o efeito de realidade e a política da ficção

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  • 8/2/2019 O efeito de realidade e a poltica da fico

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    NOVOS ESTUDOS 86 MARO 2010 75

    Em 1968 Roland Barthes publicou seu texto cannico O eeito de realidade1. Esse texto comea ocando um detalhe

    retirado do conto de Flaubert Um corao simples. Ao descrever asala da casa onde sua personagem vive, o escritor diz que um velhopiano sustentava, sob um barmetro, um monte piramidal de caixase caixotes2. Obviamente esse barmetro no tem utilidade alguma eo monte piramidal no nos deixa ver nada determinado. Como armaBarthes, eles elevam o custo da inormao narrativa. Essa avaliaoparece estar em consonncia com muitas das armaes de escritoresdo sculo XX que denunciavam a utilidade da descrio realista. NoManiesto do Surrealismo, Andr Breton descartou a descrio do

    papel de parede e da moblia do cmodo da usurria em Crime e castigocom umas poucas palavras: Ele perde seu tempo, porque eu me recusoa entrar nesse quarto. No seu prlogo para o romance de Bioy Casares,A inveno de Morel, Borges az semelhante observao sobre Proust: ele

    Resumo

    O artigo discute elementos do romance realista e questiona

    as interpretaes do papel do eeito de realidade oerecidas por crticos literrios do sculo XIX e XX. Para o autor, esse

    eeito, mais do que mero resultado do excesso descritivo caracterstico da obra de escritores como Dostoivski e

    Flaubert, revela a abertura social do romance para uma nova sensibilidade, menos aristocrtica e mais democrtica.

    PAlAVRAS-chAVE:Romance realista; eeito de realidade; Roland Barthes;literatura e democracia

    AbstRAct

    The article elaborates on eatures o the realist novel and

    questions interpretations o the socalled reality eect oered by 19th and 20th century literary critics. The author

    claims that this eect, ar rom beign a mere result o the descriptive excess typical o writers such as Dostoivski and

    Flaubert, maniests a social opening o the novel to a new sensibility, a less aristocratic and more democratic one.

    KEywORDS: Realist novel; reality eect; Roland Barthes; literature and

    democracy.

    O EfEitO dE rEalidadEE a POltica da ficO*

    [*] Palestra apresen tada no Ins-

    tituto de Investigao Cultural de

    Berlim (ICI Berlin) em setembro de

    2009.

    [1] Em ingls, The reality effect.

    A traduo do ttulo aqui aludida

    est em Roland Barthes, O rumor da

    lngua. Trad. Mario Laranjeira So

    Paulo: Martins Fontes, 2004.

    [2] Barthes,O rumor da lngua. Trad.

    Mario Laranjeira. So Paulo: Martins

    Fontes, 2004, p. 181.

    Jacques Ranciretraduo de Carolina Santos

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    diz que existem muitas pginas na sua obra que devemos aceitar comoo azemos com o inspido e ocioso de cada dia. A questo, ento, no somente sobre o elemento suprfuo na descrio: sobre a prpriadescrio. Ela aparece como um excesso que cobre uma alta: o excesso

    de coisas mais precisamente o excesso de representao das coisas substitui um catlogo de clichs para o prouso emprego daimaginao potica; ou ela ca no caminho do enredo e embaralhasuas linhas; ou, novamente, ela apaga o jogo de signicao literria eope sua alsa obviedade tarea de interpretao.

    O texto de Roland Barthes parece oerecer a rmula terica paraessas recriminaes. Isso signica que a anlise estrutural tende apreservar a idia modernista da obra de arte como desenvolvimentoautnomo da sua prpria necessidade interna, invalidando a velha l

    gica da semelhana e da reerencialidade. Ela d uma ormulao sistemtica para o desprezo modernista pelos objetos inteis que camno caminho da organizao estrutural da obra de arte: nada pode sersuprfuo. Agora, como mtodo de anlise, o estruturalismo precisaprovar que o suprfuo no suprfuo, que os trabalhos literrios queno obedecem ao princpio estruturalista da economia so, contudo,

    vlidos para a anlise estrutural. Ao suprfuo deve ser dado um lugare um estatuto na estrutura. O estatuto que Barthes lhe d o estatuto tpico que os pressupostos modernistas podem dar ao que est

    em excesso: o estatuto do sobrevivente. Barthes oerece duas razespara o excesso realista. Em primeiro lugar, ele d continuidade a umatradio que data da Antiguidade, a tradio do discurso epidtico,no qual o objeto da descrio importa menos do que o emprego deimagens e metoras brilhantes, exibindo a virtuosidade do autor emnome do puro prazer esttico. Em segundo lugar, ele tem a uno decomprovao. Se um elemento est em algum lugar apesar de no ha

    ver razo para a sua presena, isso signica precisamente que o suapresena incondicional, que ele est presente simplesmente porque

    est presente. Assim, o detalhe intil diz: eu sou o real, o real que intil, desprovido de sentido, o real que prova sua realidade por suaprpria inutilidade e carncia de sentido.

    Esta comprovao do real parece retroceder a uma oposio queestruturou a lgica da representao. Desde Aristteles, acreditavaseque a co potica consistia em construir um enredo de verossimilhana, uma concatenao lgica de aes, enquanto a Histria apenascontaria os atos como eles se deram. Desse ponto de vista, o eeito derealidade rompe com a lgica da representao. Mas ele o az imple

    mentando uma estratgia intermediria: conorme toma o princpiorealista da histria, agarrandose ao real enquanto real, ele cria umnovo tipo de verossimilhana, oposta clssica. Assim, Barthes armaque esta nova verossimilhana se torna o ncleo de um etichismo do

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    [3] Ibidem, p. 188.

    real, caracterstico da cultura miditica e exemplicado pela otograa, pelos noticirios, pelo turismo devotado a monumentos e lugareshistricos etc. Tudo isso, conclui Barthes,

    [] diz que o real supostamente bastase a si mesmo, que bastante ortepara desmentir qualquer idia de uno, que sua enunciao no precisa serintegrada a uma estrutura e que o terestadol das coisas motivo sucientepara que sejam relatadas3.

    O que ascinante nessa sentena como ela, de ato, se presta auma guinada que acontecer dez anos depois, quando Barthes ar doterestadol das coisas opunctum que a verdade da otograa e repudiar o contedo inormativo dostudium. Contudo, essa guinada oi

    possibilitada precisamente pela construo de uma simples oposioentre estrutura ccional e singularidade absoluta do mero terestadol. Creio que uma anlise mais detalhada do monte piramidalde caixas sobre o velho piano poderia ter oerecido um terceiro termoque talvez rompesse a oposio, simples demais, entre racionalidadeuncional da estrutura narrativa e singularidade absoluta. Pretendomostrar que o ocioso cada dia do romance realista o lugar e o momento de uma biurcao de momentos muito mais radical do que abiurcao de caminhos e linhas narrativas apreciada por Borges, e que

    o oco no eeito de realidade perde de vista a verdadeira ruptura queest no corao da co esttica. Ele o perde porque a idia modernista de estrutura ainda est de acordo com a lgica representativaque ela nge desaar, de maneira que ela tambm deixa de ver a questo poltica envolvida no excesso realista.

    A questo que, na verdade, a oposio entre a estrutura e o ocioso ou as inteis notaes do real traz de volta uma crtica muitomais antiga co realista, que j havia sido eita por muitos crticos,a maioria deles reacionrios, no tempo de Flaubert. Esses crticos j

    haviam chamado a ateno para a enumerao de detalhes, a extensodas descries que preenchiam seus romances e caracterizavam maisamplamente a literatura contempornea. Por exemplo, o escritor catlico e crtico literrio, Barbey dAurevilly, contemporneo de Flaubert,denunciou sua innita, eterna, atomstica e cega prtica da descrio. Como ele mesmo diz,

    [] no h um livro ali; no existe essa coisa, essa criao, esse trabalho dearte constitudo por um livro com desenvolvimento organizado []. Ele escreve

    sem um plano, indo adiante sem uma viso total preconcebida, no sabendo quea vida, na sua diversidade e na desordem aparente de seus caprichos, dotada deleis lgicas e infexveis [] um arrastarse entre o insignicante, o vulgar e oabjeto pelo nico prazer do deixarse estar.

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    Essa crtica evidentemente baseada nos princpios que estruturam a lgica clssica da representao. De acordo com essa lgica, aobra de arte um tipo denido de estrutura uma totalidade orgnica, dotada de todas as partes constituintes necessrias para a vida e

    nada mais; ela deve ter a aparncia de um corpo vivo equipado de todosos membros requeridos, unidos na unidade de uma orma, sob o comando de uma cabea organizadora. O romance realista no atendea este requisito. Para Barbey, a questo no somente a presena de detalhes que em nada contribuem para o uncionamento da estrutura ccional e apenas interpretam o papel do real armando Eu sou o real.

    A questo que as partes no esto subordinadas ao todo; os membros no obedecem cabea. O novo romance realista um monstro.Ele pertence a uma nova cosmologia ccional na qual a concatenao

    uncional de idias e aes, de causas e eeitos no unciona mais. Nascaixas do novo romancista, todas as coisas esto embaralhadas. O artista tornouse um trabalhador. Ele carrega suas sentenas adiante, dizBarbey, da mesma orma que o operrio carrega suas pedras adiantenum carrinho de mo. A comparao mostra que essa nova cosmologia ccional tambm uma nova cosmologia social.

    Outro crtico daquele tempo observou a signicao poltica dessamaneira de escrever: isto democracia, ele disse, democracia na literatura ou literatura como democracia. A insignicncia dos detalhes

    equivale sua pereita igualdade. Eles so igualmente importantesou igualmente insignicantes. A razo para isso que eles se reerema pessoas cujas vidas so insignicantes. Essas pessoas abarrotamtodo o espao, no deixando margem para a seleo de personagensinteressantes e para o harmonioso desenvolvimento de um enredo. exatamente o oposto do romance tradicional, o romance dos temposmonrquicos e aristocrticos, que se beneciavam do espao criadopor uma clara hierarquia social estraticada. Sobre este espao:

    Os personagens que corporicam os renamentos do nascimento, daeducao e do corao no deixavam espao para guras secundrias, ainda menos para objetos materiais. Essa delicada sociedade via pessoas ordinrias somente atravs das portas de suas carruagens e o campo somenteatravs das janelas de seus palcios. Isto deixava amplo e rtil espao paraa anlise dos sentimentos mais renados, que so sempre mais complicadose diceis de decirar nas almas da elite do que entre as classes mais baixas.

    O crtico reacionrio revela, com ranqueza, a base social da po

    tica representativa: a relao estrutural entre as partes e o todo undamentavase numa diviso entre as almas da elite e as das classesbaixas. Quando essa diviso desaparece, a co se entope de eventosinsignicantes e de sensaes de todas aquelas pessoas comuns que

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    ou no entravam na lgica representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (ineriores) e eram representadas nos gneros (ineriores)adequados sua condio. Isso o que a ruptura da lgica de verossimilhana quer dizer. Quando Barthes relaciona essa lgica velha

    oposio aristotlica entre poesia e histria, ele se esquece de que taldistino potica ormal tambm era uma distino poltica. A poesiaera denida como uma concatenao de aes em oposio mera sucesso histrica de atos. Mas ao no o mero ato de azer algo. Aao uma esera de existncia. Concatenaes de aes s poderiamdizer respeito a indivduos que viviam na esera da ao, que eram capazes de conceber grandes planos e de arrisclos no conronto comoutros grandes planos e com os golpes do destino. Elas no poderiamse reerir a pessoas que estavam connadas condio da vida nua,

    devotadas nica tarea de sua reproduo innita. Verossimilhanano somente sobre que eeito pode ser esperado de uma causa; elatambm diz respeito a o que pode ser esperado de um indivduo vi

    vendo nesta ou naquela situao, que tipo de percepo, sentimento ecomportamento pode ser atribudo a ele ou ela.

    Posto de outra maneira, a questo da co contm dois outros aspectos entrelaados entre si. A co designa certo arranjo dos eventos,mas tambm designa a relao entre um mundo reerencial e mundosalternativos. Isso no uma questo de relao entre o real e o imagin

    rio. Isso questo de uma distribuio de capacidades de experinciasensorial, do que os indivduos podem viver, o que podem experienciare at que ponto vale a pena contar a outros seus sentimentos, gestos ecomportamentos. Este o caso do conto ao qual se reere Barthes, Umcorao simples, de Flaubert. O barmetro no est l para comprovarque o real o real. A questo no o real, a vida, o momento quandoa vida nua a vida normalmente devotada a olhar, dia aps dia, seo tempo ser bom ou ruim assume a temporalidade de uma cadeiade eventos sensorialmente apreciveis que merecem ser relatados. O

    ocioso barmetro expressa uma potica da vida ainda desconhecida,maniestando a capacidade de qualquer um (por exemplo, da velhaempregada de Flaubert) de transormar a rotina do diaadia na proundeza da paixo, seja por um amante, um senhor, uma criana, sejapor um papagaio. O eeito de realidade um eeito de igualdade. Mas aigualdade no signica somente a equivalncia entre todos os objetos esentimentos descritos pelo romancista. No signica que todas as sensaes so equivalentes, mas que qualquer sensao pode produzir emqualquer mulher pertencente s classes mais baixas uma acelerao

    vertiginosa, azendoa experienciar as proundezas da paixo.Este o amedrontador signicado de democracia literria: qual

    quer um pode sentir qualquer coisa. O objeto dessa paixo pouco importa. Felicit, a empregada de Um corao simples, uma servial

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    pereita. Mas ela no serve mais como teria servido, de acordo com algica hierrquica da verossimilhana. Ela serve com amor, com umaintensidade de sentimento e paixo que excede em muito a intensidade dos sentimentos de sua senhora. Esta intensidade no somente

    intil, ela perigosa. Alguns anos antes de Um corao simples, osIrmos Goncourt, amigos e colegas de Flaubert, haviam publicado ahistria de uma outra servial, Germinie Lacerteux. Germinie tambm anaticamente devotada sua senhora. Mas ao longo do romance parece que a paixo que az dela uma servial pereita tambm az dela umamulher capaz de qualquer coisa para servir a suas prprias paixes e aseu prprio desejo sexual at o ltimo estgio de degradao.

    Assim, a anglica Felicit e a monstruosa Germinie so irms; ambas pertencem mesma amlia de Emma Bovary, a amlia daquelas

    lhas de camponeses que se provam capazes de sentir qualquer desejoviolento, assim como qualquer aspirao ideal. esta nova capacidadede qualquer um de viver vidas alternativas que cobe a subordinao daspartes ao todo. No h um livro, diz Barbey, somente retratos pendurados lado a lado. O aristocrtico emprego da ao bloqueado pelademocrtica coleo desordenada de imagens. Mas o que acontece uma perda dupla em relao lgica representativa. Assim como a aoperdeu sua antiga estrutura de uma concatenao de causas e eeitos,a imagem perdeu suas velhas unes de comunicar a qualidade emo

    cional da ao ou mostrar imagens prazerosas durante suas pausas.Ao e percepo, narrao e imagem tornaramse um e o mesmo tecido sensorial de microeventos. Os crticos os condenam como imagens que obstruem o caminho do enredo. Mas imagem um termoambguo. De ato, as chamadas imagens no nos oerecem muito que

    ver. (Burke j havia dado a razo para isso: emoes e paixes violentasso mais bem comunicadas por palavras do que por representaes

    visuais, porque palavras no tornam realmente visveis o que elas descrevem. Este , de ato, o caso com a orma de violncia ento desco

    nhecida que consiste na capacidade de qualquer um de experienciarqualquer tipo de sentimento tanto sublime como abjeto.) Imagensno so descries do visvel. Elas so operadores que produzem dierenas de intensidade. Por sua vez, essas dierenas de intensidademaniestam uma redistribuio das capacidades sensoriais, ou, emtermos platnicos, da hierarquia entre almas de ouro e almas de erro.

    A democracia no romance realista a msica da igual capacidade dequalquer um de experienciar qualquer tipo de vida. A imagem no adicionada narrao, ela se torna a msica da igualdade na qual a

    oposio entre ao e imagem desaparece.Este , creio, o problema realmente em discusso no chamado eei

    to de real. A anlise de Barthes no leva em considerao a questopoltica porque, na minha opinio, a idia de estrutura que sustenta

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    [4] Dostoivski, Crime e castigo,

    apud Breton,Manifestos do Surrea-

    lismo. Trad. Pedro Tamen. Lisboa:

    Salamandra, 1993, p. 19. No segundo,

    Barthes, op. cit., apud Breton, ibidem.

    sua investigao sobre o estatuto do real na literatura est de acordocom a idia de estrutura implicada na lgica representativa: a estruturacomo arranjo uncional de causas e eeitos que subordina as partes aotodo. A anlise estrutural, para ele, deve dar conta de toda a supercie

    do tecido narrativo e designar para cada unidade narrativa um lugarna estrutura. Portanto, o analista estruturalista se depara com o mesmo escndalo que os campees da potica representativa: notaesdescritivas que no desempenham uno alguma e assim elevam ocusto da inormao narrativa. A argumentao exatamente a mesma: o que no tem uno na estrutura s pode ser entendido comouma armao insistente do real como real. Existem somente a estrutura e o resduo. Barthes identica o ltimo como um novo tipo de

    verossimilhana, a armao tautolgica do real como real. Mas creio

    que a crtica dos campees reacionrios da velha verossimilhana viacom mais acuidade o que estava em jogo: a invaso da democracia,diziam eles: uma nova realidade social insistente implodindo todaestrutura adequada do enredo, qualquer concatenao correta dasaes. Este o ponto: Barthes analisa o eeito de real da perspectivamodernista, igualando modernidade literria, e seu signicado poltico, com a puricao da estrutura do enredo, descartando as imagensparasticas do real. Mas a literatura como congurao moderna daarte de escrever justamente o oposto: ela a supresso das ronteiras

    que delineiam o espao dessa pureza. O que est em jogo neste excesso no a oposio do singular e da estrutura, o confito entre duasdistribuies do sensvel.

    Os crticos do sculo XIX viam uma relao direta entre a democraciavista como a igualdade de condies de Tocqueville e a prolieraorealista de detalhes suprfuos. Mas a ligao entre democracia polticae democracia literria muito mais complicada. E essa complexidadeque est refetida nas tenses da co. A tenso entre ao e descrio no somente ope a literatura moderna e as regras da velha poti

    ca, ela tambm reside no corao da co literria moderna. A questodo excesso descritivo indica essa tenso interna. Pretendo mostrla,trazendo de volta uma das crticas que mencionei no incio: a crtica de

    Andr Breton descrio de Dostoivski do cmodo da usurria. Primeiramente, menciono sua citao, depois seu comentrio:

    O pequeno quarto em que o jovem entrou, com papel amarelo orrando asparedes, vasos de gernio e cortinas de musselina nas janelas, estava naqueleinstante intensamente iluminado pelo poente Mas nada havia de especial no

    quarto. O mobilirio, todo de madeira amarela e muito velha, era constitudode um so, um toucador com espelho disposto entre as janelas, cadeiras juntos paredes, e ainda uns dois ou trs quadros baratos em molduras amarelas, representando senhoras alems com pssaros nas mos eis todo o mobilirio4.

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    [5] Barthes, op. cit., apud Breton,ibidem.

    [6] Fidor Dostoivski,Crime e cas-tigo. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo:

    Editora 34, 2001, p. 24.

    No quero admitir que a mente esteja disposta a se ocupar desses assuntos, mesmo que de orma errtica. Podese dizer que esta descrio escolartenha o seu lugar, e que naquele ponto do livro o autor tem as suas razespara me submeter a ela. O que certo que ele perde seu tempo, porque eu me

    recuso a entrar nesse quarto5.

    Mas a recusa a entrar no quarto deixa de lado a questo crucial: oque seu quarto signica, ou de quem esse quarto? disso quetrata a descrio de Dostoivski. Na verdade, ele descreve dois quartosem um. Signicativamente Andr Breton pulou, na sua citao, duassentenas que constituam essa dualidade. Cito toda a passagem:

    O pequeno quarto em que o jovem entrou, com papel amarelo orrando

    as paredes, vasos de gernio e cortinas de musselina nas janelas, estava naquele instante intensamente iluminado pelo poente. Quer dizer que nodia o sol tambm iluminar desse jeito! passou pela mentede Rasklnikov como que por acaso, e ele percorreu tudo no quartocom um olhar rpido, querendo, dentro do possvel, estudar e xarna memria a disposio dos objetos. Mas nada havia de especial noquarto. O mobilirio, todo de madeira amarela e muito velha, era constitudode um so, um toucador com espelho disposto entre as janelas, cadeiras juntos paredes, e ainda uns dois ou trs quadros baratos em molduras amarelas,

    representando senhoras alems com pssaros nas mos isso era tudo6.

    O prprio Dostoivski diz que a descrio intil. Mas ele tambm explica por que ela intil: porque o inventrio da moblia nodesempenha o papel que Rasklnikov lhe atribui. Ele passa o olho pelocmodo com o intuito de mapear a cena do assassinato que est planejando. Mas no h nada especial no cmodo, nada que valha a penaincluir no esquema do assassinato planejado. O que sobra, portanto, um outro cmodo, o cmodo que ele primeiramente notou, um

    cmodo impressionista que eito de retalhos de cor: papel amarelo, cortinas de musselina e o brilho do poente, produzindo um brilhointenso na sua mente: Quer dizer que no dia o sol tambm vai estariluminando desse jeito!. Este ltimo comentrio , em algum grau,absurdo: como vamos saber se o dia do assassinato ser ensolarado ouno? Precisamente, no questo de saber. O cmodo do assassinato,o cmodo onde ele acontecer no o cmodo ao qual ele olha conscientemente como um criminoso metodicamente planejando seu ato. o cmodo da alucinao. De ato, o assassinato acontecer na orma

    de uma alucinao provocada por um acesso de ebre.Assim, no verdade que a descrio obstrua o curso da ao. Em

    vez disso, ela o divide. A aparente banalidade da descrio revela umadualidade do cmodo que, por sua vez, revela uma diviso no ncleo

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    [7] Stendhal, O vermelho e o negro.

    Trad. Raquel Prado. So Paulo: Co-

    sacNaify, 2003.

    da prpria ao. Como sabido, Rasklnikov planejou o assassinatoa partir de uma teoria racional sobre a sociedade: pessoas pobres etalentosas, como ele, podem se valer de mtodos extraordinrios parasair de suas misrias e permitir que a sociedade se benecie de suas

    capacidades. Ele tem um modelo, Napoleo, o lho de uma obscuraamlia plebia que se tornou Imperador dos ranceses e senhor daEuropa. Assim, ele racionaliza o assassinato de acordo com uma racionalidade estratgica de meios e ns. Mas a racionalizao sobre omelhor ato no resulta numa capacidade de tomar uma deciso racional e de implementla a sangue rio. Ao contrrio, ele s consegueexecutla num acesso de ebre. A assim chamada supercialidadeda descrio a encenao dessa diviso interna. O novo enredo literrio, o enredo dos tempos da democracia, separa a ao de si mesma.

    O insucesso do modelo estratgico caracteriza de uma vez a estruturado romance realista e o comportamento de seus personagens. A runa do paradigma aristocrtico/representacional tambm implica aruna de uma certa idia de co, ou seja, certo padro de vinculaoentre pensar, sentir e azer.

    Gostaria de ilustrar este ponto comentando um estranho episdiode um romance que nos apresenta um irmo mais velho do Rasklnikov de Dostoivski: Julien Sorel, de Stendhal. Julien Sorel, o personagem principal de O Vermelho e o negro, lho da Revoluo Francesa,

    admirador de Napoleo que utiliza todos os meios para sair da suacondio inerior. Dessa maneira, o leitor do romance que segue oseventos da sua vida pessoal tambm apresentado ao jogo das relaes de poder que constituem a sociedade psrevolucionria. porisso que Erich Auerbach, no seu livroMimesis, v o romance como umpasso importante no progresso da representao da realidade na literatura ocidental. Ele inicia o realismo moderno que sugere que ohomem est envolvido numa realidade poltica, econmica e socialem permanente evoluo. Mas para enatizar essa idia de realismo,

    Auerbach teve que esquecer as esquisitices do enredo. No nal do romance, Julien est na cadeia e espera uma sentena de morte por teratirado na sua antiga amante, que o havia denunciado ao pai de suanova amante. Esta ltima e um amigo esto movendo mundos e undos para salvar a vida de Julien. Mas ele pede que no o atormentemcom esses detalhes sobre a vida real. Ele quer viver somente a vidada imaginao. Assim, ele passa seus dias azendo nada, andando peloterrao da priso umando charutos:

    De ato, pensava, parece que meu destino morrer sonhando. Um ser obscuro como eu, certo de ser esquecido em menos de quinze dias, seria um tolo, devoconessar, se zesse muito drama inacreditvel, contudo, que eu no tenhaconhecido a arte de gozar a vida seno depois de ver seu m to prximo7.

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    J no h aqui uma descrio que interrompe o curso da ao.Julien decide viver somente a vida da imaginao, mas no h imagemque expresse esta vida da imaginao. Aquilo que bloqueia a ao adiviso no prprio corao da vida. Na priso Julien descobre a arte

    de gozar a vida. Esta descoberta tardia no somente contradiz o carter do jovem ambicioso. Ela tambm contradiz a cincia com a qualo romancista havia construdo seu romance como uma viagem atravsdas redes de relacionamentos e intrigas sociais. Durante toda a narrativa, Julien calculou todas as suas atitudes, e o romancista adicionouaos seus clculos as explicaes que surgiam da sua prpria cincia dasrelaes sociais e da psicologia individual. O curso do enredo coincidecom o desenvolvimento daquelas intrigas. Mas, no ltimo momento,o enredo se divorcia da lgica das intrigas. O tiro a primeira ao do

    heri que no oi decidida segundo um clculo. Em vez disso, ele dizadeus a todos os clculos e coloca o heri num espao e tempo que jno tm a ver com o espao e tempo das ambies e das expectativas,um espao e tempo devotados a azer nada, a no ser gozar a vida.

    Com o intuito de compreender o que est em jogo neste venturoso azer nada, que pe um nal na carreira do plebeu ambicioso,proponho conectlo a outro azer nada, ormulado num texto bemdierente, um texto losco alemo. Dois anos antes da publicaodo romance de Stendhal, Hegel comentou, nas suas lies de esttica,

    dois quadros de Murillo que representam garotos pedintes numa rua deSevilha. Um deles mostra uma me catando piolhos da cabea de umgaroto enquanto ele silenciosamente mastiga seu po. O outro mostra dois meninos maltrapilhos comendo uvas e um melo. A atenoque o lsoo dedica a essas pinturas de gnero que representamo cotidiano de pessoas das classes baixas ilustra a inverso da lgicahierrquica do regime representativo. Mas Hegel no se satisaz commeramente armar que todos os temas so equivalentes. Em vez disso, ele az uma orte conexo entre a qualidade da pintura de Murillo e

    a atividade daqueles pequenos pedintes, uma atividade que consistiaem nada azer nada e com nada preocuparse. Eles mostram, ele diz,uma absoluta alta de preocupao com a realidade exterior, uma liberdade interna em meio a essa realidade externa que exatamente oexigido pelo conceito do ideal na arte. Agachados, eles gozam de umtipo de bemaventurana que os torna quase deuses olmpicos.

    Os quadros dos meninos pedintes que um prncipe comprou, naera representativa, como ilustraes pitorescas das maneiras de serdas pessoas das classes baixas, agora expressa uma nova qualidade

    esttica, a capacidade de nada azer e preocuparse com nada, a aptido ao cio que pertence aos deuses olmpicos. Na sua descrio, Hegel provavelmente tinha em mente as Cartas sobre educao esttica dahumanidade de Schiller e sua evocao das perenemente satiseitas

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    [8] Friedrich Schiller,Cartas sobre a

    educao esttica da humanidade. Trad.

    Roberto Schwarz. So Paulo: EPU,

    1991, p. 93.

    divindades do Olimpo, que os escultores gregos haviam representadolibertados das peias de qualquer nalidade, dever ou preocupao.Na descrio de Schiller, a Juno Ludovisi repousa e habita em si mesma, uma criao autosuciente, que no cede nem resiste, como se

    estivesse para alm do espao. No h ora, a, que lute contra oras,nem carncia em que pudesse irromper o tempo8. Hegel atribui aosmeninos pedintes esta ociosidade da divindade que nem cede nemresiste. Mas tambm a mesma ociosidade que o personagem deStendhal descobre: o estado no qual nenhum ora luta contra oras, ao passo que toda sua carreira, toda a carreira do plebeu que querconquistar um espao na sociedade, havia sido uma questo de colocarora contra ora.

    Mas se aos jovens pedintes despreocupados e ao ambicioso ple

    beu podese oerecer o mesmo benecio do cio olmpico, porqueo cio que Schiller e Hegel atribuem aos deuses do Olimpo era elemesmo uma inveno plebia, uma marca de uma orma plebia deinverso esttica. O estado no qual no h nem concesso nem resistncia, no qual nenhuma ora luta contra oras, tem um nome emrancs, se chama rverie. No nal de sua vida, o lho de um arteso, umescritor que oi grande infuncia para Schiller e Kant e para Stendhaltambm, chamado JeanJacques Rousseau, escreveu Os devaneiosdo caminhante solitrio. Um desses devaneios dedicado a descre

    ver os dias ociosos que ele passou numa pequena ilha na Sua, depois de ter sido condenado pelo parlamento rancs e ameaado poruma multido na Sua. Esta ilha, ele diz, era como uma priso na qualgostaria de ter passado o resto da sua vida. Seu tempo l era parcialmente dedicado a colher plantas, parcialmente dedicado a azer nada,passando horas deitado num pequeno barco deslizando pelas guasdo lago, apenas gozando do simples sentimento de existncia, sempreocupao, ou, em outras palavras, oarniente. Oarniente do devaneio no preguia. Preguia o vcio do mau trabalhador. O cio a

    virtude daqueles que no precisam se preocupar com trabalhar. Valelembrar da crtica de Borges ao cotidiano ocioso que invade a literatura com Balzac, Flaubert ou Proust. Mas este cio no a supercialidade que perniciosamente invadiu a literatura. Foi a inverso dadistribuio das temporalidades sociais que ez com que a literaturase tornasse possvel. Na velha distribuio do sensvel, no havia ocotidiano ocioso para o plebeu; o cotidiano signicava trabalho oupreguia. Podemos colocar de outra orma: a distribuio tradicionaldo sensvel opunha o reino da ao aristocrtica ao reino da abrica

    o plebia. O azer nada do plebeu a inverso da oposio entreagireazer. Qualquer um pode gozar do estado ocioso do devaneio.Esta nova qualidade delimita uma nova esera de experincia esttica (apesar de Bourdieu, o desinteresse de Kant deve muito mais ao

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    devaneio plebeu do que ao distanciamento aristocrtico. Ele tambmdelimita um novo regime de identicao da arte). Um dos principaisaspectos desse regime a quebra das velhas estruturas deperormancenarrativa. O assim chamado eeito de realidade, o oco no intil e

    ocioso cotidiano, primeiro signica essa quebra, esta separao nocorao daperormance narrativa. As palavras so excessivas por causadesse excesso, que constitudo pela entrada dos lhos de artesos ecamponeses num novo mundo da sensibilidade o reino da paixoselvagem e do cio tambm.

    Esta quebra esttica est no corao da literatura e da poltica daliteratura. Ela tambm separa democracia esttica, e marcadamentedemocracia literria, da democracia poltica. disso que as estranhezas do romance de Stendhal do testemunho. Para o plebeu e para

    o enredo que conta sua ascenso e queda a igualdade parece estardividida desde o comeo. De um lado, a igualdade o ajuste adequadoda capacidade do plebeu a uma posio que lhe recusada. um mque ele quer obter opondo ora contra ora e usando um conjunto demeios apropriados. De outro lado, a igualdade uma nova modalidadeda experincia perceptiva que ele pode aproveitar imediatamente, sobuma condio: dizendo adeus ao jogo das oras opostas, ou ao jogodo m e dos meios. No m, Julien Sorel desiste de todos os esquemas que havia tramado para conquistar um lugar na sociedade. Ele

    transorma sua priso na ilha da priso metarica de Rousseau, umlugar para desrutar o puro sentimento de existncia. A mulher queele tentou matar logo o visitar na priso e eles se apaixonaro novamente; ele reviver com ela os nicos momentos elizes da sua vidapregressa: momentos dedicados ao desrute da existncia como tal ou,em outros termos, ao compartilhamento da igualdade sensorial. Maisuma vez, isso no somente uma questo de personagens ccionais. uma questo de estrutura ccional. O momento de pereito jbilo dopersonagem aquele em que a lgica do enredo, identicando a con

    catenao causal das aes narrativas com o jogo das intrigas sociais,colapsa. Como a estrutura ccional de concatenao de ns e meios oucausas e eeitos tende a identicarse com a luta das oras sociais, ela mutilada por uma ora de inrcia. Em O vermelho e o negro, a ora deinrcia a ora do devaneio plebeu contra as hierarquias sociais. Masa diviso da lgica da ao no especca de um romance. (A mesma coisa acontece em outro grande romance de Stendhal,A Cartuxa deParma, no qual o heri no mais o lho de um arteso, mas um jovemaristocrata.) A diviso no corao da ao diz respeito, geralmente, ao

    enredo esttico, construo de enredos ccionais dentro da lgicaesttica. No coincidncia, creio, que o primeiro autor a trazer ao palco o racasso da estratgia tenha sido, tambm, o pensador da condio esttica, Schiller, ao mostrar, na trilogia de Wallenstein, no carter

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    inaudito deste general, o arqutipo de um homem de ao e deciso,que incapaz de agir at que a cincia do astrlogo lhe dite a ocasioadequada. No m, ele orado a agir na pior situao. Depois dele, oenredo do estrategista onipotente condenado impotncia assumiu

    uma multiplicidade de guras. Nos anos de 1830, Balzac imaginouuma associao de treze conspiradores que sabiam todos os segredose controlavam a mquina social. Esses conspiradores acabaram racassando em todas os seus intentos. Balzac nos oerece uma estranha razo para os seus racassos. Diz ele: j que podiam azer qualquer coisana sociedade, no se importavam em ser algo nela. Trinta anos depoisde Balzac, Tolsti apresentou, no palco maior da histria, o racasso domodelo estratgico ou napolenico de ao. Os generais cremestar alcanando seus grandes planos ao disporem de suas tropas no

    campo de batalha de acordo com suas estratgias. Mas o sucesso ouo racasso depende de acasos aleatrios; depende de uma multiplicidade de pequenas causas interconectadas que nenhum estrategistaconsegue dominar. por isso que o melhor general, Kutuzov, cochilaenquanto os demais ociais discutem as estratgias. Dez anos depois,o ciclo de vinte livros de mile Zola pretendeu oerecer o relato cientco da ascenso de uma amlia plebia, identicada ascenso dasociedade democrtica moderna e neurose moderna. Mas, no ltimolivro do ciclo, todo edicio da cincia desaba: os registros dos cientis

    tas demonstrando como as leis da hereditariedade determinavam essaevoluo so queimados e substitudos, nas prateleiras, pelas roupasde um beb, a incestuosa criana do cientista, simbolizando o insistente triuno da vida, que aspira a nenhuma nalidade.

    Assim, o excesso realista no tem nada a ver com a ostentaoburguesa da riqueza e da conana no reino da Burguesia que algunsautores ali detectaram. O que est no seu corao muito mais a conuso introduzida quando o excesso de paixo e o vazio do devaneioso apropriados pelas almas das classes baixas. por isso tambm

    que ele no tem muito a oerecer interpretao contrria, que lhe dcrdito por seu senso progressivo do movimento histrico. De acordocom Auerbach, o romance realista az com que destinos individuaiscoincidam com a sabida representao das oras sociais e polticasmodernas. Acredito que seja bem o contrrio: ele demonstra a impossibilidade da coincidncia, a disjuno entre saber e agir, azer e ser. Oscaminhos literrios da igualdade se divorciam dos caminhos polticos.

    Mas, por outro lado, os enredos partidos da literatura nos indicama disjuno no corao dos esquemas gerais de evoluo histrica e de

    poltica revolucionria. Quando o jovem Marx ope a revoluo humana revoluo meramente poltica, ele est dando continuidade descoberta de uma igualdade sensorial que vai alm da transormaodas instituies governamentais. Mas quando ele prega a ao revolu

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    cionria baseado na existncia de uma classe de homens inteiramentedespossudos de sua humanidade, ele se distancia das ormas de emancipao dos trabalhadores que armam sua capacidade de gozar aquie agora um mundo de igualdade perceptiva. A deciso poltica parecia

    ser corroda pela igualdade esttica, pela capacidade plebia de azernada. por isso que Marx se dedicou a aniquilar este azer nada mediante a armao de uma privao radical ou de uma nulidade radical,a nulidade da classe que no tem nada a perder a no ser seus grilhes.E ele atribuiu cincia o poder de sair dessa nulidade. Mas a respostada cincia da estrutura social s demandas da ao revolucionria seprovou to problemtica quanto a cincia do astrlogo de Wallenstein.

    A revoluo supostamente aconteceria como conseqncia da contradio social baseada no conhecimento da concatenao de causas e

    eeitos que estruturam a explorao e a dominao. Porm, o processopelo qual o conhecimento chega ao ponto no qual ele pode determinara ao adia indenidamente este ponto. O momento em que o socialismo cientco atou o uturo comunista ao desenvolvimento intrnsecodas oras produtivas tambm o momento em que ele se divorcioudas teorias que designavam um objetivo para a vida e davam s cinciasa tarea de conhecer este objetivo e determinar os meios de alcanlo.A vida no quer nada, este o segredo niilista que destri desde dentro as narrativas cientcas otimistas do sculo XIX. A cincia marxista

    sabia, de ato, como lidar com esse segredo. Ela o traduziu nos termosde uma estratgia de ns e meios e da expectativa do momento certo.Ela explicou que a marcha para o socialismo no poderia antecipar odesenvolvimento do processo, que ela no poderia impor seus desejosao curso das coisas. Mas, por debaixo da idia de adaptao cientca ao movimento da vida, havia o sentimento mais proundo de que talmovimento levava a lugar nenhum e que a vontade de mudar a vida nodependia de um processo objetivo. por isso que o rigor cientco teveque inverterse, armarse como a mera necessidade do rompimento

    violento que impe uma direo ao innito movimento da vida produtiva. A revoluo tinha que ser indenidamente adiada ou ser levada acabo com uma prestidigitao, exatamente como o tiro de Julien Sorel.

    A linha reta de ao pensada como conseqncia de uma vontade deconhecimento estava quebrada.

    No quero me demorar nessa questo. Vou apenas aproveitar algumas concluses das minhas anlises sobre a idia de modernidade artstica que sustentou a elaborao do conceito de eeito de real.Essa elaborao imps uma idia de modernidade artstica como uma

    estratgia de subtrao, rejeitando o excesso realista das coisas junto com as limitaes da semelhana. A pintura abstrata tornouse oemblema dessa idia. Creio que essa anlise erra o alvo. O centro doproblema do realismo no era o excesso de coisas, mas a quebra com

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    a lgica da ao, a autocontradio da lgica causal. Nem a respostaartstica nem a resposta poltica a essa autocontradio poderia serencontrada em uma estratgia de subtrao. Ao contrrio, o que elarequeria era uma estratgia de adio, excedendo o excesso realista, o

    que signica dizer trazendo completude a autoanulao da lgicacausal. O que essa completude implicava era uma orma de coexistncia das experincias sensoriais que absorvesse tanto o excesso dapaixo plebia como o excesso do devaneio plebeu, uma orma de conexo universal das experincias libertadas de qualquer enredo decausalidade. Isto pode ser ilustrado, creio, pela equivalncia de todosos movimentos emHomem com uma cmera, de Dziga Vertov. A linha deproduo na brica e os gestos de um engraxate na rua, o trabalhode um mineiro e o azer as unhas num salo de beleza so representa

    dos como maniestaes equivalentes de energia que o lme conectauma outra, assim como os empregados da empresa telenica continuam a conectar novos interlocutores quando constantemente ligame desligam os os. Como se sabe, esse trabalho obedece a um lemaaparentemente simples: nenhum enredo, somente a realidade. Masno devemos nos enganar em relao a essa oposio. Ela no querdizer que a arte deve representar a realidade e somente a realidade.Ela signica: sem arte, no h representao da realidade. O cinemano uma arte que representa a realidade ao pblico. uma orma

    de ao que conecta todas as ormas de ao: a ao de lavar os cabelos, aao de extrair carvo, a ao de lmar, colar e copiar, a ao de ver etc.Esta conexo universal dos movimentos cria uma nova percepo naqual a distino entre realidade e representao desaparece junto coma distino entre arte e vida. Tudo ao: no h azer nada; ainda assim, ao mesmo tempo, a ao libertada da sua dependncia dos ns,das vontades e estratgias.Homem com uma cmera uma sinonia demovimentos, todos iguais, no importando o m que eles persigam:produo, consumo, jogo ou simulacro. A conexo dos movimentos

    os liberta no s das suas solides, mas tambm das suas dependncias de vontades especcas. As mquinas da indstria socialista e ostruques dos mgicos expressam o mesmo ritmo compassado da vida.O cinema cria, portanto, uma orma de comunismo que escapa aosdilemas das estratgias comunistas por inverter o segredo niilista daalta de objetivo da vida. Ele oerece a utopia de um mundo espontaneamente comunista por construir uma percepo comum na qual omovimento orientado da construo socialista est em sintonia com oemprego de todos aqueles movimentos nos quais a vida expressa nada

    alm da sua intensidade igualmente distribuda. possvel dizer que esse o privilgio da arte em movimento. Mas

    o cinema realiza um sonho que ele no inventou: est em acordo com atentativa whitmaniana de escrever um livro que no um livro, mas a

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    voz que absorve uma inumervel multiplicidade de vozes e ormas deexperincia, em acordo com a tentativa cubista, uturista e cubouturista de estilhaar a supercie da tela em numerosas acetas capazesde expressar todas as intensidades da vida moderna, seja das mqui

    nas seja da dana popular. Isto , acredito, o que o modernismo historicamente signicou a construo de uma sensibilidade de igualdaderadical, azendo da arte e da vida a mesma coisa, uma vez que ele tornoutodas as experincias equivalentes e conectou qualquer uma delas atodas elas. Sabemos o que aconteceu com este sonho histrico: ele oidescartado duas vezes. Primeiro, oi reprimido pela exigncia do realismo socialista, que no signicava apenas a exigncia de que a arteservisse causa do poder sovitico, mas que o realismo esquecesse asua prpria contradio, o que muito mais problemtico. O sonho

    oi descartado uma segunda vez quando os marxistas ocidentais decidiram escrever o balano do primeiro descarte e escolheram o modomais cil de azlo, que era esquecer o que o modernismo havia signicado e reinventar a modernidade com a conquista da autonomia artstica. O estruturalismo e a elaborao do conceito de eeito de realso os resultados desta reinveno. Penso que pode ser proveitoso,hoje, reconsiderar essa histria.

    jacques rancire proessor emrito de Filosoia e Teoria da Arte da Universidade de Paris

    VIII (St. Denis).

    Recebido para publicaoem 11 de dezembro de 2009.

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    pp. 7590