o dia do juízo - ironia e tragédia nos infernos de rosário fusco

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O DIA DO JUZO: IRONIA E TRAGDIA NOS INFERNOS DE ROSRIO FUSCO

Cassiana Lima Cardoso

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Potica).

Orientadora: Professora Doutora Vera Lins

Rio de Janeiro Junho de 2008

O Dia do Juzo: Ironia e Tragdia nos Infernos de Rosrio Fusco Cassiana Lima Cardoso Orientadora: Professora Doutora Vera Lins Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps Graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Potica).

Examina por:

_________________________________________________________________________ Presidente: Professora Doutora Vera Lcia de Oliveira Lins _________________________________________________________________________ Co-orientador: Professor Doutor Lus Alberto Nogueira Alves _________________________________________________________________________ Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza _________________________________________________________________________ Suplente: Professor Doutor Raimundo Nonato Gurgel _________________________________________________________________________ Professor Doutora Martha Alkimin de Arajo Vieira _________________________________________________________________________ Suplente: Professora Doutora Constana Hertz

.

Rio de Janeiro Junho de 2008

II

Dedico esse trabalho a meus pais.

III

Agradecimentos

A meus pais, pelo apoio incondicional, sem o qual eu jamais teria dado nenhum de meus passos. A minha av Alcina, A minha Tia Carminha, pelo seu estmulo e cuidados que me ajudaram a perseverar em meu caminho. A meus irmos, por serem quem so, por estarem presentes de uma forma ou de outra, ainda que s vezes, distncia. A todos os meus familiares, por me darem sempre oportunidades de crescer e aprender, em especial a minha prima Cladia e meu Tio Haroldo. Aos meus amigos, pela companhia nas horas boas e ruins, por terem me ouvido, e por terem s vezes sido como irmos, em especial: Fayga, Adair e Lo. Ao Bernardo, Aos professores Antnio Jardim, Ronaldes de Melo e Souza por suas aulas que muito me fizeram pensar e amar ainda mais profundamente a literatura, Aos autores mineiros Antonio Olinto, Francisco Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, pela prontido e alegria em auxiliar-me nas pesquisas sobre Rosrio Fusco, A professora Vera Lins, pela maneira com que acolheu e tornou possvel a concluso do presente trabalho.

Rio de Janeiro, 2008.

IV

Aviso: a no ser que prefirais o inferno ao cu (pois h gosto para tudo, e o inferno de muitos - preciosa liberdade de escolher o cu de inumerveis), de nenhum modo, e nem por isso, deveis descuidar-vos em vida, tendo presente que o vosso reino, este, aquele, ou aqueloutro, comea no lugar em que tiverdes apoiado os ps. Que at l, a existncia vos pese menos que uma p de cal. Saudaes e paz.

Rosrio Fusco

V

RESUMO Este trabalho uma leitura e uma interpretao da obra O Dia do Juzo, de Rosrio Fusco, que busca demonstrar um possvel dilogo do romance desse autor com as tradies irnica e trgica da literatura universal, questionando ainda os princpios da metafsica que nortearam o Homem ao longo de sua histria e a moralidade de costumes que delinearam sua conduta. Palavras-chave: ROSRIO FUSCO; IRONIA; TRAGDIA; FILOSOFIA E MORAL.

. ABSTRACT This work is a reading and an interpretation of the novel O Dia do Juzo, by Rosrio Fusco, that tries to show a possible dialogue of this work of art with the ironical and tragic traditions of the universal literature, questioning also the metaphysical principles that guided the man through her history and the morality of costumes that marked his behaviour. Keys words: MORALITY. ROSRIO FUSCO; IRONY; TRAGEDY; PHILOSOPHY AND

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FICHA CATALOGRFICA

CARDOSO, Cassiana Lima. O Dia do Juzo: Ironia e Tragdia nos Infernos de Rosrio Fusco. Cassiana Lima Cardoso. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras, 2008. Xi, 114 f.: il. 31 cm.

Dissertao (mestrado) UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura, 2008. Orientador: Vera Lins Referncias Bibliogrficas: f. 108.111 1. Rosrio Fusco. 2. Ironia. 3. Tragdia 4. Filosofia 5. Moral . I. Lins, Vera. II Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Ttulo.

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SUMRIO

1. INTRODUO............................................................................................1

2. ROSRIO FUSCO E A TRADIO LITERRIA BRASILEIRA....................................................................................................3 2.1 O Verde Rosrio Fusco..................................................................................4 2.2 Rosrio Fusco romancista...............................................................................9 2.3 Rosrio Fusco e o Surrealismo......................................................................12

3. O NARRADOR IRNICO NO DIA DO JUZO, DE ROSRIO FUSCO...............................................................................................................21 3.1 Aristfanes.....................................................................................................22 3.2 Parbase e Ironia............................................................................................23 3.3 Luciano de Samosta.....................................................................................29 3.4 O Elogio da Loucura......................................................................................34 3.5 Cervantes e os fundamentos da forma irnica no romance moderno................................................................36 3.6 Ironia e Desespero no Dia do Juzo................................................................43

4. A ESTRUTURA TRAGICMICA DO ROMANCE O DIA DO JUZO...................................................................................................................53 4.1 Ditirambo e o Drama Satrico..........................................................................54 4.2 Dionsio............................................................................................................56 4.3 O trgico e o cmico no Dia do Juzo.......................................................................................................................62

VIII

5. A PRIMAVERA TRGICA DE ROSRIO FUSCO....................................................................................................................67

6. A MORAL E O HADES, UM PASSEIO PELOS INFERNOS HUMANOS .........................................................................................................85

7. O FIEL DA BALANA: A JUSTIA, NO JUZO FINAL ..............................................................................................95

8. CONCLUSO............................................................................................... 104

10. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................... . 108

9. ANEXOS

Entrevista para Pasquim................................................................................................................113

Carta de Rosrio Fusco para o Jornalista Ronaldo Werneck aps entrevista......................................................................................122

Carta de Rosrio Fusco.........................................................................................123

IX

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Nada vale nada com algemas. (Rosrio Fusco)

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I. Introduo

A presente dissertao de mestrado pretende desenvolver um estudo acerca do romance O Dia do Juzo, do escritor mineiro Rosrio Fusco, publicado em 1961 pela editora Jos Olympico. Rosrio Fusco, considerado um escritor maldito das letras nacionais, traz em sua escrita preocupaes metafsicas que j haviam sido discutidas por outros escritores de nossa literatura, tais como as realas entre o homem e Deus, o bem e mal, o real e o ilusrio. Entretanto, o trabalho aqui desenvolvido no se preocupou em inser-lo no canne da literatura brasileira, embora haja uma breve apresentao na qual se ilustra a trajetria do escritor at a ocasio da publicao do Dia do Juzo. Buscou-se, no entanto, estabeler pontos de contato entre sua obra e a produo literria de escritores da literatura universal que apresentam em seus escritos a ironia como princpio de composio da obra de arte e o vis trgico como condio inerente do ser humano. Assim, acredita-se que a escrita de Rosrio Fusco d continuidade e dialoga com diferentes caminhos da tradio stirica e trgica percorridos por autores como Aristofnes, Eurpedes, Luciano de Samosta, Erasmo de Rotterd, Miguel de Cervantes e Machado de Assis; quer pela sua temtica, quer pela sua estrutura narrativa, que se constitui como uma mescla de gneros. Uma das propostas deste trabalho a associao da obra O Dia do Juzo, tradio satrica que remonta o teatro grego de Aristofnes. A recusa de qualquer iluso dramtica que aparece pela primeira vez na dramaturgia aristofnica vigora tambm neste romance. Primavera, a protagonista desta tragdia da provncia e seus antagonistas (que parecem ser o mundo inteiro e at mesmo Deus) possuem seus atos analisados em abruptas intervenes do narrador que, como no antigo coro das comdias gregas, age cumprindo o papel da parbase de ironizar, atravs da reflexo, o estranho teatro das aes humanas. O Dia do Juzo a ltima obra publicada em vida do autor e apresenta em sua estrutura narrativa uma complexa rede de relaes em que personagens do submundo se vem envolvidos por uma atmosfera dbia e rarefeita, na qual o narrador ir desempenhar o papel

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da parbase, ao questionar continuamente a iluso pela qual esto subjulgados os personagens quando se deixam guiar pelas regras de conduta e a moral do senso comum. O retorno gnese da tragdia e da comdia, s antigas celebraes em honra ao deus do vinho Dionsio, se faz presente no intuito de discutir-se o estilo hbrido da narrativa de Rosrio Fusco, que remonta aos Dramas Satricos da Antiguidade, nos quais o srio e o jocoso se interpem constantemente, em um incessante dilogo. Primavera, a protagonista, se apresenta como a tpica herona trgica, por no aceitar a concepo de destino que lhe imputada pela sociedade na qual vive. Pobre, feia e assexuada, sua nica alternativa para por em prtica seu princpio de individuao o sucidio. Porm no o faz impunemente: escutamos sua voz por meio de uma narrativa

que confere visibilidade ao discurso dos excludos. A tradio de conferir voz aos indivduos de todas as classes sociais na obra de arte, remonta ao teatro grego de Eurpedes. Suas personagens do rei ao escravo participavam democraticamente de todas as inquietaoes sociais, polticas, filosficas e literrias. Assim, o paralelo entre suas personagens femininas Fedra, Media e a Primavera de Rosrio Fusco, se faz nesse trabalho no sentido de que, tanto as personagens do teatro grego, quanto a protagonista do romance contemporneo, possuem um vis trgico que lhes comum, que a condio feminina em um contexto no qual seus desejos ou sua liberdade de escolha so hostilizados por uma sociedade regida por uma ordem de valores falocntrica. Mas no s a personagem feminina que atravessa infortnios. Por detrs de intricado enredo, cujo desenvolvimento narrativo no se prope em momento algum facilitar ao leitor uma concatenao entre os eventos; v-se de forma constante, o desnudar da conscincia de personagens que vivenciam o conflito de experimentarem a dualidade presente entre o instinto e a moralidade do costume. Na inteno de justificarem suas condutas, os caracteres fusquianos mergulham aos subterrneos de si mesmos, aos seus infernos. A atmosfera que perpassa a narrativa de dor e sofrimento; prazer e crueldade, na qual o maior algoz so as conscincias dos personagens, que se deixam atormentar por um sentimento de culpa por no corresponderem ao ideal de conduta institudo pelo cristianismo. A moral crist, aqui analisada na perspectiva de Nietzsche, procurando sempre delimitar o que certo ou errado, como grande instrumento de dominao ideolgica, o portal para a insanidade dos personagens. Os infernos psquicos que

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atravessam os caracteres fusquianos os afastam cada mais da possibilidade de se realizarem enquanto cidados na sociedade em que vivem, corroborando para que as estruturas de poder permaneam intactas. Na tentativa de escaparem do fogo eterno, acabam por esvairem-se em prol de uma verdade forjada, que se traduz em uma negao da vida, na qual o homem objeto de uma fora que impede sua liberdade e sua vontade: o pecado original.

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Captulo II

ROSRIO FUSCO E A TRADIO LITERRIA BRASILEIRA

Meia Pataca, Musa agora e madrasta sempre, Com insolvvel e despeitado amor: Quase dio (Rosrio Fusco, Dedicatria do Livro O Dia do Juzo).

Eu sonhei com vocs: todo o Brasil espiando Cataguazes e Cataguazes dando as costas a vocs. Cidade pequena assim mesmo. Tem raiva de quem fica maior do que ela dentro dela Vocs, poetas de cidade pequena (grupo n.4) fizeram de Cataguazes uma cidade grande. (...) Queiram bem a Cataguases que no quer bem a vocs. Cataguazes pequena, mas vocs s so grandes porque so de Cataguazes. (Jos Amrico de Almeida)

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2.1 O VERDE Rosrio Fusco Antes de lanar-se romancista, com a obra O Agressor em 1943, Rosrio Fusco participara como um dos principais articuladores de um importante movimento literrio que acontecera na provinciana cidadezinha mineira Cataguases: o MOVIMENTO VERDE, que lanara em 1927, uma Revista com o mesmo nome. A Revista Verde foi a melhor e mais conhecida das publicaes modernistas do interior de Minas Gerais. Proeza nada desprezvel, ainda mais quando se pensa no que era Cataguases daquela poca. Editou seis nmeros (entre setembro de 1927 e maio de 1929), alcanou sucesso nacional e ficou na histria da literatura brasileira, publicando trabalhos da maior parte dos autores que viriam, pouco depois, a ser destacadas figuras nos meios culturais do pas. A grande importncia do movimento Verde foi a de ter demonstrado a fora de penetrao do Modernismo, e de ter contribudo, definitivamente, para instalao dos postulados estticos de vanguarda, reafirmando as duas vertentes do grupo paulista: a liberdade de expresso e o nacionalismo. A Cataguazes, pioneira na Literatura, deve muito a Rosrio Fusco ainda menino de dezessete anos e j fazendo com outros rapazes uma revista que teria visibilidade em todas as capitais literrias do pas e no exterior. Fusco foi o motor da Revista Verde, nela escrevia, ilustrava, diagramava, mandava e recebia cartas para todo o mundo, mas principalmente para o modernista Mrio de Andrade, em uma correspondncia que resultou em descoberta e aprendizado, embora mais tarde, fizesse mais o perfil do outro Andrade, o irreverente e antropofgico Osvald:Mrio de Andrade gostava de lembrar, deliciado, o caso do bilhete que um dia, no final dos anos 20, lhe chegou de Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais. O missivista, um garoto de dezessete anos, pedia ao j ilustre autor de Paulicia desvairada, sem maior cerimnia, que mandasse uma bosta qualquer, para uma revista que ele e seus amigos estavam editando. O garoto, filho de lavadeira, chamava-se Rosrio Fusco. (WERNECK, 1992, p.62)

Em 1927, pouco antes de sair o primeiro nmero da Verde, Cataguases tomou conhecimento, nas pginas da revista Para Todos, de um recital de poesia moderna, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que inclua versos deles, os meninos da terra: Pela

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vida afora, Guilhermino Csar haveria de saborear o misto de incredulidade, inveja e raiva dos cataguasenses, que at ento os ignoravam e agora os encontravam onde mesmo? Nas pginas da revista mais famosa do pas. (WERNECK, 1992, p.64) O pequeno grupo se formara a partir das sesses do Grmio Literrio Machado de Assis, do Ginsio Municipal de Cataguases, mas s ganhou corpo e ambio com a entrada de Rosrio Fusco, apresentado aos demais por Guilhermino. O ltimo a compor o grupo foi Enrique de Resende, jovem engenheiro formado em Juiz de Fora e que, de volta cidade, trabalhava na construo da estrada ligando Cataguases a Leopoldina. No excerto abaixo, recolhido pelo poeta Luiz Ruffato, ele conta como conheceu Rosrio Fusco:Foi em maio deste ano (1927) que conheci Rosrio Fusco e, logo em seguida, todos aqueles que hoje fazem parte do grupo Verde. Autor, que sou, de livro de poemas (Turris Ebrnea, M. Lobato & Cia. 1923 edio esquecida) entendeu Rosrio de mandar-me, por isso, alguns versos seus, acompanhados de uma carta interessantssima. Sa imediatamente procura do poeta pelas poucas ruas da cidade pequenina a perguntar a uns e outros onde era a sua casa, onde trabalhava etc. No trabalhava nem tinha casa. Mesmo assim, topamos logo. Depois desse dia vieram outras cartas de Rosrio e outros poetas. Resultado: em Junho, ramos nove, dos quais oito escritores e o pianista Renato Gama. Foi um pasmo. (RUFFATO, 2002, p.81)

Antes da publicao do primeiro nmero da revista, trs jornais foram embrionrios para o nascimento dos futuros verdes: Mercrio, da Associao Comercial, do qual Guilhermino Csar era redator; O Eco, de Joo Lus de Almeida; e Jazz-Band, que s teve um nmero e saiu um ms antes do aparecimento da Verde, denominando-se quinzenrio moderno e mundano, e do qual Rosrio Fusco era o redator.No tardou muito e, no segundo semestre de 1927, estavam reunidos no Caf do Fonseca a sonhar com a revista. O nome, diz Henrique de Resende, foi escolhido sem grandes elucubraes: Verde quer dizer mocidade, e mocidade insurreio. O mais velho deles era justamente Henrique, que andava pelos 28 anos e j estava casado; o mais jovem, Rosrio, mal chegara aos dezessete e ainda nem sequer se matriculara, em troca de aulas de desenho, no Ginsio Municipal de Cataguases. Ascnio Lopes tinha vinte e um, Guilhermino Csar, dezenove, Francisco Incio Peixoto, dezoito. (WERNECK, 1992, p.65)

A revista no passou despercebida e deu inesperada notoriedade ao municpio. Seus integrantes Enrique de Resende, Antonio Martins Mendes, Ascnio Lopes, Guilhermino Csar, Francisco Incio Peixoto, Osvaldo Abritta, Chistophoro Fonte-Boa, Camillo Soares e Rosrio Fusco contaram com colaboraes de todos os grupos Modernistas do

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Brasil, e, embora a afinidade maior da Verde se estabelecesse com o Grupo de So Paulo, a revista conseguiu reunir em suas pginas o que de melhor havia no pas do movimentomodernista. Em 1927, eram publicadas, alm da Verde, as revistas Festa, no Rio de Janeiro, e Electrica, em Itanhandu, sul de Minas. Reunindo escritores provenientes do Simbolismo, Festa praticamente s publicava quem se enquadrava em seus cnones enquanto a Electrica, alm de no ser distribuda nacionalmente, era um misto confuso de revista literria e catlogo publicitrio, sem uma linha determinadamente modernista. Sobrava, ento, a Verde, bastante ecltica e aberta a todas as manifestaes, j que tinha como princpio bsico a liberdade de expresso, o que ajudou a canalizar toda a produo modernista para o nico veculo que dispunham. (RUFFATO, 2002, p.61)

A aproximao maior com o grupo de So Paulo, - Mrio de Andrade, Paulo Prado, Alcntara Machado, Oswald de Andrade, - se justificava pela identificao de Projetos entre os verdes e os articuladores da Semana de Arte Moderna. O grupo da revista Verde, ao invs de se ligar aos modernistas de Belo Horizonte (cidade em que morava Ascnio Lopes e onde Francisco Incio Peixoto mantinha relaes com Carlos Drummond de Andrade) ou aos do Rio (onde estava Joo Lus de Almeida), preferiu se relacionar com o grupo de So Paulo.Isso explica porque, tanto o movimento iniciado em Belo Horizonte, com A Revista, quanto o grupo que se formava em torno de Festa, eram bastante discretos em suas experincias, ao contrrio do que pregava o grupo paulista, que queria avanos radicais de contedo e forma. Essa radicalizao estava muito mais prxima do pensamento que norteava o Grupo Verde. (RUFFATO, 2002, p.60)

As contribuies para a Verde, no entanto, vinham de toda parte. De fora chegavam contos, artigos e poemas, entre outros, de Carlos Drummond de Andrade, Emlio Moura, Pedro Nava e Joo Alphonsus, de Belo Horizonte; Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Srgio Milliet e Antnio de Alcntara Machado, de So Paulo; do Rio, Prudente de Moraes Neto, Marques Rebelo, Murilo Mendes e Augusto Frederico Schimidt; do Norte, Ascenso Ferreira e Jorge de Lima. De Paris, datado do Rio e assinado por Blaise Cendrars que um manifesto do grupo Verde havia desancado (...) o modus brbaro do sr. Cedras e outros franceses escovados ou pacatssimos chegou, para o nmero 3 da revista, um poema sob medida, Aux jeunes gens Catacazes :

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Tango vient tanguer Et jazz vient de jaser Quimporte ltymologie Si ce petite klaxon mamuse?

De So Paulo veio, e foi publicado no nmero 4, de dezembro de 1927, um poema a quatro mos, de dois grandes poetas que ainda no estavam rompidos, assinado por Marioswald:

Homenagem aos homens que agem

Tarsila no pinta mais Com verde Paris Pinta com Verde Cataguases Os Andrades No escrevem mais Com terra roxa NO! Escrevem com tinta Verde Cataguases Brecheret No esculpe mais Com plastilhina Modela o Brasil Com barro Verde Cataguases Villa Lobos No compe mais Com dissonncias De estravisnqui Nunca! Ele a mina Verde Cataguases Todos ns Somos rapazes Muito capazes De ir ver de Forde Verde

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Os azes De Cataguases (Marioswald - Oswaldrio dos Andrades)

Mrio e Oswald, os Andrades em questo, no chegaram a embarcar num Forde Verde rumo Zona da Mata mineira, mas o primeiro, pelo menos, se derramou em cartas, como neste fragmento de uma missiva endereada a Rosrio Fusco: Guilhermino, Peixoto, Fusco, gente: um abrao de saudade e inveja de ver os trs juntos no Caf do Fonseca, e eu no. Pacincia. (WERNECK, 1992). Sem mudar de nome, a Verde, em seu quinto nmero, por alguma razo mudou de cor - a capa ficou vermelha. Sentiu-se madura, em todo caso, para anunciar-se como a melhor revista literria do Brasil (WERNECK, 1992, p.73). Mas no foi muito alm do ms que circulou essa verso rubra, janeiro de 1928. Provavelmente estava sendo impressa quando, no dia 10, morreu de tuberculose, um de seus melhores talentos, o poeta Ascnio Lopes. Com apenas 23 anos, vivera algum tempo em Belo Horizonte, onde teve o seu primeiro poema publicado por Emlio Moura e Carlos Drummond de Andrade, no Dirio de Minas. O seu brevssimo tempo de vida, escreveu Drummond, no foi suficiente para que o conhecesse a rua da Bahia, ento centro da vida intelectual de Belo Horizonte. Ascnio Lopes passou por ela como um automvel que desceu com o farol apagado, sem buzinar, e desceu para sempre. (DRUMMOND, 1928, p.4) A singela crnica de Drummond, que prestava uma homenagem ao jovem poeta morto Ascnio Lopes, apareceria na ltima edio da revista Verde em maio de 1929, que era quase toda ela, uma homenagem ao promissor artista que partia, vitimado pela tuberculose:O desaparecimento de Ascnio precipitou o fim de uma aventura j ameaada, a esta altura, pela fatalidade que, dcada aps dcada, imprime na histria das geraes literrias em Minas Gerais: a dispora. Guilhermino Csar se mudara para Belo Horizonte, onde faria carreira na imprensa, no servio pblico e no magistrio (deixou marcas indelveis na formao de jovens aspirantes literatura, como Fernando Sabino, que gravaria seus traos na personagem Toledo, do romance O encontro

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marcado). Francisco Incio Peixoto tambm andava ausente da terra, naquele fecho dos anos 20. E Rosrio Fusco, o verdadeiro motor do grupo, no tardaria em partir. (WERNECK, 1992, p.74)

Em 1932, Rosrio Fusco muda-se para o Rio de Janeiro, onde ir formar-se em Direito em 1937. A partir da inicia-se uma nova etapa na carreira do escritor: o funcionrio federal, o dramaturgo, poeta, jornalista, publicitrio, radialista, crtico literrio, ensasta, mas, sobretudo o romancista, que em 1943 insurge nas letras brasileiras com a publicao de O Agressor.

2.2 Rosrio Fusco romancista

Romance, para mim, gnero danado e, pois, maior, o maior. Romance s gnero pequeno, barco de pequena cabotagem, nos compndios de histria literria dos teoristas nacionais. Ou nos volumes dos narradores brasileiros. Voc (vocs, eu, qualquer um) pode ler a Imitao (sic) e no se santificar. Pode praticar, digamos Aristteles e no se tornar filsofo. Mas se ler o Madame Bovary, por exemplo, ser fatalmente modificado, perdido, irremediavelmente. S o romance exige e transmite sensao. S um artista, um louco varrido, meu Deus do cu, pode escrever um romance arte do diabo, sbio, adivinho, profeta e canalha, pregador e santo, catalisador e cirurgio, mgico e ordenador do caos, masoquista e infeliz. (Rosrio Fusco, em entrevista para o Pasquim, em 1976).

Rosrio Fusco, autor mineiro cuja produo literria ainda no recebeu devido tratamento da crtica especializada brasileira, desperta curiosidade tanto por sua polmica biografia quanto por sua produo artstica. Nasceu em So Geraldo-MG, em 1910 e faleceu em Cataguases-MG, em1977. Pintor de tabuletas, servente de pedreiro, prtico de farmcia e bancrio, bedel, professor de desenho do Ginsio Municipal de Cataguases, participara em 1927, quando contava ainda com 17 anos, do Movimento Verde de CATAGUASES-MG, revista literria que encampava as propostas estticas revolucionrias da Semana de Arte Moderna

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de 1922. Mais tarde, Procurador Geral do Estado, no Rio de Janeiro, daria vazo a uma personalidade cosmopolita e bomia. O anedotrio em torno de sua dionisaca figura, se lhe deu acesso simpatia de alguns amantes do folclore e do biografismo, talvez tenha sido tambm responsvel por sua ferina ironia permanecer resguardada galeria dos escritores malditos da literatura nacional. Outros fatores, porm, segundo relatos que recolhi com escritores e pessoas que conviveram com Rosrio Fusco durante a vida literria, bomia e cotidiana, colaboraram para o seu ostracismo. Dentre eles, a suposta adeso ideolgica do escritor ao fascismo, sobretudo na Era Vargas. Simpatia esta que foi desmentida por alguns de seus amigos e conterrneos, mas que de forma bem evidente ficou registrada nas pginas do livro Poltica e Letras, de 1940, no qual em prosa, mas bem moda da poesia encomistica j praticada no Brasil desde Gregrio de Matos, Fusco demonstra franca simpatia ao tambm polmico estadista Getlio Vargas. Se foi uma leviandade ou irreverncia do enfant terrible de Cataguases, como afirmou o poeta Francisco Cabral, no se sabe. O fato que isso no minimizou o interesse de desenvolver um estudo sobre o escritor, mediante a originalidade que percebi no estilo e na temtica desenvolvida em sua obra. Sua produo literria bem diversificada: alm de sua participao na Revista Verde, na qual era um dos principais editores ao lado de Henrique de Resende e Martins Mendes, publicou as seguintes obras: Fruta do Conde, poesia, 1929; Amiel, ensaio, 1940; Vida literria, crtica, 1940; Poltica e letras, repertrio, 1940; O Agressor, romance, 1943 (traduzido para o italiano e publicado pela Editora Mandadori, em 1969); O Livro de Joo, romance, 1944; Introduo experincia esttica, ensaio, 1949; Anel de Saturno, teatro, 1949; O vivo, teatro, 1949; Carta noiva, romance, 1954; Auto da noiva, farsa, 1961; Dia do Juzo, romance, 1961. No ano de 2001 foram publicados os inditos Vacachuvamor e ASA (associao dos Solitrios Annimos). Promover a insero da obra do mineiro Rosrio Fusco tradio literria brasileira, elevando-o ao cnone literrio, no , nem de longe a proposta dessa dissertao de mestrado. Decerto, h muitos que como ele, foram negligenciados pela periodizao literria. Sendo assim, o dilogo proposto entre sua obra e a de outros

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escritores no se circunscrever apenas produo nacional, embora se tenha percebido, ao longo das pesquisas empreendidas, que a escritura fusquiana estabelece pontos de contato com alguns autores pertinentes da literatura brasileira. Na tradio literria de Minas Gerais, por exemplo, alguns romancistas da dcada de 30, adotaram em suas obras a temtica religiosa, principalmente ligada ao catolicismo, como tbula de valores que regia o universo metafsico de seus personagens. Perguntas

sobre um homem sem Deus, conflitos sobre transgresso e pecado, dvidas sobre condutas morais, j apareciam com intensidade nas obras dos autores da chamada literatura catlica das primeiras dcadas do sculo XX, tanto no Brasil como em outros pases. Todavia, se bem se pode afirmar que muito dessa literatura matria envelhecida em virtude da franca aceitao de filosofias materialistas, dos princpios da psicanlise e, sobretudo por conta de solues estticas j superadas, o impacto moral que deu consistncia a esse tipo de literatura embasado em uma instituio como a Igreja Catlica que ainda subsiste influente, (embora, felizmente, no como outrora) no deve ser tratado como algo irrisrio:O homem catlico, moldado no vigor de um neotomismo que far lastro da teologia mais afirmada pelo catolicismo nos finais do sculo XIX e, sobretudo nas primeiras dcadas do sculo subseqente, no parece ter encontrado respostas para a macia crtica que tanto as filosofias irracionalistas quanto as materialistas impuseram contra a doutrina catlica. O abalo sofrido por esse homem proveio no tanto da dificuldade de achar em sua doutrina argumentos racionais que o fizessem sobreviver enquanto catlico, mas sim, da dificuldade de dar sua f um lugar na vida moderna. Assim se a Igreja conseguiu do ponto de vista doutrinrio reformular os argumentos que justificavam sua doutrina, isso no impediu, no entanto, que a base existencial de seu rebanho se visse perdida diante das provas com que no s a cincia ou a filosofia, mas tambm o cotidiano iriam abalar seu slido edifcio.(OSAKABE, 2004, p.80)

O contedo dramtico da obra de Rosrio Fusco tambm parece dar continuidade e emergir da agonizante busca de respostas para questes existenciais que se desfaleceram e deixaram o homem cristo, catlico, e mais precisamente no caso de alguns de seus personagens do submundo, desamparados. No Dia do Juzo (1961), o vis trgico da obra (que dialoga dialeticamente com a mordaz ironia do autor) conduzido por especulaes ininterruptas de ordem existencial e metafsica que habitam o denso universo psicolgico de seus personagens.

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Mas no fora Rosrio Fusco que inaugurara tal tradio literria no Brasil, iniciada como j mencionado, na dcada de 30 do sculo XX:No caso brasileiro, essa atitude no parece ter sido diferente. Nao inegavelmente catlica, at ento, com formao religiosa fazendo parte do quadro da educao mais aprimorada, sobretudo da elite culta do pas, no poderia ser diferente a literatura produzida e prestigiada no perodo. A repercusso das obras de Octvio de Faria, Cornlio Penna, Lcio Cardoso, grupo central do romance catlico, e das obras de autores identificveis com eles como Jos Geraldo Vieira e Adonias Filho, confirma o quanto no perodo eram vivas as questes testemunhadas pelos seus romances. (Idem, ibidem, p.80-81)

A narrativa de Rosrio Fusco apresenta, como a desses autores trgicos, uma discusso entre pecado, culpa e punio, mas o faz por meio de um hibridismo de gneros, transitando entre o trgico e o cmico, que na instncia do narrador desestabiliza todo e qualquer discurso que se queira impor como salvao existencial de quem quer que seja.

2.3 Rosrio Fusco e o Surrealismo

Poucos foram os crticos literrios que abordaram a obra de Fusco em seus escritos. Antonio Candido, em um ensaio para o livro Brigada Ligeira, cujo ttulo era Surrealismo no Brasil, enxergava em O Agressor, primeiro romance publicado em 1943, uma problematizao existencial anloga empreendida pelo escritor theco Franz Kafka, autor de A Metamorfose e O Processo. O romance O Agressor, de Fusco, publicado em 1943, a primeira manifestao bem realizada no Brasil de narrativa fantstica contempornea. Seu protagonista, David, um sujeito metdico e apagado, cuja existncia no valeria a pena ser acompanhada por literatura alguma. Obedecendo a uma sistemtica rotina imposta a si mesmo no intuito de estabelecer um autocontrole consciente em sua vida, David acaba por ver seu tempo se esvair indo da penso onde mora sozinho para a chapelaria onde trabalha , retornando ao fim do dia novamente para a penso onde reside. Neste percurso, no entanto, coisas estranhas acontecem: cartas e telefonemas inslitos, cenas sensuais numa das janelas do prdio vizinho, agresses sem motivo aparente por parte de desconhecidos; sinais dbios

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que induzem em David a idia fixa de que Franz, seu patro, deseja assassin-lo, etc. Os acontecimentos, todavia, so descritos de tal maneira que nunca se tem certeza - nem David, nem o leitor - se de fato aconteceram, ou se foram s um mal-entendido, mera iluso de ptica. Tudo porque quem conduz a narrativa - um narrador to impessoal e burocrtico quanto David - descreve os fatos como se escrevesse um relatrio: com acuidade analtica e riqueza de detalhes que, em vez de expor a lgica dos eventos, acaba por revelar o grotesco do cotidiano. Esse hbrido de ironia e lucidez aparece na maioria dos textos de Kafka. A abordagem do escritor de Praga est totalmente relacionada com a condio do ser humano moderno. O olhar kafkiano direcionado para coisas como a opresso burocrtica das instituies, a "justia" e a fragilidade do homem comum frente a problemas cotidianos. O paralelo com Kafka , portanto, bastante compreensvel, tendo em vista a aproximao temtica existente entre a obra de Fusco e a do escritor theco. Aproximando o estilo do escritor de Praga ao de Rosrio Fusco, Antonio Candido observa:Se tomarmos o livro de Kafka, O Processo, por exemplo, classificado nos compndios como expressionista, mas que da mesma natureza de O Agressor que, seja dito de passagem muito e muito lhe deve - reconhecemos imediatamente a sua legitimidade e a sua verdade. um livro de um pobre judeu tcheco, filho de uma civilizao milenar que se v presa aos mais cruciantes problemas; cujos valores passam por uma reviso que Kafka, como seus patrcios, sente no sangue, porque ela lhes arruna a vida e desequilibra de todo o meio social em que vivem. Sob o seu livro e, sobretudo sob O Castelo - serpenteia uma metafsica do Inatingvel que a prpria razo de ser do surrealismo, ou expressionismo, que seja, de europeu dilacerado pela crise de valores. (CANDIDO, 2004, p.47)

Antonio Candido reconhecia a importncia do romance de estria do escritor, mas ao classific-lo como Surrealista, fazia restries pertinncia de uma produo literria deste carter no sentido de que, em sua viso, o exerccio literrio empreendido por Rosrio Fusco no correspondia a uma concepo geral do pensamento e da literatura, enquanto manifestao da realidade nacional:O super-realismo uma tendncia irracionalista constante do esprito ocidental desde os fins do sculo XVII, do movimento rosacruzista ao Surrealismo, passando por Swedenborg, Blake, o Espiritismo, a Teosofia, o Simbolismo, as diferentes filosofias antiintelectualistas. Corre paralelo com a crise desse esprito, desintegrado pelo individualismo burgus e, em seguida, pela crise

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do capitalismo. No sei o valor em si deste movimento, nem o que trouxe de permanente para as artes, nas quais repercutiu to fundamente. No sei se a sua contribuio ser rejeitada como deletria por uma futura arte clssica. Sei que, em todos os percalos inerentes, serviu, em literatura, para dar uma amplido nunca sonhada aos meios de expresso e, portanto, para aprofundar muito o conhecimento de ordem literria. Serviu, sobretudo, de meio insubstituvel para exprimir alguns aspectos fundamentais duma poca de instabilidade e confuso dos padres de inteligncia e conduta. (CANDIDO, 2004, p.96)

Cndido considerava que o Surrealismo, semelhana dos outros movimentos super-realistas, ndice de uma crise de evoluo na histria intelectual do Ocidente e que o Brasil participara dessa tendncia na realizao de O Agressor por Rosrio Fusco, no por uma crise de valores vivenciada em nossa sociedade, nem por um processo de amadurecimento literrio, mas por mero contgio: No livro de Rosrio Fusco no encontro esse processo de assimilao, mas sim um mecanismo mais simples de adoo de valores literrios, uma tentativa de transplantar a planta estrangeira para nossa ptria. (CNDIDO, 2004). Para Antonio Candido, a empresa de Rosrio Fusco na obra O Agressor, se por um lado apresentava uma variao na literatura nacional, devido o exerccio de composio literria que o livro assume feito com inteligncia e engenho, por outro lado no representava uma problemtica vital para a inteligncia brasileira: No Brasil o Surrealismo, alm de ginstica mental, s pode ser compreendido como uma contribuio tcnica, nunca como uma concepo geral do pensamento e da literatura, maneira por que cabvel na Europa. (CANDIDO, 2004). Se na opinio do estudioso, o primeiro romance de Rosrio Fusco, ainda se anunciava como uma abstrao intelectual o mesmo no se poder afirmar acerca do romance O Dia do Juzo (1961), obra de maior maturidade do autor. Nele, a tendncia, super-realista, surrealista, ou at mesmo supra-realista, como auto-definiu sua escrita, na j mencionada entrevista ao Pasquim, se realizar com certo apuro de estilo e apresentar personagens passveis de serem encontrados em qualquer subrbio do pas. O Dia do Juzo um romance de uma nao eminentemente catlica, crist. Nele, personagens que foram colonizados e permanecem como parias em uma sociedade cuja desigualdade social reina de forma alarmante, se martirizam em virtude de um cdigo de conduta moral que no corresponde aos seus anseios. Personagens que se 16

tornam pervertidos, amedrontados por monstros erigidos por suas prprias conscincias, que os imobilizam enquanto indivduos. Este romance vem apresentar uma narrativa na qual, j amadurecido, Rosrio Fusco faz uso de um estilo que em nada atende aos leitores que procuram em sua literatura mero entretenimento. Antes, traz baila uma discusso acerca da maneira com a qual se instituiu em nome do cristianismo, todo um cdigo de valores que sustenta os interesses da classe dominante enquanto formadora de preceitos que determinam o que certo e errado dentro da conduta social. Para isso, faz uso de uma linguagem jocosa, repleta de escatologias que se desenvolve em um ritmo violento, brusco, que evidentemente choca o leitor desavisado. Massaud Moiss sobre a obra:O material que o romancista tinha em mos era extremamente rico e polimrfico, como revela prpria obra, talvez mais do que pudesse comportar, enquanto narrativa de fico. Por isso, o romance feito de pequenos dramas que entrelaam, que se embaralham, formando um plipo algumas vezes misterioso e nebuloso. De estrutura intricada, entrecruzada, a narrativa no flui, no evolui ao longo dos acontecimentos ao contrrio, d sempre impresso de estar recomeando, recomeando mesmo, tal a presena de novos ingredientes perturbadores da ao, ou de personagens novas que vo surgindo como num ballet, executam seu passo cheio de sortilgio, encantamento, e desaparecem, para depois surgirem de inopino. Com isso, o romance faz-se por soma e no por multiplicao. Uma espcie de crculo vicioso ou de redemoinho, em que s a figura de Primavera, a herona (se quiser falar em herona num romance sem nenhuma preocupao de fabricar esse tipo de concepo de realidade cultural em flagrante desgaste, ou desprestgio) transita de uma adolescncia marginal e devassa, embora inconsciente e ingnua, para a morte quase sem razo de ser. (MOISES, 1961, p.6)

Por ocasio de seu lanamento, escreveu

Porm, o procedimento estilstico adotado por Rosrio Fusco em O Dia do Juzo, ao apresentar uma narrativa circular ou que expressasse um crculo vicioso, correspondia na verdade a uma atitude consciente do autor e no a uma falha estrutural do romance, como interpretou Massaud Moiss na poca. Isso porque, ao penetrar no ntimo de seus personagens habitantes do submundo, o narrador deparava-se com um universo inconsciente encharcado de valores morais prprios do cristianismo que no eram coniventes queles seres de carne e osso e os fazia realmente cair em uma atitude de estagnao, por negar qualquer principio de individuao que lhes propiciasse um devir. A citada circularidade existente no romance aparece em virtude do desejo do romancista em

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descrever a negao dos instintos como negao de si mesmo, por meio de uma ideologia religiosa que prometia salvao em troca de uma renncia ao prazer e dor:Parece que vale a pena deter um pouco a ateno sobre o modo como o escritor trata os protagonistas: em hiptese nenhuma se trata de criaturas empalhadas, inverossmeis. Ao reverso, tm muita fora e verdade, mas o romancista exerce sobre elas um domnio desptico, no permitindo que faam alguma coisa fora do que suas vidas permitem acreditar que faam. (Idem, ibdem).

Em primeiro lugar, parece o ensasta confundir a instncia do narrador, com o autor. Sim, no desfecho do livro, o narrador tambm se apresenta como personagem que ir missa de stimo dia de Primavera. Mas, veja bem: o narrador que se apresenta e no Rosrio Fusco (!). Neste caso, o romance O Dia do Juzo apresenta aspectos da arte expressionista ou super-realista, medida que percebemos nele uma deformao de uma sociedade que v bem de perto, por meio da explorao dos monlogos interiores dos personagens, ruir toda uma doutrina que se estabeleceu como redentora por mais de dois mil anos, isso se s levarmos em conta a influncia do cristianismo na sociedade Ocidental e abandonarmos a permanncia do pensamento platnico em nossa cultura. Alis, Nietzsche j dissera que o cristianismo nada mais era que platonismo para os pobres. O termo expressionismo, na primeira metade do sculo XX, embora aplicado inicialmente pintura, abrangia fenmeno bem mais amplo e complexo: batizava abertamente a inquietao (agitao) espiritual e a renovao cultural que se encontrava em marcha no s na Alemanha, mas tambm em toda a Europa. E passou, ento, a ser aplicado tambm literatura. Seus ideais no ficaram completamente claros e definidos, mas sua conduta seguiu uma linha lcida e decidida, impulsionada por um ncleo central de aspiraes e metas, que permitiu reunir, nesse movimento autores e personalidades diversas. Os antecedentes do Expressionismo, nas artes plsticas, podem se encontrados em Van Gogh (um dos pintores prediletos de Rosrio Fusco): Vejo expresso e at alma em toda a natureza; na nostalgia da arte primitiva de Gauguin; na escultura negra; e na obra violenta e trgica do noruegus Edvard Munch. Mas foi com o grupo da Ponte (Brcke), formado na Alemanha em 1905, que a pintura expressionista comeou a se impor.

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A destruio expressionista da imagem tradicional foi favorecida pela crise da sociedade e pela desarticulao moral que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Assim, o movimento baseou-se em sua imagem de condio humana e procurou transmitir s telas a situao do homem no mundo, seus vcios e seus horrores. As cores tornaram-se violentas e explosivas, as figuras, distorcidas, quase caricaturais, e a perspectiva foi negligenciada. Os artistas infundiram aos objetos sua prpria personalidade e as emoes derivadas da tradio romntica (na qual sonho e imaginao eram valores essncias). E isso sob uma nova forma do trgico, unido angstia do sculo XX. De fato verificou-se ser recorrente na obra de Rosrio Fusco, uma insistente crtica moralidade de costume. Tal incidncia temtica far com que na estruturao formal de seu texto tome corpo, de maneira cada vez mais elaborada, uma potica na qual o foco seja a constituio psicolgica de seus personagens em conflito com a realidade na qual esto inseridos. Se o monlogo interior prevalece, no h, no entanto, motivos para afirmao de que sua obra seja desprovida de carter sociolgico. Se Kafka, em sua obra, trouxe tona o indivduo arremessado a um estranho territrio no qual a percepo da realidade assemelha-se a um limbo por no se adaptar s normas e s leis que regiam a sociedade de seu tempo, Fusco enfocar este mesmo indivduo que, desfamiliarizado de si, em funo da moralidade de costume que lhe incorporada como pressuposto tico destituiu-se de sua morada, de sua vontade de potncia, de seu prprio ser. O Dia do Juzo, ltimo romance publicado em vida, de 1961 e trata da trajetria de uma jovem personagem, Primavera e de outros habitantes do submundo. O espao abordado pelo escritor, no qual transitam os personagens rodovirias, prostbulos, bares, penses e praas pblicas-, so locais nos quais o discurso dos marginalizados ganha vigncia. Porm ao falarem de si prprios, afastam-se seus personagens de qualquer atitude realista. Eles se deformaram se divorciaram de si e de seu meio, e encontram-se irremediavelmente perdidos em um redemoinho do qual no so capazes de escapar em virtude da moralidade de costume que incorporaram como pressuposto tico.

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Antonio Candido, em um outro texto, intitulado A Nova Narrativa, comenta os rumos que o romance brasileiro tomava aps as conquistas do Modernismo. O texto no menciona Rosrio Fusco, mas faz comentrios de relativa importncia sobre a constituio estrutural e temtica dos romances dos decnios 30, 40, 50, 60 e 70. Especificamente sobre a dcada de 60, momento no qual publicado O Dia do Juzo l-se:Por outras palavras, Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o instrumento verbal (que constitui a linguagem) se justificam, antes de mais nada, pelo fato de produzirem uma realidade prpria, com sua inteligibilidade especfica . No se trata de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou aquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que crie para ns o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que discurso literrio. (CANDIDO, p.206)

As primeiras colocaes crticas sobre as narrativas de Clarice decorreram do seu romance de estria, Perto do corao selvagem (1943), sendo, portanto sincrnicas quelas dedicadas a O agressor, de Rosrio Fusco, tambm lanado em 1943. Ainda que ambas as publicaes meream certa ateno nesta ocasio, o romance de Clarice Lispector e sua obra posterior comeam adquirir uma crescente fortuna crtica, sobretudo a partir da dcada dos 60, enquanto a obra fusquiana permaneceu no obscurecimento. Contudo, se a escrita de Clarice Lispector era a concretizao de todos os pressupostos defendidos pelos modernistas nas dcadas anteriores, principalmente no que dizia respeito liberdade de pesquisa esttica, e no era reconhecida como tal (Antonio Cndido tambm fora o primeiro crtico a pronunciar-se sobre a obra de Clarice e, embora a elogiasse em alguns aspectos, julgou em sua obra ainda haver algumas falhas estruturais); no deixava de ser tambm a obra fusquiana uma continuidade do Projeto Modernista. A incidncia de termos da fala coloquial em sua narrativa, a temtica que investia contra as convenes sociais, e, principalmente as inovaes presentes no corpo de sua narrativa eram aspectos que faziam com que seus romances trouxessem em si uma elaborao originalmente genuna. Como observa Massaud Moiss, por ocasio de seu lanamento, em 1961:

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Dia do Juzo uma leitura para maiores de idade, experincia e inteligncia. isso mesmo, por vrias razes juntas, a comear da linguagem, que no se detm diante do palavro, a palavra justa para transmitir determinada situao, estado de alma. E forte pela densidade dos problemas humanos postos, acima de todo prazer ldico do leitor apressado, normalmente procurando no romance a histria repousante e ligeira, lida sem maior esforo da sensibilidade e da inteligncia, que no faa pensar, em suma. Dia do Juzo est precisamente do lado oposto de qualquer leitura por prazer. Intencionalmente, o romance escreveu uma obra para chocar o leitor, quem sabe para faz-lo despertar de uma modorra, igual morte, ou pior que ela, pois feita dos sentidos satisfeitos no encontra outra razo para viver seno no sexo e no estomgo. forte porque um impacto que os acomodados no querem sentir, por preo algum; incomoda e angustia, e tira o gosto de viver miudamente. (MOISES, 1961, p.06)

O Dia do Juzo um romance denso, ainda, enquanto forma de fico: no faz concesses a nenhuma facilidade de leitura, nem concede um centmetro ao romance tradicional, em que as coisas se punham no devido lugar desde o comeo, numa ordem mentirosa porque no corresponde vida. Ao longo do romance, os ncleos dramticos impem-se por si prprios, naquele andamento cruzado que quer leitores atentos e desejosos de conviver com um problema incmodo e do qual no h como, enquanto seres humanos, nos afastarmos, sob a pena de se morrer em vida.Rosrio Fusco, atravs de um retrato do delrio dos que se arrastam a viver eroticamente, como se fosse o fim dos tempos procura analisar as relaes do Homem com a Morte, Deus, o Destino, etc. Dir-seia um grito de revolta, de imprecao, ou anseio de crena e salvao, que afinal se reduz a dialogar com as alturas espera de uma palavra menos perecvel, ou de uma verdade menos fugaz. O gosto ertico, que lhes tudo, nada, e s lhes deixa, no rescaldo, um sabor amargo de pequenez e derrota. (Idem, ibidem)

Na obra Dia do Juzo, nos deparamos com ncleos dramticos atordoantes de um romancista em plena posse de seus recursos: a tenso dramtica no se dissolve em um momento sequer. No decorrer da narrativa mantm-se narrador e leitor, o flego suspenso durante todo o tempo. Em circunstncia alguma a monotonia de uma rotina previsvel prevalece. O clima denso, incessantemente agitado, at o eplogo induz o leitor a pensar que algo lhe ser revelado, sobre um mistrio insolvel que o homem e sua estultcia a respeito de sua capacidade de senhorear-se de seu Destino, quando a cartilha que rege suas

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aes atende aos interesses de uma instituio religiosa, que a muito j deixou de ser o ideal para uma realidade que se quer vida: o cristianismo. E o irnico narrador fusquiano no pretende poupar nenhum de seus personagens que se dispusseram a aceitar esse ngodo em troca da salvao no dia do Juzo Final.

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Captulo III

O NARRADOR IRNICO EM O DIA DO JUZO, DE ROSRIO FUSCO

Se o veneno, a paixo, o estupro, a punhalada, No bordaram ainda com desenhos finos a trama v de nossos mseros destinos, que nossa alma arriscou pouco, ou quase nada. (Charles Baudelaire, in: As flores do mal).

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3.1 Aristfanes

A tradio satrica de colocar em xeque os valores morais e costumes de uma sociedade remonta ao teatro grego de Aristfanes (SOUZA, 2000). A comdia foi classificada na Arte Potica de Aristteles como um gnero inferior, por retratar aes de caracteres pouco nobres, que no mereciam a apreciao da sociedade. Entretanto, neste contexto teatral, em que eram interpretadas no as aes louvveis dos heris trgicos, mas sim atitudes nas quais o ser humano revelava uma feio volvel e cambiante, que a ironia subsidiava por meio da parbase, a multiplicidade de interpretaes dos atos humanos, bem como a validade dos pressupostos discursivos que embasam a moralidade e os costumes de uma sociedade. A parbase, na comdia de Aristfanes, desenvolvia, portanto, uma funo crucial:

A parbase ocorre quando o coro momentaneamente se desliga do contexto das aes e, sozinho em cena, transmite ao pblico o apelo do dramaturgo. Disponvel, na estrutura da comdia tica, para mltiplas reflexes e polmicas que so inseridas no prprio texto das peas, a parbase o contraponto crtico das questes relativas representao teatral. (SOUZA, 2000, p.29)

difcil discernir contra o qu, propriamente, investe Aristfanes com sua ferina ironia. No h como identificar em suas comdias um sistema filosfico, moral, poltico, religioso ou mesmo literrio. O ataque s instituies no procura, no entanto, abolir com o sistema existente, mas sim com os abusos que certos homens introduziram nesse sistema. O poeta, quando censura a democracia, no bem a democracia a que ele visa, seno ao regime ultrademocrtico de Atenas, com todos os seus vcios que lhe so inerentes. Aristfanes possua um poder inventivo extraordinrio, a partir do qual soube desenvolver com percia de mestre o farto material acumulado por to poderosa imaginao. A lngua empregada por Aristfanes , em essncia, o dialeto tico com alguns traos do dialeto jnico, ou seja, um meio termo entre a lngua escrita e a falada. Maurice Croiset 1 assim definiu o estilo aristofnico:Lngua da gora e do Pireu, ou seja, lngua da elite e do cais do porto. O estilo percorre toda a variada gama do cmico: do mais grosseiro1

BRANDO, Junito. O Teatro Grego: Eurpedes e Aristfanes. 1986, p.77.

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e irreverente ao mais deliciosamente lrico e delicado. Os decalques e emprstimos constantes tragdia, aos falares locais, gria, ao calo, e os trocadilhos grotescos, as pardias, longe de afetar, contriburam poderosamente para dar maior movimento, ritmo e beleza sua poesia. (BRANDO, 1986, p.77) A linguagem de Aristfanes rica em jogos de palavras, incongruncias jocosas e aluses diretas. Serve-se sem temor da obscenidade e da escatologia. Todos os recursos cmicos imaginveis foram usados com grande maestria pelo poeta, desde a stira mais grotesca at a malcia mais sutil. Aristfanes foi o responsvel pela criao de uma potica heterognea,

que levava aos palcos, mltiplas variantes do discurso que circulava nas mais variadas classes sociais de Atenas.Aristfanes recorria tambm com freqncia licenciosidade e obscenidade. importante observar, no entanto, que os antigos encaravam com naturalidade esse tipo de gracejo. Alm disso, as festas dionisacas que originaram a comdia derivaram de antigos rituais de fertilidade em que o elemento sexual era componente relevante.

No entanto, uma das grandes inovaes do teatro aristofnico, se far no uso da parbase:Na parbase, o coro, despindo as vestimentas cnicas e arrancando as mscaras, recobra sua verdadeira personalidade e, virado para os espectadores, interpela-os em seu prprio nome ou em nome do poeta. Em si, a parbase divide-se em duas partes: na primeira, que a parbase propriamente dita, o poeta fala diretamente com o pblico: lamenta-se e pede que no o considere inferior a seus rivais, dizendo-se o mais afvel e esclarecido dos conselheiros; na segunda, composta de uma estrofe e de uma antstrofe, que se alternam com duas partes faladas, o coro dirige-se aos espectadores em nome do poeta, no mais como autor, mas na qualidade de cidado: crtica literria vai substituir-se agora a stira poltica. (BRANDO, 1986, p.79 80)

A definio acima, do professor Junito Brando, aponta a parbase, como mais um elemento da comdia tica. Proporemos, no entanto, com toda a reverncia que prestamos ao notvel trabalho do professor em sua obra o Teatro Grego, Origem Evoluo, uma detida anlise de tal elemento na dramaturgia aristofnica, apontando que tal procedimento inaugura, na tradio narrativa, a insero da ironia como princpio de articulao da obra de arte.

3.2 Parbase e Ironia

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O enredo do romance O Dia do Juzo, de Rosrio Fusco, trata da trajetria de uma jovem personagem, Primavera, que ir amargar no decorrer de seu trgico percurso, inslitas experincias com o real. Jandorno, seu amante e antagonista, bem como as demais personagens que compem o romance, transitam no universo do submundo, no qual bbados, prostitutas, cafetinas e rufies dramatizam os vcios e as paixes que uma sociedade falsamente austera condena como pecado. Tais personagens encarnam a mscara cmica ao longo da narrativa devido posio marginalizada que ocupam conjugada maneira com a qual lidam com as vicissitudes que os afetam. A pea chave do romance, entretanto, reside nas digresses narrativas, nas quais o narrador, por meio de uma postura irnica, mostra a inconsistncia e a incoerncia prprias da condio humana, viabilizando uma reflexo sobre o que a verdade/verdadeiro dentro das prerrogativas de construo do real. Em O Dia do Juzo, as aes dos personagens servem de ensejo para reflexo do narrador sobre o que real e ilusrio; natural e fabricado, permitindo ao romance, por meio de sua potica, alicerar uma reflexo acerca dos valores cristalizados pelo senso comum. A percepo irnica da realidade corresponde, portanto, ao carter paradoxal da prpria existncia. Longe de sintetizar as contradies, o veio irnico na tradio potica sempre figurou como artifcio de relativizao das justificativas das classes dominantes que impunham uma viso unilateral do mundo. No caso do romance O Dia do Juzo, de Rosrio Fusco, tratar-se- do paradigma irnico a partir da elaborao de Friedrich Schlegel, na qual a funo da ironia potica ser a de uma parbase permanente (SOUZA 2000) Para isso, retornaremos funo essencial da parbase utilizada pelo grande comedigrafo grego Aristfanes, na estrutura da comdia tica:

O drama cmico de Aristfanes resulta sempre de litgio interpessoal ou da disputa entre um personagem e um determinado grupo social ou poltico. Este ludismo polmico remonta tradio oral da farsa popular. Na cultura grega, manifesta-se no intercmbio de motejos pronunciados nas procisses falofricas. No combate verbal da insolncia recproca, o agredido e o agressor mutuamente se replicam nos golpes e contragolpes das invectivas. A este responsrio bilateral ou duelo verbal, que se converte no prncipio bsico da comicidade aristofnica, d-se o nome tcnico de forma epirremtica (SOUZA, 2000, p.28).

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Tomando-se por base pelo menos oito das onze comdias de Aristfanes, pode-se concluir que a parbase divide a comdia em duas partes. 2 A primeira a que decorre da tcnica epirremtica do litgio, e a segunda, se define como parada cmica, em que so expostas, numa justaposio descontnua de episdios, as conseqncias cmicas da vitria de um dos antagonistas. A sucesso catica de episdios cmicos culmina geralmente numa cena de festana, que constitui o xodo em que se comemora o vencedor. As formas epirremticas e episdica so precedidas por um prlogo, cuja funo consiste em suscitar o interesse do pblico, no s ao apresentar os antagonistas, realando-lhes o nimo combativo, mas tambm ao determinar o objeto e as condies da disputa. O prlogo se desdobra num prodo, em que entra o coro, que funciona como estimulador dos embates cmicos dos personagens:Nas peas de Aristfanes, o coro, em determinado momento, avana em direo aos espectadores, e o Corifeu, personificando o poeta cmico, interpela diretamente o pblico, discursando em tom solene e, mais frequentemente, motejando no ritmado compasso dos anapestos. Convertido em autorizado porta voz da argcia mimtica benevolente do comedigrafo, o coro realiza a desejada interao srio-jocosa com os espectadores aos lhes recriminar os atos absurdos e ao apontar as desastrosas conseqncias dos desatinos humanos. Ao se verem refletidos comicamente na imagem caricata da representao teatral, todos desatam a rir dos seus prprios defeitos. A fim de desdobrar a risada e cativar a simpatia do pblico, Aristfanes submete a si mesmo ao processo crtico de irriso. A funo essencial da parbase consiste, portanto, em operar o efeito dramtico da catarse cmica. (SOUZA, 2000, p.30)

A dramaturgia cmica no se atm em representar somente aes, mas tambm reflexes a respeito das aes apresentadas. A experincia imediata permeada pelo envolvimento emocional da personagem contraposta ao distanciamento da conscincia criticamente elaborada. A estrutura da comdia aristofnica , pois, composta a partir da dualidade ambivalente entre real/ilusrio. Tal procedimento s possvel por meio da parbase, que atravs do coro, interpe aos eventos representados uma reflexo acerca dos mesmos. 3 Na fico dramtica de Aristfanes, o teatro, j de si, metateatro. A obra de arte que no cessa de propor questes acerca dos elementos que a constituem, torna-se assim fonte fecunda de conhecimento. Isso porque abarca variadas possibilidades de interpretao da realidade. Mostra que, cada uma dessas interpretaes,2 3

Souza. Ronaldes. Introduo Potica da Ironia. 2000, p. 28. F. Schlegel. KA, XI, 88.

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quanto mais vidas em se instaurarem como prximas de um suposto ideal, mais acabam por esvaziarem-se de sentido, medida que o coro intervm com a parbase, demonstrando que idealizar ficcionalmente a realidade significa enganar-se:

A obra literria considerada superior se apresentar um movimento parabtico contnuo. Postula-se que a literatura, alm de representar acontecimentos, tem de ser uma forma de conhecimento. O primado artstico da parbase intensifica a fora cognitiva do discurso literrio. Ironia, eironeia, quer dizer questionamento. A ironia uma parbase permanente, principalmente porque subordina o acontecimento representado ao processo crtico de reflexo. (SOUZA, 2000, p.30)

A recusa sistemtica de qualquer iluso dramtica preconizada pela parbase do coro de Aristfanes, inaugura a tradio irnica da literatura ocidental. Ao constante envolvimento das emoes afetivas e volitivas na experincia imediatamente vivida de todo e qualquer ser humano, necessrio se torna contrapor continuamente o distanciamento racional. Ao conceber a ironia como parbase permanente, torna-se ela a expresso mais conivente interao dialtica da experincia emocional e da conscincia racional. A ironia, neste contexto, passa a vigorar na estrutura do texto como um tropo vital que permeia toda narrativa, e no simplesmente como um tropo retrico, capaz de ser localizada em determinado fragmento. A concepo da ironia como parbase permanente se fundamenta, no s na estrutura da antiga e nova comdia, como tambm numa determinada forma de fico narrativa, que a fico regida pelo princpio irnico de composio. Nas narrativas irnicas, a funo crtica da parbase assumida pelo narrador autoconsciente, que no se limita a narrar os eventos, mas se deleita em interromper o enunciado propriamente narrativo com o deliberado propsito de assinalar criticamente que o narrado no dado na realidade, mas construdo pela instncia da enunciao. A interveno do narrador adverte ao leitor que no deve se confundir fato com iluso. Na axiologia de F. Schlegel, a narrativa se instaura como obra de arte superior quanto mais refletir sobre o ato de narrar. A fico narrativa se apresenta como metafico. Nenhuma narrao se legitima se no inserir uma metalinguagem crtica no processo narrativo:A ironia , pois, uma forma de conhecimento, em que a contradio consentida. Na dialtica potica da ironia, que nada tem haver com a dialtica filosfica do conceito especulativo, toda oposio antagnica se converte em oposio complementar. Uma posio s existe, porque

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coexiste com outra, que lhe diametralmente oposta. No se admite a separao lgica nem a sntese dos contrrios. Na dialtica genuinamente irnica a tese e anttese constituem uma unidade irredutivelmente dual. (SOUZA, 2000, p.32)

A ironia como possibilidade de apreenso e conhecimento acerca do real se instaura como percuciente fonte investigativa quando se considera a tradio onto-teo-lgica da metafsica. A proposta platnica de bipartio dos contrrios que sugere a separao de sensvel finito e um infinito inteligvel instaurou todo um eixo de pensamento na cultura Ocidental que promove em sua articulao a constante excluso dos opostos complementares: corpo/alma, matria/esprito, realidade/idealidade, aparncia/idia. O conceito de ironia que a classifica como uma figura de retrica em que se diz o contrrio do que se diz, no contempla a potencialidade doadora de sentido, no plano discursivo, que uso do procedimento irnico pode possibilitar ao texto. Entretanto, no pensamento criticamente irnico de F. Schlegel, o finito sensvel e o infinito inteligvel so dois plos de uma mesma unidade polarizada. A importncia dessa perspectiva acerca da ironia na literatura foi muito acentuada na Alemanha em fins do sculo XVIII, a partir da efervescente especulao filosfica e esttica que se fez naquele pas. A ironia romntica procura ressaltar a coexistncia dos contrrios, a oscilao entre objetividade e subjetividade, a construo da obra por uma conscincia em ao que se confunde com os sentimentos e aspectos volitivos das personagens. Trata-se da expresso de uma arte que quer ser reconhecida como tal e por isso no se reduz pretenso de conter em si um discurso autorizado como absoluto. Atravs da constante parbase, a ironia romntica desfaz a cada momento a iluso da representao da realidade para mostrar o artista em ao, revelando a autonomia de uma arte que possui o dinamismo de refletir at mesmo sobre os elementos que a constituem. Tese e anttese constituem a tenso polar da aparncia finita e da idia infinita. (SOUZA, 2000) Neste sentido, a parbase permanente uma exposio da contradio inerente do ser humano no mundo. Nesta perspectiva irnica da realidade, o mundo se revela como uma configurao permanentemente instvel, no qual qualquer tentativa de apreenso do real que se queira integral, por meio exclusivamente da conscincia racionalizada, torna-se improvvel. H sempre uma instncia que permanece velada, propiciando uma infinitude de outras organizaes possveis. Nenhum ente, sendo inteiro, se percebe de forma total. 29

Para Schlegel e para a ironia romntica, a verdadeira arte estar desvinculada de valores morais e representa o reconhecimento do artista de que impossvel a realizao de qualquer desejo que se quer absoluto, dadas as suas limitaes. Na sua teoria esttica, a ironia uma resposta impossibilidade de realizao de quaisquer coisas que se funde num princpio de idealidade que exclui o real. A perspectiva esttica schlegeliana foi duramente criticada por Hegel, cujo idealismo valoriza a representao como tarefa original da expresso artstica, vista como um degrau para se chegar ao absoluto. que, para Hegel, a arte tem que ser moral, sendo a linguagem mediadora entre as representaes interiores e exteriores. Para Schlegel e para ironia romntica, ao contrrio, a literatura no capaz de realizar o absoluto, pois o abismo entre este e a mente que busca realiz-lo completo e definitivo: embora perceptvel, o absoluto no passvel de ser reduzido a um conceito a uma explicao, que seja.Articulando a interao dialtica de dois eus em um s, a sntese antittica revela a situao radicalmente irnica do homem que, ao fim e ao cabo do naufrgio das iluses metafsicas, compelido a se reconhecer como portador de uma contradio inscrita em seu prprio ser e em todas as suas criaes. Na obra de arte regida pelo principio da ironia, o que fundamentalmente importa a capacidade de um eu se desdobrar em eu-sujeito e eu-objeto, de tal modo, e com tamanha intensidade dramtica, que o eu-sujeito assiste criticamente como espectador s experincias passionais de seu outro eu, que o eu-objeto. O eu verdadeiramente irnico o que ri de si mesmo, e no simplesmente dos outros eus. Neste sentido que a ironia se denomina romntica. Ironia romntica a expresso paradoxal da sntese antittica genuinamente irnica. (SOUZA, 2000, p.35)

Schlegel, em um fragmento declara: A ironia a clara conscincia de uma eterna mobilidade do caos infinitamente pleno2

A mobilidade constante do mundo, que no se

contenta em ser isso ou aquilo, corresponde incessante agilidade do discurso regido pelo principio irnico de composio. A ironia proposta por Schlegel representa, assim, um fator de autonomia em arte: arte como arte. A obra ter assim uma realidade prpria e no um fim em si; ser um fenmeno autnomo;Andr Bourgeois (1974) afirma que na conscincia da coexistncia dos contrrios e na impossibilidade de separar a plenitude do2

SCHLEGEL (1968) p. 155.

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caos esto alguns dos pressupostos da ironia romntica, os quais impedem ao mesmo tempo a pura subjetividade e a pura objetividade, criando desse modo distncia entre o autor e a obra e apresentando uma reflexo potica multiplicada como uma srie infinita de espelhos. Afirmao da iluso das coisas e, antes de tudo, da iluso da prpria arte, a ironia romntica busca a reproduo infinita de imagens a se refletirem de espelho em espelho. Por isso seus motivos recorrentes so os da mascarada, do espetacular e do duplo. Sua funo mergulhar o leitor num equvoco benfeitor que o faz perceber a diferena entre o eu que v, o eu que atua e a transparente opacidade da mscara que, se for perfeita demais, no se distinguir da falsidade ( preciso ter conscincia da mscara). (DUARTE, 2006, p.4445)

Partindo da perspectiva de ironia elaborada pelo romantismo alemo, tentaremos traar o percurso do principio irnico de composio na obra de arte ocidental, falando um pouco de trs autores precursores em tal empreendimento: Aristfanes, Luciano de Samosta e Erasmo de Rotterd. Tal retorno gnese da potica da ironia, visa promover um entendimento da tradio em que se filia, propriamente, a causticante narrativa de Rosrio Fusco. 3.3 Luciano de Samsata

Scrates: Como vo as coisas em Atenas? Menipo: Muitos jovens fazem de conta que esto filosofando; e, se algum olhasse para os seus semblantes e para seu modo de andar, diria que so excelsos filsofos! Scrates: , eu vi muitos assim! Menipo: Contudo, tu viste, creio eu, como chegaram junto a ti Aristipo, e o prprio Plato: um todo perfumado, e outro, depois de aprender a cortejar os tiranos da Siclia! Menipo: E o que pensam a meu respeito? Menipo: Tu s um homem feliz, Scrates! Pelo menos no que diz respeito a isso. Com efeito, todos acham que tu foste um homem admirvel e sabias tudo! E isso, acho que preciso que eu te diga, sem saberes nada! Scrates: Mas eu mesmo lhes dizia isso! Mas eles achavam que a coisa era ironia! (Luciano de Samosta, Dilogo dos Mortos).

Em Dilogos dos Mortos, de Luciano de Samosta, a mscara trgica dos dilogos platnicos retirada, dando lugar mscara bem-humorada e irreverente da comdia. O palco do dilogo acima o Hades. Menipo, que l chegara a pouco, encontra-se com ningum menos que o grande filsofo grego Scrates. Menipo questiona aquele a

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partir do qual se inspirou Plato para fundar toda sua filosofia. Scrates filosofo grego (470-399 a.C) no deixou nada escrito, mas o principal personagem dos dilogos de Plato, que o celebrizam. A transmigrao da tradio satrica do teatro, amplamente inaugurada por Aristfanes, para a narrativa do romance se d com Luciano, autor grego da Mesopotmia, que viveu em uma poca em que historiadores e filsofos estavam muito comprometidos em alcanar um ideal de verdade em seus escritos. Ele foi o primeiro escritor a tratar do texto literrio como mera fico. Segundo Jacinto Brando (BRANDO, 2001) Luciano o autor grego mais importante do fim da Antiguidade, tendo vivido no sculo II d.C. Escreveu em torno de 80 obras, a maioria de carter satrico. Segundo suas prprias palavras, em seus escritos, ele pretende servir ao leitor riso sob filosofia, ou seja, a stira est a servio da atitude questionadora, na linha do Antigo cinismo no sentido filosficotico de desprezo s convenes da opinio pblica e da moral:Definitivamente, no se deve pensar a relao de Luciano com a filosofia e os filsofos como termo de adeso, mas, antes, como esforo de elaborao do retrato do filsofo ideal, que serve de contraponto ao skhmata philosphon. Deste modo, bem provvel que, como afirma Schwartz, 1 Luciano no professe seno um cinismo literrio. Mas, longe de desclassificar sua opo pelo modelo cnico, a observao toca no ponto chave da questo, pois est em causa a construo de uma determinada potica, no de qualquer forma de filosofia. (BRANDO, 2001, p.61)

A inteno de Luciano no , portanto, a de se elaborar um retrato daquilo que seria um filsofo ideal. O modelo cnico agrada Luciano em virtude da coerncia entre prtica e doutrina, ou mais que isso, a prevalncia da prtica sobre a doutrina. De fato, uma caracterstica relevante do cinismo a ausncia de sistema doutrinrio, o que, na prpria Antiguidade, fazia muitos duvidarem se poderia ser considerado como verdadeira escola filosfica aquilo que se apresentava, antes de tudo, como uma atitude diante da sociedade e da vida:

O cinismo antes de tudo uma pragmtica que informa certa viso de mundo dela decorrente. Ora, se a falsidade de outros sistemas, conforme Luciano decorre do descompasso entre a doutrina e prtica, na via cnica que se oferece espao para existncia do verdadeiro filsofo,1

SCHUWARTZ. Biographie de Lucien de Samosate, p.148.

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enquanto a so os Digenes e Menipos de Luciano, em que brilha um fundamento to coerente das aes que arkh que fundamenta a filosofia a prpria prtica. Essa pragmtica que define quem prevalece mesmo na outra vida. (BRANDO, 2001, p.61)

A preferncia com relao Escola Cnica demonstrada nos embates lucinicos se d em virtude da capacidade de denncia da realidade por meio da filosofia e a franqueza ao falar sobre os problemas sociais, que s so possveis aos cnicos, pois a marginalidade por opo desses filsofos faz com que sejam livres para discorrer sobre qualquer tema, sem se comprometerem no mbito das aparncias. A potica lucinica, construda na forma dos dilogos platnicos, desconstri, por meio da ironia, quaisquer possibilidade de cristalizao de uma verdade ou de um dogma que queira se impor embasada em um saber ou poder de qualquer natureza. Seus dilogos pretendem mostrar a instabilidade das verdades institudas pelos sistemas filosficos, bem como tornar risveis as pretenses daqueles que almejam obter legitimidade e poder por meio do discurso. Apenas atravs do discurso franco, desprovido de interesses, possvel na concepo de Luciano a realizao desse ideal filosfico. Se a filosofia uma prtica de vida, essa prtica deve efetivar-se no plano social. Nesse plano, o que o filsofo verdadeiro faz exercitar a parrsia (franqueza no falar), mas s lhe ser possvel faz-lo se livre, o que obtm pelo cultivo da autarquia. Esta ltima, a autarquia, que d ao filsofo o distanciamento e a iseno necessrios para falar com liberdade e, assim, provar-se philathes (amigo da verdade). No entanto, a escrita lucinica no se prope a fundar um novo sistema filosfico. Tampouco, pretende ratificar na ntegra as proposies dos filsofos cnicos. Sua narrativa erigida sob o signo do riso, na comdia. A potica lucinica abarca o pensar subsidiado pelo riso, que por meio da ironia presente em seus dilogos, aponta os paradoxos que entretecem a existncia humana e o carter efmero de todas as coisas. Digenes e Menipo so denunciadores de toda a tola vaidade ateniense, que se estende a uma ampla crtica vaidade humana. Digenes, banido da histria da filosofia, resgatado, no sculo II d.C por Luciano, autor de uma obra que seria, sculos mais tarde, ela mesma banida da histria: Os Dilogos dos Mortos. Na obra de Luciano, Digenes , ao lado de Menipo, o mais cnico dos cnicos, o personagem central. Trata-se de trinta dilogos que renem as figuras mais famosas da

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hlade antiga, sob o signo da stira, do humor e de aguda ironia. O desmascaramento de toda uma cultura por meio do elogio dela. Menipo um filsofo cnico que, a convite de Digenes, deixa a terra e vai ao Hades, o lugar dos mortos, rirem-se deles, question-los, expor suas fragilidades, hericas, filosficas, polticas ou estticas, dependendo sempre da natureza do satirizado. Menipo no poupa ningum. E os dilogos de Luciano acabaram por constiturem um gnero: o da stira menipia. Os Dilogos dos Mortos so uma resposta aos modelos dos dilogos platnicos, sua contrapartida em forma de stira, cinismo, virulncia e sarcasmo. Ao invs da crena platnica na razo, na racionalidade como forma de alcanar a Verdade e, por conseqncia, o equilbrio e a harmonia interior, Menipo cuida de demonstrar os caracteres mais grotescos da alma humana, demolindo os pilares do saber filosfico clssico ao revelar que cada um constri sua prpria verdade de acordo com as necessidades e as exigncias da hora, e que essa verdade bem pode ser uma falcia, um engodo que depende sempre de poder de convencimento de quem a professa e do desejo de querer ser enganado de quem a ouve. Sendo assim, se pensarmos nos dilogos platnicos como o modelo por excelncia do exerccio filosfico clssico, cujo ideal era a construo tica, moral e esttica do indivduo atravs de sua exposio sistemtica ao logos, razo imediata, dimenso profunda do pensamento, os Dilogos dos Mortos, de Luciano de Samsata, apresentam-se como um anti-dilogo, um quase tratado contra a filosofia. O ideal filosfico platnico de edificao do complexo moral do indivduo comea a ruir com a stira menipia, que pe em questo a validade dos princpios filosficos e a prpria filosofia como era praticada at ento. Scrates, Plato, Aristteles, juntamente com os sofistas e os retricos, criticados exausto pelos primeiros, para conceber suas obras, validar seu pensamento e redefinir os rumos da filosofia em seu tempo, precisavam acreditar na capacidade e na ao transformadora do indivduo, do logos, da racionalidade. E justamente o indivduo, em suas contradies mais flagrantes, em sua vilania, em seus vcios e veleidades, escondidas sob o manto difano de uma aparente virtude, que ser o alvo da stira impiedosa de Luciano. A condio humana, para Menipo, muito mais assustadoramente risvel do que digna de pena, compaixo ou cuidados. preciso desvelar nosso mundo de aparncias e

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simulaes, o pattico de nossa mais pobre e ntima condio. Por isso Menipo, com exceo de Digenes, seu mestre, no poupa ningum: as belezas terrenas, como Jacinto, Narciso ou Helena; os grandes heris, como Ulisses, Aquiles, jax; reis como Midas, Heracles, Tntalo; filsofos e sbios, todos atravessam pateticamente o Aqueronte devassador de sua stira, de seu riso, de sua poderosa e virulenta picardia. Todos expostos em sua nudez mais atroz. Contra toda a aparncia, o bisturi devastador da ironia. Dando continuidade tradio inaugurada por Aristfanes, que por meio de suas comdias satirizou as crenas, os costumes e as autoridades de sua poca, Luciano de Samosta transpe para a narrativa uma atitude potica radicalmente irnica, que no poupa nada nem ningum:Trata-se, como se v, de uma opo potica complexa, no apenas do caminho fcil que novo. O discurso lucinico no pretende o estatuto do discurso historiogrfico, filosfico ou retrico, gneros que se assentam em procedimentos mimticos unos. A propriedade do discurso lucinico reside justamente numa certa mmesis da diferena, obtida pela recusa da indiferena sem perda da harmonia, ou seja, pretende ele que seja possvel fugir dos motivos tradicionalmente estabelecidos pelo prprio os quais regulam as expectativas do pblico sem perder a propriedade que garante o valor da produo potica. (BRANDAO, 2001, p.88)

A narrativa de Luciano de Samosta, encalando os passos na tradio comedigrafo Aristfanes, desenrola-se em constante mobilidade. Porm, enquanto Aristfanes critica somente os abusos existentes nas instituies, a potica lucinica, imbuda pelo carter da filosofia cnica, desacredita radicalmente de qualquer entidade social, educacional, filosfica ou esttica regida por leis e princpios elaborados por seres humanos. Entretanto a afinidade entre os dois autores, vige justamente no que constitui a potica da produo artstica de ambos: o principio irnico de composio de suas obras. Desconstruindo todo o gnero de caracteres, articulando uma alternncia sistemtica de perspectivas e, principalmente, recusando a possibilidade de se imobilizar na representao doutrinria de um s papel, na adoo monolgica de um ponto de vista pretensamente normativo, Luciano o mediador entre a comdia aristofnica e a narrativa irnica:A originalidade da forma dialgica de Luciano consiste em transformar a seriedade do dilogo platnico na agilidade srio-jocosa da comdia aristofnica. Reduzida ironicamente pela arte lucinica, a filosofia aprende a sorrir. As fices de Luciano no se desenvolvem

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paulatinamente e progressivamente. Pelo contrrio, so pontilhadas de intercalaes metaficcionalmente cmicas. O que mais surpreende na arte lucinica a fuso dialeticamente irnica do rigor meticuloso com que analisa qualquer fenmeno com o riso demolidor, que dissolve toda possibilidade de anlise verdadeira. Na histria verdadeira de suas fices, no se conhece a verdade pura e simples, mas somente a irnica verso cmico-fantstica da histria. (SOUZA, 2000, p. 37)

O carter marginal dos personagens lucinicos e a constante crtica denunciadora presente em suas obras reaparecero em seu tradutor, Erasmo de Rotterd, que com seu Elogio da Loucura, dar continuidade potica irnica, percorrendo uma tradio satrica que chegar aos trpicos, com Machado de Assis, Lima Barreto, at a segunda metade do sculo XX, no romance O Dia do Juzo, de Rosrio Fusco.

3.4 OELOGIO DA LOUCURA

Erasmo de Rotterd, no Elogio da Loucura, adota a mscara do bufo e se filia tradio da comdia aristofnica e do dilogo lucinico, principalmente ao conceber a dialtica da ironia como principio da reversibilidade da disputa dos contrrios em luta. (SOUZA, 2000). Mesclando o srio e o jocoso, a narrativa de Erasmo demonstra que a oposio antagnica Razo X Loucura uma iluso racional. O antagonismo se revela ilusrio, sobretudo quando se verifica que a razo e a loucura so lados opostos da mesma moeda. Ironicamente, Erasmo no assume a paternidade da apologia. Desde o incio, a prpria loucura que recita o seu prprio elogio, sempre motejando, num movimento parbatico permanente, da insanidade geral dos homens e das suas instituies:

Efetivamente, que outra coisa seria mais conveniente para a Loucura do que ser mensageira do prprio mrito e fazer retumbar por toda parte os seus prprios louvores? Quem poder fazer a minha pintura mais fielmente do que eu mesma? Existir talvez quem reconhea melhor em mim aquilo que eu mesma no reconheo? Quanto ao mais, este meu procedimento parece-me muito mais modesto do que aquele que costuma usar a maior parte dos grandes e dos sbios do mundo. Pelo fato de que estes, calcando aos ps o pudor, subornam qualquer panegirista adulador, ou mesmo um poetao tagarela, que, a poder de ouro, declama os seus elogios, que no passam, finalmente, de uma rede de balas. (ROTTERDAM, s.d. p.13)

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Ao assumir o papel do coro, a Loucura torna-se um personagem coletivo, que se apresenta como porta voz da comdia geral da humanidade. O motejo culmina numa parada cmica, em que so expostas as conseqncias ridculas dos atos humanos consensualmente considerados como puramente racionais ou motivados por razes filosficas, teolgicas, polticas. A razo argumentada pela Loucura demonstra que em todo tipo de caractere, inscreve-se um certo vis de sandice.

Protagonista da enunciao, a loucura advoga em causa prpria, vangloriando-se de seu poder de mando e comando em todos os negcios humanos. A ironia suprema do elogio erasmiano decorre do reconhecimento de que a loucura tem razo ao apontar a desrazo do homem, de que resulta o desconcerto do mundo. Do alto de sua sabedoria, comportando-se com a dignidade de uma rainha, a loucura prega aos loucos, aos seus sditos bem amados, que so todos os mortais reunidos a seus ps. Predicando a catarse cmica, a loucura ensina que todo homem deve rir de si mesmo, colaborando jocosamente para o riso da humanidade. Personificando a razo argumentada pela loucura, segundo a qual a sandice subage no comportamento do sujeito humano dotado de razo, a comdia erasmiana atinge a culminncia de uma bufoneria transcendental. (SOUZA, 2000, p.38)

Adotando a mscara do bufo, a Loucura em Erasmo, personifica o homem e suas fraquezas, seus sonhos e suas iluses. No Elogio da Loucura, a demncia no mais se apresenta como uma manifestao csmica obscura, mas como sutil mediadora do relacionamento que o homem mantm consigo mesmo e com os outros. No Dicionrio de Smbolos Literrios de Chevalier, o Bufo:... uma pardia muito significativa da pessoa, do ego, que revela a dualidade de todo o ser e da face do bufo que existe em cada um. Na corte dos reis, nos cortejos triunfais, nas peas cmicas, o personagem do bufo est sempre presente. Ele a outra face da realidade, aquela que a situao adquirida faz esquecer, e para a qual se chama ateno. Uma das caractersticas do bufo a de exprimir em tom grave coisas andinas e, em tom de brincadeira, as coisas graves. O bufo encarna a conscincia irnica. Quando o bufo se mostra obediente, sempre ridicularizando a autoridade por um excesso de solicitude. E quando imita as nossas esquisitices ou nossas falhas ele o faz inclinando-se obsequiosamente. Para alm de suas aparncias cmicas, percebe-se a conscincia dilacerada. Quando bem compreendido e assumido como duplo de si mesmo, o bufo um fator de progresso e de equilbrio, sobretudo quando nos desconcerta, pois obriga a buscar a harmonia interior num nvel de integrao superior. Ele no , portanto, simplesmente um personagem cmico, a expresso da multiplicidade ntima da pessoa e suas discordncias ocultas. (CHEVALIER, 2006, p.147)

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O apego a si prprio o primeiro sinal da loucura, mas porque o homem se apega a si prprio que ele aceita o erro como verdade, a mentira como sendo a realidade, a violncia e a feira como sendo a beleza e a justia. Nesta adeso imaginria a si mesmo, o homem faz surgir sua loucura como miragem. O smbolo da loucura ser doravante este espelho que, nada refletindo de real, refletiria secretamente, para aquele que nele se contempla, o sonho de sua presuno. A loucura no diz tanto respeito verdade e ao mundo quanto ao homem e a verdade de si mesmo que ele acredita distinguir. Ao vestir a mscara de um bufo, a Loucura se torna porta-voz do homem e de seus desejos, destituindo-o de uma vez por todas do julgamento moral. No domnio da expresso da literatura e da filosofia, a experincia da loucura, no sculo XV, assume antes de tudo, o aspecto da stira moral.

3.5 Cervantes e os fundamentos da forma irnica no romance moderno

Carlos Fuentes, importante escritor mexicano da contemporaneidade, em um belo ensaio sobre o gnero romance, afirma que Cervantes pertence a uma tradio intelectual a qual, por fora de questes polticas e dogmticas de seu tempo, teve de silenciar sua adeso. Trata-se da tradio de Erasmo de Roterdam (1466-1536), o farol do incio do Renascimento na corte do jovem Carlos V, uma vela rapidamente soprada pelos ventos frios e dogmticos da contra-reforma. (FUENTES, 2005). Nesse escrito, cujo ttulo Elogio ao romance j antecipa a franca simpatia do autor ao gnero, o tambm diplomata, aponta os motivos histricos que justificam comportamento do criador de Dom Quijano:Aps o Conclio de Trento (1545), Erasmo e suas obras foram anatemizados pela Inquisio, seu testamento permaneceu em segredo. Cervantes ficou impregnado dessa filosofia proibida. Erasmo tentava a reconciliao entre a F e a Razo, recusando no s os dogmas da F, mas tambm os da Razo. Por isso Cervantes, enquanto discpulo espanhol de Erasmo foi forado a dissimular suas afinidades intelectuais. O principal livro de Erasmo, O elogio da loucura (1509), o elogio de Dom Quixote errante atravs de um universo erasmiano em que toda verdade suspeita, tudo est mergulhado na incerteza: assim que o romance moderno adquire seu direito de nascimento. Como Cervantes no pde expressar a influncia libertadora do pensamento erasmiano, ele vai alm de Erasmo: a sabedoria de Roterdam torna-se a loucura de La

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Mancha e o casamento da sagesse (sabedoria) com a incertitude (incerteza) d origem ao romance tal qual o entendemos. Um espao privilegiado, efetivamente, de incerteza. (FUENTES, 2005).

Segundo Walter Benjamin, o que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - que ele nem procede da tradio oral nem a alimenta. nesse sentido que ele se distingue, especialmente, da epopia. O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los. Escrever um romance significa, na descrio de uma vida humana, levar o incomensurvel a seus ltimos limites.Na riqueza dessa vida e na descrio dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gnero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heris da literatura so totalmente refratrias ao conselho e no contm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos sculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento, essas tentativas resultaram sempre na transformao da prpria forma romanesca. O romance de formao (Bildungsroman), por outro lado, no se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frgil as leis que determinam tal processo. A legitimao dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formao, essa insuficincia que est na base da ao. (BENJAMIN, 1936, p. 201-202).

No sculo XVII, com o Dom Quixote de Cervantes, o romance se inaugura como a pardia de um leitor crdulo, que enlouquece ao confundir a fico com a realidade emprica: a loucura pela identificao romanesca.(FOUCAULT, 2005) Suas caractersticas foram fixadas para sempre na saga do ingnuo, mas nobre, bravo Cavalheiro de La Mancha. As fantasias se transmitem do autor para o leitor, mas aquilo que de um lado era sonho torna-se, do outro fantasma; os artfices elaborados pelo escritor so recebidos, com toda ingenuidade, como se fossem figurar no real. Aparentemente, o que existe a apenas a crtica fcil aos romances de inveno; mas, sob a superfcie, constata-se toda uma inquietao a respeito das relaes, na obra de arte, en