o corpo: a grande razÃo

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Reflexão sobre o corpo a partir de Maria Gabriela Llansol

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          Abro com um excerto de Maria Gabriela Llansol que começa por perguntar «o que é o corpo», acrescentando uma série de outras perguntas que, como veremos, são parte da primeira, e suas iluminações. Passaremos por tudo o que esta passagem enumera, e teremos sempre no horizonte os textos de Llansol, de onde nasceu o pedido para eu estar aqui, feito pelo actor e professor desta Escola, Diogo Dória, leitor de Llansol. Daí o lugar particular desta autora no que vou dizer, o que não anula a abertura para outros horizontes, para toda a proble-mática do corpo (e da alma ou da mente). O sumário evidencia claramente essa abertura.

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M. G. Llansol viemos até aqui, na forma da presença peculiar de cada um, para tentarmos reviver, mais uma vez, o que é o corpo, o que é a luz, o que é a força, o que é o afecto, o que é o pensamento, o que é a figura. Simplesmente procurar saber, no seu próprio corpo reflectido na imagem __________ [...] o que é o eterno retorno do mútuo. (De: Os Cantores de Leitura, 2007)

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1.

O nosso corpo não é uma evidência – nem em si mesmo nem na sua história, numa perspectiva antropológica, médica, filosófica, religiosa, cultural ou mesmo política. Acima de tudo, essa entidade desconhecida a que se chama um corpo está muito para além de uma forma ou de uma massa biológica e orgânica que ocupa espaços e vive (e morre) no tempo. Muito pelo contrário: um corpo é uma realidade complexa, plurissignicativa, diversa-mente interpretada ou manipulada, desprezada ou sacralizada, e ainda enigmática. E também não é simples matéria de simples circunstância e opinião: por detrás de cada corpo (humano, na sua filogénese – história da espécie – e na sua ontogénese – da gestação à morte de cada indivíduo) há toda uma história, longa e diversa, que vem até hoje e está em aberto – mais do que nunca nesta nossa época da obsessão e da quase histeria do corpo, a que se contrapõem proclamações do «fim do corpo» (orgânico) ou do carácter «obsoleto» do corpo humano.

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A princípio pensei dar como título a esta conversa «Ninguém sabe o que pode um corpo». É um título que fala por si, um axioma muito conhecido de Spinoza, um dos filósofos a que teremos de dar bastante atenção para discutir a problemática do corpo na sua indissociável ligação à alma/mente (anima/mens) (mas não «espírito», demasiado marcado na história das religiões e das ideias). Acabei por escolher um outro, desta vez fornecido por outro grande iconoclasta da filosofia do corpo, e do corpo de toda a filosofia, de seu nome Friedrich Nietzsche. No seu Zaratustra lemos: «O corpo é a grande razão». Também esta frase, não tão explícita como a de Spinoza, é em si mesma todo um programa. Já veremos em que sentido, e com que implicações.

2. Falar do corpo exige traçar um grande arco, passar por imensas teorias, filosofias, doutrinas do corpo – e do seu reverso imaterial, a que se tem chamado alma, espírito, mente, pensamento; mas também, noutra perspectiva (a das artes que, melhor que o pensamento, dão a ver a ideia de um corpo), palavra, imaginação, génio... O arco a

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traçar abarca milénios, dos primórdios do pensar, predominantemente materialista ou «fisicalista», dos pré--socráticos gregos a pensadores e agentes culturais do século XX e aos reinventores do corpo (tecnológico) no século XXI; e cobre um sem número de campos do saber e do fazer humanos, da antropologia à medicina, da filosofia às religiões, da biónica à cibernética, da estética à política na sua forma actual de «biopolítica» (a que adiante me referirei). Terei de escolher, naturalmemnte, alguns pontos de paragem e algumas perspectivas eventualmente mais interessantes para estudantes de artes, e nomeadamente das artes do corpo, mas posso tomar como referência, para efeitos de comentário e de raciocínios cruzados entre essas várias áreas e tempos, alguns fragmentos de uma escritora para quem a questão do corpo sempre foi central, como veremos a seguir: Maria Gabriela Llansol. Llansol foi grande leitora e transformadora de pensadores como Spinoza ou Nietzsche, que levaram a cabo, em Obras que não seguiram a linha dominante (dualista) no pensamento ocidental, uma revolução nos modos de conceber o corpo e o seu lugar na relação com o pensamento e a criação, o

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mundo e a vida. De facto, qualquer frase de Llansol a propósito do corpo, e há muitas, irradia para uma pluralidade de questões, e é esse o caminho que tentarei seguir. [Vd. Textos]

3. Para isso, e para propor desde já algumas distinções fundamentais e operatórias, alerto já para o uso possível de vários conceitos-chave que correspondem a diferentes visões e ideias disso a que se chama corpo, que por vezes se opõem frontalmente, outras se relacionam, e outras ainda só em interacção se compreendem. Alguns óbvios, outros nem tanto, outros certamente surpreendentes para muitos de vós. Passaremos então por conceitos como: – Organismo: para o corpo na medicina, na psicanálise freudiana, e mesmo nas tecnologias virtuais – aqui não sem algumas contradições, nomeadamente no maior paradigma actual dessas tecnologias, o cyborg (= cybernetic organism!). – Dispositivo: um conceito que irei usar muitas vezes e que, paradoxalmente, parece ser mais consentâneo com

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a 'natureza' do corpo do que o de organismo (porque «um dispositivo completo é um engenho simulta-neamente material, social, mental e libidinal», escreve Augusto Joaquim a propósito dos livros de MGL, no posfácio a Causa Amante). A noção de dispositivo aplica- -se a certas filosofias «interaccionistas» do corpo e da alma, mesmo a certas poéticas (o texto como dispositivo libidinal), também à tópica psíquica na psicanálise freudiana. – Mecanismo ou máquina: no materialismo do século XVIII, nos autómatos, na robótica ou na biónica [a tecnologia das próteses], e mesmo no uso popular: a «máquina» do corpo. – Forma: plástica, espacial, moldável, configurável, aperfeiçoável: nas artes do espaço [escultura, perfor-mance, dança, também o teatro, em certas práticas como a da «biomecânica do corpo», no teatro do russo Meyerhold, de inspiração construtivista]; mas também na cosmética e em todas as actuais indústrias do corpo, ou na cirurgia plástica. – Energia : para certas ciências como a física, na sua vertente termodinâmica; em certas filosofias orientais,

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em concepções pulsionais do trabalho do actor, como a do «teatro da crueldade» de Artaud; ou na escrita de M. G. Llansol, de que o corpo é o grande motor em que circula uma «ELOV-Energia livre de origem vibratogénea», como um dia disse Augusto Joaquim! — E mesmo paisagem (também em Llansol, mas não só): a ideia do corpo como um complexo – um dispositivo – receptivo, perceptivo e activo que assimila e transforma estímulos, imagens, feixes de energia em escrita, arte, pensamento... (para Llansol, «paisagem é o que o olhar livre vê»).

4. Talvez valha a pena, antes de tentar responder, com Llansol e muitos outros, à pergunta: O que é um corpo?, traçar uma breve e esquemática cartograf ia do pensamento sobre o corpo, desde logo, e sempre (até mesmo nas ciências ou práticas mais exactas), na sua relação com o seu reverso imaterial, o espírito, ou a alma. Na filosofia, essa relação, ou não relação, deu origem a toda uma discussão, o chamado Leib-Seele-, ou Körper-Geist-Problem [problema da relação corpo vivo/alma ou

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corpo-coisa/espírito]. O grego ou o alemão são línguas em que as duas acepções maiores do corpo se tornam mais evidentes, porque dispõem de conceitos bipolares mais elucidativos para designar o corpo / a vida: zoe ['vida nua', animal, corpo] vs. bios [vida animada, política, mente] e Leib vs. Körper.: aqui, a distinção é entre o corpo=coisa viva (animada, mais anímica que física) e o corpo=coisa inerte (estática, material, no espaço). É na base destas distinções que vamos encontrar dois momentos importantes da discussão filosófica e política do corpo: o Leibproblem [problema do corpo] em Heidegger e a noção de biopolítica em Foucault e Agamben (vd. adiante!). [no caso de Heidegger, o Leib é determinante do Körper, e não há separação entre corpo e psique] Toda esta discussão é abarcável, desde os Antigos, por uma dupla, ou tripla perspectivação, com variantes e nuances: os pontos de vista monistas, os dualistas e os funcionalistas.

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Monismo Dualismo

Idealista Materialista Interaccionista Não interaccion. Só existe Só existe matéria, Descartes (res co- Monismo espírito, o o espírito é uma gitans + res ex- encapotado!? corpo é mero extensão, um tensa – mas com Bergson, Ma- contentor atributo da ma- predomínio do tière et Mé- (Berkeley, téria (atomistas cogito); já em moire? Hegel) antigos; materia- Pitágoras: soma- lismo dialéctico) sema: a vida anímica associada às suas manifestações somáticas E Spinoza? E Nietzsche? (são os desmancha-prazeres que estragam a harmonia do esquema!!) Funcionalismo Deriva das posições materialistas: os fenómenos do espírito são funções de um corpo programado como um computador ( corpos virtuais, inteli- gência artificial, cyborgs e heróis de ficção cientí- fica, genética, etc.)

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Nesta história domina o dualismo interaccionista, com predomínio da alma sobre o corpo, e na tradição do Logos e da metafísica, desde Platão (que se continua no Cristianismo e ganha corpo filosófico moderno em Descartes e Hegel). E há momentos de iconoclastia, que desembocam em Nietzsche, na sua recusa da metafísica e na afirmação de um pensamento «ao fio do corpo», ou já em Spinoza, com a sua filosofia da imanência e da felicidade neste mundo (eudemonismo): são ambos, em graus diferentes, paladinos do corpo enquanto agente e instância determinante do pensar e do agir. Neles, o corpo é (e todos estes atributos contrariam a ideia de corpo como simples massa no espaço): – potentia, i. é, possibilidade activa, «habitando a casa do talvez», como Llansol escreve sobre Bach; – central de metamorfoses (como acontece com as «figuras» históricas quando entram no texto de Llansol: vd. adiante, as figuras mutantes...); – reservatório e repositório de experiências, memórias, afectos, imagens;

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– lugar de excesso, centro de intensidades (como a tragédia grega lida por Nietzsche à luz do princípio dionisíaco); do outro lado, diz Llansol, está «o nada da razão [Sócrates, Apolo] ou um corpo mortificado» [o do Cristianismo, ou já de Platão] (Onde Vais, Drama-Poesia?, 230); – disponibilidade para a transformação e para a morte (o «espírito» tem a vocação oposta: tende a «perseverar no seu ser», diria Spinoza, e para a imortalidade).

5. Aproximemo-nos então um pouco mais dessa realidade instável que é o corpo (instável em si mesmo, e porque é uma construção histórica), para tentar responder à pergunta, aparentemente descabida: temos nós o 'nosso' corpo? (Dizer «nosso» é tão absurdo como dizer «Eu» julgando saber o que isso é!) A resposta só pode ser de dupla ordem, e paradoxal: o corpo é a única coisa que temos (somos?), e no entanto não temos o corpo. Não temos o corpo, do mesmo modo que não temos a linguagem. É o corpo que nos tem, é a linguagem que nos tem e «nos trama», como já

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viram Nietzsche ou o austríaco Karl Kraus e toda uma linhagem da crítica da linguagem e da cultura, das teorias do «como se» e das ilusões do real, da «mentira vital» (Nietzsche, Ibsen, Pessoa). Teorias que, pela afirmação ou pela negação, fazem emergir a problemática do corpo como lugar de uma outra outra verdade. Proust, não sendo propriamente desta linhagem, sabe também que, no cenário da turbulência das paixões, não dominamos o «vaso do corpo»: «É sem dúvida a existência do nosso corpo semelhante, para nós, a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nosso poder.» (Sodoma e Gomorra). Nietzsche define o real em termos de uma «fábula» (Crepúsculo dos Ídolos: «De como o mundo 'verdadeiro' se tornou uma fábula»), o conhecimento das coisas como uma possibilidade remota e «perspectivista» (mutante e relativa), e conclui: «Não duvides: tu és feito, a cada momento! A humanidade sempre confundiu o activo com o passivo: é o seu eterno lapso gramatical!» (Aurora, II, 120).

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Quanto ao corpo, são várias as vias da prova da sua não-autonomia: desde a psicanálise (o papel determinante do inconsciente, a força do desejo e das pulsões) à moderna teoria da «biopolítica», de Foucault e Agamben: os corpos sempre tiveram pelo menos um duplo estatuto, de bios (político) e zoe (animal). E em certos momentos (desde a chamada democracia grega), e para certos sujeitos tornados objectos de exclusão, os poderes políticos tudo reduzem a uma condição de zoe, de corpo animal com cada vez menos intervenção real na vida da polis, e cada vez mais manipulado e dominado por parte dos poderes que gerem (e anulam) as vidas desses corpos. E não se trata apenas dos casos extremos de anulação do corpo (e da alma) em certos momentos históricos – de judeus, refugiados, negros, mulheres ou estrangeiros (barbaroi ), já na Grécia antiga. Todos, de algum modo, somos hoje, mais do que já fomos, mortos políticos à mercê de um «Estado social» que propõe «segurança» (que segurança? que social?) mas está esvaziado de sentido, é hipo-critamente proteccionista das vidas de cada um, e dominado por centros de poder evasivos. A esta «biopolítica» que nos lançou, como diz Agamben, para

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um «estado de excepção» permanente, vem juntar-se a forma actual de uma «psicopolítica» e de um «psico-poder» (B. Stiegler), através de tecnologias que permitem controlar a actividade mental, e os corpos progres-sivamente desactivados, de maneiras cada vez mais eficazes. Nesta nova «sociedade de controlo» (Deleuze), a saturação informacional enganadora dessocializa os seus consumidores, destrói a capacidade de atenção e as virtualidades do olhar (nunca, como na civilização da imagem, a capacidade de ver foi tão afectada) e deforma as mentes com a parafernália da alucinação audiovisual. O grande desafio do nosso tempo será então, segundo Stiegler, não o de recusar tudo isso, mas o de inventar novas modalidades de existência humana no interior de sociedades totalmente tecnologizadas. Llansol responde a isto com uma alternativa que pode constituir todo um projecto: Poderíamos construir outro corpo a partir Do pensamento com imagens e emoções de Menor engano... (O Começo de um Livro É Precioso, 101)

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É todo um projecto alternativo para uma vida para além do biológico e do tecnológico, para corpos que sejam mais do que a sua materialidade facilmente manipulável – nomeadamente (lemos noutra estância) pela «fraudu-lagem da saúde» e pelos «vadios da bata branca» que julgam conhecer os poderes do corpo e ser capazes de nos dizer que corpo temos! E aí entra de novo em cena o corpo, não o de uma «bio- ou psicopolítica» que nos reduzem, quer ao número, quer ao rebanho, todos iguais na sujeição inconsciente aos poderes, ao dinheiro, às TVs, ao consumo, mas o corpo que se subleva, que reage e toma consciência de si mesmo como centro vivo por onde tudo passa. Se o dualismo bios-zoe nos lançou para o estado de excepção em plenas democracias (formais, que mais não são nem querem ser!), a afirmação do corpo leva-nos ao estado de excepção daqueles que habitam as margens, os «acentrados». E aí estamos no terreno dos que acreditam que o corpo é potentia metamórfica, pura e plena possibilidade. O corpo (a escrever, a criar, a imaginar) busca então as suas formas próprias de «poder»: a do «vislumbre» (e não da acomodação), a dos «atributos»

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infinitos da «substância» finita do corpo, que levam Spinoza à conclusão de que «ninguém sabe o que pode um corpo», e que, na sua finitude, ele «sente e experimenta que é eterno» no seu tempo de vida – eterno, e não imortal (a imortalidade é coisa do espírito e das suas obras – que afinal, para Spinoza ou Nietzsche ou Llansol radicam ainda e sempre no corpo!). Llansol di-lo assim, falando de outros «poderes»: Eu queria o poder, o poder dos meus atributos, o poder de não estar à espera, o poder de chegar ao corpo. (O Jogo da Liberdade da Alma, 30) Este é o poder particular daqueles que não tendo o corpo, têm um corpo singular [vd. Texto da epígrafe] – e não se limitam a «trazê-lo», como de Pessoa/Aossê se diz em Lisboaleipzig: aí, Spinoza (Baruch) «tem um corpo pequeno, mas muita paisagem»; já Aossê «traz o corpo consigo» (para ir em busca de outro e, com ele, de si mesmo-outro), mas é todo «mental pairante» (isto, porém, poderá querer dizer que também ele está em

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espera, ainda que mental!). E só no encontro do corpo da mulher (Elisabeth, a filha de Bach) ele sente que «o corpo vem», sabendo que «serve para esperar o real» (e voltamos à ideia do corpo como dispositivo disponível e potencial). Nos textos de M. G. Llansol, este é o corpo daqueles seres que ela designa de figuras, não meras personagens, mas representantes de uma utopia concreta em que o corpo assume papel determinante e activo. Ele não é agora, nem um dispositivo meramente funcional (como na biónica ou na cibernética), nem construção fisiológica, biológica, que ocupa um espaço, nele se movimenta e tem vida no tempo. O corpo da figura é também «eterno», enquanto representante de uma possibilidade, realidade metamórfica sempre imprevisível: um núcleo energético, um feixe vibrátil de energia, um organismo pensante e criativo, mas sem perfil social e psicológico estável. Por isso, a figura (o corpo?) é sem-eu e sem-morte. [Sem eu: vd. Onde Vais, Drama-Poesia?; a noção de Alguém em MGL; e o seu paralelismo com a do «qual-quer» (quod libet) de Agamben em A Comunidade que Vem. Cf. Textos]. A figura (e o seu corpo) é voz, é gesto, reune em

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si um sentido de necessidade (ter corpo, escreve Llansol, é como ser mar ou noite: Onde Vais, Drama-Poesia?, 110) e um sentido de possibilidade ou potentia, significando isto que um corpo é matéria animada disponível, que tudo por ele passa e de tudo ele é res-ponsável (a tudo dá resposta, e assume as consequências). De certo modo, e para dar seguimento ao que o «sumário» propõe, poderíamos dizer que o corpo da figura em Llansol se aproxima do corpo de desejo que é o da psicanálise, ao mesmo tempo que se demarca radicalmente dos corpos fantasmáticos ou fantasmizados da cibernética e das novas tecnologias do imaterial que – por enquanto ainda só no plano da ficção – geram corpos sem carne (e sem alma), meras corporizações ou animizações que põem em causa a própria noção do humano (propondo uma nova teologia, na medida em que a sua busca é a de uma nova «perfeição» dos corpos!), e que estão no extremo oposto, quer de universos artísticos todos feitos de corpos-carne (a pintura de Francis Bacon) quer de corpos-fulgor-energia-alma (Llansol). Não irei por aí, por essa via do Unheimlich (dos

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fenómenos inquietantemente estranhos que já Freud comenta a propósito dos autómatos num conto de Hoffmann). Já o corpo de desejo que é objecto da psicanálise (talvez mais da pós-freudiana do que propriamente em Freud) merece algum comentário, porque converge em muitos aspectos com as minhas referências maiores de Spinoza, Nietzsche e Llansol. O corpo da psicanálise é concebido, já por Freud, como uma grande zona erógena, geradora de prazer. A pele, e não já a carne, é a matéria de que se faz este corpo libidinal. Os lacanianos corrigirão a ideia, falando do corpo como um conjunto de zonas erógenas que funcionam como «portas do corpo», lugares susceptíveis de serem o centro de uma excitação de tipo sexual: para Lacan, o corpo é o grande livro onde se inscreve a possibilidade do prazer e onde se oculta o «impossível saber sobre o sexo» (e, diria Spinoza, sobre todas as afecções de que o corpo é manifestação visível). E uma vez mais assistimos á oposição organismo-dispositivo: se para Freud as pulsões eram ainda impulsos de natureza biológica, para Lacan e seus discípulos a máquina do

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prazer, o dispositivo (psíquico) do desejo, opõe-se ao aparelho orgânico, é mesmo o seu contraponto e a sua subversão. Diferentemente do prazer que resulta do simples apaziguamento de uma necessidade biológica, o prazer sexual, diz-se agora, nasce de um jogo com a lembrança da satisfação. O corpo emerge então como um armazém de memórias (também no sentido da «memória involuntária» de Proust: a madeleine funciona como catalisador...), e subitamente estamos de novo próximos de Spinoza e de Llansol. Spinoza dirá: não sabemos o que é o corpo, mas «temos a ideia do que lhe acontece/ aconteceu», isto é, do que sobre ele «cai» e ele recebe: as afecções. E estas têm a sua correspondência nas ideias da mente. O corpo é uma dessas ideias, e, desse modo, o receptáculo secreto, enigmático, dessas afecções da alma. Spinoza distingue, no Livro III da Ética, quarenta e oito tipos de afecções, ou disposições anímicas, começando pelo desejo em geral (cupiditas) e terminando com o desejo sexual, a «lubricidade» (libido). Em Llansol, o desejo é o motor dos horizontes do possível para as suas figuras, e a libido o combustível que alimenta, tanto a alma do mundo (que existe, já para os pré-socráticos, e

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também para um filósofo da natureza como Schelling) como a alma da escrita e da criação. Num dos cadernos inéditos do espólio lemos: «É estranho como de tudo, com um pouco de gosto ou de sensibilidade, eu faço um acto erótico. O corpo é ___ o envolvimento na nossa própria matéria ____ os nossos limites. Sentimo-lo em todos os sentidos, dentro de uma Lua, de um Sol, de estados que se graduam desde a primeira à última frase. O corpo folheia-se [lembre-se o «corpo-livro» de Lacan!] de forma simultânea, sempre no mesmo instante que passa______ Está infinitamente próximo de nós, mas às vezes ausenta-se, e julgamos então que deve estar sofrendo, deprimido ou na sombra, sem poder ver os seus múltiplos fulgores intensamente. Para o corpo que não morre, ou não está para morrer___ é sempre madrugada.» (Caderno 1.28, pp. 209-211 – 3.3.1988).

6. Sigamos então com Spinoza e Nietzsche, para, com eles, irmos dar a M. G. Llansol.

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a) Spinoza é talvez o mais claro exemplo de «dualismo interaccionista» (ou, se quisermos recorrer a um paradoxo com sentido, «monismo plural») entre corpo e alma (mens=mente), na medida em que nele as duas esferas não só não se condicionam, como convergem para formar uma unidade, a do vivo humano (com isto se relaciona o título da secção do diário de Llansol Um Falcão no Punho «Nem hierarquia nem ruptura entre corpo e espírito»). Na filosofia antiga, já Pitágoras se aproxima deste dualismo de interacção recíproca, com a sua doutrina do corpo como soma (o corpo aparente, «somático», ou a sua metonímia, o rosto) e sema (o conjunto dos sinais que vêm de dentro, da alma). Os pitagóricos posteriores, chegando à doutrina da metempsicose, ou da transmigração das almas entre corpos, colocarão a ênfase, por um lado na disponibilidade dos corpos, e por outro na mobilidade da alma, que vêem como as partículas de pó no ar (associando-a à luz) ou como aquilo que as move, o próprio ar ou pneuma. Mais tarde, ainda Plotino (recorrendo ao Fedro de Platão: 246, C 5) afirmará este ponto de vista, ao dizer nas Enéades (I 1, 3): «afirmamos que ela [a alma] se encontra no corpo de tal modo que da

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união dos dois nasça aquele 'todo a que se dá o nome de vivo'». Em Spinoza, na sua Ética, apesar de o horizonte determinante ser claramente a investigação da natureza e dos atributos da alma (mens, um dos termos mais usados na Ética, e que pode corresponder melhor à mente, ou mesmo ao aparelho psíquico moderno), é o corpo que aparece tratado em primeiro lugar (no Livro II). Para Spinoza, a alma não é um valor absoluto em si (ela é «um modo da substância», da ordem da res cogitans, ou substância pensante), e o estudo do corpo e da alma não são meramente complementares, mas convergentes e simultâneos. A alma – e este é um ponto de vista absolutamente novo – é «a ideia de um corpo existente em acto», e que lhe corresponde na ordem do mundo, como modo da res extensa (o espaço-tempo em que todos os corpos se inserem). Esta relação íntima (e prática, como toda a filosofia de Spinoza), sem hierarquias, está expressa num claro axioma da terceira parte da Ética: «Tudo o que é acção no corpo é também acção na alma; tudo o que é paixão da alma é também paixão do corpo» (Ét., III, 2, esc). Subjacente a esta

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«robustez» do complexo alma/corpo há a ideia da «não ruptura» de que fala Llansol (cf. Texto 1), e uma teoria da pujança do corpo e da alma, não dependente, nem do conhecimento (para o corpo, porque «ninguém sabe o que ele pode»), nem da consciência (que não é ciente dos movimentos da alma). Assim, à potência insuspeitada e insondável de um corpo corresponde, em paralelo e em igualdade, a liberdade incondicionada da alma (como sugere Deleuze: Spinoza, 97-98). Se a alma foi desde sempre um enigma, agora o corpo também o é, como lemos num caderno de Llansol: «Compreendo que nada é compreensível para quem não tem este tipo de corpo semelhante a uma consciência física habitada.» (Caderno 1.59, p. 145 – 30.6.2000) – uma definição inequivocamente spinoziana do corpo: a «consciência física» é um «corp' a 'screver»; e essa consciência é «habitada» por todas as experiências e afecções possíveis. b) Em Nietzsche tudo é ainda mais claro nesta relação des-hierarquizada entre corpo e pensamento (que nele substitui a noção de alma, suspeita por vir da metafísica e

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da religião). Num fragmento do espólio deixa-se clara a ideia de que é preciso «pensar ao fio do corpo» (Llansol disse um dia algo parecido: «meter a mão no pensamento»). Para Nietzsche (que alimenta em Llansol, no início, uma estética iconoclasta da pujança e do despojamento), o corpo como fio condutor será uma espécie de «esquema» kantiano, um pressuposto (imanente) a priori para o conhecimento e a acção, que se opõe a um certo mal-estar do corpo e com o corpo que será apanágio dos Modernos que tanto foram beber neste filósofo. Nietzsche desenvolve a sua crítica dessa rejeição do corpo pela tradição platónica e cristã numa série de escritos em que debate o que chama «O problema-Sócrates» e a razão socrática como exemplo máximo da decadência, da «moral de escravos» e da «pulsão agónica» [de morte e não de vida] dos Gregos (isto explica também a sua releitura da tragédia antiga à luz dos princípios dionisíacos, do corpo de excesso, e não da razão apolínea). Mas importa aqui destacar sobretudo o lugar do corpo neste pensamento, nesta filosofia vista e praticada como uma «alegre ciência», porque é como «a saturnália de um

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espírito que resistiu» a uma tradição filosófica que — lemos ainda no Prólogo de Die fröhliche Wissenschaft [A Alegre Ciência] –, nas suas tentativas de interpretação do corpo, resultou apenas num grande equívoco sobre o corpo. Mas será em Zaratustra (no capítulo intitulado «Sobre aqueles que desprezam o corpo» [Leib: o corpo vivo, não o corpo-coisa]) que encontramos a mais clara declaração do princípio da primazia absoluta do corpo. Aí se lê: «Aquele que está desperto, o que sabe, diz: 'Sou todo corpo, e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para qualquer coisa que pertence ao corpo. O corpo é uma grande razão», enquanto o espírito será só «a pequena razão, e instrumento do corpo». Essa grande razão do corpo não diz Eu, mas faz Eu! O corpo é activo, fala e age, e o sentido, o espírito, o sujeito não têm um fim em si mesmos, são apenas ferramentas e brinquedos da grande razão do corpo. Estamos no reverso da filosofia platónico-socrática do logos e da metafísica judaico-cristã. Para Nietzsche (e Llansol) o corpo é também o grande texto, e a consciência, longe de ser inata e soberana, é um simples

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comentário do devir do corpo. O corpo faz-se, é em devir, na concepção perspectivista de Nietzsche. Não há um corpo igual a si mesmo: o corpo age e redefine-se nesse devir activo. Também aqui, ninguém sabe o que ele é ou pode. Também se poderia dizer (com Llansol, ou Lacan, ou Deleuze): o corpo vai adiante, há um «involuntário corporal» (Lacan, M. Dufrenne), e muito desse agir antecipatório do corpo é na arte que se manifesta. Llansol dirá… «O texto vai adiante...» (em Parasceve). Virginia Woolf escreve em The Waves : My body goes before me. Barthes dirá também, em O Prazer do Texto: «o meu corpo não tem os mesmos pensamentos que eu». Em Spinoza há também um pensamento corporal, imanente, e um corpo não é, define-se em relações, «pelo poder de afectar e ser afectado». Estamos perante uma visão dinâmica em que o corpo toma a iniciativa, em vez e depender da razão ou do espírito. O corpo não é, devém, nem é dependente, age e determina. Daí que Deleuze possa concluir, ainda a partir de Spinoza, que o corpo, enquanto possibilidade de afectar e ser afectado, é um dispositivo, por um lado, de desejo («Desejar é fazer um corpo»), e por outro de percepções que os sentidos põem

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em movimento. Mais: o corpo é um campo de ressonância de todo o sensível (não apenas dos sentidos). E aí, diz Deleuze (comentando a pintura de Bacon), e antes dele já Artaud, estamos perante um corpo sem órgãos: «O corpo é o Corpo. É único. E não tem necessidade de órgãos. O corpo não é jamais um organismo [=uma organização dos órgãos]. É um corpo intenso, intensivo.» O corpo como dispositivo de percepção/recepção de estímulos e de expressão/ produção de intensidades: este é o corpo de Llansol, e o corpo que se expressa, se mostra, na arte. Porque o corpo, já o dissémos, não precisa de órgãos se for um dispositivo de lembranças, um armazém vivo de memórias geradoras de intensidades (de fulgor, poderia dizer Llansol). Um tal corpo – ainda na senda de Spinoza – é um lugar obscuro (desconhecido) em busca de luz, que só aflora «pelo movimento dos afectos», que pode levar «de uma menor a uma maior perfeição» (na alegria, laetitia), ou vice-versa (na tristeza, tristitia). Visto assim, um corpo não é um núcleo sólido a ocupar um espaço (visão plástica, estática), nem um aglomerado de funções (nas visões funcionalistas), mas um

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dispositivo em movimento, aberto, antecipatório – e surpreendente (por isso ele é, no Prólogo d' O Livro das Comunidades, uma das «três coisas que metem medo») [Vd. texto]. De onde vem um corpo assim? M. G. Llansol dá uma resposta possível, que nos diz que num corpo está o próximo e o distante, o micro- e o macrocosmos, o mensurável e o incomensurável, as sementes e o fruto, o visível e o invisível ___ é por isso que «ninguém sabe o que pode um corpo»: «No nosso corpo, repositório e projectivo, Uma parte vem-nos do big bang, outra das estrelas Outra ainda das poeiras estelares, e outra, enfim, Da rua em que vivemos.» (O Começo de um Livro É Precioso, 299) Ou, numa perspectiva semelhante, em O Senhor de Herbais: «O meu corpo é a minha paisagem terrestre, cuja nascente é a matéria estelar. Vindo de tão longe, e de tão imenso, como se poderia contentar com a mediocridade gregária, reduzida ao mero humano e à nesga de visível que é a duração de uma vida?» (p. 210)

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Textos de Maria Gabriela Llansol

1.

Nem hierarquia, nem ruptura entre corpo e espírito

O pensamento é impelido pela geometria dos corpos. Há o adormecido. Se este for olhado de fora de si mesmo, dir-se-á que dorme, que está estagnado. Mas eu sei que esse corpo sabe que está acumu-lando energia. Olhando uma parede branca, é-me muito difícil pensar. Mas eu sei que a parede está guardando o meu olhar. Acordar alguém é acordar o quê? Dormindo, não estará na sua fase de lua cheia? Pintar uma parede branca é esconder-lhe o olhar, ou permitir-lhe olhar-me com alguns dos seus matizes? Para pensar, não é preciso ter vigor? Que faz ao corpo um mau pensamento? A recta intenção faz parte do corpo, ou do espírito? Se o pensamento não ama o corpo, que forma terá o pensa-mento? Quando dou uma forma escrita intensa ao meu sofrimento, não estarei ainda a pesar mais sobre ele, como se houvesse um fundo e nele uma saída luminosa? Quando o corpo e o espírito são dois amantes experimentados, surge a proporção escondida, sabem extrair de quase nada o ardor imenso de criar. Um belo corpo e um pensamento justo poderão coexistir num contexto caótico?

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Escrever na sombra é ir à busca de que potência? O visível segue a curva do dia? O invisível seguirá a curva inversa? Que ser é esse que escreve sobre uma mesa onde todo o vegetal está ausente? O contexto é do corpo e do texto; o que está doente no homem se este só olha o corpo? Se só cuida do texto? O pensamento que abstrai do contexto não terá a intenção de definir o corpo? O corpo vivo é uma forma ininterrupta. Dizer-se que é matéria, pensando vísceras e humores, é uma forma de maledicência, ou de cegueira. Ele é matéria, e só matéria de imagens feita, como quando o medo sobrevém, e o paralisa. O medo vem de si, a paralisia é sua. Estou certa de que o Texto modificou o corpo dos homens. [...] (De: Um Falcão no Punho. Diário I, 1985)

2.

[O corpo perceptivo e o corpo activo] … o meu corpo perceptivo aos poucos se sincroniza com o corpo que, em verdade e em potência, realiza num só instante de mútuo todas as virtualidades activas. (De: Finita. Diário 2, 1988) Governar um livro foi o que eu mais desejei, ficando sempre aquém; sou um corpo de ver, e não agir; sou um cosmos de meditar. (De: Causa Amante, 1984)

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… penso que as beguinas sabiam que o amor (a amizade, a paixão, o segredo) têm lugar no corpo, mas muito pouco lugar; ele é uma manifestação do espírito que é tão corpóreo como esta mão que escreve… (De: Um Beijo Dado Mais Tarde, 1990)

3. [1973] — A palavra é um dos meios de acção do corpo […] A palavra é uma escrita do corpo: espécie de contabilidade que exprime conflitos e tensões. Desse modo se revela o código íntimo do corpo àqueles que estão dispostos (predispostos) a isso. 11 de Outubro de 1990 Vem-me a ideia de anotar como se vive no dia a dia. Para certas pessoas, o mais importante é agir; para outras pessoas, o mais importante é agir no mundo novo — ver como se comporta o pensamento sobre o corpo quando o corpo se lembra de que existem outras relações para além das relações óbvias_______ (De: A Palavra Imediata. Livro de Horas IV, 2014)

4. Eu leio assim este livro: há três coisas que metem medo: a primeira, a segunda e a terceira. A primeira chama-se vazio provocado, a segunda é dito o vazio

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continuado, e a terceira é também chamada o vazio vislumbrado. […] Há, pela última vez o digo, três coisas que metem medo. A terceira é um corp' a 'screver. Só os que passam por lá sabem o que isso é. E que isso justamente a ninguém interessa. O falar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem. Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perda de memória. E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem. Quem há que suporte o Vazio? Talvez Ninguém, nem Livro. […] (De: O Livro das Comunidades, 1977)

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