a história sombria do oculto - magia, loucura e assassinato

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MAGIA, LOUCURA E ASSASSINATO A HISTÓRIA SOMBRIA DO O CULTO

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A História Sombria do Oculto - Magia, Loucura e Assassinato

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Page 1: A História Sombria do Oculto - Magia, Loucura e Assassinato

MAGIA, LOUCURA E ASSASSINATO

A HISTÓRIA SOMBRIA

DO

OCULTO

Page 2: A História Sombria do Oculto - Magia, Loucura e Assassinato

PAUL ROLAND

Tradução:Rosalia Munhoz

MAGIA, LOUCURA E ASSASSINATO

A HISTÓRIA SOMBRIA

DO

OCULTO

Page 3: A História Sombria do Oculto - Magia, Loucura e Assassinato

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ÍNDICE

Introdução: O Discurso do Demônio ............................................. 10O poder dos nomes .......................................................................... 11O preto contra o branco ................................................................... 12

Capítulo 1: Quem é Satã? .............................................................. 15Duas formas de conhecimento ........................................................ 16Satã como adversário de Deus ........................................................ 17O pecado original ............................................................................ 18O Eu sombrio .................................................................................. 20O Cristianismo ................................................................................ 23O Demônio em detalhes .................................................................. 29Islamismo ......................................................................................... 29Satã como bode expiatório ............................................................... 30

Capítulo 2: Magia e Religião ......................................................... 35O mal arcaico .................................................................................. 36O deus cornudo ............................................................................... 38Magia suméria ................................................................................. 41Egito ................................................................................................. 41O mal no Leste ................................................................................ 44O surgimento dos magos ................................................................. 46Os gregos ......................................................................................... 47

Capítulo 3: Feitiçaria ..................................................................... 49A feitiçaria no mundo clássico ........................................................ 51Os romanos ..................................................................................... 54O evangelho das feiticeiras ............................................................. 55Uma estratégia cínica ...................................................................... 57Queime, bruxa, queime! .................................................................. 60Os Cavaleiros Templários ................................................................ 63

Traídos pela Igreja ................................................................... 65O martelo das feiticeiras ................................................................. 66Pecados do clero .............................................................................. 69Exala sobre mim, sopro de Deus ..................................................... 70Pecados capitais .............................................................................. 73

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A HistóriA sombriA do oculto6

Os acontecimentos em Louviers ..................................................... 74La Voisin .......................................................................................... 77Para matar um rei ............................................................................ 79O julgamento das bruxas de Salém ................................................. 81

A voz da razão ......................................................................... 84A mão da glória ............................................................................... 85Montague Summers – um clérigo curioso ...................................... 85

Algo para o fim de semana? .................................................... 87Reverenciado ou difamado? .................................................... 88

O renascimento da feitiçaria ........................................................... 89Crowley dá uma mãozinha ...................................................... 90Livro das Sombras ................................................................... 92

Alex Sanders – rei das bruxas ......................................................... 92Sucesso a um preço ................................................................. 96Gosto por publicidade ............................................................. 97Legado misto ........................................................................... 98

Dion Fortune – a alta sacerdotisa da magia moderna ................... 100O caminho da iluminação ...................................................... 100Um ponto de vista romanceado ............................................. 102

O culto vodu dos mortos vivos ..................................................... 103Fato e ficção ........................................................................... 108

Capítulo 4: O Lado Negro ........................................................... 110As artes negras .............................................................................. 112

A sabedoria de Salomão ........................................................ 112Os demônios de Salomão ...................................................... 113

O Lemegeton ................................................................................. 115Preparação ..................................................................................... 116

O jeito moderno ..................................................................... 117Símbolos poderosos ............................................................... 118

Correspondências .......................................................................... 119Aleister Crowley ........................................................................... 120

Breve encontro ...................................................................... 121Um “menininho sórdido” ...................................................... 122As primeiras paixões ............................................................. 122Os primeiros passos para o poder .......................................... 124A batalha da Dawn ................................................................ 125Sexo, drogas e o beijo da serpente ........................................ 126The Book of the Law .............................................................. 127Convocando os espíritos ......................................................... 129Em conflito com o mundo ...................................................... 130

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Índice 7

A Abadia de Thelema ............................................................ 130“O homem mais perverso do mundo” ................................... 132Criando Pã em Paris .............................................................. 133O capítulo final ...................................................................... 133Avaliação geral ...................................................................... 134“A magia não funciona” ........................................................ 136

A Golden Dawn ............................................................................ 137Manuscritos secretos ............................................................. 139Técnicas ................................................................................. 140Símbolos tattwa ..................................................................... 140O desmoronamento ............................................................... 142

Eles usaram as forças ocultas – nazistas e o oculto ...................... 143Satã e a suástica ..................................................................... 143Astrologia .............................................................................. 150Influência insidiosa ................................................................ 151“Os emissários de Satã” ........................................................ 153O messias das trevas .............................................................. 154Rosa Branca ........................................................................... 155Hitler – Mago Negro ou médium? ........................................ 156Poder mágico ......................................................................... 158Invocação de Marte ............................................................... 159Libertando o Demônio .......................................................... 159

A Igreja de Satã ............................................................................. 160Um bom começo ................................................................... 161Os convertidos malucos de Satã ............................................ 163Crianças tomadas de empréstimo .......................................... 164Críticas a Crowley ................................................................. 165A doutrina do Demônio ......................................................... 168A Bíblia Satânica .................................................................. 168Um verdadeiro satanista ........................................................ 169Vendendo Satã para as massas .............................................. 170

Capítulo 5: Magia e Imaginação .................................................. 173H. P. Lovecraft – o culto de Cthulhu ............................................. 174

Biblioteca cósmica ................................................................ 176Pesadelos de infância ............................................................. 179O Necronomicon .................................................................... 179Influência ............................................................................... 181Filosofia ................................................................................. 182

As artes mágicas de Austin Osman Spare ..................................... 183Perdendo contato com a realidade ......................................... 185

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A HistóriA sombriA do oculto8

Associação com Crowley ...................................................... 186Sigilos .................................................................................... 186Os anos finais ........................................................................ 187

Histórias fantásticas – Dennis Wheatley ....................................... 188Crenças particulares .............................................................. 190Magia sem receita .................................................................. 191Um aviso para os outros ........................................................ 191

O Exorcista .................................................................................... 192Um trabalho para a Igreja ...................................................... 194“Está acabado” ...................................................................... 195Sem demônios ....................................................................... 196

Em duas mentes ............................................................................ 196Alan Moore – um Merlin moderno ............................................... 198

Achando o defeito ................................................................. 198Explorações iniciais ............................................................... 200A realidade da imaginação .................................................... 201Explorando os caminhos ....................................................... 202A magia de Moore ................................................................. 203

Eles venderam suas almas para o rock ‘n’ roll .............................. 205Apenas fazendo de conta ....................................................... 207

A música do Demônio .................................................................. 207Descendo para a encruzilhada ....................................................... 208Deixa sangrar ................................................................................ 210

Coven ............................................................................................ 211Venha para o Sabá ......................................................................... 212Escada para o Inferno ................................................................... 213

Símbolos e sigilos .................................................................. 214NWOBHM .................................................................................... 215“No senhor Satã nós confiamos” – Slayer ..................................... 218Toque em alto som... e de trás para a frente .................................. 219

Chamado para o suicídio ....................................................... 220O advogado do Diabo ............................................................ 221

O rock satânico rola ...................................................................... 223Tudo parte da encenação ....................................................... 224Não passe a responsabilidade adiante ................................... 224

O pânico satânico .......................................................................... 225Satã no subúrbio ............................................................................ 226

Produzindo falso-testemunho ................................................ 227Crimes ocultos .............................................................................. 228Nem sempre Satã .......................................................................... 229

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Índice 9

O significado do ritual ................................................................... 229Cada um por si ....................................................................... 231Quais assassinatos satânicos? ................................................ 233

O apressado come cru – apresentadores de programas de entrevistas vão para o Inferno ....................................................... 235Memórias recobradas .................................................................... 238

Tentando esquecer ................................................................. 239O caso do município de Thurston .......................................... 241

Sacrifício para Satã ....................................................................... 242Satã é inocente ....................................................................... 249Os três de West Memphis ...................................................... 250Falta de evidência .................................................................. 250

Johnny Depp e os três de Memphis .............................................. 252Nunca confie em um especialista .......................................... 253Novo julgamento negado ....................................................... 254

Konstantinos – o despertar de Lúcifer .......................................... 255Tudo na mente ....................................................................... 256

Índice Remissivo ........................................................................... 259Agradecimentos ............................................................................ 265Créditos das Imagens .................................................................... 267

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Posso estar arriscando minha alma imortal ao afirmar que

não existe Diabo, Satã, Belzebu, Lúcifer ou O Cujo, nem neste mundo ou no próximo, mas te-nho certeza de que minha afir-mação será confirmada pela evidência apresentada nas pá-ginas seguintes. Eu não temo a contestação – nem mesmo uma aparição do próprio dito cujo –, pois será feita a demonstração de que o Demônio foi uma criação da Igreja em seu estágio inicial e que todos os seus feitos são in-teiramente frutos do homem.

Isso não significa que não haja maldade no mundo, pois, embora o Diabo não exista, seus discípulos e acólitos estão cla-ramente à nossa volta. É com suas atividades e crenças diabó-licas que este livro se ocupa. Eu defendo que o Demônio é uma personificação do lado sombrio da natureza humana, de nossos instintos, impulsos e desejos

mais básicos, que procuramos negar e renegar, projetando-os em um personagem místico cria-do por nós mesmos. Por outro lado, Deus pode ser visto como uma projeção do nosso potencial divino. Anjos e demônios são, portanto, entes simbólicos de nossos atributos divinos e aber-rações, os vícios e as virtudes que estão em contínuo conflito em nosso interior.

É bastante significativo que, desde a Idade Média, ninguém declarou ter visto o Demônio, de fato, em sua forma tradicional, com chifres e um rabo – quer dizer, ninguém em sã consci-ência. A crença persistente da sociedade nessa entidade cós-mica malevolente é um insulto à inteligência, um remanescente da Idade das Trevas, quando o medo, a superstição, a ignorân-cia e o fanatismo reinaram sobre a razão. Acreditar no Demônio é

O Discurso do Demônio

“Se o Demônio não existe e, portanto, é uma criação do homem, ele o criou

à sua imagem e semelhança.”

Fiódor Dostoiévski (romancista russo, 1821-1881)

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O Discurso do Demônio 11

negar nossa natureza divina e isso, sim, deveria ser pecado. Simples-mente não faz sentido dar crédi-to à ideia de que neste Universo infinito, no qual nosso mundo é menor que um grão de poeira, um ser cósmico maligno, onipresente, pode se manifestar como um hu-mano para nos tentar a cometer o que nossos ancestrais um dia con-sideraram atos pecaminosos. Até nos libertarmos desse personagem de contos de fadas e, o mais im-portante, do medo do desconheci-do personificado por ele, daremos poder a nossos medos para que reinem sobre nós e limitem nos-so progresso neste mundo. Como posso ter tanta certeza de que o Diabo é uma fábula de nosso subconsciente coletivo? Bem, se existe um demônio, uma entidade maligna sobrenatural que rivaliza continuamente pela posse de nos-sa alma, onde está a evidência de sua existência? Com certeza não está na Bíblia, o livro que os fun-

damentalistas cristãos citam com tanto carinho.

o poder dos nomes

No princípio era a Palavra e a Palavra era poder. Nas civi-lizações antigas, a escrita era uma arte sagrada reservada aos sacerdotes e reis, por isso a pala-vra escrita adquiriu uma aura de mistério.

Era comum se acreditar que quem sabia os nomes das hostes angélicas e hordas de demônios tinha poder sobre eles. Saber o nome de um inimigo era possuir

“O Demônio Pastoreia os Camun-dongos”, gravura em cobre, de Janez Vajkard Valvasor, 1689.

Anjos e demônios são símbolos de nossos desejos inconscientes.

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A HistóriA sombriA do oculto12

algo com um potencial mais letal que a mais afiada das lâminas.

No Antigo Testamento e em outros textos sagrados da épo-ca bíblica, um adversário sempre era citado por um termo gené-rico, tipicamente “um Satã”, na crença de que a ligação psíquica seria enfraquecida se seu nome de nascimento fosse de uso comum. Essa prática também deu origem ao mandamento que tornou peca-do usar o nome do Senhor em vão. Para os judeus, o nome pessoal de Deus, Yahveh (“Ele existe”), era em si uma invocação mágica e, portanto, citado indiretamente como o “Tetragramaton”, ou o “nome de quatro letras”. Apenas o Grão-Sacerdote tinha permissão de sussurrar o nome sagrado do Criador, uma vez por ano, no Dia do Perdão. Em todas as outras oca-siões, os judeus referiam-se a seu criador como Adonai (Senhor) ou Elohim (Deus). Conhecer o nome pessoal do Criador e sua pronún-cia correta era saber o segredo da criação em si, pois, de acordo com a Torá (o conjunto de leis e ensina-mentos judaicos), a Palavra com que Deus criou o Universo foi seu próprio nome sagrado.

Compreender o significado verdadeiro desse conceito era o estudo de uma vida inteira para os cabalistas, os místicos judeus que buscavam o segredo da vida e da morte, que eles acreditavam estar codificado na Torá. O Judaísmo era

um ensinamento tanto exotérico (para fora) quanto esotérico (para dentro). O primeiro era compos-to dos costumes e rituais, execu-tados com tanta frequência e por tanto tempo que seu significado verdadeiro se perdeu; e o último é o cerne espiritual da religião, que apenas os místicos alegam com-preender na totalidade. A mesma dualidade se aplica ao Cristianis-mo e ao Islamismo. Aqueles que não se devotam a essas tradições, mas acreditam que existe um fio dourado de verdade comum a elas, tomam o caminho menos percor-rido, uma estrada que se divide em Linha Direita e Linha Esquerda do ocultista.

o preto contrA o brAnco

Os adeptos genuínos da Linha Esquerda obviamente não se consi-deram magos negros, assim como os satanistas não admitirão serem adoradores do Diabo. Eles simples-mente se veem como o centro do Universo e consideram seus pró-prios desejos como de importância maior que os de qualquer um. Em geral, eles descartam o Demônio como uma superstição medieval. Pode-se imaginar por quê. Sim-plesmente não existe espaço no Universo para a coexistência de dois egos de tal magnitude. Mas o Satanismo é uma cortina de fu-maça para o mago negro genuíno, que serve apenas a seu mestre –

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O Discurso do Demônio 13

ele mesmo – e compreende que a magia em si não é nem negra nem branca. É apenas um processo para a transformação, ocasionado pelo exercício da vontade potencializa-da pelas emoções. É a intenção por trás do ato que determina se um mago é adepto da Linha Esquerda ou Linha Direita, e é diabolicamen-te difícil de determinar intenções se alguém está no papel de advoga-do do Diabo. Aqueles que buscam a experiência dos mundos superio-res para adquirir uma percepção maior dos trabalhos do Universo estão claramente em uma jornada diferente da dos que servem a si mesmos e buscam subjugar o outro à sua vontade superior.

É fato curioso que tanto o mago negro quanto seu irmão be-nigno se purifiquem antes de par-ticipar de qualquer cerimônia e ambos apelem a Deus e aos anjos

para proteção quando consagram o círculo sagrado com que se cer-cam. Mesmo o discípulo mais de-voto do Demônio sabe que não é o seu mestre infernal quem comanda a legião de demônios, mas Deus. A mera pronúncia de Seu nome é su-ficiente para impedir que eles que-brem o círculo e os banirá quando chegarem à conclusão do ritual.

Os magos negros e brancos compartilham da mesma curiosida-de sobre a natureza da existência e ambos compreendem as Leis Uni-versais – baseadas na premissa de que todo ser humano é um micro-cosmo, um Universo em miniatura. Para revelar a natureza verdadeira do Universo, os investigadores têm de explorar primeiro a paisagem simbólica de sua própria psique e, então, possuir a coragem de en-frentar o que ali encontrarem.

A história bíblica de Saul e a Bruxa de Endor, em que o fantasma de Samuel profetiza a queda de Saul.

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“Uma justificativa para o Demônio: é preciso lembrar

que nós ouvimos apenas um lado da história. Deus escreveu todos os livros.”

Samuel Butler

c A p í t u l o 1QUEM É SATÃ?

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A HistóriA sombriA do oculto16

duAs formAs de conHecimento

Desde os primórdios da civili-zação existiram duas formas

de conhecimento: a inteligência prática do artesão e a sabedoria intuitiva e acadêmica do adepto. A primeira pode ser ministrada por meio da educação ou adquirida pela observação, ao passo que a outra só pode ser despertada pela iniciação nos Mistérios, que ofe-recem experiência direta de uma realidade maior.

Na tradição oculta (“escon-dida”), interpreta-se o mito de Adão e Eva do Antigo Testamen-to como um incentivo a cada in-divíduo para partilhar do fruto da

Árvore da Vida e assim se tornar consciente de sua verdadeira na-tureza e seu potencial divino. Per-ceber que somos mais que meros mortais é libertar-se do medo da morte e da tirania de imposições e dogmas religiosos. É significati-vo que essa persuasão tenha sido articulada pela serpente que, tra-dicionalmente, é o símbolo da sa-bedoria.

“Vós não morrereis: pois Deus sabe que, no dia em que vós comerdes dela, então vossos olhos serão abertos e vós sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.”

Gênesis 3:4-5

“O Jardim do Éden com a Queda do Homem”, de Peter Paul Rubens e Jan Brueghel, 1615, retrata o conceito cristão de pecado original.

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Quem é Satã? 17

Porém, na versão “oficial” da história, como os teólogos des-crevem, a serpente é remodelada como um embusteiro que tenta Eva a comer do fruto proibido para que o homem seja exilado do céu e, portanto, dependa totalmen-te da autoridade religiosa para ser absolvido. Esse enfraquecimento deliberado de nossa natureza e nosso potencial divino é, com cer-teza, o verdadeiro pecado original.

sAtã como Adversário de deus

O primeiro aparecimento de Satã na mitologia judaico-cristã pode ser encontrado no Livro de Jó do Antigo Testamento em que, como o anjo “há-satan”, ele rece-be a tarefa de testar o tamanho da fé de Jó. Em hebraico, “há-satan” pode ser traduzido como “o tenta-dor” ou “o acusador”, um ser an-gélico que não é demoníaco por natureza, mas é um ser que identi-fica aqueles na Terra responsáveis por atos malignos e informa sobre os que se distanciaram do Senhor.

Na Torá, o Livro da Lei Ju-daica, “satã” é uma designação usada para indicar qualquer figura histórica que se oponha ao povo semita, seja ela um líder militar, como em Samuel 1, 29:4; Sa-muel 2, 19:22; Reis 1, 5:4; Reis 1, 11:14, ou um adversário legal, como nos Salmos 109:6. Em Nú-meros 22:32, Satã é o nome dado a um anjo que se opõe à viagem

imprudente de Balaam e, nas Crô-nicas, ele é culpado por conduzir o rei Davi para o caminho errado. Mas em nenhum lugar do Antigo Testamento Satã é descrito como adversário de Deus. Na verdade, é bem o contrário. No livro de Isaías, declara-se explicitamente que o Deus dos hebreus, Yavé (Jeová), é o governante onipotente do Uni-verso e que ele preside sozinho so-bre a humanidade.

“Eu formei a luz e criei a escuridão; eu criei a paz e fiz o Mal; eu, o Senhor, cria-dor de todas as coisas.”

Encontraram alusões ambí-guas e obscuras ao Demônio no Antigo Testamento, apenas em re-trospecto.

Acredita-se que a ideia de Satã como um adversário de Deus foi filtrada na mitologia judaica durante os séculos II e III da Era Comum, como consequência do conceito persa de dualismo. O du-alismo teve influência no Oriente durante o milênio que precedeu o Cristianismo, porque resolveu o dilema de como Deus podia apoiar um grupo específico e, ainda assim, ficar do lado de seus oponentes. O pensamento dua-lista decretou que não existia um Deus, mas dois: um benevolente e um demoníaco. A entidade malig-na estaria sempre do lado de seu inimigo, portanto, podia-se dizer que o Demônio era sempre o Deus de alguém. Essa foi a origem da

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A HistóriA sombriA do oculto18

hierarquia do Inferno, uma lista de demônios e suas funções, que apa-rece em textos antigos de magia como o Testamento de Salomão, que data do século I da Era Co-mum, e mais tarde em tratados de magia negra como o Pseudomo-narchia Daemonum, do ocultista do século XVI Johann Wier.

Em todos esses livros, os espíritos demoníacos receberam os nomes de divindades antigas, cujos adeptos haviam sido con-quistados e seus deuses demoni-zados. Belzebu, “O Príncipe dos Demônios”, fora Baalzebu, deus dos filisteus; Astarot era a deusa negra dos fenícios e Baal era a di-vindade com sede de sangue, para quem os canaanitas sacrificavam oferendas queimadas, em geral crianças. Outras entidades maléfi-cas foram criadas em um esforço para se explicar a existência de várias doenças. Mamon foi uma exceção. O deus da avareza surgiu apenas porque as palavras de Jesus foram mal interpretadas por seus seguidores, que pensaram que ele se referia a uma entidade demoní-aca ao adverti-los de que o homem não pode cultuar ao mesmo tempo Deus e mamon (dinheiro).

o pecAdo originAl

Satã surge na companhia de demônios no Talmude, uma co-leção de comentários rabínicos a respeito da lei judaica, mas os tes-tes que ele inventa para tentar os pios são sempre a pedido de Deus

e ele sempre expressa sua esperan-ça de que a vítima vença.

No livro do Gênesis, a ser-pente que tenta Eva a cometer o primeiro pecado de comer o fru-to proibido é apenas uma cobra, e não Satã disfarçado. Essa distor-ção em especial surge do Apoca-lipse 20:2, no Novo Testamento; portanto, cria o suposto crime da serpente ex post facto (culpado por uma lei criada após o aconte-cimento).

Os teólogos cristãos presu-miram que Satã era um sinônimo do Demônio no Antigo Testamento,

Adão e Eva são seduzidos pela ser-pente “sutil” que os persuade a co-mer o fruto proibido.

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Quem é Satã? 19

“Jó fala com seus amigos”, de Gustave Dore, 1866.

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A HistóriA sombriA do oculto20

mas os eruditos rabínicos afirma-ram que tal vínculo nunca foi pre-tendido, nem deve ser inferido.

Mais tarde, os antecessores de Satã foram obscurecidos pela lenda de Lúcifer, o anjo caído que aparece nos Apócrifos, uma coleção de deliberações sobre o significado da Torá. Os textos apócrifos foram escritos por estu-diosos judaicos, místicos e visio-nários anônimos, que esconderam sua verdadeira identidade por trás dos nomes de autoridades rabíni-cas antigas para conferir credibi-lidade a seus argumentos e lendas apocalípticas. Por essa razão, o Ju-daísmo ortodoxo renega tais tex-tos. De qualquer modo, a ideia de Satã como um anjo caído persiste até os dias de hoje. Foram os teó-logos cristãos que afirmaram que o anjo caído em Isaías 14:12 é, de fato, um personagem chamado Satã que aparece em toda parte no Antigo Testamento, mas para os eruditos judeus esses personagens míticos não têm ligação e servem a finalidades distintas.

No Livro da Sabedoria, Satã é denominado o portador da mor-te, enquanto no Livro de Enoch Eslavo (que se acredita ser ante-rior ao século I da Era Comum) o Observador chamado Satanael é identificado como um espírito de-moníaco. Isso construiu a crença de que Satã não é um nome indivi-dual, mas, em vez disso, um termo genérico para um adversário. O Li-

vro de Enoch também contém uma referência a um grupo de satãs. Ouve-se o anjo Fanuel “defenden-do-se dos satãs e proibindo-os de vir diante do Senhor dos espíritos”.

o eu sombrio

“Cada um de nós é seu próprio demônios, e tornamos este mundo um inferno.”

Oscar Wilde

De acor-do com os ensinamentos outrora secre-tos do Judaís-mo conhecidos como Cabala, existe um Uni-verso paralelo ao nosso cha-

mado de Qliphoth, que é feito de “cascas” ou “cápsulas” que contêm os resíduos dos mundos anteriores que Deus destruiu, ao perceber que eles eram imperfei-tos. Essa é a esfera sobre a qual Satã e sua legião de demônios governam a g o r a . Mas, mes-mo nesse e s q u e m a cósmico , o Espírito das Trevas é impoten-

Todos nós devemos sofrer por nossos pecados.

Cada um de nós é seu próprio demônio.

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Quem é Satã? 21

“Lúcifer”, de Franz von Stuck, 1892.

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A HistóriA sombriA do oculto22

te para extinguir a centelha di-vina que anima cada um de nós, ou desfazer nossa ligação com o nosso Criador. Mais uma vez, a ideia de que Satã age para roubar nossas almas é estranha à visão de mundo judaica. Na verdade, é outro conceito cristão enxer-tado pela Igreja, que desejava se colocar como mediadora entre o homem e seu criador.

Mesmo em seu disfarce como Samael, o Anjo da Morte, Satã não é considerado maligno, pois na Cabala a morte é uma função cósmica natural, que pos-sibilita ao nosso espírito imortal deixar o corpo para reencarnar e, portanto, continuar o trabalho de evolução pela experiência.

O mal é qualquer coisa que busque conter o ritmo inexorável da evolução – ou a Vontade Di-vina, para usar terminologia reli-giosa. Não é a missão maligna de um ser cósmico.

Porém, mesmo no mundo multifacetado da parábola bíbli-ca, o que é perfeito não pode criar o imperfeito. Deve-se, portanto, encarar a esfera demoníaca como um conceito intelectual dos eru-ditos rabínicos, que afirmavam que tudo na criação deveria ter seu oposto, do mesmo modo que os físicos modernos apresentam uma hipótese para testar a vali-dade de uma teoria. Na Cabala, um reino das sombras em que a luz divina é excluída é uma con-

tradição e, ainda assim, um novo fio na rica tapeçaria da mitologia judaica; e, como tal, não deve ser compreendida literalmente.

A lenda de Lúcifer pode ser traçada até uma data mais tardia. Em grande parte ela

é de origem medieval, tendo sido rearranjada a partir de uma história mais antiga

sobre a queda da estrela da manhã, em Isaías 14:12,

com elementos de Ezequiel 28 e da história da queda de

Satã, em Lucas 10:18, no Novo Testamento.

Os cabalistas modernos interpretam esse Universo al-ternativo do Qliphoth como um símbolo de nossa própria psi-que multifacetada, em que os demônios personificam nossos atributos negativos e os anjos representam nossas característi-cas divinas. Satã, portanto, nada mais é que nossa própria sombra, que se manifesta quando nós in-conscientemente cedemos ao de-sejo de praticar atos malignos ou na autoilusão, em que aquilo que percebemos como caos no mun-do à nossa volta é apenas uma série de acontecimentos inicia-dos por forças cósmicas, como