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o algoritmo do jantar de anos Se convidarmos um grupo de amigos para o nosso jan- tar de anos e quisermos preencher uma mesa de quatro pes- soas, podemos ter de escolher os nosso três companheiros de entre cinco amigos. Mas o António está zangado com a Beatriz, sua antiga namorada. E esta e o Carlos são inseparáveis. Ora o Carlos, que é amigo do António, está de relações cortadas com o Daniel. E este, por seu turno, não dá um passo sem trazer consigo a Eduarda, que não pode ver o António à frente. Como se resolve este quebra-cabe- ças? O melhor é seguir um algoritmo, isto é, um conjunto de regras que estabeleça uma procura sistemática de solução. Os algoritmos são muito caros aos matemáticos e aos cien- tistas da computação. Alguns são muito complicados. Mas por vezes os mais simples são os mais eficientes. No nosso caso, podemos seguir um processo sistemático de procura e de eliminação - um algoritmo bastante eficaz, apesar de simples. Sendo assim, começamos por escolher o nosso amigo A e vemos que não podemos convidar a nossa amiga B; pode-

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Page 1: o algoritmodojantardeanos - Instituto Camões...tadores mais poderosos. Nas décadas seguintes, matemá-ticos, lógicos e especialistas em ciências da computação pro-curaram algoritmos

o algoritmo do jantar de anos

Se convidarmos um grupo de amigos para o nosso jan-tar de anos e quisermos preencher uma mesa de quatro pes-soas, podemos ter de escolher os nosso três companheirosde entre cinco amigos. Mas o António está zangado coma Beatriz, sua antiga namorada. E esta e o Carlos sãoinseparáveis. Ora o Carlos, que é amigo do António, está derelações cortadas com o Daniel. E este, por seu turno, nãodá um passo sem trazer consigo a Eduarda, que não podever o António à frente. Como se resolve este quebra-cabe-ças? O melhor é seguir um algoritmo, isto é, um conjunto deregras que estabeleça uma procura sistemática de solução.Os algoritmos são muito caros aos matemáticos e aos cien-tistas da computação. Alguns são muito complicados. Maspor vezes os mais simples são os mais eficientes. No nossocaso, podemos seguir um processo sistemático de procura ede eliminação - um algoritmo bastante eficaz, apesar desimples.

Sendo assim, começamos por escolher o nosso amigo A evemos que não podemos convidar a nossa amiga B; pode-

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ríamos convidar C, mas este não vem se não vier B; e assimpor diante. Como não há solução contendo A, tentamos denovo, começando desta vez por B, e assim continuamos, atéencontrar três amigos para o jantar. Será que isso é possível,neste caso? Ou será que temos de desistir, forçados a reco-nhecer, tristemente, que as desavenças humanas são maiscomplicadas que os algoritmos?

Os quebra-cabeças deste tipo são conhecidos como pro-blemas de satisfabilidade - ou de satisfação, para quemnão goste de palavras novas desnecessárias. Os matemáti-cos ultrapassam o dilema chamando-lhes problemas SAT,oque satisfaz toda a gente. O jantar acima é um exemplo doschamados problemas 2-SAT,pois cada restrição engloba duasvariáveis (<<A ou B», «A e C», etc.). Mas o problema podecomplicar-se se o António, o Carlos e o Daniel foreminseparáveis, ou seja, se tivermos de considerar três variá-veis em cada restrição (<<A e B e C», ou «A e C ou D», etc.).Estes outros problemas são conhecidos como problemas3-SAT.E podem imaginar-se restrições de tipo mais geral,criando os chamados problemas lc-SAT.

Tudo isto pode parecer trivial, mas tem aplicações emmuitas áreas fundamentais, como a feitura de horários emgrandes escolas, a organização de conferências ou a plani-ficação de voos de uma companhia aérea. Está na base deum novo ramo da matemática conhecido como complexi-dade computacional. Quando estes problemas eram solu-cionados' manualmente, um a um, era difícil estudar muitasdas suas características. A partir do momento em que pas-saram a poder ser resolvidos em computador, procurou-seestudar a complexidade dos processos de solução, os taisalgoritmos, e começou-se a estimar o tempo que um com-putador leva a resolvê-los.

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Em 1959,Richard Karp, então um jovem matemático com24 anos de idade, acabado de se doutorar em Harvard, come-çou a trabalhar no centro de investigação da IBM e foi encar-regado de procurar um processo automático de desenho decircuitos com um mínimo de transístores. Traduzido numprograma de computador, o algoritmo limitava-se a explo-rar todos os circuitos possíveis e a calcular o seu custo. Maistarde, em 1985,ao receber o prestigiado prémio Turing, Karprecordaria que essa abordagem parecia simples, mas tinhauma falha fundamental: «À medida que o número de variá-veis aumentava, o número de circuitos que o programa tinhade estudar crescia a um ritmo vertiginoso e, consequente-mente, nunca pudemos avançar para além da solução deproblemas infantis.»

Karp, que passaria ainda uma década na IBM antes de setornar professor em Caltech, tinha verificado directamenteum fenómeno que veio a ocupar centenas de investigadorese a originar milhares de estudos: os problemas podem sersimples e as técnicas fáceis de aplicar, mas podem tornar-serapidamente impossíveis de tratar, mesmo com os compu-tadores mais poderosos. Nas décadas seguintes, matemá-ticos, lógicos e especialistas em ciências da computação pro-curaram algoritmos mais eficazes, mas chegaram sempre aomesmo resultado: há problemas que são facilmente resolú-veis, e cuja complexidade aumenta de forma controlada, ehá problemas que rapidamente se tornam impossíveis deresolver, pois a sua complexidade cresce exponencialmentecom o número de variáveis e restrições.

Actualmente distinguem-se os chamados problemas detipo P,em que a complexidade aumenta de forma polinomialcom o aumento de variáveis, e os problemas de tipo NP--completo (não determinístico polinomial), em que apenas

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se conhecem algoritmos que necessitam de um tempo cres-cente de forma mais que polinomial, portanto incomportávelquando o número de variáveis aumenta. Não se sabe aindase os problemas tipo NP-completo, que são formalmenteredutíveis uns aos outros, são passíveis de abordagem maissimples, tipo P Esta questão foi abordada há 15 anos porKarp, na altura em que recebeu o prémio Turing, mas con-tinua a ser o grande problema em aberto das ciências dacomputação. Os especialistas assumem que se trata de doistipos diferentes e irredutíveis de problemas, mas ainda nãoo conseguiram demonstrar.

O nosso jantar de anos, que era um problema 2-SAT,erade tipo P Se em vez de termos de escolher três amigos deentre cinco, tivermos de escolher 30 de entre 50, um progra-ma de computador pode encontrar rapidamente uma solu-ção. E, se formos secretários das Nações Unidas e tivermosde escolher 300 pessoas de um grupo de 500, o computadorpode espernear um pouco mais, e acabar por encontrar umaresposta, ou mostrar-nos que não há solução possível, o queé igualmente importante.

Estranhamente, se passarmos a um problema 3-SAT,emque há restrições da forma «ou o António e a Beatriz ou oCarlos de fora», entramos num mundo diferente. Cruzamosa fronteira entre os problemas de tipo P, em que acabare-mos por encontrar uma solução, para problemas de tipoNP-completo, em que basta termos umas dezenas de ami-gos para não haver computador no mundo que nos permitajantar a tempo e horas.

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A MATEMÁTICA DAS COISAS: DO PAPELM AOS ATACADORES DE SAPATOS, DO GPS ÁS RODAS DENTADAS I NUNO CRATO

AUTOR(ES): Crato Nuno 1952-; Santos José Carlos, ed. lit.; Valente Guilherme, ed.lit.

EDiÇÃO: 40 ed.PUBLICAÇÃO: Lisboa: Gradiva 2008

DESCR. FfsICA: 245 p. : il. ; 23 em

COLECÇÃO: Temas de Matemática / José Carlos Santos / Guilherme Valente; 6

ISBN: 978-989-616-241-2