hutcheon - teoria e política da ironia

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HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Tradução de Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. (Irony’s edge: the theory and politics of irony - 1994). Introdução – A “cena” da ironia Questionamentos propostos pela autora: 1) Por que alguém iria querer usar essa estranha forma de discurso onde você diz algo que você, na verdade, não quer dizer e espera que as pessoas entendam não só o que você quer dizer de verdade, como também sua atitude com relação a isso? 2) Como você decide que uma elocução é irônica? 3) O que leva a decidir que o que você ouviu não faz sentido por si só, mas requer uma suplementação com um sentido (e um julgamento) diferente, inferido, que então, o levaria a chamá-lo de ironia? “[...] A ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas emocionais dos que a ‘pegam’ e dos que não a pegam, assim como dos seus alvos e daqueles que algumas pessoas chamam de ‘vítimas’” (p. 16). “A ‘cena’ da ironia envolve relações de poder baseadas em relações de comunicação. Inevitavelmente, ela envolve tópicos sensíveis tais como exclusão e inclusão, intervenção e evasão” (p. 17). “A cena da ironia é uma cena social e política” (p. 19). Presença de elementos que, unidos, trabalham para que a ironia aconteça: sua aresta crítica, complexidade semântica, comunidades discursivas que tornam a ironia possível, o papel da intenção e da atribuição da ironia e seus marcadores contextuais. Nem sempre a ironia vem acompanhada de humor. I – Negócio arriscado A política “transideológica” da ironia

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Resumo do livro de Linda Hutcheon sobre ironia e literatura

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Page 1: Hutcheon - Teoria e Política Da Ironia

HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Tradução de Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. (Irony’s edge: the theory and politics of irony - 1994).

Introdução – A “cena” da ironia

Questionamentos propostos pela autora:1) Por que alguém iria querer usar essa estranha forma de discurso onde você diz algo que você, na verdade, não quer dizer e espera que as pessoas entendam não só o que você quer dizer de verdade, como também sua atitude com relação a isso?2) Como você decide que uma elocução é irônica? 3) O que leva a decidir que o que você ouviu não faz sentido por si só, mas requer uma suplementação com um sentido (e um julgamento) diferente, inferido, que então, o levaria a chamá-lo de ironia?

“[...] A ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas emocionais dos que a ‘pegam’ e dos que não a pegam, assim como dos seus alvos e daqueles que algumas pessoas chamam de ‘vítimas’” (p. 16).

“A ‘cena’ da ironia envolve relações de poder baseadas em relações de comunicação. Inevitavelmente, ela envolve tópicos sensíveis tais como exclusão e inclusão, intervenção e evasão” (p. 17).

“A cena da ironia é uma cena social e política” (p. 19).

Presença de elementos que, unidos, trabalham para que a ironia aconteça: sua aresta crítica, complexidade semântica, comunidades discursivas que tornam a ironia possível, o papel da intenção e da atribuição da ironia e seus marcadores contextuais.

Nem sempre a ironia vem acompanhada de humor.

I – Negócio arriscadoA política “transideológica” da ironia

A ironia é inerente à comunicação, por seus diferimentos e por suas negações. Ela pode ser usada como uma arma: humilhação social e farpa satírica.

“[...] a ironia consegue funcionar e funciona taticamente a serviço de uma vasta gama de posições políticas, legitimando ou solapando uma grande variedade de interesses” (p.26-7).

A ironia não é apenas um tropo retórico limitado ou uma atitude mais ampla na vida. É uma estratégia discursiva que opera no nível da linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual, textual) – dimensões sociais e interativas.

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Quem são os participantes do ato social chamado ironia? “relações dinâmicas e plurais entre o texto ou elocução (e seu contexto), o dito ironista, o interpretador e as circunstâncias que cercam a situação discursiva” (p.27).

“Os principais participantes do jogo da ironia são, é verdade, o interpretador e o ironista. O interpretador pode ser – ou não – o destinatário visado na elocução do ironista, mas ele é aquele que atribui à ironia e então a interpreta: em outras palavras, aquele que decide se a elocução é irônica (ou não) e, então, qual sentido irônico particular ela pode ter. Esse processo ocorre à revelia das intenções do ironista [...]. É por isso que a ironia é um ‘negócio arriscado’: não há garantias de que o interpretador vai ‘pegar’ a ironia da mesma maneira como foi intencionada” (p.28).

Ironista: é aquele que pretende estabelecer uma relação irônica entre o dito e o não dito, mas nem sempre alcança sucesso em estabelecer essa relação.

“Do ponto de vista do interpretador, a ironia é uma jogada interpretativa e intencional: é a criação ou inferência de significado em acréscimo ao que se afirma – e diferentemente do que se afirma – como uma atitude para com o dito e o não dito. [...] a ironia é a transmissão intencional tanto da informação quando da atitude avaliadora além do que é apresentado explicitamente” (p.28).

Ironia: importante estratégia de oposição.

O interpretador está engajado em um processo interpretativo complexo que envolve, além da criação de sentido, a construção de um sentido da atitude avaliadora exibida pelo texto em relação ao que é dito e ao que não é dito. Ele atribui tanto sentidos quanto motivos para a ironia – e o faz numa situação e contexto particulares.

“A aresta avaliadora da ironia nunca está ausente e, é verdade, é o que faz a ironia trabalhar diferentemente de outras formas com as quais ela parece ter semelhança estrutural (metáfora, alegoria, trocadilhos)” (p.29).

A ironia acontece no espaço entre o dito e o não dito.

Sentido irônico é inclusivo e relacional: “o dito e o não dito coexistem para o interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente ‘interagem’ para criar o verdadeiro sentido ‘irônico’. O sentido irônico [...] mina o sentido declarado, removendo a segurança semântica de ‘um significante: um significado’ e revelando a natureza inclusiva complexa, relacional e diferencial da criação do sentido irônico” (p.30).

“[...] a ironia acontece como parte de um processo comunicativo; ela não é um instrumento retórico estático a ser utilizado, mas nasce nas relações entre significados, e também entre pessoas e emissões e, à vezes, entre intenções e interpretações” (p.30).

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Ética emocional – modo de distanciamento intelectual. “[...] existe uma ‘carga’ afetiva na ironia que não pode ser separada de sua política de uso se ela for dar conta da gama de repostas emocionais (de raiva a deleite) e os vários graus de motivação e proximidade” (p.33).

A ironia sempre tem um alvo; uma vítima. Seu fio é sempre cortante.

Apesar dos riscos de não ser bem interpretado, o ironista usa esse recurso porque é um “modelo possível para oposição toda vez que alguém está implicado num sistema que esse alguém acha opressivo” (p.35). Citação de Chambers, 1990:18.

“[...] a ironia explicitamente instala uma relação entre ironista e plateias que é política por natureza, no sentido de que mesmo enquanto provoca riso, a ironia invoca noções de hierarquia e subordinação, julgamento e até mesmo superioridade moral” (p.36).

“[...] suas dimensões semântica e sintática não podem ser consideradas separadamente dos aspectos social, histórico e cultural de seus contextos de emprego e atribuição” (p.36).

Não pode ser ignorado o poder da ironia de excluir, humilhar e a natureza social da transação existente entre ironista e sua plateia. Criação de comunidades – se o receptor entende a ironia é sinal de que pertence a certa comunidade discursiva que torna a ironia possível. Quanto mais o contexto é compartilhado, menos se torna necessário sinalizar a ironia.

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II – As arestas cortantesEmoções e ética à flor da pele

“Enquanto ela pode vir a existir através do jogo semântico decisório entre o declarado e o não declarado, a ironia é um modo de discurso que tem ‘peso’, no sentido de ser assimétrica, desequilibrada em favor do silencioso e do não dito. O favorecimento ocorre em parte através do que é implicado sobre a atitude do ironista ou do interpretador: ironia envolve a atribuição de uma atitude avaliadora, até mesmo julgadora e é aí que a dimensão emotiva ou afetiva também entra” (p.63).

A opinião dominante dos retóricos clássicos é de que a ironia envolve certas atitudes julgadoras por parte do ironista, como deboche e escárnio. “Quer se perceba a ironia como sinalizando, por um lado, um menosprezo zombeteiro, quer, por outro, distanciamento ou a aresta cortante de não se importar, me parece que a emoção está, de alguma maneira, envolvida aqui, potencialmente na atribuição e, é claro, na intenção” (p.65).

A ironia transmite uma atitude ou um sentimento. Parte da determinação de efeito (que a ironia causa no interpretador) – e afeto – está ligada ao tipo de julgamento que o ironista faz ou que o interpretador infere.

A ironia envolve a expressão de uma atitude que é descrita como invariavelmente de rejeição ou de desaprovação – arma usada para julgar ou para manter as pessoas em seu lugar.

Envolve interação social e implica relações de hierarquia e poder.

“Diz-se que a ironia implica, da parte do ironista, uma convicção tão profunda [...], uma emoção tão forte, que capacita a controlar-se e a suprimir seu tom natural, de modo a soltar-se com maior força. Obviamente a ironia tem a ver com o que se chama a ‘função expressiva’ da linguagem [...] (de Jakobson)” (p.68).

Booth: poderosa arma de desprezo do ironista.

“Ao se apresentarem como se estivessem controlados e distantes em seus escárnios, os ironistas conseguem parecer ‘persistentemente calmos, quase, pode-se acreditar, descomprometidos. Como isso sugere, parece haver um elemento de presença envolvido aqui, de distanciamento fingido e neutralidade aparente” (p.69).

Ponto de vista do interpretador: “[...] a fruição que pode vir da participação na criação de sentido pode ser relacionada àquela de tomar parte num processo colaborativo de avaliação. Mas se os ironistas obtêm prazer em influenciar, ao afetar uma plateia, os deleites dos interpretadores não vem necessariamente de compartilhar a atitude avaliadora particular que eles podem inferir. Ser um ‘iniciado’ pode realmente ser parte da satisfação experimentada, mas

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solidariedade não é de maneira nenhuma o corolário direto de compreensão” (p.70).

Interpretadores podem apenas entender a ironia, sem compartilhar a avaliação feita pelo ironista, ou, ainda, podem compartilhar de tal julgamento. A emoção tocada pela ironia poderia ser desprezo, compaixão, empatia pelo ironista ou pelo ironizado.

A “marca do demônio” ou o “respiradouro da sanidade”?: As funções e os efeitos contraditórios da ironia

Mikhail Bakhtin uma vez chamou a ironia de a ‘linguagem equívoca dos tempos modernos’, pois ele a via em todos os lugares e de todas as formas – ‘desde mínima perceptível até ruidosa, que beira o riso’ (p.72-3).

Funções comunicativas da ironia (do ponto de vista do interpretador) – motivação operativa atribuída ou inferida (p.74).Inferida, pois nem sempre a ironia é um caso de intenção do ironista, mas sempre é um caso de interpretação e atribuição.

Premissa de trabalho: 1) motivações diferentes resultam em razões diferentes para atribuir (ou usar) ironia e, 2) a falta de distinção entre as múltiplas funções possíveis da ironia é uma das razões para tanta confusão e desacordo sobre sua apropriabilidade, valor e significado.

Papeis da ironia:

1. REFORÇADORA: destaca algo na conversação cotidiana. Dá ênfase e maior precisão à comunicação. Posição desaprovadora – decorativa e não essencial.

2. COMPLICADORA: complexidade ou riqueza de toda arte; uma forma de ambiguidade controlada presente na base de todo discurso estético. Negatividade – ambiguidade pode gerar incompreensão ou imprecisão e falta de claridade na comunicação.

3. LÚDICA: afetuosa e de provocação benevolente; humor e espirituosidade. Característica valiosa de jocosidade (semelhante ao trocadilho e à metáfora). Como ponto negativo a ironia é apresentada como superficial e sutil.

4. DISTANCIADORA: carga afetiva da ironia aumenta. Suas associações mais correntes são com a indiferença, com o desdém e com a superioridade olímpica.

5. AUTOPROTETORA: ironia como mecanismo de defesa. Auto-depreciação fingida que pode assumir ares de auto-promoção indireta. “Ela reconhece a opinião da cultura dominante – parece até mesmo

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confirma-la – e permite ao falante ou ao escritor participar no processo humorístico sem alienar os membros da maioria” (citando Walker, 1988ª: 123) (p.81).

6. PROVISÓRIA: sempre oferece uma condição contendo um tipo de estipulação condicional embutida que solapa qualquer posição firme e fixa. Como lado negativo apresenta-se a evasiva e o equívoco, hipocrisia e duplicidade.

Todas as definições de ironia propostas pelo Oxford English Dictionary: “ato deliberadamente enganador que sugere uma conclusão oposta à real” (citando Hutchens, 1960: 353) (p.81).“A duplicidade da ironia pode agir como um meio de neutralizar qualquer tendência de assumir uma posição rígida ou categórica de verdade por intermédio precisamente de um reconhecimento de um caráter provisório ou de contingência” (p. 82).

7. DE OPOSIÇÃO: habilidade de contestar hábitos mentais de expressão dominantes. “Para aqueles posicionados dentro de uma ideologia dominante, essa contestação pode ser vista como abusiva ou ameaçadora; para aqueles marginalizados e que trabalham para desfazer aquela dominação, ela pode ser subversiva ou transgressora, nos sentidos mais novos, positivos [...]” (p.83).

8. ASSALTANTE: carga negativa – invectiva corrosiva e ataque destrutivo são as finalidades inferidas. Função positiva – “função corretiva da ironia satírica, onde há um conjunto de valores que se tenta alcançar. É a sátira em particular que frequentemente se volta para a ironia como um meio de ridicularizar e implicitamente corrigir os vícios e as loucuras da humanidade” (p.84).

Citando Freud em Jokes and their relation to the unconscious: “os modos irônicos como a paródia, o travesti e a caricatura são sempre, apesar de seu humor aparentemente inocente, na verdade ‘dirigidos contra pessoas e objetos que reivindicam autoridade e respeito’” (1905:200) (p.85).

9. AGREGADORA: a ironia pode criar comunidades e, também, ser criada por comunidades. Num sentido negativo a ironia joga para grupos fechados; é elitista e excludente. A ironia é um ato interdiscursivo emblemático de confrontação com um outro sujeito e mediação por meio dele.

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III – A modelagem do significadoA Semântica da ironia

A ironia ilustra o fato de que não criamos significado fora de situações particulares. A criação de significados é sempre uma atividade que ocorre num contexto específico. “E nenhum de nossos significados está necessariamente de acordo com as ‘coisas como são’” (p.90).

A questão do significado da ironia vai além da semântica e se faz presente na troca social e comunicativa da linguagem. “Parece não haver outra maneira de falar sobre o estranho fato semântico de nós podermos usar a linguagem para transmitir mensagens que são diferentes do que estamos realmente dizendo” (p.90).

Ironia: processo comunicativo com três características semânticas principais – ele é relacional, inclusivo e diferencial.

Estratégia relacional – opera entre significados (ditos, não ditos) e entre pessoas (ironistas, interpretadores, alvos). “O significado irônico ocorre como consequência de uma relação, um encontro performativo, dinâmico, de diferentes criadores de significado, mas também de diferentes significados, primeiro, com o propósito de criar algo novo e, depois, [...] para dotá-lo da aresta crítica do julgamento” (p.91). “O poder do não dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia” (p.91).Aspecto inclusivo – antífrase que se pode entender por uma simples substituição de significados. Relação entre o dito e o não dito – há um movimento perceptual entre eles. O significado irônico se dá em fluxo e não é fixo o que implica numa percepção simultânea de mais de um significado. Relação de simultaneidade e superposição de significados. Aspecto diferencial – relação entre ironia e outros tropos, como metáfora e alegoria.