusar a geração dele de ser superficial e não ter realmente vivido, de ter sido

fruto dos estereótipos estipulados pela sociedade:

A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da

gente. Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha. Então

eu tenho pena. Acho que sou melhor, só porque peguei a coisa viva [...] Você

não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de

12. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar aids. Vírus

que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto:

paranoia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem

puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô

boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija

na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum

lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão.

Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro.

Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê,

eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor

mata. Pega até de ficar do lado, beber do mesmo copo. Já pensou se eu

tivesse? (ABREU, 2014, p. 68).

Sobretudo, a aura de desilusão que reinava novamente se abala diante da possibilidade

do amor: “Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio

desse lixo todo procuro O Verdadeiro Amor. Cuidado comigo: um dia encontro” (ABREU,

2014, p.70).

A produção literária de Caio Fernando Abreu nos anos 80 é então marcada por suas

impressões, frutos de experiências pessoais, ainda que indiretas, com a doença que acabara de

surgir, mas que já deixava rastros devastadores nas configurações identitárias dos jovens da

época. Os anos 1990 chegam, e trazem a AIDS cada vez mais para perto do escritor, que via

amigos e conhecidos terem suas vidas ceifadas por ela, além de ter sua própria saúde bastante

fragilizada nos últimos anos, fato que o fazia desconfiar de também ser portador do vírus,

mesmo sem nunca ter superado o medo de fazer o que ele chamava de “O Teste”, como conta

em carta à Maria Lídia Magliani:

Tenho achado viver tão bonito. Talvez porque ande, como nunca, perto da

idéia da morte. Continuo naquela ciranda de antibióticos (o terceiro) e as

orelhas, embora melhores, purgando coisas. Acho que sim, que como você

diz são as nojeiras que ouvi durante toda a vida. Está limpando. Mas,

objetivamente, a Sandra-médica está começando a considerar a idéia,

também, de fazer O Teste. E eu não sei se quero. Seria como querer um papel

timbrado, firma reconhecida, dizendo que vou ser atropelado (“por esse trem

da morte”, como dizia Cazuza) daqui a algum tempo. Sei lá (ABREU, 2002,

p.197).

Pouco tempo depois, o quadro de saúde de Caio se agrava e ele decide realizar o teste.

A primeira pessoa a quem o escritor escreveu para contar a infeliz novidade de descobrir-se

soropositivo foi a mesma amiga, Maria Lídia, em 16 de agosto de 1994. Nesta carta, relata seu

surto psicótico quando soube da notícia, porém, afirmou que já estava “melhor e sereno”,

recebendo muitas visitas no hospital. Caio conta que, segundo exames, ele já era portador do

vírus há dez anos, o que explicava vários quadros de infecções e saúde constantemente

fragilizada durante esse período. A fim de tranquilizar a amiga e finalizar a carta, faz uma

nota bastante peculiar: “Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que

outra morte eu poderia ter? É a minha cara!” (ABREU, 2002, p. 281).

A partir deste ponto, a produção literária de Caio diminui consideravelmente. Nos dois

anos que se passaram entre a primeira crônica a respeito do tema e sua morte, o autor dedica-

se à traduções de seus livros que foram publicadas no exterior, às crônicas dos jornais e à

organização de seu último livro, Ovelhas Negras (2011), composto por contos nunca

publicados, escritos no decorrer de sua vida. O livro, ao contrário do que se esperava pela

mídia, não aborda a AIDS, exceto em seu último conto, intitulado “Depois de Agosto”, que

narra a história de um homem recém-saído do hospital, ainda doente e com baixas expectativas

a respeito do que a vida ainda podia lhe reservar, acaba por se surpreender ao encontrar um

novo amor, alguém que também estava à beira da morte.

Em “Depois de Agosto”, o personagem encontra alívio para seus últimos dias no amor.

Novamente, Caio Fernando expressa sua fé incansável no poder do afeto para combater os

males da vida. Embora nunca tenha registrado em carta qualquer relacionamento amoroso

durante seu combate contra o HIV, o papel de curativo das relações pessoais foi diversas vezes

exaltado nas cartas, tomando aqui como exemplo uma das últimas, destinada a Mario Prata,

em 1995:

Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto

sete, outro de sandália havaiana. E preciso ter muita paciência com esse vírus

do cão. E fé em Deus. E falanges de anjos-da-guarda fazendo hora extra. E

principalmente amigos como você e muitos outros, graças a Deus, que são

melhores que AZT (ABREU, 2002, p. 302).

Paralelamente, Caio Fernando aproveitou sua coluna no jornal O Estado de S.Paulo

para publicar uma série de quatro crônicas, que ele chamou de “cartas” devido ao tom de

confessionalidade e cumplicidade estabelecida com o leitor, em que relata seu cotidiano com a

AIDS. A primeira, “Carta para além dos muros”, mostra-se bastante enigmática, descrevendo

um acontecimento estranho em sua vida que vinha lhe causando angústia, dor e sofrimento,

mas não revela do que se trata. Em “Segunda carta para além dos muros”, o assunto torna-se

um pouco mais claro, relatando o cotidiano no hospital, impressões sobre o ambiente, mas é

apenas em “Última carta para além dos muros” que Caio Fernando Abreu assume

publicamente sua doença. Por fim, “Mais uma carta para além dos muros” foi publicada um

dia antes da sua morte, em um tom mórbido de despedida, no qual o escritor propõe reflexões

a respeito da morte, uma vez que já caminhava para ela.

Considerações Finais

A epidemia da AIDS foi, sem dúvidas, uma epidemia de números biomédicos

alarmantes, mas para compreender efetivamente suas proporções é necessário reconhecê-la

como um momento histórico de grande impacto social, que afetou as pessoas de diversas

formas, abalou a configuração da sociedade no que se diz respeito à sexualidade e deu margem

para a manifestação de preconceitos e construção de estigmas baseados em padrões ideológicos

impostos.

Caio Fernando Abreu exemplifica muito bem esse contexto histórico. O escritor teve

sua vida pessoal e sua produção literária marcadas pela epidemia, uma vez que, em sua obra

ficcional, é possível observar uma representação da AIDS na sociedade brasileira e, em seu

arquivo de cartas, perceber o impacto causado nos indivíduos que a viveram.

Tanto nas cartas quanto em sua ficção, Caio construiu um retrato da epidemia e de seu

impacto social, assumindo a responsabilidade de ser o primeiro literato a abordar o assunto, o

que significou, logo depois, expor a própria vida em função de romper o silenciamento de toda

uma camada marginalizada da sociedade, pois representou a AIDS do ponto de vista do olhar

dos homossexuais e dos soropositivos.

O medo, o preconceito, a culpa e a desilusão foram temas recorrentes na escrita de Caio

Fernando Abreu e que motivaram a identificação pessoal por parte de inúmeros leitores. No

final de sua vida, porém, o escritor foi além, e escreveu sobre esperança e resistência,

transmitindo a ideia de que nunca é tarde demais para um soropositivo.

Referências

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ABREU, Caio Fernando. Cartas. Organização Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano,

2002.

ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2014.

ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas. Porto Alegre: LPM, 2010.

BESSA, Marcelo. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro:

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