o escolanivismo e a pedagogia socialista: educação integral e integrada

200
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO NÍVEL DE MESTRADO/PPGE ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAÇÃO O ESCOLANOVISMO E A PEDAGOGIA SOCIALISTA NA UNIÃO SOVIÉTICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX E AS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO INTEGRAL E INTEGRADA Cezar Ricardo de Freitas CASCAVEL, PR 2009

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Educação – PPGE, área de concentração Sociedade, Estado e Educação, linha de pesquisa: Educação, Políticas Sociais e Estado, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN - UNIOESTECENTRO DE EDUCAO, COMUNICAO E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO NVEL DE MESTRADO/PPGE

    REA DE CONCENTRAO: SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAO

    O ESCOLANOVISMO E A PEDAGOGIA SOCIALISTA NA UNIO SOVITICA NO INCIO DO SCULO XX E AS CONCEPES DE EDUCAO INTEGRAL E

    INTEGRADA

    Cezar Ricardo de Freitas

    CASCAVEL, PR2009

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN - UNIOESTECENTRO DE EDUCAO, COMUNICAO E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO NVEL DE MESTRADO/PPGE

    REA DE CONCENTRAO: SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAO

    O ESCOLANOVISMO E A PEDAGOGIA SOCIALISTA NA UNIO SOVITICA NO INCIO DO SCULO XX E AS CONCEPES DE EDUCAO INTEGRAL E

    INTEGRADA

    Cezar Ricardo de Freitas

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Strictu Sensu em Educao PPGE, rea de concentrao Sociedade, Estado e Educao, linha de pesquisa: Educao, Polticas Sociais e Estado, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    Orientadora:Prof. Dr. Ireni Marilene Zago Figueiredo

    CASCAVEL, PR2009

  • Ficha catalogrficaElaborada pela Biblioteca Central do Campus de Cascavel Unioeste

    F936e Freitas, Cezar Ricardo deO escolanovismo e a pedagogia socialista na Unio Sovitica no

    incio do sculo XX e as concepes de educao integral e integrada / Cezar Ricardo de Freitas. Cascavel, PR: UNIOESTE, 2009.

    200 f. ; 30 cm

    Orientadora: Profa. Dra. Ireni Marilene Zago FigueiredoDissertao (Mestrado) Universidade Estadual do Oeste do

    Paran.Bibliografia.

    1. Dewey, John, 1859-1952. 2. Educao Sovitica. 3. Educao integral. 4. Educao integrada. I. Figueiredo, Ireni Marilene Zago. II. Universidade Estadual do Oeste do Paran. III. Ttulo.

    CDD 21ed. 370.9

    Bibliotecria: Jeanine da Silva Barros CRB-9/1362

    Key-words: John Dewey, Soviet Education, Integral Education, Integrated Education.rea de concentrao: Sociedade, Estado e Educao.Titulao: Mestre em EducaoBanca examinadora: Dra. Ireni Marilene Zago Figueiredo; Dra. Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier; Dra. Liliam Faria Porto Borges; Dr. Gilmar Henrique da Conceio.Data da defesa: 17/02/2009.

    iii

  • iv

  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo apresentar as propostas de Educao Integral e Integrada nos tericos da Unio Sovitica, especificamente Vladimir Ilitch Ulianov, o Lnin (1870-1924), Nadejda Konstantinovna Krupskaia (1869-1939), Moiss Mikhaylovich Pistrak (1888-1940) e Anton Semionovich Makarenko (1888-1939), a partir da Revoluo de Outubro de 1917 at a dcada de 1930; e em John Dewey (1859-1952), expoente mximo da chamada Pedagogia da Escola Nova. Tratou-se de apreender em que medida os autores soviticos dialogaram com as proposies escolanovistas, notadamente com John Dewey, a partir da problematizao do processo de desenvolvimento e de consolidao do capitalismo, sustentado pelo liberalismo e seus princpios fundamentais, com nfase para a segunda fase do liberalismo, na qual John Dewey est situado. Ao mesmo tempo, explicitamos os desafios que a Rssia revolucionria enfrentava, destacando o que era pertinente no embate entre os liberais, fascistas e socialistas, bem como os elementos incorporados, negados ou at mesmo superados pelos tericos soviticos. Nesse caminho, tornou-se fundamental o entendimento de que os conceitos no so universais, mas que assumem diferentes sentidos e respondem a determinadas necessidades, respeitando as particularidades de cada tempo e lugar. por isso que foi necessrio compreender a relao entre capitalismo e liberalismo e como isso se expressou no movimento escolanovista, bem como a forma como o socialismo se inseriu nesse debate, a partir da realidade particular vivida na Unio Sovitica. Constatou-se que, para John Dewey, a Educao Integral est articulada perspectiva de que a escola propicie uma formao que integre a cultura com a sua utilidade prtica, esta entendida a partir dos desafios enfrentados pelo capitalismo no perodo, dentre eles, a ausncia de instituies democrticas. Por sua vez, para o marxismo, as possibilidades de uma Educao Integral, visando ao desenvolvimento do ser humano, em suas mltiplas dimenses, uma formao omnilateral, em contraponto formao unilateral, somente poderia se efetivar numa sociedade em que o pleno desenvolvimento humano estivesse frente dos interesses da reproduo e da acumulao capitalista: a sociedade comunista. Embora partamos do pressuposto de que a Rssia viveu, nas primeiras dcadas aps a Revoluo, uma fase de transio, o socialismo, foi possvel verificar a aproximao dos autores soviticos de uma concepo de Educao Integral, ao buscarem uma formao que contemplasse as dimenses da poltica, da economia, da cultura, articuladas ao processo revolucionrio. Em relao Educao Integrada, foi possvel verificar que ela mais usada no sentido de expressar a vinculao entre escola e sociedade e educao e trabalho, respeitadas as particularidades histricas. Embora com perspectiva diferenciada, tendo em vista projetos distintos de sociedade e de educao, foi possvel evidenciar a concepo de Educao Integrada em John Dewey e nos autores soviticos.

    Palavras-chave: John Dewey, Educao Sovitica, Educao Integral, Educao Integrada.

    v

  • ABSTRACT

    This study aims to present the proposals for Integral Education and Integrated Education by theorists from the Soviet Union, namely Vladimir Ilitch Ulianov, or Lenin (1870-1924), Nadejda Konstantinovna Krupskaia (1869-1939), Moiss Mikhaylovich Pistrak (1888-1940) and Anton Semionovich Makarenko (1888-1939), covering the period from the Revolution in October 1917 to the decade of 1930; and by John Dewey (1859-1952), a leading representative of the so-called Progressive Education Pedagogy. We sought to examine to which extent the Soviet authors shared the propositions of the Progressive Education movement, especially John Deweys ideas, by problematizing the process of development and consolidation of capitalism, supported by liberalism and its fundamental principles, with emphasis on the second phase of liberalism, in which John Dewey is situated. We also discuss the challenges faced by the revolutionary Russia, highlighting the important elements in the struggle between liberals, fascists and socialists, as well as the elements that were incorporated, denied or even overcome by the Soviet theorists. For this study, it was necessary to understand that the concepts are not universal, but they have different meanings and respond to specific needs, taking the particularities of each time and place into account. In this sense, we examined the relationship between capitalism and liberalism, and how this relationship was expressed in the Progressive Education movement, as well as how socialism has entered this debate, considering the particular reality experienced in the Soviet Union. According to our findings, John Deweys idea of Integral Education is that the school must provide an education that integrates culture with its practical use, which comprise the challenges faced by capitalism in that period, such as the absence of democratic institutions. On the other hand, within the Marxisms conceptual framework, the possibilities of an Integral Education aiming at the development of human being in its multiple dimensions, that is, an omnilateral education as opposed to unilateral education, could only be effective in a society where the full development of man was more important than the interests of capitalist accumulation and reproduction, that is, in the communist society. Although we are based on the assumption that Russia experienced, in the first decades after the Revolution, a transitional phase socialism , it was possible to find out that the Soviets idea of education was close to a conception of Integral Education as they pursued an education that included the political, economic and cultural dimensions, articulated to the revolutionary process. Regarding the Integrated Education, we have found that it is mainly used to express the relationship between school and society, and education and work, considering the historical particularities. Yet from different perspectives, bearing in mind the different projects of society and education, it was possible to establish the conception of Integrated Education both in John Dewey and in the Soviet authors.

    Key-words: John Dewey, Soviet Education, Integral Education, Integrated Education.

    vi

  • AGRADECIMENTOS

    Professora Ireni Marilene Zago Figueiredo, pelos conhecimentos compartilhados, pela tolerncia aos meus limites e pela dedicao na conduo deste trabalho, contribuindo de forma incisiva para que este fosse realizado, alm de fazer com que a caminhada at aqui fosse menos difcil.

    Aos membros da banca, Professor Gilmar Henrique da Conceio e Professora Liliam Faria Porto Borges, pelas crticas e sugestes que contriburam para o desenvolvimento deste trabalho.

    Professora Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier, pela ateno, pelas valiozas indicaes e sugestes.

    Aos Professores do Colegiado do Curso de Pedagogia e do Programa de Mestrado em Educao da Unioeste, pela pronta disposio em me auxiliar, particularmente Professora Aparecida Favoreto e ao Professor Alexandre Felipe Fiuza.

    Aos meus familiares e amigos que souberam compreender a minha constante ausncia, em especial minha esposa Janaina de Camargo, pelo apoio nas horas em que as incertezas e o cansao ameaavam.

    vii

  • A vida uma seqncia de aes, pequenas ou grandes, destinadas a sobreviver. A cada uma destas aes corresponde uma finalidade, mas todas estas finalidades no so de fato mais do que uma s e mesma coisa: a preocupao de viver a maior quantidade de tempo e o melhor possvel. uma finalidade razovel e razovel querer ating-la. [...] Quanto mais a humanidade se desenvolveu, mais comeou a compreender que essa finalidade seria atingida mais facilmente se o homem no lutasse sozinho, mas em coletividade.

    A. S. Makarenko

    viii

  • SUMRIO

    RESUMO.......................................................................................................................vABSTRACT..................................................................................................................viINTRODUO............................................................................................................10

    CAPTULO I

    LIBERALISMO, ESCOLANOVISMO E AS CONCEPES DE EDUCAO INTEGRAL E INTEGRADA EM JOHN DEWEY........................................................15

    1.1 O Liberalismo como expresso ideolgica do capitalismo e o Escolanovismo como expresso do pensamento liberal na educao................................................17

    1.2 As preocupaes de Dewey com um renascente liberalismo e a sua proposta de Educao Integral e Integrada...............................................................................35

    CAPTULO II

    KARL HEINRICH MARX E FRIEDRICH ENGELS: DA CRTICA AO CAPITALISMO UMA PROPOSTA DE EDUCAO........................................................................64

    CAPTULO III

    AS INFLUNCIAS DO ESCOLANOVISMO NA RSSIA REVOLUCIONRIA E AS CONCEPES DE EDUCAO INTEGRAL E INTEGRADA EM LNIN, KRUPSKAIA, PISTRAK E MAKARENKO.................................................................93

    3.1 A Revoluo Russa e o debate educacional nas primeiras dcadas do sculo XX................................................................................................................................94

    3.2 Vladimir Ilitch Ulianov (Lnin): os desafios da educao e da luta poltica no perodo revolucionrio...............................................................................................119

    3.3 Nadejda Konstantinovna Krupskaia e a formao da nova gerao comunista......

    ..................................................................................................................................142

    3.4 Moiss Mikhaylovich Pistrak: a escola do trabalho e a produo como elemento integrador..................................................................................................................150

    3.5 Anton Semionovich Makarenko e a Colnia Gorki: a educao e o trabalho como pilares para a construo da coletividade................................................................160

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................181

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................ 194

    ix

  • INTRODUO

    O interesse em estudar os conceitos de Educao Integral, Educao

    Integrada e Educao em Tempo Integral surgiu devido a minha atuao como

    Professor em uma Escola de Tempo Integral da rede municipal de Cascavel-PR, em

    2003. A possibilidade de realizar esse estudo se tornou concreta ao ingressar no

    Curso de Especializao em Histria da Educao Brasileira, oferecido pela

    Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE Campus de Cascavel,

    em 2006. O resultado sistematizado na monografia1, no entanto, nos indicou a

    necessidade de aprofundamento terico sobre o conceito de Educao Integral no

    incio do sculo XX. Foi com o propsito de dar continuidade pesquisa que

    participei do processo de seleo do Mestrado em Educao na mesma instituio,

    em 2006.

    A hiptese inicial do projeto de pesquisa a ser desenvolvido era de que o

    escolanovismo, como expresso do liberalismo, havia se apropriado do conceito de

    Educao Integral socialista transplantando-os para a sociedade capitalista e, com

    isso, descaracterizando-o, assumindo a perspectiva de uma Educao Integrada.

    Considerando essa hiptese, o nosso entendimento era de que uma proposta de

    Educao Integral somente seria possvel no socialismo e o escolanovismo, no

    limite, somente poderia efetivar uma proposta de Educao Integrada. Esse

    pressuposto no se sustentou com a continuidade das investigaes. Passamos,

    ento, a identificar que a apropriao foi recproca, mas que, no entanto, existiam

    elementos que as diferenciavam, o que exigiu a compreenso do contexto histrico

    em que tais perspectivas foram formuladas. Foi assim que a investigao sobre a

    origem dos conceitos de Educao Integral e Integrada reforou a insustentabilidade

    da hiptese inicial, na medida em que foi possvel identificar os dois conceitos nas

    propostas de educao em John Dewey e nos tericos da Rssia2 sovitica.

    Compreendemos, portanto, a partir da recuperao dos termos de Educao

    Integral e Integrada, que os conceitos no so universais e que assumem diferentes

    sentidos ou significaes, bem como respondem a determinadas necessidades,

    respeitando as particularidades de cada tempo e lugar; entendendo-os, dessa forma,

    1 Monografia intitulada A experincia da escola em tempo integral na rede pblica municipal de Cascavel, sob orientao da Professora Maria Inalva Galter. 2 A Unio das Repblicas Socialistas Soviticas URSS foi oficialmente criada em 1922 e abrangia pases com realidades muito distintas.

  • como produto das relaes complexas e imbricadas das dimenses econmico-

    social e poltico-ideolgica de um determinado contexto histrico.

    Nesse sentido, a pesquisa que resultou nesta dissertao, apresenta as

    propostas de Educao Integral e Integrada nos tericos da Rssia revolucionria;

    especificamente, Vladimir Ilitch Ulianov, o Lnin, (1870-1924), Nadejda

    Konstantinovna Krupskaia (1869-1939), Moiss Mikhaylovich Pistrak (1888-1940) e

    Anton Semionovich Makarenko (1888-1939), a partir da Revoluo de Outubro3 de

    1917 at a dcada de 1930, com destaque para a Unio Sovitica como a primeira

    tentativa concreta de construir uma sociedade voltada para o pleno desenvolvimento

    do ser humano e, portanto, de construo de uma proposta socialista de educao,

    em contraponto forma como a educao se apresentava na sociedade capitalista.

    Tambm analisamos John Dewey (1859-1952), reconhecido como mentor de uma

    pedagogia burguesa, a partir da problematizao do processo de desenvolvimento e

    de consolidao do capitalismo sustentado pelo liberalismo e seus princpios

    fundamentais, com nfase para a segunda fase do liberalismo, na qual John Dewey

    est situado; e, ao mesmo tempo, explicitamos os desafios que a Rssia

    revolucionria enfrentava, destacando o que era fundamental no embate entre os

    liberais, os fascistas e os socialistas.

    Portanto, foi necessrio compreender a relao entre capitalismo e

    liberalismo, e como isso se expressou no movimento escolanovista, bem como a

    forma como o socialismo sovitico se inseriu nesse debate. No tivemos, no entanto,

    a pretenso de elaborar uma anlise que contemplasse todas as dimenses

    econmico-sociais e poltico-ideolgicas desse processo, nem tampouco dar conta

    de todos os elementos decorrentes das diferentes composies ou especificidades

    que o liberalismo e o escolanovismo assumiram no decurso do desenvolvimento

    histrico do capitalismo.

    Isso no significa que desconsideramos a relevncia das contradies

    inerentes ao capitalismo e suas relaes com a educao; ao contrrio, implicou,

    3 Como a Rssia ainda seguia o calendrio juliano, que ficava treze dias atrs do calendrio gregoriano, adotado em todas as demais partes do mundo cristo ou ocidental, a Revoluo de Fevereiro, na verdade, deu-se em maro; e a de Outubro, em 7 de novembro. Foi a Revoluo de Outubro que reformou o calendrio russo, como reformou a ortografia russa, demonstrando a profundidade de seu impacto. Pois bem sabido que essas pequenas mudanas geralmente exigem terremotos scio-polticos para traz-las. A mais duradoura e universal conseqncia da Revoluo Francesa foi o sistema mtrico (HOBSBAWM, 1995, p. 64-62. Nota do autor no texto).

    11

  • sim, em considerar essas contradies como ponto de partida indispensvel para o

    desvendamento das contradies particulares e peculiares que determinaram e

    configuraram a educao em cada realidade investigada. Foi preciso, assim,

    entender quais eram os desafios enfrentados pelo capitalismo no perodo, bem

    como a quais demandas sociais John Dewey considerava que a escola deveria

    responder. Ao apreender as contradies ensejadas pelo capitalismo tambm

    encontramos alguns elementos aos quais a proposta sovitica de educao tentou

    se contrapor. Ao mesmo tempo, foi necessrio entender os desafios enfrentados

    pela Rssia sovitica, de romper o atraso econmico-social em que se encontrava,

    tendo como referncia as realizaes da modernidade, mas com objetivos

    diferenciados.

    Tendo em vista que os conceitos no so universais, cabe algumas

    consideraes sobre a origem das propostas de Educao Integral e Integrada.

    Assim, a nfase dada formao integral do homem est na origem do conceito

    grego de Paidia, de difcil definio, e que expressou o ideal de formao dos

    gregos a partir do sculo V a.C. e influenciou o que os romanos chamaram de

    humanistas; sendo retomado, no sculo XVIII, pelos Iluministas. Neste sentido, a

    preocupao com uma Educao Integral tem origem nas chamadas civilizaes

    clssicas, Grcia e Roma, ambas escravistas, onde alguns filsofos defendiam uma

    formao que desenvolvesse o processo de construo pessoal consciente,

    permitindo ao indivduo ser constitudo de modo correto e sem falha, nas mos, nos

    ps e no esprito. A educao grega, reservada somente para a aristocracia,

    centrava-se na formao integral, corpo e esprito, com nfase para o preparo

    militar ou esportivo ou para o debate intelectual, conforme a poca ou o lugar

    (ARANHA, 2006, p. 61-63). Aristteles (384-322 a.C.), por exemplo, reconhecia a

    importncia de uma Educao Integral, que exigiria o cultivo de todas as disposies

    humanas: Sobre a educao afirmava que Cosas que deben ser objeto de ella: las

    letras, la gimnstica, la msica y el dibujo (ARISTTELES, 2008, p. 06). A

    Educao Integral, em Aristteles, achava-se em ntima relao com um

    desenvolvimento progressivo: as funes fsicas, vegetativas, instintivas e racionais

    do homem desenvolvem-se passo a passo, de modo pausado. Seria preciso

    desenvolver as disposies corporais e instintivas antes de ocupar-se intensamente

    12

  • da razo e do carter. A educao, em outras palavras, deveria aperfeioar a

    natureza humana, de maneira gradual (LARROYO, 1982, p. 183-184).

    Convm ressaltar tambm que, historicamente, os ideais e as prticas

    educacionais reformadoras, reunidos sob a denominao de Escola Nova, fizeram

    uso, com variados sentidos, da noo de educao integral. [...] O movimento reformador, do incio do sculo XX, refletia a necessidade de se reencontrar a

    vocao da escola na sociedade urbana de massas, industrializada e democrtica

    (CAVALIERE, 2002, p. 251. Grifos da autora). Portanto, para alm das vrias

    vertentes do movimento escolanovista, analisamos a proposta de Educao Integral

    em John Dewey, considerado o maior expoente do escolanovismo e que foi, em

    grande parte, expresso do liberalismo na educao. Ao explicitar as proposies

    tericas do escolanovismo contrapondo-as com a dos socialistas, apresentamos o

    dilogo que os tericos soviticos travaram com a concepo de John Dewey,

    tendo em vista que ele foi amplamente discutido na Unio Sovitica e tambm

    analisou algumas experincias soviticas (CAPRILES, 1989, p. 23).

    Por sua vez, para o marxismo, as possibilidades de uma Educao Integral,

    visando o desenvolvimento do ser humano em suas mltiplas dimenses, uma

    formao omnilateral, em contraponto formao unilateral, somente poderiam se

    efetivar numa sociedade em que o pleno desenvolvimento humano estivesse

    frente dos interesses da reproduo e da acumulao capitalista; a sociedade

    comunista. Embora tratamos de uma fase de transio, o socialismo, foi possvel

    verificar nos autores soviticos aqui estudados uma perspectiva de Educao

    Integral, ao buscarem uma formao que contemplasse as diversas potencialidades

    humanas: poltica, produtiva, formativa, etc.; articulada aos desafios enfrentados

    aps a tomada do poder do Estado pelos bolcheviques em 1917.

    Em relao Educao Integrada, verificamos que ela mais usada no

    sentido de expressar a vinculao entre escola e sociedade e educao e trabalho,

    respeitadas as particularidades histricas. Embora com perspectivas diferenciadas,

    tendo em vista projetos distintos de sociedade e de educao, tambm foi possvel

    compreender a concepo de Educao Integrada em John Dewey e nos autores

    soviticos.

    Dessa forma, para buscar a compreenso das propostas de Educao

    Integral e Integrada em John Dewey e nos tericos socialistas, esta dissertao foi

    13

  • organizada em dois captulos, contemplando duas sees no primeiro e seis sees

    no segundo.

    Em linhas gerais, a primeira seo, do captulo I, consistir numa

    reconstituio de alguns aspectos da trajetria do processo de desenvolvimento e de

    consolidao do capitalismo, sustentado pelo liberalismo e seus princpios

    fundamentais, os quais foram sendo reestruturados e adaptados prpria realidade

    apresentada pelo desenvolvimento capitalista, tendo em vista os dilemas

    enfrentados nesse processo; principalmente devido a mobilizao da classe

    operria. A segunda seo constituir numa breve recuperao do movimento

    escolanovista, entendido como um segmento da doutrina liberal para a educao

    do incio do sculo XX, com nfase nas significaes deweyanas subjacentes aos

    conceitos de Educao Integral e Integrada.

    No segundo captulo, buscamos apresentar as influncias dos ideais

    escolanovistas na Rssia revolucionria, evidenciando at que ponto eles foram

    assimilados, negados ou superados pelos autores soviticos, no que se refere s

    propostas de uma Educao Integral e Integrada. Para tanto, antes de tratar

    especificamente dos quatro tericos soviticos, dedicamos a primeira seo a

    caracterizao da Rssia e dos desafios que se colocavam para uma nao com

    horizonte proletrio; e a segunda seo explicitar alguns pressupostos que a

    nortearam, tendo como referncia os principais conceitos do pensamento marxista.

    Algumas consideraes complementares sobre as concepes de Educao

    Integral e Integrada em John Dewey e nos tericos da Unio Sovitica, bem como

    sobre o que representou o socialismo real, concluiro a exposio do trabalho.

    14

  • CAPTULO I

    LIBERALISMO, ESCOLANOVISMO E AS CONCEPES DE EDUCAO INTEGRAL E INTEGRADA EM JOHN DEWEY

    Neste captulo, para compreender a concepo de Educao Integral e

    Integrada de John Dewey (1859-1952) buscamos recuperar, mas sem a pretenso

    de abarcar todos os elementos econmico-sociais e poltico-ideolgicos, a

    articulao do capitalismo com a sua expresso ideolgica, o liberalismo, o qual

    contribuiu para a legitimao e a reproduo da sociedade de classes. Diante disso,

    importante entender como a doutrina liberal explicava as contradies do

    capitalismo, bem como as solues que ela apontava, pois no incio do sculo

    XX que a escola4 comeou a se destacar como uma das estratgias, defendidas

    pelos tericos liberais, para enfrentar os problemas do capitalismo. O

    escolanovismo5 , em grande parte, a expresso dessa preocupao, com destaque

    para as elaboraes tericas de John Dewey. Neste sentido, preciso retomar a

    prpria constituio e desenvolvimento do liberalismo, inclusive, para compreender

    os princpios fundamentais consubstanciados na proposta educacional deweyana.

    Como o liberalismo do sculo XX sofreu algumas alteraes, influenciado

    principalmente pela alternativa histrica que representava o socialismo na Unio

    Sovitica, fundamental analisar esse contexto por dois motivos: primeiramente, ao

    buscar os elementos para apreender a concepo de Educao Integrada e Integral

    de Dewey necessrio verificar de onde parte esse autor para elaborar a sua

    proposta educacional, bem como a quais demandas sociais ele considerava que a

    escola deveria responder. Em segundo lugar, esses elementos nos fornecero as bases para identificar em que medida os autores soviticos assimilaram ou no os

    ideais escolanovistas, bem como o que os diferenciam em relao a concepo de

    Educao Integral e Integrada de John Dewey. A crtica ou a defesa do

    escolanovismo, na Unio Sovitica, precisa ser compreendida justamente na forma

    4 Sobre a gnese da escola pblica ver, dentre outros, ALVES, G. L. A produo da escola pblica contempornea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 5 Alguns autores utilizam o termo educao progressiva, movimento progressista na educao ou movimento renovador para caracterizar o escolanovismo. A respeito ver, dentre outros, LUZIURIAGA, Lorenzo. Histria da Educao e da Pedagogia. 4 ed. Traduo de Llio Loureno de Oliveira e J. B. Damasco Penna. So Paulo: Nacional, 1966. (Atualidades Pedaggicas, v. 56); MANACORDA, Mario. A. Histria da educao: da Antigidade aos nossos dias. So Paulo: Cortez, 1993.

  • como os autores soviticos, que sero analisados no segundo captulo,

    compreenderam a eficincia ou o fracasso da escola em bases liberais para

    responder s demandas sociais apontadas por Dewey ou, at mesmo, na

    incorporao das novas demandas escola para formao do novo homem.

    Em sntese, em linhas gerais, busca-se evidenciar, na primeira seo o

    processo de desenvolvimento e de consolidao do capitalismo; sustentado pelo

    liberalismo e seus princpios fundamentais, os quais foram sendo reestruturados e

    adaptados prpria realidade apresentada pelo desenvolvimento capitalista, tendo

    em vista os dilemas enfrentados nesse processo; e o movimento escolanovista,

    apreendido aqui como um segmento da doutrina liberal, do incio do sculo XX,

    para a educao. Na segunda seo, tenciona-se discutir as significaes

    deweyanas subjacentes aos conceitos de Educao Integral e Integrada, a partir das

    obras Democracia e Educao6, Liberalismo, Liberdade e Cultura7 e Experincia

    e Educao8, considerando, particularmente, a segunda fase do liberalismo, na qual

    John Dewey estava situado.

    6 Datada de 1916, segundo o prprio autor, um esforo para penetrar e definir as idias implcitas em uma sociedade democrtica e para aplic-las aos problemas da educao (DEWEY, 1979a, p. XXVII. Prefcio da 1 edio). 7 Obra escrita em 1935, quando John Dewey analisa a segunda fase do desenvolvimento do liberalismo. A edio de 1970 reuniu, num s volume, dois livros de John Dewey: Liberalism & Social Action (1935) e Freedom and Culture (1939). 8 Nesse estudo, de 1938, o autor apresenta as crticas escola tradicional, ao mesmo tempo em que descreve e ilustra um de seus conceitos educacionais fundamentais: o ensino a partir da experincia (DEWEY, 1979b, p. XII). Tambm posiciona-se diante do movimento educacional renovador, criticando alguns de seus desdobramentos, ou mal-entendidos e reafirmando as suas idias fundamentais (CUNHA, 1994, p. 86).

    16

  • 1.1 O Liberalismo como expresso ideolgica do capitalismo e o escolanovismo como expresso do pensamento liberal na educao

    A histria do pensamento liberal a histria do processo de desenvolvimento

    do modo de produo capitalista e da ascenso da burguesia enquanto classe

    hegemnica (BARBOSA, 2000, p. 06). O liberalismo uma doutrina poltica9

    formulada no sculo XVIII, tendo como principal terico Adam Smith (1723-1790),

    em seu estudo clssico A Riqueza das Naes (1776). No sculo XVIII, o liberalismo

    surgiu como uma doutrina que desafiava as restries feudais ao comrcio e

    produo (PETRAS, 1997, p. 15).

    As elaboraes de Adam Smith, de certa forma, constituram uma sntese das

    idias burguesas que comeam a tomar corpo desde a crise do modo de produo

    feudal e desenvolvimento do modo de produo capitalista. Tericos como Tomas

    Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Jean Jacques Rousseau (1712-

    1778) e Adam Smith, apesar da divergncia em algumas questes, convergiam ao

    expressar os anseios da burguesia, que foi construindo, historicamente, a sua

    hegemonia.

    A burguesia construiu o liberalismo como ideologia no processo de constituio de si mesma como classe dominante e hegemnica, o que quer dizer nas relaes que travou com as outras foras sociais, sejam as de aliana e compromisso, sejam as de oposio e antagonismo. Nesse processo, ela construiu um liberalismo que passou a constitu-la e a constituir a forma dominante de conceber o mundo. E ainda treinou as classes trabalhadoras para as leis do capitalismo (WARDE, 1984, 45).

    Portanto, o liberalismo, ao nascer com o capitalismo, justificou e dirigiu sua

    plena consolidao.

    [...] o liberalismo surgiu como expresso historicamente necessria do modo de produo capitalista, no s na sua fase de estruturao e consolidao na qual o liberalismo foi imposto como viso de mundo, atravs da qual a burguesia dirigiu o processo de luta contra a antiga ordem e de construo da nova como tambm nas fases seguintes, de crescente expansionismo, nas quais a burguesia precisou da disponibilidade subjetiva para que o capitalismo fosse aceito como natural e necessrio, identificado a progresso,

    9 O [...] liberalismo poltico, principalmente na Inglaterra, identificou-se com o liberalismo econmico (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 700).

    17

  • desenvolvimento, democracia, liberdade, etc. Sob essa perspectiva, o liberalismo no s a primeira ideologia, mas fundante da prpria ideologia como categoria concreta da ordem capitalista (WARDE, 1984, p. 26).

    No momento de estruturao e de consolidao da burguesia, foi necessrio

    destruir a ordem imutvel que garantia os privilgios da nobreza, invocando os

    direitos naturais dos homens, para que a luta contra a aristocracia fosse vitoriosa.

    Nesse momento, a burguesia desempenhou um papel revolucionrio, pois:

    [...] destruiu os empecilhos que impediam o desenvolvimento das foras produtivas: os entraves corporativos, os privilgios locais, as tarifas de aduanas diferenciadas, as isenes de impostos aos nobres, etc. Mas, ao exigir para si igualdade de direitos proclamou a liberdade e a igualdade dos servos e dos homens em geral, inclusive do proletariado [...] (MACHADO, 1984, p. 87).

    O pice desse movimento representado pela Revoluo Francesa (1789),

    onde a classe burguesa, que no decorrer dos sculos anteriores construiu o seu

    poder econmico, consolidou o seu poder poltico. Essa revoluo dirigida pela

    burguesia, apesar de no ter sido somente burguesa, pois contou com a

    participao de camponeses e da massa de pobres urbanos, levou a burguesia ao

    poder. Assim, estavam abertas as portas para o desenvolvimento do capitalismo

    (KONDER, 2003, p. 10).

    A primeira fase, denominada de liberalismo clssico, atingiu seu auge no

    sculo XVIII e percorreu parte do sculo XIX, no entanto, no se esgotou nele. Esse

    momento caracterstico da fase em que o capitalismo expande suas fronteiras,

    ocasionando uma redistribuio do mercado mundial. Nesta fase, era uma

    concepo ainda em constituio, nas quais as teses especficas, contidas nessa

    concepo da burguesia, tornar-se-iam uma viso universal das novas foras

    constitutivas da sociedade em construo (PEIXOTO, 1998, p. 116-118). As teses

    fundamentais do liberalismo, nesta etapa [...] so o direto liberdade, igualdade,

    na natureza e igualdade legal, o direito de propriedade, a segurana ou proteo do

    Estado (WARDE, 1984, p. 55).

    O liberalismo clssico, de Locke e Spencer, bem como de seus seguidores, sustentava que o Estado tem o direito de limitar a liberdade de algum unicamente quando for necessrio proteger os

    18

  • direitos fundamentais (muitas vezes considerados como sendo os prprios direitos naturais) (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 711).

    A doutrina liberal, instrumento de luta da burguesia contra o Antigo Regime,

    funda-se nos princpios da individualidade, da liberdade, da propriedade, da

    igualdade e da democracia. Opunha, ordem inqua que combatia, fundada na

    desigualdade herdada, a ordem capitalista que, respeitando as desigualdades

    naturais, se consubstanciava numa sociedade hierarquizada, porm justa e para

    tanto aberta (XAVIER, 1990, p. 60-61).

    atravs desses cinco princpios liberais, portanto, que se difunde o ideal de

    que, no capitalismo, a sociedade aberta e, por isso, possibilitar a mobilidade

    social; em contraponto antiga sociedade que era estamentizada (CUNHA, 1979,

    p. 34). Desse modo, [...] a noo de desigualdade social justa, com base na

    hierarquia das capacidades, a base da legitimao da escola e da prpria

    sociedade capitalista no pensamento liberal (XAVIER, 1990, p. 87).

    A individualidade impe-se como valor determinante, cabendo ao indivduo,

    atravs de sua competncia e esforo, vencer a concorrncia natural, para

    ascender socialmente. Com o princpio da individualidade,

    [...] a doutrina liberal no s aceita a sociedade de classes, como fornece os argumentos que legitimam e sancionam essa sociedade. verdade que ela rejeita os estratos sociais 'congelados' ou 'cristalizados', mas no a diviso da sociedade em classes (CUNHA, 1979, p. 29).

    Outro princpio do liberalismo o da liberdade, que est profundamente

    associado ao princpio do individualismo. Pleiteia-se antes de tudo a liberdade

    individual, decorrendo dela a liberdade econmica, poltica, intelectual e religiosa: O

    liberalismo utiliza o princpio da liberdade para combater os privilgios conferidos a

    certos indivduos em virtude do nascimento ou credo. Esse princpio presume que

    um indivduo seja to livre quanto outro para atingir uma posio social vantajosa,

    em virtude de seus talentos e aptides (CUNHA, 1979, p. 29).

    A liberdade tambm est relacionada produo e ao consumo dos homens.

    19

  • Segundo a viso liberal, a ao espontnea do mercado deveria ocasionar um equilbrio entre todos os indivduos, de tal sorte que todos pudessem nele tirar vantagens, pelas vias da livre concorrncia e da livre escolha. [...] Toda teoria liberal do bem-estar est baseada no mercado e no consumo. no mercado que os indivduos, tomos sociais, devem procurar satisfazer suas preferncias, seus gostos [...] (FALEIROS, 1980, p. 20).

    Merece destaque, tambm, o princpio liberal da igualdade. Defende-se a

    igualdade jurdico-poltica e no a igualdade econmica. A igualdade social, ao

    padronizar os indivduos, seria nociva e negaria, inclusive, o princpio da

    individualidade. A desigualdade econmica ou social, dessa forma, no deve

    somente ser mantida, como tambm precisa ser estimulada:

    No temos todos talentos iguais e a propriedade , em geral, uma retribuio ao talento. A propriedade igual para todos uma simples quimera; s poderia ser obtida por espoliao injusta. impossvel, em nosso feliz mundo, que os homens que vivem em sociedade no se dividam em duas classes: os ricos e os pobres (VOLTAIRE, apud CUNHA, 1979, p. 31).

    A igualdade jurdico-poltica visa a assegurar a relao de compra e venda, ou

    seja, os direitos iguais para compradores e vendedores. A verdadeira posio

    liberal exige a igualdade perante a lei, igualdade de direitos entre os homens,

    igualdade civil (CUNHA, 1979, p. 31).

    A propriedade, outro princpio liberal, concebida como um direito natural do

    indivduo.

    Uma vez que a doutrina liberal repudia qualquer privilgio decorrente do nascimento e sustenta que o trabalho e o talento so os instrumentos legtimos de ascenso social e de aquisio da riqueza, qualquer indivduo pobre, mas que trabalha e tenha talento, pode adquirir propriedade e riquezas (CUNHA, 1979, p. 31).

    A democracia seria a expresso dos princpios da individualidade, da

    liberdade e da igualdade no mbito da poltica. Na sociedade democrtica liberal os

    direitos jurdico-polticos, integrantes da cidadania, manifestam-se, por exemplo, na

    possibilidade de participar como eleitor. Assim, a desigualdade social, a dominao

    de uma classe sobre a outra pode ser admitida, desde que esteja assegurada a

    cidadania. Como conseqncia da ordem burguesa e do capitalismo, a cidadania

    20

  • acaba por se revelar indispensvel continuidade da desigualdade social, e no

    entra em conflito com ela (VIEIRA, 1992, p. 71-72).

    Os cinco princpios liberais articulam-se com a defesa da Escola Pblica,

    Universal e Gratuita; como condio indispensvel para a garantia de igualdade de

    direitos e oportunidades, que justificava, em ltima instncia, a desigualdade social

    'justa' porque 'natural' (XAVIER, 1990, p. 61).

    Um aspecto fundamental a ser ressaltado na primeira fase do liberalismo

    como consolidao da ordem capitalista que

    Do ponto de vista epistemolgico, a ideologia liberal tende viso apriorstica do real. De um conjunto de princpios deriva o conhecimento dos fatos. Essa epistemologia se explica porque a realidade que os liberais esto buscando compreender est em constituio e est sendo constituda por uma classe qual pertencem ou da qual so porta-vozes. Essa perspectiva no se ope da tendncia analtica do sculo XVIII. O liberalismo desse sculo ainda fortemente dedutivista. Afinal, a partir da razo absolutizada esto sendo construdos um novo homem e uma nova sociedade. As cincias fsicas e matemticas oferecem o grande modelo (WARDE, 1984, p. 58).

    Esse novo homem, que precisava ser construdo para essa nova sociedade

    moderna, e que se fundamentava na crena de uma organizao racional da

    sociedade, com idias contrrias a todo irracionalismo, como uma forma de libert-lo

    dos mitos, da religio, da superstio e do arbtrio do poder, foi produzida,

    inicialmente, pelos iluministas e desenvolvida, posteriormente, pelos liberais. Apesar

    de fornecer um conceito abstrato de modernidade (PEIXOTO, 1998, p. 109), teve

    diferentes repercusses e expresses, inclusive na Unio Sovitica, como

    demonstraremos no prximo captulo, visto que a modernidade se operou segundo

    caractersticas histricas prprias de cada sociedade (WARDE, 1992, apud

    PEIXOTO, 1998, p. 111), de forma que os princpios iniciais do liberalismo foram

    sendo reestruturados e readaptados prpria realidade apresentada pelo

    desenvolvimento da base econmica do capitalismo nos diferentes pases

    (PEIXOTO, 1998, p. 113-114).

    21

  • O aspecto revolucionrio, caracterstico da primeira fase do liberalismo, foi

    desaparecendo durante o sculo XIX. Essa transformao ocorreu de forma

    contraditria, visto que

    [...] ao mesmo tempo em que a burguesia se confrontava com as foras contra-revolucionrias, o que resultava em oposies e alianas de diferentes matizes, incorporou algumas reivindicaes da classe trabalhadora fazendo-as aparecer como concesses, atravs de justificativas humanistas e pacifistas (BARBOSA, 2000, p. 07-08).

    Dessa forma, enquanto a burguesia dos sculos XVII e XVIII era

    revolucionria10, a burguesia do sculo XIX, aps a conquista do Estado, estava

    politicamente satisfeita e saciada com o status quo e, portanto, no desejava mais

    transform-lo, tornando-se uma classe conservadora da ordem alcanada e

    reacionria diante do processo de constituio de um novo modo de produo. Para

    manter essa condio, era necessrio uma concepo terica que a fundamentasse,

    por meio de uma idia de ordem natural, esttica e imanente, que fornecesse uma

    segurana e uma certeza calculvel (WARDE, 1984, p. 42).

    Foi assim que o Positivismo11 respondeu aos anseios da burguesia

    dominante, de segurana, de estabilidade e de certeza, ao privilegiar a ordem

    objetiva.

    O Positivismo a assimilao mais fundamental que a ideologia liberal realizou e que a marcou indelevelmente, seja do ponto de vista da concepo de Estado, seja do ponto de vista epistemolgico [...]. Em termos epistemolgicos e em termos de concepo de Estado e suas relaes com a sociedade civil, o positivismo fertilizou

    10 Em 1848, Marx e Engels chamaram a ateno: A burguesia no pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produo por conseguinte, as relaes de produo e, com isso, todas as relaes sociais. [...] Na mesma medida que a burguesia isto , o capital - se desenvolve, desenvolve-se tambm o proletariado [...] Dentre todas as classes que se opem burguesia, somente o proletariado uma classe realmente revolucionria. As outras classes se vo arruinando e perecem com o desenvolvimento da grande indstria; o proletariado, ao contrrio, o seu produto mais autntico (MARX & ENGELS, 1998, p. 08-12-17). 11 At princpios do sculo XIX, o Positivismo tem um aspecto utpico-crtico muito importante. A transformao, a mudana de direo, s se d depois de Saint-Simon, atravs de seu discpulo direto Augusto Comte (LWY, 2000, p. 38). Os fundamentos do Positivismo so: a) a sociedade humana regida por leis naturais, isto , leis invariveis, independentes da vontade e da ao humanas; na vida social reina uma harmonia natural; b) a sociedade pode, portanto, ser epistemologicamente assimilada pela natureza (naturalismo positivista) e ser estudada pelos mesmos mtodos (dmarches) e processos empregados pelas cincias da natureza; c) as cincias da sociedade, assim como as cincias da natureza, devem limitar-se observao e explicao causal dos fenmenos de forma objetiva, neutra, livre de julgamento de valor ou ideologias, descartando previamente todas as prenoes e preconceitos (LWY, 1987, p. 17-18).

    22

  • o liberalismo, dando a ele flego para fazer frente nova ordem poltica que emergia e para sobreviver no trnsito para o capitalismo ps-concorrencial. Em um aspecto e noutro, a concepo de educao positivista se revelou fundamental (WARDE, 1984, p. 41-66-67).

    interessante observar, portanto, que

    [...] posteriormente a revoluo francesa de 1789, tendo a burguesia assumido o controle do Estado e principalmente aps o golpe de Estado de Napoleo III, a ideologia das classes dominantes assumiu formas novas, atendendo novas demandas. De um lado, combater o poder ainda forte da Igreja Catlica defensora do feudalismo; de outro, combater os levantes populares que ameaavam o poder conquistado. O positivismo vinha atender [...] a essas duas demandas. Atacando o catolicismo (e o cristianismo em geral), como uma expresso ultrapassada do estado metafsico, solapava a hegemonia da Igreja; defendendo o ensino livre de qualquer privilgio (qualquer um poderia ensinar qualquer coisa que quisesse) e o exerccio das profisses liberais independentes dos privilgios corporativos remanescentes, diminua o poder da universidade (controlada pela Igreja) e dos sindicatos dos operrios; defendendo a ditadura republicana, legitimava a organizao de um aparelho de represso das manifestaes populares (principalmente dos operrios), apesar dos valores proclamados de solidariedade universal, veiculados pela religio da humanidade (CUNHA, 1980, p. 87-88).

    O liberalismo, portanto, ganhou adeses e floresceu durante a maior parte do

    sculo XIX sucumbindo, ento, primeiramente com a ecloso da Primeira Guerra

    Mundial (1914-1918)12 e, posteriormente, com o colapso do capitalismo durante a

    dcada de 1930 (PETRAS, 1997, p. 15). O liberalismo do final sculo XIX e incio do

    sculo XX passou, diante disso, por revises tanto no plano terico, como no plano

    da organizao do Estado. Assim, a segunda fase do liberalismo, denominada de liberalismo de transio, o momento da transio do capitalismo concorrencial

    ao monopolista (WARDE, 1984, p. 58).

    12 A Primeira Guerra Mundial envolveu todas as grandes potncias, e na verdade todos os Estados europeus, com exceo da Espanha, os Pases Baixos, os trs pases da Escandinvia e a Sua [...] A Primeira Guerra Mundial comeou como uma guerra essencialmente europia, entre a trplice aliana de Frana, Gr-Bretanha e Rssia, de um lado, e as chamadas Potncias Centrais, Alemanha e ustria-Hungria, do outro, com a Srvia e a Blgica sendo imediatamente arrastadas para um dos lados devido ao ataque austraco (que na verdade detonou a guerra), primeira e o ataque alemo segunda (como parte da estratgia de guerra da Alemanha. [...] os EUA entraram em 1917. Na verdade, sua interveno seria decisiva (HOBSBAWM, 1995, p. 31-32).

    23

  • Dessa forma, os anos de 1920 e de 1930 expressaram um grande avano

    para a constituio do Estado de Bem-Estar (Welfare State)13, ponto culminante

    desse processo de reviso do liberalismo. A Primeira Guerra Mundial, como mais

    tarde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), permite experimentar a macia

    interveno do Estado, tanto na indstria (indstria blica) como na distribuio

    (gneros alimentcios e sanitrios). A grande crise de 1929, com as tenses sociais

    criadas pela inflao e pelo desemprego, provocou em todo o mundo ocidental um

    forte aumento das despesas pblicas para a sustentao do emprego e das polticas

    dos trabalhadores (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 417).

    Desse modo,

    [...] em fins do sculo XIX o Estado interventivo, cada vez mais envolvido no financiamento e administrao de programas de seguro social. As primeiras formas de Welfare State visaram, na realidade, a contrastar o avano do socialismo, procurando criar a dependncia do trabalhador ao Estado, mas, ao mesmo tempo, deram origem a algumas formas de poltica econmica, destinadas a modificar irreversivelmente a face do Estado contemporneo (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 403).

    Assim, no fim da Segunda Guerra Mundial que se generalizou um sistema

    de proteo social ao indivduo para assegurar a complementao ou a reposio de

    sua renda (FALEIROS, 1991, p. 19). Essa estratgia contrasta com os seguintes

    dados:

    No h explicao para a crise econmica mundial sem os EUA. Eles eram, afinal, tanto o primeiro pas exportador do mundo na dcada de 1920 quanto, depois da Gr-Bretanha, o primeiro pas importador. Importava quase 40% de todas as exportaes de matrias-primas e alimentos dos quinze pases mais comerciais, um fato que ajuda muito a explicar o desastroso impacto da Depresso

    13 Aps a guerra o pleno emprego, ou seja, a eliminao do desemprego em massa, tornou-se a pedra fundamental da poltica econmica nos pases de capitalismo democrtico reformado, cujo mais famoso profeta e pioneiro, embora no o nico, foi o economista britnico John Maynard Keynes (1883-1946). [...] a outra medida profiltica tomada durante, depois e em conseqncia da Grande Depresso: a instalao de modernos sistemas previdencirios. Como surpreender-se por terem os EUA aprovado a Lei de Seguridade Social em 1935? Estamos de tal modo acostumados predominncia de abrangentes sistemas de bem-estar nos Estados desenvolvidos do capitalismo industrial com algumas excees, como o Japo, Sua, e EUA que esquecemos como havia poucos Estados do Bem-estar no sentido moderno antes da Segunda Guerra Mundial. Mesmo os pases escandinavos apenas comeavam a desenvolv-los. Na verdade, nem o termo Estado de Bem-Estar (Welfare State) havia entrado em uso antes da dcada de 1940 (HOBSBAWM, p. 1995, p. 100).

    24

  • dos produtores de trigo, algodo, acar, borracha, seda, cobre, estanho e caf. Pelo mesmo motivo, tornaram-se a principal vtima da Depresso. Se suas importaes caram em 70% entre 1929-1932, suas exportaes caram na mesma taxa. O comrcio mundial teve uma queda de quase um tero entre 1929 e 1939, mas as exportaes americanas despencaram para quase a metade [...] No pior perodo da Depresso (1932-3), 22% a 23% da fora de trabalho britnica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austraca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que 44% da alem no tinha emprego. E, o que igualmente relevante, mesmo a recuperao aps 1933 no reduziu o desemprego mdio da dcada de 1930 abaixo de 16% a 17% na Gr-Bretanha e Sucia ou 20% no resto da Escandinvia. O nico Estado ocidental que conseguiu eliminar o desemprego foi a Alemanha nazista entre 1933 e 1938. No houvera nada semelhante a essa catstrofe econmica na vida dos trabalhadores at onde qualquer um pudesse lembrar (HOBSBAWM, p. 1995, p. 102-97).

    Na segunda fase do liberalismo que se instalaram os Estados fascistas,

    bem como surgiu o conceito de totalitarismo, utilizado tanto por liberais

    desesperados como por liberais adaptados, para designar os regimes tanto

    fascistas como socialistas (PEIXOTO, 1998, p. 116).

    Deve-se destacar, tambm, que a ampliao dos direitos polticos um dos

    momentos de construo do Estado burgus como resposta, inclusive, da presso

    poltica advinda dos no-proprietrios, fundamentalmente a classe trabalhadora. A

    ampliao dos direitos polticos, tpica da segunda fase do liberalismo, ocorreu de

    forma contraditria, visto que a burguesia ampliou os direitos polticos, ao mesmo

    tempo em que criou mecanismos para a educao das foras que a pressionavam,

    os trabalhadores, para mant-los sob controle (WARDE, 1984, p. 59). Os traos

    marcantes da segunda fase do liberalismo contemplaram, portanto: a ampliao dos

    direitos polticos aos no-proprietrios e a conseqente incorporao do tema da

    democracia; o surgimento da legislao trabalhista e do direito da organizao dos

    trabalhadores (sindicatos); a redefinio do Estado e suas relaes com a sociedade

    civil; a redefinio dos parmetros tericos pelo confronto a reao contra-

    revolucionria de teor romntico e ao pensamento socialista (WARDE, 1984, p. 58-

    59).

    A extenso da participao poltica aos no-proprietrios decorrncia da

    admisso da diviso da sociedade em classes, a partir da constatao de que a

    classe trabalhadora era uma fora poltica, de forma que a diviso de classes

    deveria aparecer somente mbito do parlamento. Essa nova concepo de

    25

  • participao poltica levou a um novo modelo de democracia, democracia

    desenvolvimentista, que partiu da constatao de que a classe trabalhadora se

    revelava perigosa propriedade, bem como de que as condies desumanas de

    vida dessa classe no eram moralmente defensveis ou economicamente

    inevitveis. O modelo de democracia desenvolvimentista estava pautado na idia

    de que a pauperizao progressiva da classe trabalhadora a fazia perigosa; como

    conseqncia, era preciso pensar um mecanismo de participao e de melhoria das

    condies de vida que suavizasse sua periculosidade (WARDE, 1984, p. 60-61).

    Esse novo modelo de democracia exigiu algumas alteraes nos princpios

    liberais. A primeira foi a inverso da relao Estado e sociedade civil, defendida pelo

    liberalismo clssico.

    A idia originria do liberalismo clssico de que a sociedade civil que institui o Estado e a ele delega a tarefa de cuidar para que as regras contratuais emanadas da prpria sociedade civil sejam por ela cumpridas, foi invertida. Diante da presso da classe operria, h um movimento crescente na direo da publicizao (sociedade poltica como lugar do pblico) da ordem privada (sociedade civil como lugar do privado). Esse movimento pressupe a subsuno (aparente) do individualismo possessivo aos interesses sociais. De que forma? Atravs da assimilao, sociedade poltica (atravs de jurisdio competente), no do indivduo isolado, mas dele nos entes coletivos [...] que o representam [...] De indivduo idntico a proprietrio (seja l do que for, mas que tenha uma mercadoria para vender) passou-se a indivduo universal e mltiplo nas suas mltiplas participaes sociais (sindicato, partido, agremiaes corporativas, grupo religioso, etc.). A sociedade civil passou de espao dos indivduos em relaes contratuais para espao dos mltiplos agrupamentos e associaes atravs dos quais os indivduos se expressam e se protegem (WARDE, 1984, p. 63-64).

    No obstante isso, sob o modelo de democracia desenvolvimentista a

    burguesia articulou mecanismos de atendimento aos direitos sociais:

    [...] tudo o que vai desde o direito de participar, por completo, na herana social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padres que prevalecem na sociedade. As instituies mais intimamente ligadas com ele so o sistema educacional e os servios sociais (MARSHAL apud WARDE, 1984, p. 62-63).

    26

  • A terceira fase liberalismo, chamada de liberalismo multifacetado, a fase

    mais difcil de se acompanhar. Essa fase no corresponde mais etapa econmica

    concorrencial do capitalismo, e sim etapa da reproduo ampliada do capital

    embases monopolistas14 caracterizada, tambm, por um Estado interventor e

    planificador (WARDE, 1984, p. 84).

    Se no primeiro momento de rearticulao do liberalismo o Positivismo foi a

    assimilao mais fundamental, tornando-se uma epistemologia hegemnica; no

    segundo momento tambm foi necessrio uma nova orientao, o neopositivismo,

    com destaque para o pensamento de K. Popper. O neopositivismo no se tornou

    hegemnico e cujas condies de vir a ser no so, com certeza, as mesmas que o

    Positivismo encontrou no sculo XIX. O neopositivismo, dedicado redefinio das

    bases lgicas do conhecimento, mais do que aparente reao ao indutivismo

    positivista hegemnico, a expresso do intento de desmantelamento da lgica

    dialtica (WARDE, 1984, p. 89).

    Na terceira fase do liberalismo multifacetado, destacam-se quatro pontos:

    [...] inicialmente a introduo do tema anti-totalitarismo, convertido em tema central [...] desse liberalismo que se rearticula predominantemente aps a Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, a questo dos modelos de Estados que esto articulados terica e praticamente; no seio desta questo, as lutas e as conquistas dos direitos sociais. Por fim, a questo epistemolgica (WARDE, 1984, p. 84).

    A introduo do tema anti-totalitarismo, que apareceu na terceira fase do

    liberalismo multifacetado

    14 As principais fases da histria dos monoplios seriam: 1) anos 1860-1880: ponto culminante do desenvolvimento da livre concorrncia. Os monoplios no so mais do que embries dificilmente perceptveis; 2) Aps a crise de 1873: perodo de grande desenvolvimento dos cartis; no entanto, eles ainda apareciam apenas a ttulo excepcional. Carecem ainda de estabilidade. Tm ainda um carter transitrio; 3) Expanso do fim do sculo XIX e crise de 1900-1903: os cartis tornam-se uma das bases de toda a vida econmica. O capitalismo transformou-se em imperialismo [...]. Se tivssemos de definir imperialismo da forma mais breve possvel, diramos que ele a fase monopolista do capitalismo [...] ento devemos dar uma definio do imperialismo que englobe os seguintes cinco caracteres fundamentais: 1) concentrao da produo e do capital atingindo um alto grau de desenvolvimento to elevado que origina os monoplios cujo papel decisivo na vida econmica. 2) fuso do capital bancrio e do capital industrial, e criao, com base nesse capital, de uma oligarquia financeira; 3) diferente da exportao de mercadorias, a exportao de capitais assume uma importncia muito particular; 4) formao de unies internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si; 5) termo da partilha territorial do globo entre as maiores potncias capitalistas (LNIN, 1987, p. 22).

    27

  • no se d, apenas, devido, como na fase anterior, admisso do perigo das lutas operrias. Nessa etapa, com a constituio do Estado Sovitico, esse perigo tem bases concretas, e indica a possibilidade de uma cadeia de revolues sucessivas que feriro profundamente o aparente equilbrio capitalista internacional (PEIXOTO, 1998, p. 121).

    Dessa forma, o liberalismo, nesta fase multifacetada, necessitou diferenciar-

    se tanto dos regimes fascistas, quanto dos socialistas, tendo como suporte terico,

    principalmente, os pensadores norte-americanos, dentre eles, John Dewey

    (WARDE, 1984, p. 85). A discusso sobre a ampliao democrtica tornou-se

    central nessa fase, apesar da centralidade ocorrer mais fortemente no campo

    ideolgico, na contraposio ao fascismo e ao socialismo (PEIXOTO, 1998, p. 123).

    Os regimes polticos como o nazista de Adolf Hitler (1889-1945) na Alemanha,

    o fascista de Benito Mussolini (1883-1945) na Itlia, e os socialistas de Josef Stalin

    (1878-1953) na Unio Sovitica, e de Mao Tse-tung (1893-1976) na China, quando

    classificados de totalitrios ocultam diferenas econmicas, polticas e ideolgicas

    fundamentais para a compreenso do que representaram historicamente.

    Essencialmente, representam interesses de classes sociais antagnicas. O fascismo

    o representante radical da burguesia, ao passo que os socialistas intentam

    representar os interesses da classe trabalhadora.

    Entre os elementos que aproximam os regimes fascistas e socialistas, mas

    no os uniformizam, esto: o regime de partido nico; a centralizao dos processos

    de tomada de deciso no ncleo dirigente do partido; o culto personalidade do

    lder do partido e do Estado e a burocratizao do aparelho estatal. O fato que

    esses regimes tiveram razo de existncia e conseqncias muito diversas, tanto

    para o liberalismo e o socialismo, quanto para as populaes que os vivenciaram.

    Os adeptos do fascismo repudiavam a luta de classes, o internacionalismo e o

    parlamentarismo liberal. Definiam-se como revolucionrios, propunham uma

    soluo nacional, autoritria e corporativa para os problemas scio-econmicos. De

    fato, h mais dificuldades em distinguir o fascismo do liberalismo, tendo em vista que

    ambos defendiam a continuidade do capitalismo, do que o fascismo do socialismo:

    28

  • Do ponto de vista terico, pontuar a descontinuidade do liberalismo em relao ao fascismo converteu-se em tarefa muito mais difcil aos liberais do que pontu-las em relao ao socialismo, porque esse na prtica revela e se apia numa teoria de revelao da oposio radical entre o capitalismo e o socialismo. O fascismo no s no se ope ao modo de produo que enraza o liberalismo como revela elementos de continuidade, extenso e aprofundamento terico-polticos e estatais j dados pelo prprio liberalismo (WARDE, 1984, p. 87).

    Os regimes fascistas, diferentemente dos regimes socialistas, no se

    baseavam na oposio radical entre capitalismo e socialismo. Para construir a

    oposio entre o liberalismo e o fascismo, os Estados mantiveram em pauta o tema

    da democracia, propondo modelos alternativos, aparecendo a idia de um modelo

    de democracia planificada15, dando continuidade ao modelo de democracia

    desenvolvimentista, tpica da segunda fase do liberalismo (PEIXOTO, 1998, p. 122-

    123).

    Os regimes fascistas, na verdade, ensejavam garantir a continuidade do

    modo de produo capitalista e acreditavam que o liberalismo no estava realizando

    essa tarefa, tendo em vista o crescimento da organizao do movimento operrio. A

    ascenso da extrema direita aps a Primeira Guerra Mundial, foi uma resposta ao

    perigo da revoluo social e do poder operrio, em geral, e Revoluo de

    Outubro, em particular16.

    Pode parecer contraditrio, mas eram os pases fascistas que viam um

    inimigo comum17, tanto nos pases liberais, quanto nos socialistas. Dessa forma, o

    fascismo se defrontava com os liberais, os socialistas e os comunistas, como

    inimigos a serem igualmente combatidos:

    15 O modelo de democracia planificada se contrape ao que Macpherson chamava de modelo elitista pluralista, que caracterizava-se pelo entendimento da democracia como simplesmente um mecanismo por meio do qual se escolhem e se autorizam governos. Esse mecanismo democrtico se d pela concorrncia entre grupos de elite que, por meio de partidos polticos, so candidatos aos votos que os qualificaro para governar at as prximas eleies (PEIXOTO, 1998, p. 123). 16 Em 1936, a Alemanha Nazista e o Japo assinam o tratado Anti-Comintern; um pacto que se tentava barrar a expanso internacional da Unio Sovitica (ARRUDA; PILETTI, 1996, p. 305). 17 Um exemplo claro da identificao desse inimigo comum est na aliana entre os Aliados: Estados Unidos e Unio Sovitica - alm de Frana, Gr-Bretanha e China - para combaterem as Potncias do Eixo: Alemanha, Itlia e Japo, na Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial foi global, pois praticamente todos os Estados independentes do mundo se envolveram, quisessem ou no, embora as repblicas da Amrica Latina s participassem de forma mais nominal. As colnias das potncias imperiais no tiveram escolha. Com exceo da futura Repblica da Irlanda e de Sucia, Sua, Portugal, Turquia e Espanha, na Europa, e talvez do Afeganisto, fora da Europa, quase todo o globo foi beligerante ou ocupado, ou as duas coisas juntas (HOBSBAWM, 1995, p. 31-32).

    29

  • O fascismo tratava publicamente todos os liberais, socialistas e comunistas ou qualquer tipo de regime democrtico e sovitico, como inimigos a serem igualmente destrudos. Na velha expresso inglesa, eles tinham de unir-se, caso no quisessem ser eliminados um por um [...] Os fascistas denunciavam a emancipao liberal as mulheres deviam ficar em casa e ter muitos filhos e desconfiavam da corrosiva influncia da cultura moderna, sobretudo das artes modernistas, que os nacional-socialistas alemes descreviam como bolchevismo cultural e degeneradas. [...] Hostil como era, em princpio, herana do Iluminismo e da Revoluo Francesa do sculo XVIII, o fascismo no podia formalmente acreditar em modernidade e progresso [...] O fascismo era triunfantemente antiliberal [...] A ameaa sociedade liberal e todos os seus valores parecia vir exclusivamente da direita; a ameaa ordem social, da esquerda. As pessoas da classe mdia escolhiam sua poltica de acordo com os seus temores (HOBSBAWM, 1995, p. 149-127).

    Esses fatos colocavam o fascismo como o grande perigo para o liberalismo,

    pelo menos at o fim da Segunda Guerra Mundial. A ameaa s instituies liberais

    vinha apenas da direita poltica. At 1945, nos ltimos vinte anos de

    [...] enfraquecimento do liberalismo, nem um nico regime que pudesse ser chamado de liberal-democrtico foi derrubado pela esquerda. O perigo vinha exclusivamente da direita. E essa direita representava no apenas uma ameaa ao governo constitucional e representativo, mas uma ameaa ideolgica civilizao liberal como tal, e um movimento potencialmente mundial, para o qual o rtulo fascismo ao mesmo tempo insuficiente mas no inteiramente irrelevante (HOBSBAWM, 1995, p 116).

    Antes de 1914, j existiam movimentos extremistas de ultradireita

    nacionalistas e xenofbicos, intolerantes e dados a atos violentamente coercitivos,

    totalmente antiliberais, antidemocrticos, antiproletrios, antisocialistas; defensores

    dos valores antigos que a modernidade estava destruindo. Eles tinham alguma

    influncia dentro da direita poltica e em alguns crculos intelectuais, mas o que deu

    ao fascismo sua oportunidade de fortalecimento, aps a Primeira Guerra Mundial, foi

    o colapso dos velhos regimes, e com eles das velhas classes dominantes e seu

    maquinrio de poder, influncia e hegemonia. Onde estas permaneceram em boa

    ordem de funcionamento, no houve a necessidade de fascismo. De forma que,

    apesar de no ser o objetivo inicial, a principal realizao do fascismo foi acabar

    30

  • com a Grande Depresso, fazendo com que o fascismo parecesse o regime poltico

    mais adequado para o momento (HOBSBAWM, 1995, p. 129- 131).

    Esses elementos somente foram esquecidos aps 1945, com a derrota da

    Alemanha Nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial. A partir da, a ameaa s

    instituies liberais se deslocou essencialmente para o comunismo. At 1945, o

    termo totalitarismo, inventado como autodescrio do fascismo italiano, era

    aplicado somente a esses regimes (HOBSBAWM, 1995, p 116). Neste contexto,

    tingir de pardo todos os gatos (WARDE, 1984, p. 83), colocar socialistas e fascistas

    num mesmo cesto e rotul-los de totalitrios foi a estratgia adotada pelos

    liberais para manter oculta a questo econmica, a qual opunha capitalismo e

    socialismo.

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, com o crescimento da

    organizao dos trabalhadores e a conquista que representava o socialismo real

    na Unio Sovitica, tensionaram a burguesia a fazer algumas concesses no plano

    educacional, classe trabalhadora. A crise do capitalismo, da fase da livre

    concorrncia, e da ideologia liberal contriburam para as redefinies do projeto de

    domnio da burguesia. Nesse quadro, inclusive, a escola para a burguesia foi

    repensada, visto que a escola humanista, do perodo anterior, no estava

    respondendo s necessidades de formao do tipo de dirigente que a fase do

    capitalismo monopolista passava a exigir (DORE SOARES, 2000, p. 25).

    nesse contexto que se destacou um movimento de intelectuais, visando a

    um novo projeto educacional:

    Trata-se do movimento pela escola nova, composto por vrias correntes de pensamento18, mas que se aglutinavam em torno de alguns princpios, tais como o de que a escola deveria ser pblica, gratuita e nica. Esse movimento levou em conta reivindicaes dos trabalhadores, como a questo da democratizao do acesso ao saber, alargando o atendimento escolar, e da unidade do ensino terico e prtico, definindo o novo princpio pedaggico com base no trabalho produtivo. [...] O novo dessa proposta consiste justamente na incluso de reivindicaes do movimento operrio; mas ela tambm mantm o velho. A burguesia procurar estruturar mecanismo para manter a ordem social dominante, que divide a sociedade em dirigentes e dirigidos [...] O movimento da escola

    18 Entre os tericos escolanovistas esto douard Claparde (1873-1940), Maria Montessori (1870-1952), Ovide Decroly (1871-1932), Celestin Freinet (1896-1966), Adolphe Ferrire (1879-1960), entre outros de grande repercusso (CAVALIERE, 2002, p. 254).

    31

  • nova, apresentando os fundamentos para a organizao escolar no contexto do capitalismo monopolista, passou por muitas transformaes, desde as suas idias originais (DORE SOARES, 2000, p. 25-26).

    O chamado movimento pela Escola Nova expressou o florescimento de idias

    e discusses sobre o significado de escola, de sociedade, de inteligncia, de

    desenvolvimento social e de natureza humana (FAVORETO, 1998, p. 19). Esse

    movimento:

    No se refere a um s tipo de escola, ou sistema didtico determinado, mas a todo um conjunto de princpios tendentes a rever as formas tradicionais do ensino. Inicialmente, sses princpios derivaram de uma nova compreenso de necessidades da infncia, inspirada em concluses de estudos da biologia e da psicologia. Mas alargaram-se depois, relacionando-se com outros numerosos, relativos s funes da escola em face das novas exigncias, derivadas de mudanas da vida social (LOURENO FILHO, apud FAVORETO, 1998, p. 19).

    O movimento pela Escola Nova de democratizao do acesso ao saber e de

    incorporao do tema trabalho, expressou a terceira fase do liberalismo. As

    concesses aos trabalhadores, de certo modo, desmobilizaram a fora das idias

    socialistas, to fortes no perodo, e instrumentalizaram a reproduo da sociedade

    capitalista.

    A apropriao do conceito de trabalho, pelo projeto liberal de escola, estava

    centralizado na noo de atividade19 que, de certa forma, representou uma

    estratgia para responder s reivindicaes do movimento operrio, no sentido de

    incorporar a questo do trabalho produtivo escola (DORE SOARES, 2000, p. 49-

    50). A noo de atividade, desse modo, seria o elemento organizador da vida em

    comunidade; uma referncia para educar a vontade dos indivduos, no sentido de

    que sua conduta moral estivesse adequada ordem social estabelecida (DORE

    SOARES, 2000, p. 204-205).

    Esse entendimento do conceito de trabalho tinha por objetivo conquistar

    politicamente as massas, as quais deveriam ser educadas para serem governadas;

    uma forma de produzir o consentimento voluntrio ao capitalismo (DORE SOARES,

    19 At 1912 os escolanovistas falavam em escola do trabalho e passaram a utilizar o termo escola ativa como uma forma, inclusive, de contrapor o conceito socialista de escola (DORE SOARES, 2000, p. 232).

    32

  • 2000, p. 205) que enfrentava tenses econmicas, polticas, sociais e ideolgicas,

    no incio do sculo XX.

    A busca desse consentimento, no mbito da escola, se manifestou atravs da

    recusa imposio da cultura e dos valores aos alunos, e a defesa dos mtodos

    ativos, os quais estavam fundamentados na participao. A inteno era despertar

    o interesse do aluno para participar ativamente da vida social e, ao mesmo tempo,

    convencer o indivduo de que o modelo organizativo do Estado burgus a

    democracia representaria o resultado legtimo da sua prpria vontade (DORE

    SOARES, 2000, p. 206).

    O movimento pela Escola Nova, apesar de diferentes manifestaes,

    unificava-se quanto ao objetivo de manter a ordem social classista, hierarquizada e

    desigual, que estava ameaada pelos crescentes conflitos sociais e polticos, ao

    mesmo tempo em que mantinha e continua mantendo a estrutura seletiva e

    discriminadora da escola (DORE SOARES, 2000, p. 206-207). Ao defender o acesso de todos escola e democratizao do acesso ao saber, o escolanovismo

    contribui para dissimular o dualismo educacional, existente no capitalismo:

    O sistema escolar desempenha uma dupla funo de discriminar e de dissimular essa discriminao. A discriminao se faz pela excluso de certas classes sociais do sistema escolar (Tipo I), pela destinao de partes distintas do sistema escolar, com ensino de contedo especfico para cada classe (Tipo II) ou, ento, atravs de um sistema educacional unificado e homogneo, mas de distintos padres de qualidade conforme as classes sociais que freqentam cada escola ou cada grupo de escolas (Tipo III). Esta ltima forma a que permite o exerccio da funo de discriminao social de forma mais eficaz justamente porque a dissimula mais; as diferenas de escolaridade entre as crianas e jovens das diversas classes passa a ser explicada por razes individuais como falta de habilidade, falta de potencialidade inata, falta de motivao etc. (CUNHA, 1979, p. 168).

    As propostas escolanovistas expressam o Tipo III, produzindo um dualismo

    interno (DORE SOARES, 2000, p. 200). Uma escola ativa, a partir dos interesses

    e aptides, onde cada indivduo retira da escola aquilo que melhor lhe convm,

    mascara as diferenas entre os sujeitos, e as justifica, como o resultado de

    esforos individuais.

    33

  • No momento em que a hegemonia burguesa se consolidou, nas sociedades

    centrais do mundo capitalista, o pensamento liberal, em relao educao, se

    desdobrava para alm do individualismo que marcou a sua origem, rumo noo de

    reconstruo social (XAVIER, 1990, p. 63). Assim, a escola deveria contribuir para o

    desenvolvimento das aptides e dos talentos dos indivduos; os quais determinariam

    a posio social dos mesmos.

    O principal ideal liberal de educao o de que a escola no deve estar a servio de nenhuma classe, de nenhum privilgio de herana ou dinheiro, de nenhum credo religioso ou poltico. A instruo no deve estar reservada s elites ou classes superiores, nem ser um instrumento aristocrtico para servir a quem possui tempo e dinheiro. A educao deve estar a servio do indivduo, do homem total liberado e pleno. A escola assim preocupada com o Homem, independente da famlia, da classe ou religio que pertena, ir revelar e desenvolver, em cada um, seus dotes inatos, seus valores intrnsecos, suas aptides, talentos e vocaes [...] , pois, a partir dos talentos ou vocaes individuais (que a escola tem a capacidade de despertar e desenvolver) que o indivduo adquirir sua posio, isto , que o indivduo ocupar na sociedade a posio que seus dotes inatos e sua motivao determinarem e, assim, de acordo com suas prprias aptides, ir encontrar seu lugar na estrutura ocupacional existente (CUNHA, 1979, p. 34-35).

    A tendncia a conceber a escola nessa perspectiva evoluiu gradativamente,

    atingindo o seu termo no pensamento de John Dewey (XAVIER, 1990, p. 63),

    conforme veremos a seguir.

    34

  • 1.2 As preocupaes de Dewey com um renascente liberalismo e a sua proposta de Educao Integral e Integrada

    A difuso da concepo de Educao Integral e Integrada, ou de um processo

    educativo para alm da tradicional funo instrucional da escola, encontrada com

    grande evidncia no incio do sculo XX, com o chamado movimento escolanovista.

    No entanto, para alm das vrias vertentes do movimento escolanovista,

    analisaremos, nesta seo, aquele que referenciado como o maior expoente do

    escolanovismo, John Dewey, e seus conceitos de Educao Integral e de Educao

    Integrada.

    As elaboraes de John Dewey so a expresso, no campo educacional, do

    liberalismo (CUNHA, 1979, p. 49-50). Embora situado na segunda fase do

    liberalismo, absorvendo muito das crticas elaboradas contra o liberalismo clssico

    e suas extremaes (WARDE, 1984, p, 106), as suas reflexes ultrapassaram esse

    perodo, tendo reflexos no perodo do liberalismo multifacetado (WARDE, 1984).

    No analisaremos profundamente a terceira fase do liberalismo, at porque o

    desenvolvimento de todos os seus elementos ultrapassa o recorte histrico de nossa

    pesquisa. Interessa-nos, para este estudo, [...] a introduo do tema anti-

    totalitarismo, convertido em tema central [...] desse liberalismo que se rearticula

    predominantemente aps a Segunda Guerra Mundial (WARDE, 1984, p. 84), mas

    que j estava fortemente presente no incio do sculo XX, com a Revoluo Russa

    (1917), a qual ser analisada, mais detidamente, no segundo captulo. No momento,

    importante destacar que

    A revoluo bolchevique, a constituio do Estado sovitico em bases marxista-leninistas, aparecer como um primeiro elo na cadeia de revolues sucessivas que feriro profundamente o aparente equilbrio capitalista internacional. O problema no seria mais o de se criar mecanismos de conteno da periculosidade da classe operria; tornava-se necessrio reforar sob todos os meios a iluso, no s para a classe operria mas para todas as potenciais foras de presso de que as classes trabalhadoras abandonadas ao seu prprio irracionalismo destrutivo, esto na base dos Estados Totalitrios: exemplos idnticos: o Estado Socialista Sovitico e o Estado Fascista; para que essa identidade se fizesse plausvel, fazia-se necessrio descolar radicalmente a questo do Estado das suas bases econmico-sociais; no limite, Estado Socialista e Estado Fascista so duas expresses do Estado que foram identicamente as

    35

  • bases de uma sociedade humana e democrtica: as suas instituies, os seus valores, seus laos de coeso moral etc. (WARDE, 1984, p. 84-85).

    O filsofo John Dewey viveu na segunda metade do sculo XIX e na primeira

    metade do sculo XX. O perodo de anlise de Dewey refere-se ao contexto de crise

    econmico-poltica mundial do capitalismo, ao qual o liberalismo buscava responder.

    O perodo sobre o qual Dewey [...] se debrua, detectando uma crise do liberalismo, o da Grande Depresso, cuja acentuada crise da economia mundial (1929-1939) gerou grandes ameaas para a burguesia ocidental, ameaas essas tanto direita quanto esquerda (PEIXOTO, 1998, p. 144).

    Deve-se mencionar, portanto, que John Dewey elaborou um trabalho mais

    amplo, indicando a necessidade de reformulao do liberalismo que prenunciava

    uma crise, diante dos desafios colocados pelo desenvolvimento da prpria

    sociedade e dos riscos iminentes em sua poca, tanto do fascismo quanto do

    socialismo. A crise do liberalismo, para Dewey, decorrente da descrena em seus

    princpios, na qual ocorre uma inverso da idia progressista do liberalismo para

    uma concepo conjuntural e ultrapassada. A decorrncia prtica dessa descrena,

    no apenas subjetiva, j era sentida no perodo no qual o autor escreveu (PEIXOTO,

    1998, p. 125-127):

    Trs grandes naes da Europa suprimiram sumariamente as liberdades civis porque o liberalismo tanto se bateu e apenas em poucas naes so elas vigorosamente mantidas. verdade que nenhuma daquelas trs naes em causa tivera uma longa histria de devoo liberal. Mas os novos ataques ao liberalismo vm de pessoas que se dizem interessadas em mudar no em preservar as velhas instituies. Sabe-se que tudo que defende o liberalismo posto em cheque [sic] em tempo de guerra. Tambm numa crise mundial, como a que vive hoje o mundo, suas idias e seus mtodos so postos em perigo e a crena se espalha de que o liberalismo apenas floresce quando faz bom tempo social. [...] Se h, em perodos de crise, o perigo de covardia e evaso, h tambm, por outro lado, o perigo de perder o senso da perspectiva histrica e de nos rendermos precipitadamente s correntes passageiras do nosso tempo, abandonado em pnico as coisas de valor duradouro e inaprecivel (DEWEY, 1970, p. 16).

    36

  • Dewey entendia que o problema do liberalismo, desde a sua origem, sempre

    foi o da organizao social, pois os liberais do incio do sculo XIX, ao lutarem

    contra a organizao social vigente, com o objetivo de emancipar os indivduos,

    teriam desenvolvido uma potente crtica e anlise. No entanto, as dificuldades

    comearam a aparecer e a efetivao dessa nova organizao social mostrou-se

    insustentvel. Dessa forma, o otimismo se dissolveu diante dos evidentes conflitos

    entre naes, classes e raas e, j no fim do sculo XIX, a crise do liberalismo

    tornava-se evidente, ficando claro de que As crenas e mtodos do liberalismo dos

    primeiros perodos eram ineficazes em face dos problemas de organizao e

    integrao (DEWEY, 1970, p. 37). Dewey assinalava que muito da descrena na

    capacidade do liberalismo de sua poca seria decorrente da dificuldade de efetivar,

    sob novas condies, uma organizao social capaz de dar conta de uma sociedade

    na qual o conflito se tornava evidente. A admisso dos conflitos que o capitalismo

    engendrava a expresso de uma das caractersticas da segunda fase do

    liberalismo (PEIXOTO, 1998, p. 131).

    O liberalismo era passvel de crtica para Dewey, mas no em suas questes

    universais (os cinco princpios liberais) e, em sendo universal, seria a formulao de

    pensamento mais adequada para que o mundo pudesse encontrar sadas para as

    muitas crises em que estava imerso (BORGES, 2006, p. 53).

    Na direo de afirmao dos valores universais, afirmava Dewey, que

    as idias de liberdade, de individualidade e de inteligncia livre tem valor duradouro, mais necessrio hoje do que nunca. A tarefa do liberalismo afirmar esses valores, de modo a mostrar sua importncia intelectual e prtica, em face das atuais foras e necessidades (DEWEY, 1970, p. 53).

    Neste sentido, o triunfo do liberalismo no poderia se reverter na negao dos

    valores fundamentais formulados por ele em sua origem (PEIXOTO, 1998, p. 137).

    [...] os valores de inteligncia livre, da liberdade, da oportunidade de cada indivduo de realizar suas potencialidades so preciosos demais para serem sacrificados a um regime de despotismo, especialmente quando o regime, em larga medida, apenas o agente de uma classe econmica dominante em sua luta para conservar e estender os ganhos que acumulou s custas de uma genuna ordem social e de sua unidade e desenvolvimento. O

    37

  • liberalismo tem de se erguer de novo para formular os fins a que sempre se devotou em termos dos meios que so relevantes na situao contempornea (DEWEY, 1970, p. 58-59).

    O desenvolvimento da crise mundial, na dcada de 1930, atinge

    sensivelmente o pensamento de John Dewey. A decorrncia da crise das doutrinas

    totalitrias daquela poca o nazi-fascismo, o fascismo e o comunismo de

    inspirao stalinista coloca-o diante do desafio de uma reflexo quanto aos

    descaminhos do liberalismo; doutrina que sustentou suas produes (CUNHA, 1994,

    p. 68). Segundo ele

    Reduzir o problema do futuro a uma luta entre o fascismo e o comunismo ser um convite catstrofe, que poder arrastar a prpria civilizao. Um liberalismo democrtico, vivaz e corajoso, ser a fora capaz de evitar a desastrosa reduo do problema (DEWEY, 1970, p. 90).

    devido a isto que a defesa de Dewey de um renascente liberalismo

    (DEWEY, 1970, p. 60), e as implicaes para a sua teoria educacional, conforme

    veremos, se fundamenta no mtodo da ampliao da democracia, como elemento

    fundamental para se diferenciar do fascismo e do socialismo, uma vez que, segundo

    Dewey, esses regimes se baseiam na aniquilao da democracia (PEIXOTO, 1998,

    p. 141-146).

    John Maynard Keynes exerceu influncia considervel nas concluses de

    Dewey sobre as formulaes necessrias para seu liberalismo renascente. Mas, a

    crise anunciada por Dewey tambm teve outra causa, alm dos efeitos polticos e

    econmicos da Grande Depresso, ela evidenciou a potencialidade do socialismo

    (PEIXOTO, 1998, p. 146), analisada por Hobsbawm, da seguinte forma:

    O trauma da Grande Depresso foi realado pelo fato de que um pas que rompera clamorosamente com o capitalismo pareceu imune a ela: a Unio Sovitica. Enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o capitalismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrializao ultra-rpida e macia sob seus Planos Qinqenais. De 1929 a 1940, a produo industrial sovitica triplicou, no mnimo dos mnimos. Subiu de 5% dos produtos manufaturados do mundo em 1929 para 18% em 1938, enquanto no mesmo perodo a fatia conjunta dos EUA, Gr-Bretanha e Frana caa de 59% para 52% do total do mundo. E mais, no havia desemprego. Essas conquistas

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  • impressionaram mais os observadores estrangeiros de todas as ideologias, incluindo um pequeno mas influente fluxo de turistas scio-econmicos em Moscou em 1930-5, que o visvel primitivismo e ineficincia da economia sovitica, ou a implacabilidade e brutalidade da coletivizao e represso em massa de Stalin. Pois o que eles tentavam compreender no era o fenmeno da URSS em si, mas o colapso de seu prprio sistema econmico, a profundidade do fracasso do capitalismo ocidental. Qual era o segredo do sistema sovitico? Podia-se aprender alguma coisa com ele? Ecoando os Planos Qinqenais da URSS, Plano e Planejamento tornaram-se as palavras da moda poltica. Os partidos so