A figura de ironia como processo retrico-problematolgico e efeito do inconsciente

Rodrigo Seixas Pereira Barbosa

Universidade Federal de Minas Gerais (POSLIN/CNPq)Mestrando em Estudos Lingusticos (Anlise do Discurso)

Resumo: A ironia se configura como a figura de retrica por excelncia por exemplificar e comprovar, em sua prpria definio e constituio, a natureza problematolgica da linguagem. Durante bastante tempo, a retrica considerou o homem como fundamento de si, do dizer, portador e produtor de uma racionalidade assertrica que muito pouco questionava o prprio dizer e a sua condio enquanto sujeito de razo. Entretanto, a teoria retrica da problematologia do filsofo belga Michel Meyer (1991, 1992, 2007) apresenta que a retrica antes uma ferramenta de racionalidade interrogativa, que rejeita o proposicionalismo da razo cartesiana e positivista, em prol de uma viso do sujeito retrico e da prpria retrica como plurais, irresolutos, desfundamentalizados e, em parte, frutos de processos do inconsciente, e que, portanto, pe o logos como o momento do resgate da diferena problematolgica e das falhas de sentido. Destarte, esse artigo visa apresentar a ironia como uma marca condensada do carter problematolgico da linguagem e das implicaes das falhas de sentido e, em certa medida, dos processos do inconsciente. Palavras-chave: Ironia. Retrica. Problematologia. Falha. Inconsciente. Abstract: The irony is configured as a figure of speech for excellence because exemplifies and demonstrates, in its own definition and constitution, the problematological nature of language. For a long time, the rhetoric considered man as the foundation of itself, of the act of saying, as a carrier and producer of an assertoric rationality that very little questioned the own act of saying and its own condition as a subject of reason. However, the rhetorical theory of the problematology of the Belgian philosopher Michel Meyer (1991, 1992, 2007) shows that the rhetoric is rather an interrogative tool rationality that rejects the propositionalism of the cartesian and positivist reason in favor of a vision of the rhetorical subject and of the rhetoric domain as plurals, and, in part, fruits of unconscious processes. Therefore, this puts the logos as the moment of the rescue of the problematological difference and of the failures of sense. Thus, this article aims to present irony as a condensed mark of the problematological character of language, aims also to show the implications of failures of sense and, to some extent, of the processes of the unconscious.Keywords: Irony. Rhetoric. Problematology. Failure. Unconscious. Introduo

O estudo das figuras de retrica condensa a grande problematicidade que reside na prpria constituio da techn rhetorik. No obstante, nem todas as figuras receberam a ateno grandiosa dada, por exemplo, s figuras de metonmia, sindoque, e metfora. A ironia, uma dessas um tanto negligenciadas, careceu de maiores desenvolvimentos dentro da teoria retrica. No se quer aqui dizer, contudo, que a mesma seja mais importante do que as suas irms de maior evidncia; tenta-se aqui apenas explicitar que a ironia , dentre essas, a menos problematizada. Talvez isso se deva pela prpria caracterstica da figura de ironia, pois segue um caminho um tanto controverso das demais, e exige uma maior profundidade na anlise da sua causa e dos seus efeitos. Por sua natureza distinta e mesmo antagnica em relao a tantas outras figuras, torna-se ainda mais interessante refletir sobre as implicaes dessa figura na linguagem, bem como sobre os efeitos que ela causa nos espritos. No toa, a ironia chamou bastante ateno aos olhares psicanalticos de S. Freud e posteriormente de Lacan, quando perceberam ambos que a ironia e o efeito que ela causava eram, na verdade, uma falha, uma ruptura de ordem inconsciente. Alm disso, a ironia mostra-se como a figura problematolgica por excelncia, pois condensa em si a quantidade necessria de problematicidade que comprova a diferena problematolgica da linguagem e dos processos enunciativos. Logo, procura-se nesse artigo, esclarecer um pouco mais sobre a natureza da figura retrica de ironia, isentando-se, entretanto, de esgotar o assunto, tendo em vista que essa figura objeto capaz de preencher todo um livro, qui tratados, e no aceita ser reduzida em um artigo de carter sumrio. No se trata aqui, tampouco, de exemplificar, ou conceituar, o que vem a ser uma figura, processo muito j feito e incansavelmente j desenvolvido em imensos tratados como o de Fontanier, em alguns outros tratados de argumentao como o de Perelman e Olbrechts-Tyteca, e mesmo em algumas obras atuais acerca das figuras como o livro do Jos Luiz Fiorin. Na verdade, procura-se aqui apontar algumas consideraes sobre a importncia da figura de ironia para o entendimento do carter plural e problematolgico da retrica, desenvolvido pela Teoria da Problematologia, ou Teoria do Questionamento, de Michel Meyer (1991, 1992, 2007), assim como tentar fazer algumas convergncias, rasas por certo, com o pensamento psicanaltico, ora em Freud, ora em Lacan, apresentando o carter inconsciente da (des)construo do sentido em um enunciado irnico, nas falhas que nele aparecem, nas hincias que ali esto instauradas e que motivam um olhar mais cuidadoso e um tanto mais profundo para esse fenmeno. Sem dvidas, por ser uma figura de retrica, a ironia tem carter argumentativo fortssimo, sendo mesmo um dos raciocnios argumentativos mais eficazes, tal como nos assegura Perelman e Tyteca (2005, p. 236) em seu Tratado da Argumentao: a nova retrica, quando dissertam sobre o argumento do ridculo. No obstante, esse no ser o vis que daremos para a anlise da ironia; propomos ver tal figura no como uma estratgia pensada, um projeto consciente e voluntrio de persuaso, mas apenas na sua relao forma-contedo, na sua natureza enquanto jogo de significantes, e que permite, assim, aproximar essa retrica de um possvel inconsciente que atravessaria esse fenmeno e que nos ajudaria a entender, assim, o processo retrico como o reflexo do problemtico, do que gera o contraste e a falha entre a diferena e a identidade. Em suma, buscaremos enxergar as implicaes problematolgicas e, em certa medida, inconscientes, do processo irnico na enunciao. Vejamos, a priori, de que retrica falamos e o que a teoria da problematologia. 1. A retrica e a teoria problematolgica do filsofo Michel Meyer. A retrica pode ser conceituada de diversas formas e desenvolvida atravs de aspectos plurais. Com efeito, muito j se sabe de todo o percurso nada tranquilo que a retrica precisou assumir, tendo em vista todos os obstculos que a mesma enfrentou pela mania de uma poca em buscar, atravs de uma racionalidade proposicional, a verdade unvoca, a aproximao do que presumiam ser a razo ideal. Por certo, Plato j dizia, a retrica um desvio, pois a mesma admite tomar como verdade coisas que no so fundamentalmente verdades j que admitem outras alternativas de verdades. Podemos dizer que, mesmo Aristteles, na tentativa de sistematizao de uma tcnica to discutida e questionada, constri a sua metodologia em busca de apresentar uma retrica um tanto mais racionalizada, que, ao menos, no fosse igualada s outras retricas que as escolas sofsticas ensinavam. Pois bem, apesar de entender que o objeto da retrica no era o amplamente aceito por uma comunidade de sbios, mas sim o comumente compartilhado, o verossmil para o povo que constitua o possvel auditrio de qualquer argumentao na polis, o discpulo de Plato, tal como seu mestre, instaurou como o princpio chave de uma argumentao eficaz a no-contradio. Tal princpio, ao invs de apontar para a problematicidade da linguagem enquanto manifestao materializada da diferena, tenta apaziguar os conflitos de verdade (at mesmo sufoc-los) a fim de obter uma posio mais verossmil, mais verdadeira para cada caso determinado. Vemos aqui, por certo, a efetivao e a afirmao de um sujeito de vontade, totalmente consciente e soberano, que procurava entender como se desenvolvia o processo do acordo, sem, no entanto, problematizar a condio do homem enquanto detentor da verdade.

Apesar de a retrica ter encontrado no classicismo latino um importante desenvolvimento (sobretudo no que dizia respeito eloquncia e s composies dos discursos jurdicos), no iremos aqui desenvolver esse perodo, visto que fugiria da inteno deste artigo, no sentido de que o mesmo busca menos analisar todas as caractersticas e particularidades da retrica em cada momento de sua histria do que apresentar que muito pouco se avanou em direo a uma problematizao da racionalidade retrica. No toa que a retrica, frequentemente, traveste-se de dialtica, e por vezes, confunde-se mesmo em um processo intricado entre a heurstica e a erstica. Por razo dessas diversas faces que a retrica adquiriu no decorrer da sua histria, Hansen (2013, p. 14) acredita que no podemos falar de uma retrica, ou de uma instituio retrica, devido ao fato de a retrica ser mltipla, plural por sua prpria natureza, e que a sua aplicao se deu e ainda se d de maneiras diversas. Ainda segundo ele, a retrica movimento.

Podemos dizer que mesmo com o novo lugar de evidncia que a retrica assumiu a partir dos empreendimentos do filsofo belga Chaim Perelman, em parceria com a pesquisadora, Lucie Oblrechts-Tyteca, ao lanarem a obra Trait de Largumentation: la nouvelle rhtorique em 1958, na Blgica, o proposicionalismo da retrica enquanto tcnica argumentativa a ensinar meios de persuadir comea a ceder paulatinamente. Sem embargo, devido natureza e ao fundamento razovel de sua teoria, alguns tericos criticam tal posio alegando a haver uma primazia de um logos assertivo. Na verdade, a proposta perelmaniana do desenvolvimento de uma teoria discursiva do acordo merece destaque e reconhecimento, todavia, difcil no ceder crtica de que a lgica do razovel dessa proposta no deixa de coloc-la um tanto ainda distante de uma problematizao mais efetiva. preciso aqui, para no ser injusto, dedicar certa explicao a essa constatao. Perelman, crtico da teoria de Descartes (o que se mostra evidente na introduo que o filsofo faz no seu Trait), no considera o sujeito retrico, o sujeito pensante, como o mesmo sujeito do Cogito. Perelman, ao desenvolver um tratado sobre o acordo argumentativo, prev a ocorrncia de problemas no processo de comunicao e argumentao advindo dos distintos princpios e valores que constituem a crena de cada povo, de cada auditrio. Porm, nada disse quer dizer que no se possa, argumentativamente, desenvolver estratgias razoveis de explorao cognitiva desses valores e paixes a fim de se lograr a empresa da persuaso ou do convencimento. Ele, como filsofo jurdico, rompe com o cientificismo kelseniano da teoria do direito, e instaura uma anlise hermenutica baseada na interao argumentativa e discursiva entre as instncias jurdicas. Entretanto, o sujeito ainda , de certa maneira, soberano. Esse sujeito soberano oriundo l de Kant e de Descartes parece, ainda um tanto, continuar presente em Perelman como aquele que busca atravs do logos resolver os conflitos no mundo interacional. Por essa razo, a ironia para os autores do Trait essencialmente argumentativa, ainda que indireta, e parte da vontade soberana do orador em querer usar a ironia para lograr a adeso. Pois bem, no queremos aqui contestar o estatuto da retrica enquanto faculdade humana de racionalizao. O que se quer discutir o carter da racionalidade. Segundo Meyer (1991), a crise da razo que vivemos desde a morte do sujeito cartesiano no a crise de toda a razo, mas de uma razo em especfico, a saber, da razo assertrica, que busca exterminar com qualquer problematicidade, ou com qualquer possibilidade de demais respostas que no uma s, e que, por assim dizer, coloca-se como proposio. Para Meyer, a retrica que se manifesta na sua faculdade de racionalizao e de encerramento ainda uma retrica proposicional, uma defesa provisria do antigo, e no o aparecimento duma interrogatividade sui generis. o encerramento do sujeito que desvelado e no a sua possvel abertura para o problemtico que deixaramos, por fim, de encerrar, de vedar. Pois o que preciso ver bem que o evidenciar do papel da retrica, a que se mantm proposicional, mas visa simplesmente mostrar como que h ocultao e encerramento. A retrica vai ser desvelada por aquilo que ela permite no seio da ordem proposicional, sem que a natureza de qualquer uma delas sofra por isso, qualquer transformao. Uma vez desmascarada, certo que ela j no ser o a priori resolutrio que era (MEYER, 1991, p. 182).

Nesse sentido, Esteves (2009), corroborando com a teoria do filsofo Michel Meyer, afirma ser a retrica necessariamente problemtica, como a filosofia que evidencia nos discursos a materializao das identidades e das diferenas. Com efeito, qualquer relao dialgica, enunciativa, discursiva, comunicacional, se d em um processo de trocas linguageiras em que as diferenas e as identidades se encontram, negociam-se, resolvem-se, fronteirias entre si, constituidoras de uma diviso porosa em que no se sabe onde termina a diferena e comea a identidade, e vice-versa. Nesse sentido, Esteves afirma em seu livro Ironia e Argumentao,

Toda a linguagem sempre desvio, no a uma realidade ou a uma essncia exterior a ela prpria, da qual ela fosse um ser menor ou uma epifntica/ epifenomnica manifestao e que, por isso, servisse de mediadora e calasse as sandlias voadoras de um Hermes incumbido de transportar mensagens entre soberanos deuses, mas, bem pelo contrrio, a linguagem sempre desvio a ela prpria, mediando-se a si prpria. Ora, neste sentido, o problema da identidade e da diferena no se constitui em razes exgenas linguagem, mas a fulgurante experincia da linguagem como desvio potenciado e inventado de si mesma, de que os tropos e os conceitos so expoentes indesmentveis e inextricveis, no sentido em que representam, pela figurao, a actualizao de uma dynamis que arrebata a linguagem e a amplifica permanentemente. Em ltima instncia, esta configurao de possibilidades que faz com que a linguagem se medeie a si mesma e se inscreva numa sempre renovada rede de circunstncias, contextos, conjecturas, conjunturas que despoletam novos sentidos de inteligibilidade e racionalidade (ESTEVES, 2009, p. 12, grifos do autor).

Faltou aqui apenas dizer que a linguagem se estrutura em um processo inconsciente de significao, onde essa rede de circunstncias, contextos, conjecturas e conjunturas supracitadas, solidificam-se, sedimentam-se em um loco inconsciente discursivo que frequentemente acionado sem a nossa vontade e que significa em ns, ressignifica o nosso dizer.

Destarte, a retrica reside justamente na subverso, tantas vezes na transgresso, e nem por isso deixa de ser a filosofia capaz de esclarecer o processo discursivo em sua nudez, sem fantasias positivistas da busca da vitria de uma tese, muitas vezes, a qualquer custo. A retrica seria, assim, aquilo que e que poderia no ser, ou aquilo que poderia ser, mas que no , desafiando o princpio aristotlico da no-contradio, no porque se possa colocar, fundamentalmente, A e no-A como possveis em um mesmo enunciado, mas em apresentar que tal oposio A e no-A no sempre bvia, e pode remeter a outras questes que no esto inseridas no enunciado como A ou B, e muito menos no-A. Este o caso, por exemplo da ironia em que, muitas vezes, a oposio retrica de significantes causa uma ruptura de sentido sem, contudo, inviabilizar o entendimento do projeto enunciativo (ainda que o subverta). Os sentidos so depreendidos na disperso, na desconstruo e na inverso de significantes. Isso comprova o carter problematolgico da linguagem. Segundo Esteves, a presena do problemtico na linguagem a abertura de sujeitos a sujeitos, na multido de diferenas e identidades que se podem estabelecer entre eles, garantindo, assim, a diversidade de inteligibilidade e de comunicabilidade, nunca anulando a diferena de base que quase a fundao de uma diferenciao de sujeitos. Se a linguagem a multiplicao de sentidos e todas as linguagens so abertas, ento ela a multiplicao

de problemas e, por conseguinte, a multiplicao de diferenas entre sujeitos, o que significa quase a consagrao de um novo humanismo retrico. Por este motivo, a linguagem a consolidao da possibilidade de sermos sujeito, no como detentores de uma realidade, mas como transfiguradores de uma realidade que nos escapa permanentemente, num ponto de fuga, simultaneamente convergente e divergente, que a linguagem, e que nos torna sempre recm-chegados ao seu domnio, atravs do qual nos inventamos como seres problemticos (ESTEVES, 2009, p. 14).Pois bem, o sujeito enquanto problemtico efetua enunciados problemticos e que precisam ser encarados por esta tica. A racionalidade interrogativa retoriza o sujeito, torna-o mais condizente com a sua condio. Vejamos um caso especfico onde se deixa claro a condio do sujeito retrico enquanto problematizado frente a um enunciado irnico tambm problematolgico. Se um patro chega em casa na hora do almoo e pede para a sua secretria domstica que coloque o almoo na mesa, dentre algumas maneiras, o mesmo poderia enunciar dessa forma: Joana [a domstica], voc no vai colocar a mesa, no?. Em funo de uma anlise interpretativa primeira, poderamos dizer que se trata de uma pergunta legtima de um patro a uma secretria domstica perguntando se esta no iria colocar o almoo na mesa. Alm do fato de que o significante almoo se encontra na pergunta do patro, apagado, isso facilmente recuperado, talvez inconscientemente, pela questo do implcito da linguagem e que nos permite inferir certos sentidos no explcitos em um enunciado. Entretanto, o principal nesse caso que, apesar de o enunciado ter sido feito em forma de interrogao, o verdadeiro sentido do mesmo na verdade imperativo, como que se o patro dissesse: Joana, coloque o almoo na mesa!. Vejamos que isso mesmo problematolgico, e que uma rpida e superficial anlise no nvel explcito do enunciado no se resolve em meio aos conflitos e s falhas que ocorrem neste processo. De fato, sempre mediante um jogo entre identidade e diferena que os sentidos se fazem na linguagem. A retrica j dizia isso h mais de dois sculos de anos atrs e, curiosamente, nunca perdeu a aplicao e a contemporaneidade para os problemas lingusticos que ainda nos afligem. Para Fiorin,

[...] a retrica a disciplina da impropriedade do sentido. Exemplifiquemos isso. Quando se diz, no captulo XXXVII de Memrias pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis, que o homem uma errata pensante, apreende-se a metfora, quando se observa que h uma no pertinncia em considerar que o homem uma errata. Afinal, errata se usa para escritos. No entanto, essa predicao impertinente estabelece uma tenso entre identidade (correo de erros, aprimoramento) e diferena (em cada edio/em cada estgio da vida) e, assim, ganha pertinncia (FIORIN, 2014, p.28-29).

A retrica , pois, figurativa, logo, segunda, derivada, acrescentada (MEYER, 1991, p. 217), movida pelas construes e desconstrues de sentido, pelo mover da fico e dos efeitos de realidade, pelo que literal e o que o figurado. A natureza problematolgica da discursividade em geral o que permite que o literal e o figurado apaream como categorias proposicionalizadas da diferena problematolgica, ao mesmo tempo escondida, na medida em que se levado a procurar outra coisa diferente daquilo que dito no que dito, uma procura que s pode terminar pelo que dito (MEYER, 1991, p. 219). Mas o que essa diferena problematolgica? Vejamos que esse conceito crucial para o entendimento das figuras de retrica e, sobretudo, da figura de ironia que o nosso caso em destaque. 1.2. A diferena problematolgica

Quando escrevemos, argumentamos, ou quando ns nos comunicamos, fazemos isso sempre movido por uma questo em mente. No toa que a tautologia to criticada, ou os pleonasmos so considerados erros gramaticais, pois no h nenhuma necessidade em afirmar e reafirmar o bvio, j que aquilo j foi obviamente respondido. Entretanto, as tautologias so casos minoritrios na linguagem humana. Quase sempre existem problemas a serem resolvidos na linguagem e que movem o locutor a tomar o projeto de fala. Segundo Meyer (1992, p. 132), ela [a diferena] a fonte da linguagem naquilo que esta ltima responde problemtica humana, da qual a interao dialgica uma dimenso essencial na qual se insere o problema de informar, de comunicar, de persuadir.

Nesse sentido, podemos dizer que apenas h resposta para aquilo que questo, e toda questo exige uma atitude responsiva. Essa a diferena problematolgica, ou tambm, diferena questo-resposta, no sentido de que todo ato comunicativo de resposta remete a uma questo. Uma proposio ou um discurso podem ao mesmo tempo indicar a questo e a soluo dessa questo. Por essa razo, Meyer (1992,2007) define a processo da problematologia da linguagem como um homnimo apocrtico-problematolgico, tendo e vista que: apocrtico, porque caracteriza uma resposta; problematolgica, pois sempre expressa uma questo. A resposta seria assim o reenvio de uma questo.

Tal processo fica claro, por exemplo, quando usamos o prprio termo questo em uma afirmao como em Isso uma questo de vida ou morte, ou No vou por uma questo de dinheiro. perfeitamente perceptvel que o que est implcito nessa afirmao no de carter resolutrio ou proposicional, pelo contrrio, antes problematolgico, pois insere a prpria questo que essa resposta veio a responder. O logos , pois, construdo em cima dessa diferena que no se resume, de forma alguma, a uma questo de forma. Por questo, deve-se entender um problema e no uma frase interrogativa [...] (MEYER, 1991, p. 188).

A atividade discursiva, implicando questo ou resposta, segundo Meyer (1991, p. 189) um processo de questionamento a dois nveis: aquele no qual o locutor, ou o autor, quer dizer qualquer coisa, e aquele no qual ele o diz e explicita o que tem a dizer. Pois bem, o processo da linguagem uma passagem de um implcito para um explcito que ser materializado na lngua. O logos, nesse sentido, abarca, ao mesmo tempo, essa linguagem onde se misturam sem dvida o inconsciente e a histria, como tambm o explcito, aquilo que parte de um suposto projeto de fala, ou conscincia do dizer, do saber do que se diz. Meyer (1991) afirma que nem s de manifestaes lingusticas viver o logos. Podemos, com certa ousadia, entender que o esprito, aquele mesmo que persuadido segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), , de certa maneira, no s o pathos, que efetivamente aceita o assentimento atravs de um processo racional ou de razoabilidade, mas tambm de um inconsciente inscrito em um funcionamento discursivo que engloba paixes, experincias, saberes compartilhados, doxa. Nesse sentido, o logos, para Meyer[...] responde quilo que ns somos, a saber, uma problematicidade incarnada na histria e trabalhada pelo implcito articulado no inconsciente. H uma linguagem porque ns prprios, questionadores, questionando aqui o logos, somos atravessados pela diferena problematolgica. Esta mesma diferena, que o ato de nascimento do logos, assegura igualmente a prpria textura deste, pois aquilo a que o logos responde no se pode perder na resposta, sob a pena de destruir a sua prpria razo de ser (MEYER, 1991, p. 189-190).

Portanto, veremos como a metodologia de anlise da diferena problematolgica serve para entendermos o processo das figuras, especificamente aqui da figura de ironia, bem como isso aponta para uma convergncia com a questo do inconsciente discursivo, ainda que nele no entraremos profundamente por falta de ferramentas capazes para isso. Contudo, o carter problematolgico da ironia aponta efetivamente para algum papel do inconsciente, e, nesse sentido, uma anlise breve de como surge essa instncia inconsciente j nos ajudar a entender o processo retrico mais alm do que apenas aquele que busca a persuaso, ou como a arte da eloquncia, estilo da escrita e mutao das formas. 2. O signo, os processos do significante, o recalque do significado e o inconsciente.

O conceito saussuriano de linguagem no deixa margens para fugir de uma indispensvel convergncia entre a retrica e a lingustica. Por certo, entendendo que a retrica figurativa procura desvelar a multiplicidade dos sentidos atravs dos variados jogos de significantes, ela acaba por estabelecer nessa pluralidade a sua capacidade esttica de construo de discursos e tambm a sua capacidade argumentativa na estrutura de um projeto persuasivo. De similar maneira na lingustica, o signo entendido desde Saussure como um complexo de significao que se apresenta como o algoritmo S/s, isto , Significante/Significado. O significante, representante de uma imagem acstica, da forma, tal como uma caixa vazia, acopla um contedo de significado que dar o sentido para determinado signo. Saussure, dissolvendo qualquer possibilidade de uma relao natural entre significado/significante, trabalha a noo de arbitrrio do signo, constituindo-o por diferenas puras, o que aponta para uma abertura da lngua para as mais variadas formas de se comunicar. Nesse ponto, impossvel no nos lembrarmos da retrica no s como a tcnica persuasiva, mas, sobretudo, como a arte dos sentidos plurais. Se tivssemos um significado nico atrelado a um significante, no seria possvel a polissemia do signo, nem as ambigidades, tampouco a constituio da ironia, ou seja, a linguagem se resumiria quilo que foi dito, do jeito que foi dito, nada mais alm disso, o que, fundamentalmente, no condiz com a complexidade retrica.Com efeito, j dissemos antes, a relao figurativa e retrica da linguagem se d no jogo de semelhanas e diferenas entre os signos que no nada mais do que s implicaes das relaes sintagmticas e paradigmticas dos signos entre si. Pois bem, a identidade e a diferena que constituir o sentido. Entretanto, no podemos deixar de considerar aqui, no caso da retrica especificamente, que o contexto discursivo permite a depreenso e a formao de sentidos outros que no aqueles facilmente estabelecidos no processo de significao material. A ironia, por exemplo, no estabelece o seu sentido meramente pelo jogo de significante e significado, mas pelo sentido incidente nesses significantes e que determina o significado final do enunciado irnico. Isso significa dizer que h, alm da questo da estrutura, algo que foge da alada dos signos, algo pertencente ao funcionamento discursivo ou mesmo ao inconsciente.

Em se tratando do inconsciente, segundo Lacan (1988 [1964]), o mesmo se estrutura como linguagem. , de fato, como uma linguagem, onde a sua estrutura, tambm formada por signos, prev um contnuo de significantes (S(S(S) em que cada significante remete, assim, a um outro, que podemos perceber que no terreno do inconsciente o significante se afasta cada vez mais do significado. a forma caracterstica que Lacan se apropria do prprio Ferdinand de Saussure, ao descrever o estatuto do significante como sempre soberano, superior e dominante ao significado, este, por sua vez, cada vez mais distante de ser assumido. A prpria barra que separa as duas instncias, S/s, no prova apenas a supremacia do significante como tambm a impossibilidade de se passar de um para o outro, como se o significado fosse uma realidade distante, ou que a sua assuno fosse meramente ilusria. aqui, inclusive, que o pensamento lacaniano se mostra mais estruturalista, por enxergar o deslizamento constante de um significante a outro significante para poder significar. Isso implica a construo de grupos fechados compostos de uma srie de anis que se ligam como em cadeias e estruturam uma rede. Ora, no a lngua uma rede de signos que, volta e meia, so trocados, substitudos, como na metfora, ou expandidos em um processo de contiguidade, tal como acontece na metonmia? Entretanto, o processo de significao na ironia um tanto distinto. O que acontece na ironia a marca do recalcamento, a prova da falha e da claudicao caracterstica do agir inconsciente e que se estrutura na linguagem atravs de rupturas de sentido, transformaes de sentido atravs de deslizamentos de significantes, da desconstruo. Remetendo-se ideia de rachadura em Freud, Lacan afirma a existncia do Tropeo, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenmenos, e neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hincia, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. E assim, de comeo, que a explorao freudiana encontra o que se passa no inconsciente (LACAN, 1988 [1964], p. 30).Segundo Lacan, no significante que essa hincia se produz, e o chiste (que S. Freud aproxima da ironia em seu texto O chiste e o papel do inconsciente) como tambm a ironia, aparecem como que frutos de um tropeo. Apesar da falha e da ao do inconsciente a partir dessa falha serem mais evidentes no caso do ato falho, dos lapsos, dos sonhos e dos chistes, na ironia ela aparece como algo l, que se estrutura e se justifica naquele instante de percepo imediata do efeito irnico produzido em um enunciado. Podemos perceber que, ao invs de raciocinarmos e refletirmos o acontecimento de uma ironia, a sua causa e as suas implicaes, tudo isso nos vem de maneira automtica, imediata, como um estalido de sentido que nos move e nos leva ao efeito do riso, ou mesmo, no caso da ironia de derriso, ao estranhamento. a causa que h naquilo que falha, tal como afirmado por Lacan tambm em seu artigo quatro conceitos fundamentais da psicanlise, nessas fendas, aberturas de sentido que se estabelecem curiosamente sem que nos demos conta da real natureza de sua estrutura e funcionamento.

H intensas convergncias entre o olhar saussuriano e o olhar psicanaltico no que diz respeito questo da ironia e, com certeza, entre ambos e o olhar problematolgico da retrica de Meyer. A ironia, como ruptura e processo que parte de um tropeo de sentido que move nosso esprito, a figura que melhor explica o que queremos defender como sendo a real natureza da racionalidade retrica. A retrica, no seu carter figurativo, funciona como aquilo que e poderia no ser, e vice-versa. Nesse sentido, a ironia seria aquilo que se apresenta como o dito e o no-dito ao mesmo tempo. a intromisso do absurdo, do oposto, em um enunciado em que se poderia prever uma contiguidade. a quebra, a falha de sentido que acarreta outro sentido. a comprovao da recorrncia que a linguagem faz do implcito para ganhar sentido e corpo. Vejamos mais profundamente o que vem a ser a ironia e como ela age na problematicidade retrica, nessa falha que problema, mas que deixa de s-lo por apresentar-se como um dos recursos mais geniais da capacidade comunicativa humana. 3. A ironia como exemplo de problematicidade retrica e suas implicaes.

A ironia est presente na filosofia j h bastante tempo, desde a ironia socrtica, passando por Aristteles, Kierkegaard, e tantos outros que, de alguma maneira, dissertaram algo sobre ela ou, ao menos, aplicaram-na. A lingustica, com a entrada do estudo do estilo e da esttica, unio possvel entre a retrica e a potica, passou tambm a estudar as figuras de retrica em geral e, por consequncia, tambm a ironia (ainda que esta tenha sido muito menos explorada do que as demais). A retrica moderna retoma a figura de ironia e a tenta coloc-la em um patamar novamente privilegiado dentre os demais tropos. Isso se deve pelo olhar cada vez mais problematolgico que se tem da retrica e que a figura irnica, como parte dessa problematologia, apresenta tal caracterstica em sua plenitude. O que queremos dizer aqui que a figura de ironia permite entender a diferena problematolgica da linguagem tal como preconiza Michel Meyer. Podemos mesmo afirmar que essa figura apresenta um carter figurativo mais profundo e mesmo mais curioso que o efeito causado pelas figuras metafricas e metonmicas, por desvelar justamente um processo oposto e de ruptura na constituio do sentido figurado. Mas o que a ironia?

Para Meyer,a ironia apresenta-se ento como o sentido oposto de qualquer figura possvel, como a considerao de todas as suas implicaes, o seu desvelamento, a conscincia de que a literalidade um fraude, pois esto em jogo figuras de estilo que no passam de figuras de no-literaldiade, apesar da aparncia proposicional prpria de toda a literalidade (MEYER, 2007, p. 118, grifos do autor). A figura de ironia difere-se das outras em questo de identidade e diferena, porque podemos dizer que ela estabelece uma identidade mnima entre significantes e uma diferena mxima entre eles. Ainda segundo Meyer (2007, p. 119), a ironia manifesta-se por uma disjuno. J no se trata de uma substituio de significantes que possuem caractersticas que se interseccionam e que, por essa razo, cria um novo sentido, como na metfora, tampouco se trata de uma contiguidade como na metonmia, mas decididamente de opor os dois significantes.

Contudo, precisamos ter cuidado quando se trata de discernir ironias, devido a suas diversas faces. Foi, talvez, devido a isso, que S. Freud aproximou alguns tipos de chistes, piadas e trocadilhos com nomes, da ironia mesmo, como passvel a provocar riso, mas tambm derriso. A derriso, por exemplo, pode ser depreendida em um mesmo enunciado passvel de ser metafrico. Meyer traz um exemplo bastante interessante para que enxerguemos tal fato: Este homem um verdadeiro leo. Pois bem, podemos dizer que o que se quer aqui dar um sentido ao significante homem que admitir interseces com as caractersticas do significante leo. O leo forte e corajoso, por isso, se comparo o homem a um verdadeiro leo, estou querendo dizer que esse homem forte e corajoso. Vejamos que a relao entre os significantes se d por um processo de substituio. Entretanto, podemos identificar nesse mesmo enunciado o seu carter irnico, tendo em vista que poderamos discernir uma possvel derriso a presente: Este homem um verdadeiro leo. Isso pode, na verdade, causar um sentido de desqualificao irnica, o que levaria ao interlocutor perguntar: voc est sendo irnico?. Isso significa dizer que o enunciado acima causou no interlocutor mais a descrena, o estranhamento, no que se estava enunciando do que a verdadeira adeso ao sentido metafrico. claro que as diferenas de sentido que esse mesmo enunciado irnico ou metafrico pode ocasionar dependem de todo o funcionamento discursivo, do contexto em que se insere aquela afirmao, no tom da voz, nos gestos, ou em demais coisas que extrapolam a materialidade do enunciado. Podemos dizer, por exemplo, que se o homem fosse um magricela correndo de uma barata, esse enunciado, por certo, seria irnico.

Nesse sentido, podemos dizer que a ironia se assemelha metfora, mas a subverte. Isso fica bastante visvel nessa figura que o Meyer desenvolve em seu livro Questes de Retrica:

Figura 1- Relaes entre as figuras retricas. A B

Metonmia Sindoque

Metfora x y

Ironia

Fonte: MEYER, 2007, p. 87.

Para entendermos a figura acima precisaremos dar nome s letras. Retomando o caso Ricardo um leo. O que acontece na metfora que x, que Ricardo, possui uma caracterstica B em comum com y, que o leo. Logo, o que ocorre na substituio metafrica um deslizamento do significante de x para y, por razo dessa caracterstica B em comum. Na ironia, o processo semelhante, mas justamente inverso. O caminho do deslizamento o mesmo, x em direo a y, entretanto, as duas linhas apresentam bem a ruptura de sentido, a falha, que ocorrer ao enunciar esse mesmo enunciado de maneira irnica. O que acontece que eu percebo que x e y possuem B em comum, entretanto no concordo que essa caracterstica realmente exista em x, por isso, produzo igualmente o deslocamento ao dizer Ricardo um leo, s que, no caso da ironia, o sentido que quero denotar justamente o inverso, de que x no tem nada a ver com y. Ricardo, por certo, um covarde, e covardia no B, talvez seja A, atributo este que Ricardo, ou x, no divide com y, que o leo. O interessante nisso que a ironia segue o mesmo sentido que a metfora, entretanto, diferencia-se da mesma pelo carter derrisrio ou cmico, pela inverso do sentido que se estabelece na oposio dos significantes, ou mesmo na oposio dos sentidos que se estabelecem entre o enunciado e o contexto da enunciao. Tudo isso nos permite j, sumariamente, perceber o carter problematolgico da linguagem, em que uma afirmao pode gerar mais questes do que resolues. Percebamos, igualmente, que o movimento produzido pela flecha de B (atributo, uma parte) para x um processo metonmico, tal como se B fosse os livros do Machado de Assis e x fosse o prprio Machado de Assis; enunciaria dessa forma o x para significar o B. O todo passa a significar a parte. Eu leio Machado de Assis, ao invs de Eu leio os livros do Machado de Assis. Na contramo desse processo, a sindoque significaria o B, cabea de gado, por exemplo, no lugar do y, o gado propriamente. Sendo assim, enunciaria B, cabea de gado, referindo-me, na verdade, a y, o gado, ou seja, significaria enunciar possuo mil cabeas de gado no lugar de possuo mil gados. Tendo em vista que a ironia, como dito acima, tanto pode causar efeito cmico como derrisrio, S. Freud a considerou como prxima ao chiste, entendendo assim a ironia negativa como um chiste irnico. Segundo Freud, Refiro-me ironia, muito prxima do chiste (ver em [1]) e contada entre as subespcies do cmico. Sua essncia consiste em dizer o contrrio do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma rplica contraditria fazendo-lhe entender - pelo tom de voz, por algum gesto simultneo, ou (onde a escrita est envolvida) por algumas pequenas indicaes estilsticas - que se quer dizer o contrrio do que se diz. A ironia s pode ser empregada quando a outra pessoa est preparada para escutar o oposto, de modo que no possa deixar de sentir uma inclinao a contradizer. Em conseqncia dessa condio a ironia se expe facilmente ao risco de ser mal-entendida. Proporciona pessoa que a utiliza a vantagem de capacitar-se prontamente a evitar as dificuldades da expresso direta, por exemplo, no caso das invectivas. Isso produz prazer cmico no ouvinte, provavelmente porque excita nele uma contraditria despesa de energia, reconhecida como desnecessria. Uma comparao como essa, entre os chistes e um tipo de comicidade, que lhes intimamente relacionada, pode confirmar nossa pressuposio de que a caracterstica peculiar dos chistes sua relao com o inconsciente, o que permite talvez distingui-los tambm do cmico (FREUD, 1980 [1905], p. 113). A ironia seria, pois, um processo de deslocamento do significante para um outro significante contrrio ou que remeta a um significado oposto e que gera essa percepo de estranhamento com a prpria formulao. Apesar de a forma ser distinta a que, casualmente, deveria ser utilizada, o entendimento pelo interlocutor depreendido, o que nos possibilita afirmar que h um au del do reducionismo que frequentemente se coloca na relao entre significante-significado. Analisemos dois casos de ironia para entendermos mais a fundo todo esse processo problematolgico que se estabelece, e essa relao com o inconsciente. Primeiramente, faremos uso de uma ironia bastante famosa e j trabalhada que a que est presente no livro do Machado de Assis, Memrias Pstumas de Brs Cubas, no captulo XVII; posteriormente, analisaremos brevemente uma ironia, ou um chiste, que aparece no artigo sobre os chistes de S. Freud e que tambm nos ajudar a entender algumas das implicaes de sentido que a figura de ironia estabelece. 3.1 Primeiro caso de ironia: O caso do amor de quinze meses e onze contos de ris.

No primeiro caso, a obra de Machado de Assis, Memrias Pstumas de Brs Cubas (1994, p. 25), traz um exemplo claro de ironia e de como essa ironia no prejudica a depreenso de sentido do enunciado mesmo havendo nele um deslocamento de significantes que se colocam mesmo como contrrios entre si. Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de ris; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil. Tal disposio produz no leitor uma primeira reao, a de um estranhamento, um espanto, um riso, por justamente colocar Marcela amou-me durante quinze meses junto a e onze contos de ris; nada menos. Ora, o significante amou-me durante quinze meses deveria acionar na mente do leitor a inferncia de que Marcela o amou, e o que seguiria em diante seria algo decorrente desse amor e condizente com ele. Devemos ressaltar que antes desse captulo onde aparece esse trecho irnico acima destacado, a personagem machadiana j havia enunciado algo que participa ainda mais ativamente em levar o leitor ao efeito irnico: Marcela, por exemplo, que era bem bonita. Marcela amou-me.... Assim termina o captulo XVI e, pois, o captulo XVII inicia com a declarao primeiramente exposta e que aqui analisamos como um enunciado irnico. Entretanto, o que aparece logo em seguida o significante e onze contos de ris, que nada nos remete a um amor legtimo, mas sim a uma relao de interesses e motivada por dinheiro, remete ainda a uma relao de prostituio. O efeito risvel e de estranhamento causado no leitor justamente efeito de uma quebra de um contnuo de significantes, onde um remete ao outro atravs de relaes de similaridade e contiguidade. O que nos possvel enxergar nesse exemplo que um significante pode sofrer deslizamentos que ocasionam o deslocamento de sentido sem, no entanto, implicar em uma contradio lgica do tipo A e no-A. Nisso, pois, a ironia e o chiste (como os aproxima Freud) so retricos, tendo em vista que prev o que e que poderia no ser, ou o que no , mas poderia ser. A retrica , pois, no s a pluralidade de possibilidades de construo do discurso, mas a prpria pluralidade significante. No enunciado irnico Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de ris, a produo de sentidos se constitui pela presena de um contedo material, que se manifesta na superfcie do enunciado, e um outro contedo latente, implcito, escondido, que resgata a histria da relao de namoro entre Marcela e a personagem machadiana atravs da relao entre quinze meses o onze contos de ris, apontando para uma verdade no expressa no enunciado, mas que se faz presente, fazendo-se emergir de forma indireta ela uma cortes, ele filho de pais ricos, duas classes distintas, que mentem um relacionamento. Ele se apaixona por ela e depois chega concluso de que a relao dela para com ele no era por amor, mas unicamente fruto de interesses, percebendo que seu amor teve a durao que o dinheiro conseguiu pagar e manter. Est claro que o prprio recalcamento da personagem machadiana, o sentido real escamoteado no seu inconsciente, aparece por essa hincia, essa falha, que onde o inconsciente age e aparece. Ora, ainda mais evidente que a relao da ironia com o inconsciente (isso, de fato, no to fcil para quem no um psicanalista ou um pesquisador da rea), a relao problematolgica que existe entre os significantes e o sentido do enunciado. Pois bem, o significante A= Marcela me amou durante quinze meses demandaria qualquer outra ligao com um significante B, que poderia ser qualquer coisa que remetesse o interlocutor a associar tal significante ao amor de Marcela. Talvez alguns significantes mais bvios e esperados pelo interlocutor (leitor, nesse caso) seriam, por exemplo, B= como nenhuma outra mulher amou-me em anos; ou C= e foram os melhores meses da minha vida. Entretanto, ao introduzir um significante que remeta a uma ideia oposta como em e onze contos de reis, causa toda a fratura no sentido que caracteriza a ironia e isso gera um outro sentido, totalmente oposto, e que, na maioria dos casos, acarreta no interlocutor um estranhamento, efeito derrisrio, ou mesmo o riso. , pois problematolgico, porque no comunica na assero exatamente aquilo que se presumiria dizer, mas justamente o contrrio, o que est implcito, e que a simples assero no d conta de concluir o sentido. 3.2 Segundo caso de ironia: O caso do dinheiro emprestado e a maionese de salmo.Freud, em seu livro Os chistes e a sua relao com o inconsciente (1980 [1905], p. 34, grifos do autor), usa o seguinte caso para exemplificar o chiste por erro de raciocnio, o que evidencia o carter retrico desse inconsciente que o mesmo tenta descrever: Um indivduo empobrecido tomou emprestado 25 florins de um prspero conhecido seu, aps muitas declaraes sobre suas necessitadas circunstncias. Exatamente neste mesmo dia seu benfeitor reencontrou-o em um restaurante com um prato de maionese de salmo frente. O benfeitor repreendeu-o: Como? Voc me toma dinheiro emprestado e vem comer maionese de salmo em um restaurante? nisso que voc usou o meu dinheiro? . No lhe compreendo, retrucou o objeto deste ataque; se no tenho dinheiro, no posso comer maionese de salmo; se o tenho, no devo comer maionese de salmo. Bem, quando vou ento comer maionese de salmo? . Bom, primeiramente a pergunta do benfeitor ao homem a quem emprestou o dinheiro demandaria, na prtica, uma resposta assertiva, direta, resolutria. Em uma perspectiva assertrica, a resposta ideal para aquela questo levantada pelo benfeitor teria que ser algo como explicao da razo por que o rapaz que tomou o emprstimo estaria comendo algo to caro, tendo em vista que o mesmo, por lhe pedir dinheiro, supostamente no investiria tanto dinheiro naquilo. Contudo, o lugar prescrito para a resposta ocupado por uma nova questo, o que fere todo o processo assertrico caracterstico de uma conversao racional habitual. A problematologia est justamente neste ponto, onde a questo feita pelo benfeitor remete a uma outra questo respondida pelo objeto do ataque e que, de maneira alguma, deixou de ser uma resposta. Esse tipo de ironia, por ser cmica, precisamente o chiste descrito por S. Freud, e, nesse caso, fica mais difcil perceber a ligao com um inconsciente que trabalhasse em uma possvel falha de sentido, ou recalcamento de significante. Entretanto, podemos ver nesse caso de irnica cmica, ou chiste, que a problematologia a qual se refere Michel Meyer fica ainda mais evidente. 4. Consideraes FinaisO que se procurou aqui dizer, ancorado no filsofo Michel Meyer, que a retrica problematolgica por natureza, e, portanto, no deve aceitar a soberania do proposicionalismo ou do logos assertrico. O primado de um sujeito totalmente consciente, origem do dizer, negligencia o recalcamento de um sujeito que s se consegue instituir como similar porque diferena, que s se afirma, porque antes foi confrontado por uma negao (se quisermos ligar denegao freudiana); por fim, que s responde, porque foi movido por uma questo, que, nem sempre, chega ao sujeito de maneira consciente. Segundo Meyer, podemos observar que, por certo, o desabar do primado da conscincia se identifique com o desocultar desta retorizao do sujeito, com o desvelamento do seu recalcamento, com o surgir do inconsciente; imediatamente o sujeito ser retrico ao deixar de ser fundamento (MEYER, 1991, 182).

Tentamos aqui apresentar sumariamente que o inconsciente desloca os sentidos, desliza-os, o que evidencia o processo lingustico enquanto um complexo de signos, em que mesmo o sujeito torna-se um signo. Nesse sentido, o homem j no seria produtor do simblico, mas fruto dele, e no limite, ele seria o prprio simblico. Nesse sentido, vimos que a ironia a figura retrica por excelncia que comprova tanto a problematologia da retrica e dos sujeitos retricos, quanto o evidenciamento de uma ruptura de sentido, a falha, que faz aparecer o inconsciente, ou algo au del, que significa e ressignifica o dizer. Uma maior retorizao do sujeito permitiria enxergar as relaes linguageiras de uma maneira mais condizente com a realidade problematolgica dos processos comunicacionais. Em suma, precisamos considerar o sujeito retrico como sendo [...] o que sendo cada vez outro, sendo assim o que no , conscincia do objeto, inconscincia de si, marca no dita que se volta sempre para a sua prpria presena num dizer que se refere ao que ele no . Por isso, deixa de ser fundador, e podemos assim falar melhor dele a partir, precisamente, do fato de falar (MEYER, 1991, p. 132). Referncias Bibliogrficas1. ASSIS, Machado de. Memrias Pstumas de Brs Cubas. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguillar, 1994. 2. DUNKER, C. I. L. A Interpretao do Chiste e a Retrica da Interpretao Psicanaltica. Interaes (Universidade So Marcos), v.V, 1999. 3. ESTEVES, Jos Manuel. Ironia e Argumentao. Lisboa, Labcom, 2009.

4. FIORIN, Jos Luiz. Figuras de Retrica. So Paulo: Contexto, 2014. 5. FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Paris: Flammarion, 1977. 6. FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relao com o inconsciente. Vl.8.

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8. MEYER, Michel. A problematologia. Trad. Sandra Fitas. Lisboa: Dom Quixote, 1991.

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10. MEYER, Michel. Questes de Retrica. Trad. Antnio Hall. Lisboa: Edies 70, 2007.

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