notas de aulas -...

99
DISCIPLINA: ANÁLISE DA INFORMAÇÃO PROFESSORA: GENI CHAVES FERNANDES NOTAS DE AULAS Rio de Janeiro 2012 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO DEPARTAMENTO DE PROCESSOS TÉCNICO-DOCUMENTAIS

Upload: dangdang

Post on 03-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DISCIPLINA: ANÁLISE DA INFORMAÇÃO PROFESSORA: GENI CHAVES FERNANDES

NOTAS DE AULAS

Rio de Janeiro2012

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIODEPARTAMENTO DE PROCESSOS TÉCNICO-DOCUMENTAIS

SUMÁRIO Página

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 21 REPRESENTAÇÃO............................................................................................. 31.1 Algumas Considerações sobre Representação ................................................. 41.2 O que é Uma Boa Representação? ................................................................... 51.3 A Filosofia Grega, Base do Objetivismo.............................................................. 61.4 Concepções Modernas: o Subjetivismo.............................................................. 121.5 Algumas Concepções Contemporâneas: Cognitivismo, Construtivismo e

Hermenêutica ...................................................................................................... 14

2 MEMÓRIA............................................................................................................ 212.1 O Que se Tem Entendido por Memória?............................................................ 212.2 A Ciência História e as Instituições de Memória.................................................. 252.3 Memória, História e Progresso: os Questionadores............................................ 272.4 A Memória e Seus Acompanhantes..................................................................... 32

3 DOCUMENTO...................................................................................................... 363.1 Da Inscrição ao Documento................................................................................. 363.2 Documento no Renascimento.................................. ........................................... 373.3 Expansão do Conceito de Documento: Séculos 19/20........................................ 383.4 Reflexões Após a Segunda Guerra Mundial........................................................ 41

4 ANÁLISE DOCUMENTÁRIA COMO PRÁTICA DOCUMENTÁRIA..................... 454.1 As Práticas Documentárias.................................................................................. 454.2 Funções Específicas da Análise Documentária................................................... 48

5 OBJETIVOS USUÁRIOS E ANÁLISE DOCUMENTÁRIA .................................. 53

6 CATEGORIZAÇÃO E ELEMENTOS DESCRITIVOS ......................................... 606.1. As categorias aristotélicas .................................................................................. 616.2 Análise Documentária para Catalogação............................................................ 636.3 A Ordem dos Objetos Museológicos................................................................... 646.4 A Ordem dos Livros............................................................................................ 65

7 MEDIAÇÃO COMO PRÁTICA DOCUMENTÁRIA............................................... 66

8 CONSTRUÇÃO DE INSTRUMENTOS DESCRITORES E CATALOGAÇÃO .... 688.1 A Descrição Bibliográfica – FRBR ..................................................................... 718.2 A Descrição Museográfica – CRM ...................................................................... 76

9 METADADOS E NORMALIZAÇÃO DE CAMPOS DE DADOS........................... 79

10 INSTRUMENTOS PARA ORGANIZAÇÃO DE ASSUNTOS E OBJETOS ........ 8110.1 Sistemas de Classificação ................................................................................. 8110.2 Vocabulários ...................................................................................................... 8510.3 Tesauros e Ontologias ....................................................................................... 86

11 POLÍTICA PARA ANÁLISE DOCUMENTÁRIA.................................................... 90

ANEXOS...................................................................................................... 92ANEXO 1 A deusa Memória e algumas concepções do período arcaico na Grécia Antiga .................................................................................................ANEXO 2 Mito Platônico da Criação do Homem ......................................ANEXO 3 A Escola do Legislador na República de Platão....................... ANEXO E 4 O Mito de Tót – A invenção da escrita .........................................

2

INTRODUÇÃO

Para entender o que seja Análise da Informação devemos ter em mente que o termo‘informação’, no campo de estudos da informação, remete a um fenômeno de cunhosocial, mesmo que aquele que reconheça ou utilize algo que considere ser informaçãoseja um sujeito individual. Informação é um fenômeno relacional, um meio queproporciona relações entre sujeitos e entre coletivos separados no espaço ou notempo. Também devemos compreender que o termo informação refere-se, enquantoconceito do campo de estudos da informação, não ao senso comum, mas a um objetode estudo que vem sendo construído por seu exame, a partir da relevância e do papelque a informação adquiriu na sociedade ocidental, especialmente após a segundaGuerra Mundial.

A possibilidade de se aceitar algo como sendo informação assenta-se na credibilidadeque podemos ter ou não naquilo que se propõe a nós como uma informação. Não setrata aqui de sua ‘veracidade’, mas de sua origem, critérios de validação e de partilha.Como veremos no decorrer deste curso, tal identificação deve-se, sobretudo, ao fatoda informação, no campo de estudos da ciência da informação, ter como origem osdocumentos. Isto não significa que no senso comum ou em outras disciplinas o termoremeta para outros tipos de fenômenos. Mas, nos estudos da CI, uma análise dainformação está compreendida numa análise documentária.

A Análise Documentária abrange um amplo conjunto de estudos, com aplicações efinalidades diversas. Podemos destacar que a Análise Documentária é auxiliar nosseguintes estudos:

- Estudo dos documentos e acervos em termos de sua constituição e características(critérios de validade);

- Estudo dos fatores que levam a constituir e a manter documentos (memória; históriae direitos);

- Estudo da tipologia dos documentos e suas características (macroestruturadocumentária);

- Estudo das formas de organização documental (Organização do conhecimento:descritiva e temática);

- Estudo dos métodos e critérios para representação documental (Representaçãodescritiva e temática);

- Estudo dos desdobramentos e efeitos da disponibilização de documentos a partir deprodutos informativos.

Partindo do documento para chegar à sua informatividade, vamos tratar de examinar oentendimento de representação e optar por um alicerce teórico que nos sirva de guiadurante o curso. Uma vez que o documento é um dos modos contemporâneos deguarda da memória, vamos pensar um pouco como ele aparece como umatestemunha do passado. Finalmente chegaremos a indagar o que se entende pordocumento a partir das definições para documento que aparecem no campo. Uma vezcompreendido o documento em seu contexto de produção podemos mais facilmenteentender a função informacional.

Para se dar acesso aos documentos, lançamos mão de um representante. Neste caso,a análise da informação, ou análise documentária, é uma forma de intermediação. Odocumento não é qualquer coisa, mas aquilo que foi considerado como relevante paracompor um acervo, uma coleção, um arquivo. Uma reserva, uma operação de seleção,de salvamento, de guarda.

3

1 REPRESENTAÇÃO

O acesso aos documentos que vão sendo produzidos e preservados em acervos sefaz, na maior parte das vezes, por meio de produtos (artefatos) que servem parafacilitar sua localização, economizando tempo e esforços. Tais artefatos sãoconstituídos com variados pontos de acesso que permitem localizar documentos apartir de inúmeros de seus aspectos, tais como: seu autor, seu tipo, tamanho, produtor,local de produção, fabricação, edição, assunto que trata etc. Tais quesitos não são odocumento, ou ao menos não são documentos primários, mas documentos derivadosque funcionam como indicadores ou apontadores fortemente relacionados com ocontexto sócio-cultural, historicamente delimitado, que tece atributos aos objetos/documentos primários. Se uma semente pertence ao bioma do Cerrado, isto não seencontra nela impresso ou inscrito. Se um livro apresenta explicitamente o nome deseu autor, nem sempre foi assim.

Para uma larga gama de tipos documentais os modos de seu uso de sua procura(estou procurando um disco de Chico Buarque para presentear um amigo; estouprocurando um livro sobre astrologia porque quero fazer meu mapa astral; estouprocurando os objetos que eram utilizados para castigar marinheiros no Brasil noperíodo da Revolta das Chibatas, porque quero descrevê-los em meu TCC) costumamconstituir normas e padrões de sua produção, de maneira que é possível identificar oque podemos chamar de macroestruturas documentais que caracterizam tipos dedocumentos. São elementos razoavelmente padronizados que estão presentes ouevidentes nos documentos porque costumeiramente são considerados comoinformações importantes de identificação para diversos usos. Nos livros, a paginação,nome do autor ou autores, o título, o sumário, a editora, dentre outros, constituempadrões do formato/tipo, que foram elementos tradicionalmente considerados objetode sua identificação para quem os procura.

Entretanto, podemos dizer que tal macroestrutura não se limita ao que podemosencontrar nestes objetos. Podemos mesmo dizer que o modo como costumeiramenteem um tempo/lugar ou em um contexto (na historiografia; na cinematografia, nabiblioteca escolar) costuma-se descrever cada tipo de objeto segundo certos quesitosconsiderados como seus caracterizadores (pertenceu ao Barão de Mauá; é produto doséculo 18), que constituem também uma macroestrutura documentária.

De um modo geral, nas áreas que trabalham com a descrição informacional dosdocumentos, a este conjunto de quesitos costuma-se chamar “representação”. Otermo, entretanto, não deve nos levar a concluir que se trata de uma “cópia” dodocumento e nem de uma “cópia” de um modelo mental do documento. Parapensarmos um pouco mais sobre isso, vejamos algumas discussões sobre aRepresentação.

1.1 Algumas Considerações sobre Representação

Comecemos por algumas conceituações de representação.

representação. s.f. [...] Ato de tornar presente ou sensível ao espírito,à memória, por meio de uma imagem, de uma figura, de um sinalqualquer; imagem, símbolo, alegoria: Representação de uma coisaabstrata por uma figura, por um desenho. Ação de ser o mandatáriode alguém.representante, adj. [...] diz-se de pessoa ou coisa tomada comomodelo, como tipo de uma classe, de uma categoria s.f. [...] Aqueleou aquela que, numa sucessão, herda no lugar de outra pessoa,falecida antes, a representada. (HOUAISS, 1971, p. 5762).

4

A enciclopédia aponta três elementos: a representação, que pode ser tanto uma açãocomo o resultado da ação; o representante, que é o que fica no lugar dorepresentado e o representado, figura central. Também encontramos elementosdo direito – herança.

Seguindo esta noção de herança também podemos pensar a representação naatividade dos historiadores que constroem narrativas do passado. Vamos emfrente, no exame do que alguns autores falam acerca da representação:

Chartier expõe-nos a dupla função da representação: ‘arepresentação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõeuma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que érepresentado; por outro, a representação como exibição de umapresença, como apresentação pública de algo ou alguém’ (Chartier,1990, p. 20). Um quadro ou um ator no palco tanto evoca e substituia realidade que representa, como também pode distorcê-la [...]A estabilidade das representações é garantida por seu aspectocompartilhado, consensual e nesse sentido pouco importa sua basereal. Não há sentido ou mesmo utilidade em afirmar a existência darealidade por si mesma um mundo objetivo tal como pugnam os"realistas" de diferentes matizes, se ela só é conhecida por suasrepresentações. As representações se tornam tangíveis para o grupoconsiderado já que seus membros acreditam em sua existência. Arepresentação não é apenas a expressão simbólica da realidadecomo sua via de acesso, ou seja, deriva da atividade do homem e adireciona, é simultaneamente produto e processo. Refere-se àtransformação do não-famililar em familiar, quando o novo éincorporado a categorias preexistentes e se torna senso comum. Naperspectiva desta teoria e das pesquisas por ela motivadas, significaapreender a ancoragem e a objetivação em que são geradas edesenvolvidas. (CARVALHO; ARRUDA, 2008).

A representação de algo deve ser indicador familiar e em comum para um grupo e talaceitação pode decorrer do consenso. Mas, enquanto manifestação de poder, tambémpode resultar em uma violência simbólica, que obriga a todos a aceitarem, geralmenteinconscientemente, uma única representação que é do interesse de um grupoparticular.

Mas sigamos com o verbete em um dicionário de filosofia

Representação: operação pela qual a mente tem presente em simesma uma imagem mental, uma idéia ou um conceitocorrespondendo a um objeto externo. A função de representação éexatamente a de tornar presente à consciência a realidade externa,tornando-a um objeto da consciência, e estabelecendo assim arelação entre a consciência e o real. A noção de representaçãogeralmente define-se por analogia com a visão e com o ato de formaruma imagem de algo, tratando-se no caso de uma imagem não-sensível, não-visual. Essa noção tem um papel central nopensamento moderno, sobretudo no racionalismo cartesiano e nafilosofia da consciência. Sob vários aspectos, entretanto, a relação derepresentação parece problemática, sendo por vezes entendidacomo uma relação causal entre o objeto externo e a consciência,por vezes como uma correlação de correspondência esemelhança. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 235 – grifonosso).

5

Grifamos na definição do dicionário de filosofia uma série de aspectos que podem nosinteressar. Tomemos primeiro que a representação faz uma analogia entre aconsciência e o real. Mais abaixo, entretanto, esta relação é apontada comoproblemática. Haveria dois entendimentos problemáticos da representação:aquele que faz uma relação causal entre o objeto e a consciência (ou entre aconsciência e o objeto) numa correlação de semelhança. Não é incomum que sepense na representação como algo similar, como uma espécie de cópia dosobjetos que percebemos, ou como cópia de nossas percepções dos objetos.Entretanto, vamos preferir entender a representação como algo que aponta, quenos indica, auxiliando a encontrar aquilo que procuramos.

A representação tanto é algo próprio de todo e qualquer indivíduo (consciência ememória) como é temática de campos de conhecimento como o direito, a história, amuseologia, a arquivologia, a biblioteconomia, a ciência da informação, a filosofia eoutras. Quando pensamos nos representantes enquanto resultado da ação derepresentação de algo, vamos nos deparar com uma série de mediadores, que sãoaqueles que constituem representantes para tornar um ausente, presente. São sujeitosindividuais ou coletivos (grupos), historiadores, filósofos, profissionais de informação,dentre outros.

Representação

Representado Representante

Real / realidade Imagem

Passado Conhecimento

Antepassado Lembranças

Coisas Narrativas históricas

Etiquetas ou Termos

Os problemas na representação estarão relacionados com a diversidade derepresentantes que podem ser criados para um mesmo representado (dependendo dequem é o mediador), com uma disputa de autoridade para realizar a representação(quem é reconhecido como habilitado a representar), com os métodos empregados naprodução de representantes e com o entendimento do que seja representar e quais osseus limites. Aqui veremos termos como verdadeiro, autêntico, representativo, originaletc. e seus antônimos nos debates sobre a representação.

Os diversos entendimentos que podemos identificar nos dias de hoje do que seentende por representar nos chegam como heranças, especialmente do pensamentofilosófico. Portanto, não existe um entendimento único do que seja representação erepresentar, mas uma concorrência de concepções diferentes, que de um modo geraltêm sustentação em concepções filosóficas. Assim, um breve exame aí será útil paratratarmos da Análise Documentária.

1.2 O Que é uma Boa Representação?

Bem, como vimos, a questão de uma representação ser boa, adequada, consensualou representativa varia de grupo para grupo e cada qual gostaria de mostrar que seuscritérios para criar representações são os melhores. Se Deus tivesse publicado umlivro de como fazer representações, tudo seria mais fácil, mas também muito maischato e sem encantamento. Na inexistência de tal livro, cada grupo procura

6

MEDIADORES

argumentar algum tipo de base ou de fundamento que garante que seus critérios derepresentação são os melhores.

Para criarmos uma breve síntese de posições sobre a representação primeiro vamosentender que a noção de representação esteve e está relacionada com a noção deverdade. A noção de verdade, por seu turno, tipo “o que é a verdade?”, “o que podegarantir que uma afirmação é verdadeira”, “quais os fundamentos para umconhecimento seguro – verdadeiro?” não é unânime.

Desde o mundo grego antigo estabeleceram-se controvérsias sobre o que é ou comose garantir a verdade, que parecem ainda não ter chegado a um ponto final.

1.3. A Filosofia Grega, Base do Objetivismo

Sofística e Retórica: A Opinião

A maior parte, que já não é muito, daquilo que se sabe acerca dos sofistas chegou atéhoje em escritos feitos por seus antagonistas. Se levarmos em conta que na “queda debraços” entre sofistas e a filosofia metafísica emergente foi esta última quem deixou amarca mais profunda na história do pensamento ocidental, não é de admirar que ostermos sofista e sofisma sejam pejorativos. Mas sofista é uma palavra relativa àSophia, que originalmente significava em grego um saber, tal que o “[...] sophos, sábio,era o perito no seu ofício, fosse qual fosse.” (CHAUÍ, 2002, p. 160). Só depois apalavra veio a significar o objeto da filosofia, como um verdadeiro conhecimento(episteme) contemplativo.

Os sofistas, que viajavam de cidade em cidade para ensinar, conheciam diferentesformas pelas quais os homens entendiam as coisas, assim como diferentes modos derelações sócio-políticas, portanto, ensinavam que os cidadãos podiam criar normas ouleis (nómoi) diferentes, que funcionavam igualmente, desde que adequadas àscircunstâncias. Eram professores profissionais e ensinavam especialmente a retórica,que era um modo de argumentação com vistas a persuadir o ouvinte. No século IVacabaram sendo substituídos por escolas organizadas, frequentemente com prédiospróprios no modelo da Academia de Platão e do Liceu de Aristóteles (KERFERD,2003, p. 75).

A palavra (o dizer - dóxa), na retórica, não tinha nenhuma pretensão de revelar (não éaletheia revelação, verdade), mas de ser útil para convencer e persuadir, levando aoconsenso. Os gregos, incluindo os atenienses, tinham grande interesse em aprender aarte de bem falar com estes técnicos da palavra. Tal habilidade tantos lhes podia valernos tribunais do júri, para convencer aos jurados, como para argumentar nasassembléias, vencendo oponentes políticos. Já o termo aletheia, em grego, que veio aser traduzido como “verdade” estava relacionado com a justiça, com a retidão, já otermo grego dóxa, que veio a ser traduzido como opinião, estaria ligada ao instável, aoambíguo, ao inexato. A dóxa, opinião, é aquilo que se fala e se ouve nas reuniões eassembléias e depende do momento e das circunstâncias; atrela-se a “[...] tomar opartido que se considera melhor adaptado a uma situação. Dóxa veicula, então, duasidéias solidárias: a de uma escolha, e a de uma escolha que varia em função de umasituação.” (DETTIENNE, 1988, p. 60).

Havia em Atenas, neste período (século V a.C.), dois partidos políticos. O dosaristocratas defendia que leis e costumes eram naturais, portanto, obedeciam ànatureza e não podiam ser mudados. O partido democrata afinava-se com os sofistas.Para estes as leis e costumes não eram naturais, mas vinham de antigas convenções.Para os sofistas a organização social (classes e suas relações), a justiça, a moral etc.eram convenções e, como tais, poderiam ser mudadas de acordo com asnecessidades do momento. É claro que para aqueles a quem as “convenções”vigentes eram favoráveis à idéia de mudança não era bem-vinda.

7

Os aristocratas temiam que o ensino dos sofistas (retórica) tornasse outras classescapazes de dominar nas assembléias e faziam críticas constantes a eles, comoestrangeiros que queriam ensinar a virtude cívica, a moral ou a política aosatenienses. Seu argumento principal era que estas virtudes cívica, moral ou políticanão podiam ser ensinadas, muito menos por um estrangeiro.

Grande sofista, Protágoras de Abdera foi para Atenas em meados do século V a.C.Sua frase mais conhecida é: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, oque elas são, e das que não são, o que elas não são.” Então, todo conhecimento, todosaber, todo fazer, que a tudo faz e conhece, depende do homem, quer dizer, arealidade depende do homem e não das coisas.

Explica Protágoras: os homens criaram inúmeras técnicas (caça,pesca, agricultura, metalurgia, tecelagem, olaria, carpintaria,marcenaria, navegação, comércio, estratégia, medicina, poética etc.),mas estas nem sempre estão em harmonia e concordância, pois umatécnica ao ser boa para um certo fim poderá ser prejudicial paraoutro, ou uma técnica pode prejudicar o exercício de outra. É precisocompatibilizá-las, eliminando o conflito entre elas, encontrando umamedida para isso. Essa medida só pode ser uma técnica capaz demoderar todas as outras, adequando-as entre si e harmonizandoseus meios e fins. Essa técnica moderadora, medida das demais, é apolítica, arte moderadora dos conflitos e instituidora da lei ou nómos[convenção]. Se a justiça é o equilíbrio de forças e a reparação defaltas, somente a política é capaz de conciliar, em cada cidade, onómos e a díke, isto é, a lei e a justiça. A lei ou nómos é a medida detodas as coisas e o critério para avaliar e regular as técnicas. Essaregulação ou moderação obedece a três normas: 1) definir quem teme quem não tem a competência técnica; 2) ensinar todas as técnicasem conjunto para que cada um corrija os excessos e faltas dasoutras, tornando-as proporcionais entre si; 3) as diferenças dostempos, dos lugares e das circunstâncias engendram nómoidiferentes e a lei deve determinar, em conformidade com os tempos,lugares e circunstâncias, quais são as técnicas necessárias emelhores para uma cidade. (CHAUÍ, 2002, p. 71).

Sócrates e Platão eram filósofos que se opunham aos sofistas e afirmavam que asvirtudes políticas não podiam ser ensinadas por estes estrangeiros. Platão escreveuum texto intitulado Protágoras, onde utiliza uma história mítica para afirmar que avirtude política é inata aos cidadãos. É uma espécie de resposta aos argumentosdeste sofista. A história conta a criação das raças mortais (homens e animais). Doisdeuses titãs (Prometeu e Epimeteu) ficaram encarregados de distribuir qualidades,existentes em quantidade limitada entre elas, mantendo o equilíbrio. E depois de haverdistribuído todas as qualidades, Epimeteu viu que não havia dado nenhuma aohomem. Para proteger o homem das outras criaturas, Prometeu lhes ensinou atécnica, incluindo a de forjar armas para defesa. Mas com as armas e sem possuírema arte política os homens começaram a matar uns aos outros. Então Zeus, para salvaros homens, dá a cada um a arte política (APÊNDICE 1). É a resposta de Platãoàqueles que querem ensinar aquilo que ele diz já ser próprio de cada cidadão.

O governo da cidade não era, do ponto de vista de Platão e Sócrates, algo que deveriaoriginar-se do consenso entre os cidadãos, antes deveria basear-se no conhecimento.Para Platão, o rei de sua república idealizada deveria ser o filósofo, que saberia bemconduzir a polis (cidade). (APÊNDICE 2).

As diferenças entre os sofistas e os filósofos passam por disputas políticas (de poder)e pelo receio de que escolhas erradas, feitas pelos cidadãos na ágora (praça centraldas cidades gregas onde os cidadãos se reuniam para apresentar suas propostaspolíticas e votarem nas que consideravam melhores), implicassem em desequilíbrio edegradação da cidade. Embora os gregos ainda acreditassem em seus deuses, eles

8

não tinham mais a força do período mítico. No período mítico entendia-se que osdeuses garantiam o equilíbrio (a sobrevivência) ou que restauravam o equilíbrioquando alguém agia no sentido do desequilíbrio. As normas da vida em grupo, antesemitidas pelo rei de justiça, guiado pelos deuses, agora são propostas por qualquerum e escolhidas através do voto na ágora. Serão propostas e escolhas equilibradas?

Os sofistas, representados aqui por Protágoras e Gorgias, davam acento ao homem.Para Kerferd, estudioso dos sofistas, Protágoras, ao dizer que “o homem é a medidade todas as coisas”, estaria afirmando que quando atribuímos qualidades às coisas,não há como considerar tais afirmações como erradas. “Se alguma coisa me parecedoce, então é doce para mim, e isso não pode ser refutado pela experiência de outrapessoa que a percebe como não doce [...]” (KERFERD, 2003, p. 151). Todas aspercepções são igualmente verdadeiras (não há uma verdadeira e as demais falsas).A retórica é a importante arte de, diante de afirmações contrárias, persuadir para umacordo.

Já para Górgias as qualidades que se possa atribuir sobre uma coisa são apenasdizeres e não uma revelação do que a coisa é nela mesma. Ora, para este sofistas,não podemos saber o que as coisas são nelas e muito menos confundir isto com o quesobre elas dizemos. Então, duas afirmações diferentes sobre uma mesma coisa sãoigualmente enganosas (no sentido de que não correspondem à coisa mesma). Devehaver uma dentre elas capaz de persuadir, de envolver as almas (levar a um acordo).(KERFERD, 2003, p. 174). Resumindo (sofistas):

- não há “uma” representação verdadeira, sendo as demais falsas.

- a representação de algo varia de uma pessoa a outra e nenhuma delas podeser rejeitada como falsa.

- a representação não corresponde às coisas, é limitada àquilo que digo acercadelas.

- deve haver algum tipo de acordo para que haja uma representação aceita portodos.

- boas representações acordadas variam de um grupo para outro e no tempo,conforme as circunstâncias.

Platão e Sócrates

Já Platão e Sócrates tinham noções bem diferentes do conhecimento. Seguindo adoutrina pitagórica, acreditavam na reencarnação da alma. A metempsicose (doutrinada reencarnação) entendia a alma como algo que não era apenas separada damatéria, mas constituía uma individualidade, quem alguém realmente é.

Sócrates lembra-se do oráculo de Delfos, “conhece-te a ti mesmo”, de maneira quesua conhecida frase, “só sei que nada sei” pode ser entendida como condição doaprendizado de si mesmo: só está apto a conhecer a si mesmo aquele que percebesua ignorância. Mas por que a verdade deve ser encontrada dentro de si mesmo?

Segundo a concepção platônica da origem do mundo, a alma de todo homem, antesde encarnar, contemplou (conheceu) todas as verdades, que são formas imateriais eque deram origens a todas as coisas deste mundo que habitamos, o mundo sensível.Esta contemplação é o que dá ao homem conhecimento verdadeiro, estável, porqueestas formas são eternas, não mudam. Tal conhecimento foi apreendido pela alma,intelectualmente, racionalmente (a alma não tem olhos). Mas quando as almasencarnam, elas esquecem o que contemplaram. Daí Sócrates e, depois, Platão,considerarem que conhecer é recordar-se destas verdades que foram esquecidas, é

9

chegar a algo que se encontra impresso na alma e não deriva das coisas externas (esensíveis) que se apreende com os sentidos (do corpo: audição, olfato, visão etc.).

Para Platão, o mundo sensível (percebido pelos nossos sentidos) em que vivemos foiproduzido por um deus artesão que, tomando a matéria, lhe deu formas que copiou domundo inteligível (não material). O mundo inteligível seria constituído, por seu turno,pelo que chamava de Idéias ou Formas (Eîdos) permanentes, perfeitas e delimitas. AsFormas são belas (harmonia), boas (nada lhes falta ou sobra) e verdadeiras(essência). Todas as coisas existentes no mundo sensível são cópias (imperfeitas) dasFormas do mundo inteligível.

Com base na metempsicose (reencarnação) e seguindo o ensinamento de Sócratesde que conhecer é lembrar-se, Platão colocaria a alma humana (corresponde tambémà memória e razão) como a conexão entre os dois mundos: o permanente e o mutável.A alma participaria, antes de encarnar, do mundo inteligível, contemplando as Formas,sabendo, portanto, as essências (verdades). Ao encarnar, a alma esquece o quecontemplou.

No texto em diálogo chamado de Banquete, Platão ensina um método pararecordarmos as Formas. A Forma em questão é o Belo. Se alguém contemplou algoperfeito (uma Forma, neste caso o Belo ou a Beleza), terá saudades desta perfeição. Apaixão por alguém belo deriva desta saudade. Mas como nos esquecemos aquilo quenos torna saudoso (a Forma Belo), o que nos "lembra" o objeto de nossa saudadepode confundir-se com ele. Daí, precisamos de um método para chegar ao querealmente estamos procurando.

A arte amorosa se dirige primeiramente a um corpo belo, que dá origem a belaspalavras. Mas, depois o amante verá que existem outros corpos belos e, então,amará a todos os corpos belos. Mais tarde passará a considerar a bela alma em umcorpo e a amará e, depois, às almas belas. Assim poderá contemplar a beleza doscostumes e das leis, passando a perceber a beleza do corpo como algo menosimportante. Amará depois o conhecimento e a partir dele contemplará a vasta belezaque existe nas mais diversas coisas. Neste ponto verá que a beleza é algo eterno,que não aumenta ou diminui e não se compara às coisas belas ou feias. Entenderáque a Beleza “[...] existe em si mesma e por si mesma, sempre idêntica e da qualparticipam todas as demais coisas belas [...] Cumpre subir usando desses belosobjetos visíveis como que de degraus de um escada [...até] o conhecimento da BelezaAbsoluta.” (PLATÃO, Banquete, 1996, p. 116).

Os entes belos serviriam, então, como auxílios nas recordações. Mas o que se busca,a Beleza (neste caso), não está nestes entes que devem ser utilizados como degrausna ascese à Forma da Beleza. Deter-se num ente belo, buscando nele saciar asaudade que a alma tem da Idéia de Beleza, é parar pelo meio do caminho, iludido deter-se achado o que procura (Beleza Absoluta e Eterna) num ente imperfeito e queperece. O método classificatório indutivo tem por fio condutor algo que se busca, nestecaso O Belo. Os entes sensíveis semelhantes e dessemelhantes servem comodegraus em uma escada e devem ser ultrapassados até chegar-se à forma buscada. Aforma do Belo é perfeita (unidade e eterna) e a diferença que pudéssemos vir aperceber entre ela quaisquer entes sensíveis belos decorreria da imperfeição destes,de sua degradação (enfeiam, se degradam, findam) e da mistura de característicasque eles apresentam (composição).

Como Platão entende que a beleza, a justiça e a verdade dependem da recordaçãodas Formas, o melhor para a cidade seria o governo do sábio, do filósofo (que maisrecordou ou contemplou Idéias). Por isso propõe um governo na forma de República,onde os critérios de normas e leis estão submetidos ao conhecimento. (Ver Anexo 4)

Se pensarmos em termos de representação, temos aqui o começo remoto de certasnoções associadas ao que seja representar, ou bem representar:

10

- existe apenas uma representação correta, sendo as demais falsas.

- a representação é correta quando corresponde àquilo que é imutável,permanente e não àquilo que é contingente ou mutável.

- a coisa (Forma no caso de Platão) é a causa da representação.

- a representação correta não implica em consenso, mas em unanimidade. Afalta de unanimidade decorre de um erro de método.

Aristóteles

O aluno de Platão, Aristóteles, embora apresentasse algumas discordâncias acercadas noções de seu mestre, foi em frente, traduzindo de modo mais preciso um métodopara se chegar à descrição das coisas. Sua pergunta poderia ser algo como “o que fazcomo que alguma coisa seja ao invés de não ser?”, ou, “quais são as causas, asbases de toda a existência e de todo existente?”.

Por substância designa tudo o existente. Cada ente determinado é uma substância:eu, você, esta cadeira, o gato de minha avó, todos são substâncias. Para Aristóteles, aessência de uma substância não podia ser algo fora dela, mas era ela mesma, tal quea essência de um sujeito determinado [este, João] é o sujeito determinado [este,João]. Portanto, para Aristóteles, não se poderia querer encontrar a essência de“homem”, já que homem é um gênero e somente os sujeitos determinados existem.

Haveria 4 causas (coisas necessárias) para que algo exista: a matéria; a forma; umaação, que faça com que ela venha a existir, e um motivo. As substâncias sãocompostas de matéria (que pode ser qualquer coisa, matéria-prima) e de forma (quefaz com que ela seja alguma coisa determinada e não coisa alguma - indeterminada) enão há matéria separada de forma e vice-versa.

Aristóteles explica que as substâncias se apresentam em ato (como são atualmente) eem potência (o que está embutido nelas como um DNA, mas que ainda não podemosperceber). Aquilo que guia a substância, durante sua existência, em vista de realizartodas as suas potencialidades é a forma. Assim, parece-nos que um ovo se transformaem um pintinho. Mas, na verdade, esta substância apenas atualiza suaspotencialidades. Um ovo já era um pinto em potencial (mesmo que não se visse). E opinto se torna um frango e este um galo. As mudanças que vamos percebendo nãosão propriamente mudanças, mas as atualizações das potencialidades que já existiamnaquela substância, sustância que é sempre igual, não muda nunca (substância =atualidade + potencialidades). Diz Aristóteles, que uma substância jamais realiza umaimpossibilidade. Quer dizer que tudo aquilo que aparece em uma substância já existianela potencialmente, portanto, é o que ela já podia ser.

O real é a medida de julgamento da afirmação. É também a causa da classificaçãodas proposições entre necessárias, impossíveis e possíveis. Uma proposição podeafirmar ou negar uma característica a uma coisa. Se a afirmação une o que está unidona realidade e separa o que está separado na realidade, ela é verdadeira, do contrárioé falsa. Peixe é um animal invertebrado (falsa); peixe é um animal vertebrado(verdadeira). Esta cocoroca é um animal invertebrado (falsa). Este peixe não temescamas (possível).Das argumentações de Aristóteles nos interessa que elas têm repercussão até hoje noentendimento do que seja conhecer e em sua relação com a representação dascoisas. As coisas não são verdadeiras ou falsas (cópias), mas o que dizemos sobreelas pode ser falso ou verdadeiro. Nossas afirmações são verdadeiras quandocorrespondem ao que as coisas são. As coisas jamais mudam, embora apareçamcomo se estivessem mudando. Juntamente com seu mestre Platão, Aristóteles adere à

11

noção do invariável, daquilo que não muda, como fonte do conhecimento permanentee entende o conhecimento como busca do invariável das coisas.

Pensemos nas implicações deste pensamento nas noções atuais de representação.

- o que digo sobre um objeto singular não pode ser generalizado.

- o que digo (representação) sobre um gênero (intensão da substânciasegunda) pode ser atribuído a qualquer objeto deste gênero (extensão).

Na Grécia antiga se opuseram duas maneiras de entender o conhecimento e de comose deveria dar o entendimento (comunicação) entre os cidadãos, a dos sofistas e ados filósofos. A dos filósofos, mais forte até hoje, quando pensamos a relação entre oconhecimento e a representação, contrapondo o verdadeiro e o falso ou ilusório. Umadescrição verdadeira é aquela que corresponde ao que a coisa é (e não muda),portanto, há uma única descrição verdadeira. O método adequado deve levar àunanimidade.

A dos sofistas afirma que uma descrição é algo contingente e que varia de umapessoa para outra e no tempo/espaço, sendo necessário uma negociação, um acordopara se chegar a um consenso. Diz, ainda, que uma boa descrição aqui/agora não énecessariamente uma boa descrição lá/amanhã.

REFERÊNCIAS:

ARISTOTE. Métaphysique.T.1. Trad:J.Tricot. Paris:Librarie Phylosophyque J.Vrin,1991a.

CARVALHO, Gilberto da Silva; ARRUDA, Ângela. Teoria das representações sociais e história: um diálogo necessário. Paidéia, v. 18, n. 41, set./dez. 2008. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-863X2008000300003&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 de julho de 2009.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia 1: dos pré-socráticos àAristóteles. 2ª ed. São Paulo: companhia das Letras, 2002.

DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Tradução de A. Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

HOUAISS, Antônio (Ed.). Grande enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro:Delta, 1971.

MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. (Séculos VIII-VI a.C.). Tradução de J.R.Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1989.

KERFERD, G.B. O movimento sofista. São Paulo: Loyola, 2003.

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed.revista e ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

PESSANHA, José A. (Dir.). Mitologia. São Paulo: Victor Civita/ Abril Cultural, 1973. v.3.

PLATÃO. Banquete. Tradução Peleikat. In: PLATÃO. Diálogos. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 44 –74. (Clássicos de Bolso).

PLATÃO. Diálogos: Banquete, Fédon, Sofista. 1ª ed. São Paulo: Victor Civita/ Abril Cultural, 1972. (Os Pensadores; III).

12

1.4 Concepções Modernas: Subjetivismo

Os Racionalistas

Na modernidade o entendimento do conhecimento e, com ele, da representação,sofreriam mudanças. Descartes e Kant representam a concepção de que oconhecimento tem por base o sujeito, portanto é subjetivo.

René Descartes é o primeiro pensador desta revolução. Considerava que oconhecimento que tinha aprendido na prática, ou os que lhe haviam sido ensinadospor alguém como duvidosos e inseguros. Descartes considerava que não podia tercerteza absoluta que tudo o que qualquer pessoa lhe houvesse ensinado eraverdadeiro. O que os outros acham, ou o que aprenderam e me repassam, pode serfalso. Também não podia ter certeza que tudo que aprendera a partir de seus sentidosera certificado, já que os sentidos enganam. Eu sinto este suco doce e você o senteamargo, então, não podemos confiar nos sentidos para chegarmos a uma conclusãosegura. As coisas que sentimos (percebemos) são imperfeitas. Há árvores grandes epequenas, com frutos e sem frutos, velhas e novas de modo que fica difícil chegar auma conclusão do que é árvore.

Depois de pensar a origem dos conhecimentos que possuía sobre cada coisa eexaminá-los cuidadosamente, Descartes conclui que não poderia ter certeza quequalquer um deles fosse um bom fundamento, uma base segura, para conhecerverdadeiramente. A única coisa indubitável é que ele, para examinar a segurança dequalquer uma delas, tem de pensar. O pensamento se sustenta firme, mesmo que eletente duvidar se está pensando. Sua frase expressa esta certeza: “Penso, logo existo.”Então, o filósofo conclui que o conhecimento seguro é aquele que parte de seupensamento, de Formas (Idéias) inatas, colocadas nele por Deus. Tudo o que elepudesse deduzir destas formas seria verdadeiro. O pensamento, a consciência, arazão ou, como ele chamava, o bom-senso, é algo que todos os homens partilhamigualmente, assim pensa Descartes. Deste modo, todos, ao examinarem um mesmoaspecto, partindo das Formas (Idéias) devem chegar às mesmas conclusões. Basta,para tanto, que lancem mão do mesmo método. Então teremos unanimidade.

Então, o filósofo conclui que o conhecimento seguro é aquele que parte de seupensamento, de Formas (Idéias) inatas, colocadas nele por Deus. Tudo o que elepudesse deduzir destas formas seria verdadeiro. O pensamento, a consciência, arazão ou, como ele chamava, o bom-senso, é algo que todos os homens partilhamigualmente, assim pensa Descartes. Deste modo, todos, ao examinarem um mesmoaspecto, partindo das Formas (Idéias) devem chegar às mesmas conclusões. Basta,para tanto, que lancem mão do mesmo método. Então teremos unanimidade.

Kant, ao fazer a pergunta “o que posso conhecer?”, também entende que todo homemé já provido de um conjunto de formas (Idéias) que permitem a percepção das coisas(intuição) fora de nós e a nós mesmos e que as pensemos (entendimento). Ora, asformas inatas que todo homem possui são as mesmas e são limitadas. É com elas queposso perceber as coisas e pensá-las. Então Kant conclui que só posso conheceraquilo que está nos limites do meu próprio entendimento e percepção. Vejamos umexemplo:

Quando percebo um objeto, só posso percebê-lo como sendo extenso (altura, largurae profundidade). Se existem objetos não extensos, não posso percebê-los (não tenhoaparato mental para perceber). Deste modo, antes mesmo de me deparar comqualquer objeto já sei que ele é extenso (não aprendo isto com a experiência, já sei deantemão).

Quando percebo algo posso indagar se isto que percebo é uma unidade (um prato)uma pluralidade (um prato de sopa, um garfo e um copo) ou se é um todo (aparelho de

13

jantar). Só sou capaz de saber se algo é uma unidade, uma pluralidade ou um todo,porque estas formas já pré-existem em minha razão. E é com elas que eu indago ascoisas que percebo. Ora, se existe algo que não é nem uma unidade, nem um todo,nem uma pluralidade, não posso saber: tenho limites.

Inspirado em Aristóteles, Kant considera este conjunto de formas como categorias. Oseu ponto, entretanto, é que tais categorias não são "modos das coisas" (tudo o queas coisas podem ser), mas limites da razão (tudo o que eu posso perceber e pensarsobre as coisas). Daí deriva que eu só posso conhecer as coisas dentro dos limites domeu próprio entendimento. Diz ele, só posso conhecer o que uma coisa é para mim enão o que ela é nela mesma.

Para garantir um conhecimento seguro, Kant propõe que, ao examinarmos as coisas,numa experiência, devemos ter a razão (estas formas) à frente, sem o que eu possome enganar. Quando olhamos as coisas e como elas se relacionam, elas são confusase nos confundem. Se quisermos gerar um conhecimento seguro, ao invés de gerarconfusão, é preciso examiná-las já estando munido de definições e de relaçõespossíveis e atribuí-las ás coisas e ver que resposta temos da experiência.

Vejamos: Não adianta ficar diante de uma árvore esperando que ela manifeste, queela diga o que ela é. Sou eu que devo dizer o que ela é. Não adianta olhar a subidados preços e achar que daí vamos entender o que é inflação. Os preços não irão nosresponder nada, ou ao menos nada claro. Se quero entender a subida dos preçostenho já que supor, a partir das formas do entendimento (forma causa-efeito), algocomo sendo a causa da inflação (os gastos públicos por exemplo). Então, munidodesta suposição de relação causa-efeito, devo ir a campo e coletar os dados para queeles me respondam se eu tenho razão.

Ora, as formas que estavam no mundo das Idéias de Platão e nas substâncias emAristóteles, deslocam-se para dentro de nossas cabeças (das coisas para a razão).Continuam sendo elas o que devemos examinar para conhecer as coisas. Elas,entretanto, mudaram-se do objeto para os sujeitos do conhecimento.

Pensemos nas implicações deste deslocamento para a noção de representação:

- uma representação adequada é adequada à razão e não às coisas que sãodiversas e confusas.

- representações adequadas serão partilhadas por todos, desde que sejambaseadas nos mesmos métodos.

Os Empiristas

Mas nem todos os que pensavam na centralidade do sujeito no conhecimento dascoisas pensavam como Kant e Descartes. Os empiristas consideravam que oconhecimento não tinha origem em Formas inatas, mas na experiência sensível.

Hume (escocês – 1711-1776) considerava que não podíamos dizer que a pedra édura, sou eu quem a sente dura. Não posso pensar em nada que não tenha passadopelos meus sentidos. Mesmo uma coisa que nunca vi, como uma sereia, é uma idéiaque componho a partir de coisas que percebi pelos sentidos (mulher e peixe). Maisainda: coloque três potes com água. Uma que você sinta como fria, outra que vocêsinta como quente e uma terceira, bem no meio, que você sinta como morna. Agoracoloque sua mão direita na água fria e a esquerda na quente. Espere um pouco. Agoracoloque as duas na que você considerava morna: sua mão direita a sentirá comoquente e a esquerda como fria. Ora, não é a água que é quente ou fria é você quesente a água como quente ou fria.

14

Para Hume, por exemplo, as associações que fazemos entre duas coisas não teriamorigem na razão (como pensava Descartes). Pensemos em uma lei científica evejamos a diferença entre eles. “Lei da Demanda”: Se o preço de um produtoaumenta, a quantidade comprada deste produto cai. Temos uma causa e um efeito.

Os racionalistas diriam mais ou menos assim: a relação (de causa e efeito) existenteentre os dois fenômenos observados não é evidente nos próprios fenômenos, masdeve ser feita por minha razão. Se eu olho apenas o aumento do preço do produto,nele não está evidente a queda nas compras. Se eu olho as compras de um produtocair, nisto não está evidente aumento de seu preço. Só a minha razão, o meupensamento (e não o que vejo) pode me levar a concluir que a queda nas compras doproduto teve como causa o aumento em seus preços. A teoria, a explicação, asrelações, são fundadas na razão, decorrem do raciocínio e não da percepção sensível.

Os empiristas diriam mais ou menos assim: a relação (de causa e efeito) entre doisfenômenos é feita por mim. É por eu estar acostumado, habituado a ver uma coisaocorrer sempre depois da outra (sempre que o preço de um produto aumenta aquantidade comprada dele cai), que eu as associo. O hábito me faz esperar queocorra e a imaginação me faz supor um elo entre os dois fenômenos. Assim são osmeus sentidos e a minha imaginação que unem fenômenos numa explicação.

1.5 Algumas Concepções Contemporâneas

Os Cognitivistas

O cognitivismo tem suas bases no empirismo. Os indivíduos têm a capacidade deformar modelos mentais (mapas ou estruturas cognitivas) a partir de suasexperiências. Os conceitos abstratos e suas relações são construtos oriundos dasexperiências únicas e, portanto, os modelos mentais são particulares (memóriaindividual).

A emergência das ciências cognitivas nos anos 50 teve como ponto de atração oestudo destas estruturas em vista das Inteligências Artificiais, onde a questão centralseria desvendar os mecanismos de sua formação, reforço e transformação. (VIEIRA,2000, p. 310). O cognitivismo, entende o conhecimento (enquanto conteúdoresultante) algo particular e próprio do indivíduo, e está interessado nos mecanismosde aprendizagem.

Qualquer animal produz uma espécie de diálogo com o mundo exterior, porque édotado de sistemas nervosos. O homem formula modelos subjetivos e simplificados douniverso exterior e é a partir destes modelos que agimos e reagimos em relação aoque nos é externo. A cognição seria a recolha sensorial de informações do ambiente,sua análise, segundo estes modelos já constituídos, que permitem aprender e agir. Aaprendizagem se da por formação, por reforço, por destruição e por substituiçãodestes modelos que estão fortemente atrelados à noção de memória (VIEIRA, 2000, p.299). Portanto, falamos de aquisição, armazenamento, recuperação e utilização deconhecimento de um (e em um) indivíduo. (JESUÍNO, 2000, p. 314).

Ao tratar da aprendizagem, Jean Piaget é o nome mais proeminente no campo dapsicologia cognitiva. Para o psicólogo, a aprendizagem humana se dá por etapas ouestágios, que modificam as estruturas ou mapas cognitivos (JESUÍNO, 2000, p. 349-350). Seriam elas

1ª) Sensorial-motora: onde fazemos aquisição de categorias básicas (tempo, espaço ecausalidade);

2ª) Operações concretas: (sub-fases pré-operacional e operacional) onde resolvemosproblemas lógicos como o da transitividade.

15

3ª) Operações Formais: quando saímos do plano de resoluções concretas para asresoluções abstratas.

Pensemos a questão da representação no plano do cognitivismo:

- a representação é individual e baseada nas categorias e relações mentais(estrutura cognitiva) oriundas de minha experiência.

- uma boa representação para mim não implica numa boa representação paravocê, já que nossas experiências e nossas estruturas cognitivas são únicas.

Pós-estruturalismo e o Construtivismo

Se as concepções das ciências cognitivas inicialmente aparecem como revolucionáriaao buscar entender como constituímos nossas representações do mundo. Mas aotratar do indivíduo e não considerar os contextos sócio-culturais no qual se inserequalquer indivíduo ela aparece como um problema em questões ético-políticas.Concepções críticas, dentro das ciências cognitivas, argumentam que

[...] cognição é o espaço onde estão densamente acoplados o corpo,o ambiente (físico e cultural) e o cérebro, e um estudo adequado deseus processos deve assumir como uma premissa básica estametáfora. Para Clark (1998), “A mente é melhor compreendida comoum cérebro essencialmente situado: um cérebro em casa em seupróprio corpo, e em seus nichos culturais e ambientais”. (QUEIROZ,2000, p. 30).

No campo da informação, a concepção cognitiva que leva em conta os aspectossociais, culturais e históricos que cercam a construção do conhecimento e suarepresentação tem sido denominada de sócio-cognitiva ou de construtivismo social.

Aqui a representação não estaria fundamentada nem no objeto e nem no sujeitoindividual (racional ou sensível), mas em padrões construídos coletivamente sobcertas condições históricas e culturais, o que significa que tais condições sãocondicionantes das representações. Observe-se que não se tratam derepresentações unânimes, mas de uma variedade de embates entre representaçõeshegemônicas e não hegemônicas possíveis, portanto, um contínuo jogo de poder.

As noções de heranças (cultura) e de mecanismos institucionais (dispositivos,estruturas, infra-estruturas, regras) são planos de sustentação de certos modos deperceber e construir a realidade. Tal construção tanto é herdada como partilhada emodificada. Em geral a investigação fica por conta de identificar os mecanismos quesustentam e permitem a reprodução encoberta de certos modos de representar em umrecorte histórico.

A linguagem e as instituições (oriundas e sustentadoras de práticas sociais) sãoaspectos privilegiados porque são estruturantes, são formadoras de realidade enaturalizam construtos sociais. O poder, enquanto potência para instaurar realidades eformas de ver também tem lugar no exame das representações (mais a diante nocurso veremos a questão ética das representações que está associada aoentendimento das representações sociais enquanto construções interessadas a umaforma de ver e de funcionamento da sociedade). Neste tipo de concepção, o que épercebido por alguém, o modo como é percebido, a maneira como se entende e serepresenta, embora sejam construções subjetivas, realizadas por um sujeito singular,estão fortemente influenciadas pelo contexto de vivência deste sujeito, portanto, deuma partilha com os outros. Como os momentos históricos são diversos, como osgrupos sociais são diversos e o mesmo se pode dizer das culturas, então, é possívelpensar em consenso e em dissenso se dando no tempo e no espaço.

16

A Hermenêutica

O termo hermenêutica é antigo e está ligada ao estudo do texto bíblico, àexegese.Depois, o termo passou a significar a interpretação de difíceis textoscientíficos. No século 19 o filósofo Dilthey iria imprimir uma nova dimensão aocircunscrever o texto e sua interpretação aos contornos históricos, às possibilidadeshistóricas da compreensão.

Hoje não é algo fácil definir o que seja Hermenêutica. Alberti (1996, p. 1-2) identifica,além da exegese bíblica, dois grandes eixos: um aliado à filosofia (Heidegger eGadamer) e o outro que entende a hermenêutica como “modo de pensar” numacultura. Vattimo diz que

A hipótese, aventada em meados dos anos oitenta, de que ahermenêutica tivesse se tornado uma espécie de koiné [línguafranca], de idioma comum, da cultura ocidental, não apenas filosófica,ainda não parece ter sido até agora desmentida [...] Num sentidogenérico, que não suporta definições mais precisas, são pensadoreshermeneutas, não apenas Heidegger e Gadamer, Ricoeur, Pareyson,mas também Habermas e Apel, Rorty, Charles Taylor, JacquesDerrida e Emmanuel Lévinas. “ (VATTIMO, p. 13).

O termo hermenêutica, em sua versão contemporânea é indissociável do termointerpretação.

De certo modo, a palavra “hermenêutica” e a correspondente palavra“interpretação” já proporcionam uma primeira indicação. Pois nelas seesconde uma aguda diferença entre [em relação à] a pretensão deexplicar completamente um fato dado [...]

Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em simesma. A interpretação é algo que está sempre a caminho, nunca seconclui [...]. (Idem, 1983, p. 71).

Mas como se instala na cultura ocidental a noção de interpretação e a que ela serelaciona? Vamos começar lá pelo final do século 19. Na virada do século 19 para o20, a possibilidade de que alguém ou um tipo de conhecimento fosse capaz deenunciar verdades, entendida como um enunciado final e definitivo (interessa-nosespecialmente a produzida pelo conhecimento científico), seria posta em questão demodo cada vez mais acentuado. O grande exemplar desta dúvida foi o filósofoNietzsche (alemão – 1844-1900). Um dos livros de Nietzsche se chama “O Crepúsculodos Ídolos”, onde a noção de verdade, que acompanhou as concepções ocidentais,desde a Grécia, é apontada pelo filósofo uma espécie de fábula1.

A ciência, considerada pela primeira vez como problemática,suspeita, questionável [...] Fundamentalmente esta crítica é umacrítica da verdade [...] a investigação sobre a verdade [em Nietzsche]é uma crítica à própria idéia de verdade considerada como um ‘valorsuperior’, como ideal [...] (MACHADO, 1999, p.7).

Nietzsche coloca sua crítica sobre a crença na possibilidade de verdade (de umaverdade absoluta, final, acabada), tanto para aqueles que tinham uma noçãoobjetivista como para os que tinham noções subjetivistas do conhecimento2.

1 Não é nosso caso tratar das concepções nietzscheanas. Basta-nos aqui que Nietzsche aponta que em seutempo começa a surgir uma desilusão em relação à possibilidade de existência de uma verdade, de que oconhecimento verdadeiro leva a uma vida moral, boa e feliz. Os ídolos (falsos deuses) de seu tempo,como é o caso da verdade científica, estariam sendo destruídos. Nietzsche faz parte desta destruição.Observe que o título completo de seu livro é Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo).2 As críticas não se limitam à impossibilidade de verdade como adequação de uma descrição aos objetosou às idéias, mas também à crença de que o conhecimento, como algo que progride, levaria o homem auma vida ética e bela. A verdade da ciência pode ser vista como uma espécie de imposição (violência) e asua não aceitação como ameaça aos valores morais.

17

Contra o positivismo, que se fecha nos fenômenos: ‘existem apenasfactos’ – direi: não, precisamente os factos não existem, mas apenasinterpretações. Nós não podemos constatar nenhum facto ‘em si’ [...]‘Tudo é subjectivo’ dizei vós; mas esta é já uma interpretação [...]’(NIETZSCHE Apud VATTIMO, 1990, p. 79).

Digamos de outro modo. Nietzsche considerava que toda a filosofia, desde a Gréciaantiga até a do seu tempo, tinha cometido equívocos, tinha criado crenças que não sepoderiam sustentar por muito mais tempo. A ciência, herdeira destas crenças, é um deseus alvos. Nietzsche já constatava a ruína destas crenças e, como filósofo commartelo, também estava pronto a destruir estes ídolos. Um deles era a verdade, comovalor supremo (bem), único, como unanimidade. Para Nietzsche, nossas opiniões,constatações, conclusões e seja lá o que for sobre as coisas, são interpretações.

Nosso ponto não é deslindar o que Nietzsche queria dizer com a frase “tudo éinterpretação”, deixemos isso para os seus estudiosos3, mas que a noção deinterpretação iria fazer, cada vez mais, frente à noção de verdade como resultado doconhecimento. Vattimo, filósofo italiano, escreveu: “Que toda a experiência de verdadeseja uma experiência interpretativa é quase uma banalidade da cultura hoje.”(VATTIMO, 1999, p. 17).

Vamos pensar o que pode ser interpretação. Interpretações não são invenções sobreas coisas. Primeiro, quando alguém interpreta, interpreta alguma coisa e não um nada,portanto, a coisa deve ter participação na construção de meu conhecimentointerpretativo. Isto é diferente do subjetivismo (minha razão ou meus sentidos) e doobjetivismo (a coisa em si). Segundo, a interpretação é sempre uma ação interessada,intencional, um modo de entender. Ora, modos de ver, de entender, quer dizer,interpretações, variariam no tempo, no espaço, de uma cultura para outra, de umgrupo para outro, de uma atividade produtiva para outra, de certas condições paraoutras. Seriam, por assim dizer, modos de ver as coisas interessados e localizados.

Edmund Husserl (1859-1938), também na virada do século XIX para o XX, se pôs àcrítica do que circunscrevemos como objetivismo e subjetivismo. De um modo maissimples, não pode haver uma consciência de um lado e os objetos de outro. Não podehaver, por exemplo, um “penso, logo existo”, como uma consciência que está apta apensar sem objetos, porque quando eu penso, já sempre penso em alguma coisa (nãohá pensamento vazio). De outro lado, não posso pensar em coisas fora de mim, sempensar, ou, quando eu penso que existem coisas em si, fora de mim, elas já estãosendo pensadas, dentro de mim.

A proposta filosófica de Husserl é a fenomenologia, uma investigação da consciênciacom seus objetos; e não os separe, porque não há “[...] distinção possível entre aquiloque é percebido e nossa percepção.” (JAPIASSÚ; MARCONDES. 1996, p. 133)4.

3 O filósofo Gianni Vattimo trata da noção de interpretação. Há na noção o risco de confusão com orelativismo. O relativismo, ao tornar as interpretações indiferenciáveis quanto a seu valor, faria darealidade algo irrelevante. Vattimo aponta o risco de que se entenda que a interpretação se coloque comouma espécie de verdade final. Diz que “Entre tantas armadilhas e fundos falsos no texto de Nietzsche, háainda isto: que, reconhecido ao mundo verdadeiro o caráter de fábula, atribua-se à fábula a antigadignidade metafísica (a <glória>) do mundo verdadeiro.”(1987, p.25). Em publicação posterior, “ParaAlém da Interpretação”, Vattimo busca algum esclarecimento, uma vez que, a não existência de fundotornaria os diálogos e negociações inessenciais. Propõe uma “ontologia fraca” no sentido de ser umaconstante síntese (interminável) deste horizonte interpretativo. Ilustra aludindo à produção de uma obrade arte. Diz: quando um pintor faz um traço, depois observa, refaz, retoca, modifica. De onde poderia vir-lhe que aquela forma não é a forma da obra, senão da própria obra que lhe fala e que ele tenta traduzir emsuas pinceladas? Se a obra fosse meramente seu produto e não estivesse com ele numa relação dialógica,todos os seus traços seriam definitivos.

4 Embora a proposta de Husserl tenha sido interessante e inovadora, ela deixa de fora uma questão, que eutraduziria mais ou menos assim: se todo objeto é já sempre objeto de minha consciência, como posso

18

Vamos ao dicionário:

Contemporaneamente, a hermenêutica constitui uma reflexãofilosófica interpretativa ou compreensiva sobre os símbolos e osmitos em geral. Paul Ricoeur, por exemplo, fala de duashermenêuticas: a) a que parte de uma tentativa de transcriçãofilosófica do freudismo, concebido como texto resultante dacolaboração entre o psicanalista e o psicanalisado; b) a que culminanuma “teoria do conhecimento”, oscilando entre a leitura psicanalíticae a fenomenologia. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, 1. 126, grifonosso).

Esta definição é um pouco difícil. Marcamos dois termos que estão ali colocados comosinônimos ou como substitutos: interpretar e compreender. A segunda parte fala deduas hermenêuticas. Na primeira parece dizer que, dentro do campo da filosofia, háquem trabalhe com a hermenêutica como interpretação que fornece sentido, sentidoque é construído numa colaboração. Como a psicanálise aponta ao inconsciente, estaoperação dialógica que fornece sentido não teria um final (onde tudo fica consciente,onde tudo fica claro, onde tudo é revelado). Na segunda, identificada com uma “teoriado conhecimento”, deve significar que o conhecimento é o que resulta da interpretaçãoe que está ora aliada à psicanálise e ora aliada à fenomenologia. Acho que isso nãoajudou muito.

Primeiro temos como ponto importante que interpretar é algo que se dá no diálogo, sedá com o outro. Ninguém interpreta uma pedra, um cinzeiro. Quando utilizamos otermo interpretar estamos supondo uma mensagem e alguém que a enviou a nós.Alguém quer nos dizer algo (Deus – a Bíblia; a natureza – o vento sudoeste; ou outraspessoas – um texto, uma fala, um gesto).

Sou eu quem interpreta. Mas não interpreto um nada, interpreto algo. No nosso caso,vamos tomar a interpretação do que ouvimos ou lemos, uma mensagem que nos éenviada em um discurso ou declaração em um discurso. Não interpreto sozinho,porque o que eu posso pensar sobre aquela mensagem depende muito doconhecimento e das experiências que já tenho. E minhas experiências econhecimentos estão cheios de heranças do passado, que partilho com meuscontemporâneos.

Diante de um objeto novo, que antes nunca vi, minha compreensão do que ele édepende de sua articulação com os outros objetos que já conheço (o que são, para oque servem), em meu mundo tão familiar, onde convivo. Esta compreensão (colocardentro) partilho de algum modo com os outros, não numa correspondência biunívoca,mas em um processo de negociação, (“Você me entendeu?”; “Não, não foi isso que euquis dizer.”; “Deixa eu explicar de outro jeito.”). Neste jogo, nesta negociação doentendimento com o outro, posso concordar ou discordar: eu só discordo de algo quecompreendo.

Diz Gadamer (alemão – 1900-2002), grande filósofo da Hermenêutica que

O processo de entendimento mútuo não pode ser considerado comoum procedimento metódico que fixa um indivíduo contra o outro, masconsuma-se como a dialética de pergunta e resposta, uma dialéticaque se acha aberta segundo os dois lados e que transcorre entre osdois parceiros de diálogo. Esse é um processo que nunca se inicia nozero e que nunca termina com uma soma total plena. – Mesmo umtexto [...] que se encontra diante de nós destacad[o] seu ‘criador’, é

saber que não sei? Ora, tudo o que conheço não deveria corresponder a tudo que conheço? Quandofalamos do par objeto/consciência, a proposta de Husserl é muito interessante. Mas há apenasconsciência? A teoria freudiana, por exemplo, saca o inconsciente (que não é um objeto externo) comoum terceiro informante e como constituidor da própria consciência. Bem, mas esta nota é só pra gentepensar.

19

como alguém que responde incansavelmente a um esforço jamaisesgotável de compreensão interpretativa e é como um indivíduoquestionador que se contrapõe a um outro sempre pronto aresponder. (GADAMER, 2007, p. 40).

Precisamos, daí, dar alguns limites para o que vamos tratar como hermenêutica,colocando como pontos de apoio Heidegger e Gadamer para quem a hermenêutica éuma filosofia da praxis, uma filosofia que pretende a superação da filosofia metafísica -da antiguidade grega (objetivismo) e da modernidade (subjetivismo). Não há umsujeito a ser examinado no seu modo de conhecer, como se estivesse fora do mundo,fora de contextos, fora da maneiras como já compreende as coisas, como organizadas(cosmos). Nem existem coisas a serem examinadas soltas, isoladas umas dasoutras e fora da compreensão, da organização em que o sujeito as coloca. Ainterpretação se dá dentro de uma compreensão que compartilho com os outrose que nos vem como herança.

Imagine que você entre em uma sala onde está ocorrendo um debate bem acalorado,mas você não consegue entender nada, porque chegou bem no meio da discussão.Então, alguém começa a lhe explicar sobre o que se está discutindo, porque e como adiscussão começou e as opiniões diversas que estão sendo colocadas. Você começaa entender pouco a pouco e a acompanhar o debate. Bem, vai chegar uma hora, sevocê não for muito tímido, que acabará, após alguma afirmação, dando sua opinião.Alguém dirá que não concorda com você, ou dirá que você não entendeu nem o queele estava querendo dizer. Depois outro talvez concorde com parte do que você disse,fazendo certas ressalvas e assim segue durante toda a noite. Você já faz partedaquele debate, está ali construindo um saber sobre um assunto. Você sairá dali comuma percepção diferente da que tinha antes de ali entrar. Possivelmente os demaistambém.

Se perguntássemos a um dos participantes, no dia seguinte, quais as posições aliapresentadas sobre aquele assunto, ele as descreveria conforme as entendeu.Possivelmente ele saiu do debate como você, com percepções novas. Ele tambémparticipou da produção de sentido para aquele assunto, junto com os outros. Bem, istonão significa que os participantes tenham saído dali com uma opinião unânime, nemque descrevam aquele debate e as opiniões ali apresentadas da mesma maneira. Seestes debatedores se encontrassem de novo, o debate se reiniciaria.

Quando chegamos a este mundo já existiam muitos debates, opiniões sobre coisas,sobre o que é erro e o que é acerto, sobre o que é isso e aquilo. Aos poucos vamossendo convidados a entrar nestes debates, a participarmos na construção de sentidos,que já vêm antes de nós. Interamo-nos, aprendemos, contribuímos, modificamo-nos:concordamos e também discordamos. Cada um de nós, ao interpretar, compreende,acolhe o que lê ou percebe à luz daquilo que já conhece. A compreensão é histórica,quer dizer, limitada pelos horizontes de cada época (horizonte da compreensão), mascada época é também herdeira de épocas passadas. Cada indivíduo suacompreensão, cada compreensão em uma compreensão histórica e cadacompreensão histórica, herdeira (aberto pelo passado) e aberta ao futuro.

O que dizemos e ouvimos uns aos e com os outros, já toma de empréstimo sentidos,ordens, valores existentes em uma época, lugar, cultura (historicidade): senão comonos entenderíamos uns com os outros? Até para discordar precisamos entender. Senão, como poderíamos interpretar e ler os textos que nos vêm do passado?

A interpretação, na hermenêutica, afasta a idéia de verdade metafísica (dopermanente, do imutável e da unanimidade)5, já que a interpretação é a construção de

5 O declínio da noção de verdade como unanimidade baseada no objeto ou baseada no sujeito, encontra sua grande primeira crítica no filósofo Nietzsche. Sua afirmação emblemática é “Contra o positivismo, que se fecha nos fenômenos: ‘existem apenas factos’ – direi: não, precisamente os factos não existem,

20

sentidos, a produção de conhecimentos, que realizamos uns com os outros(intersubjetividade). Enquanto tal, as interpretações podem ser apenas consensuais etal consenso existe provisoriamente.

A ciência não conhece (verdades) a partir de um fundamento e método, aproximando-se cada vez mais da verdade, antes, a ciência constrói um diálogo interpretativo,circunscrito à compreensão histórica em que se insere.

Se desde a antiguidade considerava-se que eram os objetos (objetivismo) a origemdo conhecimento, que eram suas características que nos falavam o que ele era, naentrada do período Moderno há uma mudança em relação ao entendimento destefundamento. A base, a fonte principal do conhecimento, transita do objeto ao sujeitoconhecedor (subjetivismo).

Temos também, que na virada do século XIX ao XX, a separação e o acento no objetoou no sujeito começa a ser questionada pela fenomenologia. E que a noção deinterpretação começa a fazer frente à de verdade.

E como podemos ver a hermenêutica para nossos interesses acerca da interpretação?

- a representação de uma coisa é como a interpreto junto à um conjunto deoutras representações que tenho a priori;

- as representações que tenho a priori são herdadas do passado e partilhadascom os contemporâneos;

- as representações são historicamente limitadas, ou seja, mudam. Mas tambémsão transmitidas, ou seja, permanecem;

- não há representação verdadeira e fechada, mas consensual e aberta.

A Hermenêutica, entendida como “modo de pensar”, tem sido também associada ateorias das ciências sociais. No campo da CI a base hermenêutica tem sido associadaàs teorias da linguagem e das ciências sociais.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. A existência na história: revelações e riscos da hermenêutica. Revista Estudos Históricos, n. 17, 1996. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/184.pdf

DESCARTES, René. Discurso do método. Meditações. Objeções e respostas. As paixões da alma. Cartas. Tradução de J.Ginsburg e B.Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural/Victor Civita, 1973. (Os Pensadores, XV).

GADAMER. Hans-Georg. A razão na época da ciência. Tradução de Ângela Dias.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. (Biblioteca Tempo Universitário, 72).

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed.revista e ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

JESUÍNO, Jorge Correia. Processos Cognitivos. In: Enciclopédia Einaudi. Diretor: Riggiero Romano. Edição Portuguesa: coordenador-responsável Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, v.34. p. 314 -356.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural/Victor Civita, 1974. (Os Pensadores, XXV) .

MACHADO, Roberto. Nietszche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal; São Paulo: Paz e Terra, 1999.

mas apenas interpretações.”

21

QUEIROZ, João. Novos modelos de cognição encorporada, situada e contextualizada em Ciências Cognitivas. Revista Eletrônica Informação e Cognição, v. 2, n.1, p. 37-43, 2000

SMITH, Plínio Junqueira. O ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995. (Coleção filosofia; 32).VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para afilosofia. Tradução de Raquel Paiva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

2 MEMÓRIA

O termo memória é utilizada e o conceito definido por inúmeras áreas deconhecimento. Nossa intenção aqui é caminhar por este termo até chegarmos à noçãode uma memória documentária.

2.1 O Tempo e a Memória

Grécia Antiga

No mito grego, Memória – Mnemosyne- é a deusa titã, mulher de Zeus, com quemteve nove filhas, as Musas. Mnemosyne rege “o que foi”, “o que é” e “o que será”,operando duas forças: lembrar e esquecer. O esquecimento é a possibilidade dalembrança e a lembrança sempre requer esquecimentos (APÊNDICE 1). As Musassão o poder da presentificação, de tirar da não existência (do não é mais ou do aindanão é) para a existência. É graças ao esquecimento, comandado por elas, que osmales podem ser esquecidos, assim pensa o grego do período arcaico (TORRANO,2003, p. 16).

No tempo de Platão e Sócrates, no período clássico da vida grega, a noção dememória já se encontrava modificada. Guardava, ainda, algum aspecto do divino,porque é a relação possível como eterno (as formas que sempre foram, são e sempreserão). Para este filósofos, devemos nos lembrar, porque o esquecimento é ignorânciae a recordação o acesso à verdade, ao permanente, que nos assegura nas decisõesque temos de tomar. Conhecer é uma luta contra o esquecimento. Lembrar é umatarefa que exige um método, onde as diferenças entre as coisas e o contingencialdevem ser ultrapassadas.

Neste mesmo período os sofistas, que ensinam a retórica, têm na memorização umutensílio, uma ferramenta útil ao orador. Aí a memória não apresenta nada de divino. Écontra esta noção da sofística que Platão conta uma história, a da criação da escrita.Um deus, Tót, criou a escrita e a ofereceu ao rei Amon do Egito, dizendo-lhe que eraum instrumento contra o não esquecimento, portanto, para a sabedoria. Mas Amon vêna escrita um instrumento contrário à memória, um simulacro da verdadeira memória(Anexo 3).

Idade Média

Na Idade Média Santo Agostinho iguala memória e espírito, como o lugar ondepodemos encontrar a Deus, encontrar a Verdade (AGOSTINHO, 1973, p. 205). Emsuas meditações Agostinho se pergunta como jamais tendo estado frente a frente comDeus, poderia ele saber de sua existência? “Mas onde vos encontrei para Vos poderconhecer? [...] Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Vos amei. Eisque habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos.” (AGOSTINHO, 1973, p.213-214). O texto bíblico também é onde podemos encontrar o caminho à Verdade e à

22

Salvação. Ter o texto bíblico de cor (no coração) para conhecer a vontade de Deus eestar atento aos sinais.

Agostinho entendia que Deus era Eterno (fora do tempo) e que o homem (Adão eEva) havia recebido de Deus tanto um mundo perfeito – o paraíso – como um tempoque se assemelhava ao eterno, um tempo onde nada muda, sendo o passado sempretransferido ao presente. Mas com o pecado o homem começa a mudar o mundo, numprocesso de degradação, de modo que o tempo humano se torna um tempo que levaao fim, porque modificar o perfeito é torná-lo imperfeito. A memória não se refere, pois,à acumulação de experiências novas. No âmbito religioso temos uma memória interna,que guarda as verdades colocadas em nossa memória ou nas Escrituras, por Deus.Temos um todo já dado de “verdades” para a salvação.

A manutenção da vida na Idade Média, cultivando a terra, dependia de ações querespeitassem ciclo na natureza. Os calendários locais eram ligados às cadeiassazonais. Lembrar o momento adequado de arar, semear, colher, armazenar,agradecer, festejar: uma memória apoiada em provérbios que eram associados aosmeses do ano. A repetição diz: mês tal, fazer tal coisa, mês isso, fazer aquilo, e por aívai. A repetição oral é a transmissão de lembretes oportunos era uma memóriarepetitiva, em um tempo cíclico. A memória do cotidiano diz respeito àquilo que deve-se repetir para manter a vida. (DONATO, 1976, p. 41).

A Biblioteca, assim como o Museu e o Arquivo (que não se diferenciavam na IdadeMédia) pertenciam às famílias nobres e à Igreja e continham acervos cuja tipologia eorganização tinha como importantes funções preservar (memorialísticas) e de darvisibilidade do poder. Com o declínio do império romano, boa parcela das coleções,que preservavam a cultura antiga, foi abrigada nos mosteiros, incluindo não só obras,mas inventários de obras de autores cristãos e das artes liberais, (RICHÉ, 2008, p.247). Os mosteiros mantinham a guarda dos rolos da antiguidade e empregavamescribas na sua multiplicação. Saber a vontade de Deus era condição para a salvação.A leitura da Bíblia e de textos dos padres era um dos meios para conhecer tal vontade.

A leitura era feita em voz alta, especialmente por dois motivos, o primeiro, dar aconhecer a palavra de Deus àqueles que não sabiam ler, a segunda, permitir ao leitorentender o texto que era escrito sem separação entre as palavras (scriptio continua)de modo que a leitura sem vocalização era extremamente difícil (PARKERS, 1998, p.103-104). A Biblioteca, portanto, responde às necessidades de preservação de umamemória para salvação.

A renascença Carolíngea, em meados do século 8 traria algum enriquecimento paraas coleções monásticas, com livros vindos de lugares remotos. Do final do século11até o século 14 começa-se a escrever uma nova história da leitura, livros e bibliotecas.Importantes ali foram as mudanças na forma da escrita e apresentação de textosdesenvolvidas por monges copistas ingleses e irlandeses, utilizando convençõesgráficas facilitadoras como o uso de letras iniciais coloridas, sinais (pontuação) e aseparação de palavras, ao invés da escrita contínua; inovações que permitiriam aleitura não mais em voz alta para memorização, que até então prevalecia, massilenciosa e com vistas à interpretação e utilização em argumentações (SEANGER,1998, p. 147–148; HAMESSE, 1998, p. 124-126).

Renascimento

Entre os séculos 12 e 13 solicita-se ao estudante a leitura de um número maior detextos, mais fáceis de ler, é fato, mas cuja disponibilidade ainda era limitada. Asbibliotecas e os livros de teologia e filosofia são de acesso restrito a poucos. Mas já nofinal do século 13, com o renascimento das cidades, as ordens mendicantes traziamum modelo de biblioteca que visava a leitura mais ampla. Contavam com catálogos

23

quer permitiam “[...] localizar um determinado livro numa biblioteca, ou até mesmo emoutras [...]” (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 23). Podia-se nestas bibliotecas urbanastomar livros emprestados, já que se havia criado uma ficha onde estes eram anotados.As mudanças trazidas pela Escolástica apontam para um alargamento dos modos deconhecer a vontade de Deus. A leitura individual prepara para reflexão e para osdebates argumentativos. Os estudantes das universidades (nem todos clérigos)precisam ter acesso às obras da Igreja e dos filósofos da antiguidade para. Asbibliotecas nas cidades não são mais apenas guarda da memória, mas um lugar decolocar ao dispor, para consultas os textos que precisam ser “ruminados”.

O Renascimento é um período de grandes transformações (talvez isso seja um clichê).Para que o novo seja estabelecido – e no Renascimento tudo é designado como“novo” – o velho precisa ser destruído, superado. “No século XV impõe-se finalmente adevotio moderna no plano religioso, constituindo uma ruptura com a escolástica, areligião imbuída de ‘superstições’ da Idade Média [...] (LE GOFF, 1996, p. 175). “ Aimagem típica do tempo no Renascimento era a do destruidor munido de ampulheta,sagadeira ou foice” (WHITROW, 1993, p. 150). O tempo destruidor, cronos-titãdevorador, destrói os antigos valores, pois [...] somente destruindo valores espúriospoderá o tempo cumprir o ofício de desvelar a Verdade (MARRAMAO, 1997, p. 51-52).Destruição de valores velhos e instalação de valores novos. Assim é que se podeinstalar a ciência moderna, a do experimento que, sem pudor, desnuda a natureza(não mais sagrada) para examiná-la: é o novo empreendimento que desvela aVerdade.

A partir de Newton a concepção de tempo será a tempo linear absoluto(independente dos astros, dos deuses ou das durações) que escoa e jamais se repete.Deus deixará de ser eterno para ser infinito. A concepção do conhecimento vai sendomodificada, de uma descrição variada, cheia de relações e aparentemente sempreinacabada, para uma concepção de conhecimento por traços específicos e capazes dedistinguir grandes categorias de ordenação.

Foucault indica que até o século 16, conhecer alguma coisa é desvendar infinitoscaracteres e relações. Encontra-se no texto do naturalista Aldrovandi

[...] uma mistura inextricável de descrições exatas de citaçõesrelatadas, de fábulas sem crítica, de observações concernindoindiferentemente à anatomia, aos brasões, ao habitat, aos valoresmitológicos de um animal, aos usos que dele se podem fazer namedicina ou na magia. E, com efeito, quando nos reportamos àHistória serpetum et dracon, vemos o capítulo “Da Serpente emGeral” desenvolver-se segundo as seguintes rubricas: equivoco (istoé, os diferentes sentidos da palavra serpente), sinônimos eetmologias, diferenças, forma e descrição, anatomia, natureza ecostumes, temperamento, coito e geração, voz, movimentos, lugares,alimentação, fisionomia, antipatia, simpatia, modos de captura, mortee ferimentos pela serpente, modos e sinais de envenenamento,remédios, epítetos, de nominações, prodígios e presságios, monstros,mitologia, deuses aos quais é consagrada, apólogos, alegorias emistérios, hieróglifos, emblemas e símbolos, adágios, moedas,milagres, enigmas, divisas, signos heráldicos, fatos históricos,sonhos, simulacros e estátuas, usos nos alimentos, usos namedicina, usos diversos. (FOUCAULT, 2007, p. 54, grifo meu).

O Renascimento seria também o tempo de emergência do Humanismo, como umconjunto de concepções que se opunha à Escolástica e primavam por uma erudiçãoque resgatava os clássicos, os textos da antiguidade greco-romana, separada de umconcepção religiosa. Os humanistas mantêm bibliotecas particulares, onde se professauma leitura partilhada e o debate. O bibliotecário é um erudito entre eruditos.

24

A invenção dos tipos móveis de Gutenberg no século 14 iria atender a uma demandareprimida e crescente. Para Burke ( 2003, p. 22-23) a impressão também permitira queum significativo conjunto de conhecimentos cotidianos e práticos, até então passadosoralmente, pudessem ser divulgados e mantidos na forma escrita. Nos termos deBattles (2003, p.75) “O apetite por grandes quantidades de livros já estava bastanteaguçado quando as prensas entraram em cena."

Com o aumento das obras disponíveis é impossível ler todos os textos. Proliferam,então, publicações que permitem a leitura de coletâneas de partes de textos deautores variados, reunidos por assuntos (uma espécie de enciclopédia). O exemplo deBlair é a coletânea chamada "[...] Theatrum humanae vitae de Theodor Zwinger, quepassa de dois volumes, quando de sua primeira publicação em 1565, para 29 volumesem 1604 [...]"(BLAIR, 2008, p. 76). Podemos chamar tais publicações de resumo damemória documentária? Ou seria um índice da memória documentária?

Já a partir do século 17 o conhecimento caminha para uma ordenação por caracterese categorias que, uma vez discernidas permitem conhecer como um saber dascategorias lógicas e suas relações, nas quais todas as coisas podem ser encaixadas.Todas as coisas devem encontrar o seu lugar dentro de um grande esquema declassificação. O conhecimento de algo não é um aumento no mapa classificatório, masseu preenchimento.

A memória deste sistema de categorias lógicas e causas científicasisentaria o indivíduo da necessidade de recordar tudo em pormenor[...] Conhecer uma coisa implicava saber sobre ela – o seu nome e asua posição num esquema de classificação e descrição. Conhecerplantas, escreveu o botânico Tournefort em 1694, é o mesmo quesaber que nomes lhes atribuir [...] O problema de memorizar omundo, característico do século XVI, passou a ser o problema declassificar cientificamente. (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p.27).

Os sistemas classificatórios e taxonômicos são como uma memória composta declasses das coisas e, em cada classe, cada coisa interessa não naquilo que tem deexótico ou de especial, mas apenas naquilo em que é exemplar de uma classe. Este éum pensamento embrionário, que se expandirá até o século 19 (e mesmo até hoje). Amemória como sistema classificatório é uma ordem fixa e pré-estabelecida, que sepreenche com os conteúdos das descobertas.

Século 19

Na virada do século 18 ao 19, sobre este tempo que escoa se entende o desenrolar davida do homem, ou da Humanidade, como uma espécie de progressão, como algo quese organiza do menos ao mais. E como ficou, então, a noção de memória?A noção deum tempo linear ascendente, progressivo, a partir do século 19, iria ser de difícilcompatibilização com esta noção de um esquema classificatório. Sobre o tempo linearabsoluto escreve-se um tempo linear progressivo, do progresso humano.

Primeiro vai-se pretender que o progresso Humano, que é o mesmo que progresso deseu conhecimento, se constitui por descobertas que vão completando o quadro geraldo conhecimento, preenchendo a memória do Homem. Mas, aos poucos, a memóriapassará de preenchimento a acumulação/escoamento. Num tempo que passa, onde oque é novo supera o velho e sempre se instala um novo no lugar do antigo novo, tudose escoa, tudo deixa de ser. A noção de memória oscila entre acumulação progressivade descobertas e uma operação de salvamento do passado.

No século 18 as Bibliotecas, Museus e Arquivos do Príncipe abrem-se ao acessopúblico. A abertura se dá pela pressão da burguesia, que, ao fim e ao cabo, é a novafreqüentadora destes espaços. Embora a reivindicação de acesso a todos seja agrande bandeira humanista, que vê no conhecimento a salvação da ignorância e da

25

imoralidade, os trabalhadores estão longe de poder freqüentar a tais lugares, seja pornão saberem ler, seja porque seus trajes e comportamento usual são proibidos em taislugares. Quer dizer, o acesso ao "público" é apenas um discurso.

A revolução industrial e a redução nos custos de transporte fariam crescer tanto aprodução industrial como a concorrência no comércio internacional. Para fazer frente àconcorrência e melhorar a produção serão necessários trabalhadores qualificados euma forma sistemática de transmitir os conhecimentos da produção. A educação paratodos e o registro escrito do conhecimento técnico farão com que a abertura dasportas das bibliotecas aos trabalhadores finalmente deixe de ser um discurso e setorne uma realidade. A indústria de papel passa a produzir em maior escala e a partirda madeira. O livro é uma mercadoria como qualquer outra que, com a crescentealfabetização, pode ser produzido com economias de escala.

É com esta biblioteca pública, se espalhando por todas as cidades (lugares daprodução industrial), que se desenvolverão uma série de instrumentos facilitadores doacesso direto pelo usuário aos documentos que procura e de instrumentos parapermitir a intercalação de novos livros, que chegam todos os dias, sem transtornar aordem estabelecida nas bibliotecas. Panizzi, na Biblioteca Britânica, Charles Cutter eMelvil Dewey nos Estados Unidos, são nomes articulados a esta onda inovadora. Amemória documentária e cumulativa concretiza-se na biblioteca pública.

As Bibliotecas dão conta da guarda da totalidade do conhecimento, uma espécie decomprovante da evolução do conhecimento humano. A suposição de um tempo linearascendente, baseado na “evolução” e no “progresso” humanos implica em um sabercumulativo, um saber cada vez mais. A acumulação do conhecimento implica,portanto, numa memória cumulativa, que aumenta ao longo do tempo. Tal memória sópode ser uma memória documentária.

2.2 A Ciência Histórica e as Instituições de Memória

Para Le Goff (1996, p. 68), “O Renascimento é a grande época da mentalidadehistórica. É assinalado pela idéia de uma história nova, global, perfeita, e porprogressos importantes de método e de crítica histórica.” Os historiadores recolhemfontes, acumulam fontes, numa noção enciclopédica da história. Ao mesmo tempo,retiram dali o que é mito, lenda, fantasias, num verdadeiro expurgo documentário.(Ibid, p. 118-119). A ação seletiva faz um vínculo do documento com a prova histórica,como evidência de algo que realmente aconteceu. Le Goff (1996, p. 118) e Ricoeur(2000, p. 217) apontam o uso do documento como testemunho comprobatório, pelaprimeira vez, com Lorenzo Valla (1440), no seu texto argumentativo: “De falso creditaet ementita Constantini donatione declaratio” que trata de uma polêmica acerca daherança que Constantino teria deixado para o Papa Silvestre (século IV). Na primeiraparte do texto Valla produz um diálogo ficcional entre as personagens, buscandoconvencer o leitor que a herança não era algo plausível. Já na segunda parte, pormeio de argumentos lógicos, onde mostra que a linguagem utilizada no documentonão é do século IV, mas muito posterior, prova que o documento é falso.

Os Museus mantêm as relíquias, os objetos exóticos, os manuscritos raros etc. típicosdos gabinetes de curiosidades: é uma aglomeração do que é diverso e extraordinário(BENNETT, 1996, p. 33,39 e 95-96). Há também os jardins e as coleções de animais,muitos deles vindos de terras distantes do oriente e do novo mundo, como exemplaresexpostos e colocados ao dispor dos estudiosos. O historiador moderno seria aqueleque trabalha sobre uma diversidade de objetos coletados e de documentos que erammantidos pelas famílias ou pelas ordens religiosas (portanto, até então, parafinalidades de manutenção do poder, da cultura e da salvação) que “[...] ele transportade uma região da cultura (as ‘curiosidades’, os arquivos, as coleções etc.) para outra(a história)” (CERTEAU, 2007, p. 77).

26

Se o conhecimento entendido como classificação ordenara os objetos do mundonatural segundo uma taxonomia animal ou vegetal, com a emergência da noção deevolução das espécies e de progresso, os objetos tenderão a ser classificados numeixo temporal, do progresso histórico, que serve também para classificar povos,costumes, regiões, comparativamente ao ápice da cultura existente nas cidadeseuropéias. O museu dá visibilidade material às teorias naturalistas e históricas. Opassado é diferente do Moderno, ou melhor, o Moderno é diferente do passado. Omuseu mostra a distância do passado, a mudança irreversível do tempo. A operaçãode salvamento do passado é também a operação que põe à vista a superioridade dopresente.

As Bibliotecas dão conta da guarda da totalidade do conhecimento, uma espécie decomprovante da evolução do conhecimento humano. A suposição de um tempo linearascendente, baseado na “evolução” e no “progresso” humanos implica em um sabercumulativo, um saber cada vez mais. A acumulação do conhecimento implica,portanto, numa memória cumulativa, que aumenta ao longo do tempo. Tal memória sópode ser uma memória documentária.

No século 19, a memória do homem sobre si e sobre tudo que o cerca apresentalugares de circunscrição: Bibliotecas, Museus, Arquivos, Jardins Botânicos. Osacervos são abertos ao público. Há agora um público amplo, porque experimenta-se aurbanização da população (concentração em cidades), sua alfabetização (leitores) eespera-se oferecer um cultura (exposição do conhecimento). As coleçõesdocumentárias comporão os acervos das Modernas Instituições de Memória (Museu,Biblioteca e Arquivo). Não se trata tanto de sua constituição material, mas de suasnovas funções: fonte de pesquisas históricas, lugar de salvamento do passado e seucaráter público.

Uma memória documental que se acumula com o progresso do homem. Assim, amemória num tempo progressivo é uma memória cumulativa.

REFERÊNCIAS:

AGOSTINHO, Santo. O homem e o tempo (Livro XI). In: ____. Confissões. Tradução de: J.O.Santos e A.A. Pina. São Paulo: Victor Civita/Abril Cultural, 1973, p. 236 –257. (Os Pensadores, VI).

BATTLES, Matthew. A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003.

BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London, New York: Routledge, 1996.

BLAIR, Ann. Bibliotecas portáteis: as coletâneas de lugares comuns na Renascença tardia. In: BARATIN, Mark; JACOB, Christian (Org.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. 3ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008, p. 74 - 93.

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

BIGNOTTO, Newton. O círculo e a linha. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. Introdução. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER,Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, p. 5-40.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª Ed. Tradução de Ma. De Lourdes Menezes.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

DONATO, Hernâni. História do calendário. São Paulo: USP, 1976. (Prisma Brasil; 27).

FENTRESS, James; WICHAM, Chris. Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Tradução de T. Costa. Lisboa: Teorema, 1992.

27

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9ª. ed. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção Tópicos)

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad.: Ferreira, Leitão e Borges. Campinas: Unicamp, 1996.

MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. Trad.:: G.A.G. de Andrade. São Paulo: Unesp, 1995.

MENESES, Adélia Bezerra de. Memória e ficção. Resgate, n. 3, p. 9-14, 1991.

PARKERS, Malcom. Ler, escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na alta Idade Média.In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. SãoPaulo: Ática, 1998, p. 104-122.

RAMESSE, Jacqueline. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, Guguielmo;CHARTIER, Roger (Org.). História da leitura no mundo ocidental 1. São Paulo: Ática, 1998,p. 123-146. (Múltiplas Letras)

RICHÉ, Pierre. As bibliotecas e a formação da cultura medieval. In: BARATIN, Mark; JACOB,Christian (Org.). O poder das biblitecas: a memória dos livros no Ocidente. 3ª ed. Rio deJaneiro: UFRJ, 2008, p. 246-256.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l’hoistoire, l’oubli. Paris: Editions du Seuil, 2000.

SEANGER, Paul. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo;CHARTIER, Roger (Org.). História da leitura no mundo ocidental 1. São Paulo: Ática, 1998,p. 147 – 184.

TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses de Hesíodo. 5ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2003

WHITROW, G.J. O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Trad.: M.L.X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

2.3 Memória, História e Progresso: os Questionadores

A história representa o passado? A história é uma ciência? Houve um tempo em queciência era um termo concedido apenas aos conhecimentos que apresentavam leis equadros explicativos para fenômenos capazes de fornecer meios para previsão deacontecimentos. Ora, a história parece o contrário disso quando pensa o desenrolar defatos irrepetívies, ao invés de um quadro de regularidades comandadas por leisuniversais. Isto, portanto, iria trazer à historiografia alguns problemas de legitimaçãojunto à Ciência.

Vamos tomar seis questões que direta ou indiretamente estão relacionados comquestionamentos e afirmações no campo da historiografia: Freud, Marx, Nietzsche,Escola dos Annales, Halbwachs e Foucault.

Marx traria, com seu conceito de ideologia, um problema para o saber histórico. Épossível que à história contar o passado como ele realmente foi?

Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente abase real da histórica ou a tem considerado algo secundário [...] A‘imaginação’, a ‘representação’ que homens historicamente determinadosfizeram de sua praxis real transforma-se, na cabeça do historiador, na únicaforça determinante e ativa que domina e determina a praxis desses homens.(MARX, apud CHAUI, 1993, p. 82-83).

Não seria a história, ela mesma, um instrumento ideológico? Apoiada na noçãohegeliana, a história não explicaria os acontecimentos históricos de modo invertido?Que problemão! O receio de ideologia põe questão nos critérios de seleção do que é e

28

do que não é um documento histórico, ao que se coloca e o que se retira comoevidência do passado.

Freud afirmaria a existência do inconsciente, constituinte da própria consciência, masque lhe é oculto. Como ser fiel ao passado? O nascimento da Psicanálise fala deobservações ligadas à Memória: a histérica sofre de reminiscências; seu sintoma é aação, no corpo, de algo que não pode ser lembrado. (CARBALHAL et al). A memória éenganosa. A história precisa de métodos que lhe assegurem. Nem todas asrecordações são de fatos realmente vividos. Muitas lembranças servem apenas paraencobrir algo que não podemos ter consciência, mesmo em pessoas normais, assimpensava Freud (MENESES, 1991, p. 11).

O descrédito na memória individual, no que se refere à veracidade de suasrecordações, contra uma história que representa o passado a partir de normas eprocedimentos científicos, pode aqui ser tomada como um aval da ação corretora dahistória. Vejamos um trecho de Le Goff:

A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar seus erros. Masestará o historiador imunizado contra uma doença senão do passado, pelomenos do presente e, talvez, uma imagem inconsciente de um futurosonhado? [...] Se a memória faz parte do jogo do poder, se autorizamanipulações conscientes e inconscientes, se obedece aos interessesindividuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem comonorma a verdade. (LE GOFF, 1996, p. 29 e 33, grifo meu).

A bem da referência à ação retificadora da História, fica uma “pulga atrás da orelha”.Quais as intenções da história? Ela conhece suas próprias intenções? O métodogarante a correção da memória? O que a história quer? Fazer lembrar (funçãomenmônica)? Fazer correções (função pedagógica?).

Nietzsche pensava que a história e o historiador deviam servir à vida, servir comomeios para que se criem coisas novas, para que se viva bem. Bem, ele acreditava quea historiografia do seu tempo era justamente o contrário disso. Nietzsche diz que háem seu tempo um excesso de história que se decora e repete, ocupando a mente eimobilizando, mas que isto não tem efeitos positivos para a vida. Esta históriadecorada e decorativa é para Nietzsche algo que apenas esconde a falta de memória,falta de passado no presente. Mas o que ele quer dizer com isso? O filósofo pensaque o historiador deve ser um artista que harmoniza o passado e o presente, onde opassado também precisa mudar. O historiador precisa “[...] antes de mais, umapoderosa faculdade poética, o poder criador de planar por cima do real, de mergulharcom amor nos dados empíricos, de criar imagens novas, conformes os tipos dados.”(NIETZSCHE, 1976, p. 158). A diferenciação, relativamente ao passado, é percebidano horizonte (presente/passado no agora) quando o homem o integraharmoniosamente (identificação) o passado no presente, de tal sorte que, ao olharpara trás diz “[...] foi assim... mas assim eu quis!”6.

Escola dos Annales. Nos início do século 20, a novidade na historiografia seria aHistória dos Annales. Em 1929 a primeira escola dos Annales iniciaria este novo modode condução da pesquisa, com a construção de novos objetos. Inicialmente com umacrítica à “história de superfície” que Lebvre acusa de isolar as idéias e pensamentosde uma época das condições de sua produção e das relações sociais que asensejaram (CHARTIER, 1990, p.32-35). Seu primeiro enfoque era econômico,buscando estudar as séries temporais de preços. Mesmo com as regularidadesencontradas e pretendidas, muitos historiadores resistiriam ao novo objeto. Mas osnovos passos estavam dados e se consolidariam, deslocando-se a novos objetos e6 Uma não harmonização de passado e presente, não evita o “foi assim”, daí o passado se torna um peso.A este modo de relação com o passado Nietzsche chama de espírito de vingança, onde o presente secoloca como juiz que condena o passado e fica preso na sua pendência, imobilizando o presente: é precisoesquecer.

29

alargando as fronteiras do documento histórico. A construção de séries estatísticas depreços, demografia, produção etc., incluía documentos até então pouco ou nadarelevantes ao estudo histórico. Marc Bloch (historiador francês) destacaria para a novaabordagem da história os testemunhos contra a vontade7 que, até então, estavamrelegados ao esquecimento pelos historiadores, por uma herança da históriamedievalista. “Tudo quanto o homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em quetoca, pode e deve informar a seu respeito.” (BLOCH, /s.d./, p.61). Contra a exclusãoque a seleção documentária praticava, Bloch reabilita até mesmo os documentosfalsos, pois “[...] uma mentira, como tal, é à sua maneira um testemunho.” (Ibid., p.85).

Com a Escola dos Annales inaugura-se uma história de períodos históricos (a IdadeMédia, O Renascimento etc.), períodos em que se identificam características que sãosuas marcas. São uma espécie de continuidade no tempo, passando por cima dosfatos pontuais. Esta maneira de conceber a história está muito viva hoje, a bem dascríticas da homogeneização das diferenças que as críticas atuais lhe colocaram.

Halbwachs inovou em sua abordagem sociológica da memória. Suas reflexões nãodeixariam de atingir a história.

As nossas idéias e a língua que utilizamos para expressá-las, o reconhecimento dascoisas com as quais nos deparamos, as relações que percebemos manter entre si,nossos hábitos etc., não são inventados por nós, são antes aprendidos dentro dosgrupos nos quais participamos, especialmente o grupo familiar. Nossa memóriacomeça sendo, pois, o que poderíamos chamar de uma memória emprestada.

Toda memória individual é coletiva, de grupo. E não deve ser entendida como umacobertura externa ou imposta aos participantes do grupo, nem um conjunto derecordações partilhadas igualmente por seus integrantes, porque neste caso ela teriauma existência fora dos indivíduos, o que não é absolutamente admissível paraHalbwachs, já que cada indivíduo carrega esta memória viva e como sua - própria. Amemória coletiva tira suas forças e duração por ter como suporte um conjunto dehomens. Entretanto, é o indivíduo que se lembra, enquanto membro do grupo. Amemória individual é como que um ponto de vista da memória coletiva e tal ponto devista depende tanto do lugar que o indivíduo ocupa no grupo, quanto de sua trajetóriapor diversos grupos, durante sua vida. (HALBWACHS, 1950, p. 33). Além de nãoexterna ao grupo, a memória coletiva não deve ser entendida como sendo o somatóriodos pontos de vista de cada um de seus membros, porque cada memória individual jáé memória coletiva. Ela também permite distinguir o indivíduo por seu ponto de vista,diferente dos demais, que servem de apoio à sua individualidade. (Ibid., p. 35-36).

O que garante sua individualidade, sua diferença, é o mesmo que mantém suaidentidade, sua pertença ao grupo. O apoio que encontramos na memória dos outrosmembros do grupo, o “você se lembra?”, está no cerne tanto da garantia de realidadeque tive um passado, portanto, de minha permanência; de minha identidade pelaidentificação ao “em comum” do grupo: temos o mesmo passado; como daindividualidade pela diferença de minhas lembranças vis-a-vis aos demais.

A memória é a realidade, enquanto a história, escrita como uma espécie de desenrolaronde tudo se encaixa, é uma ficção, na sua colocação de sucessão de unidades detempo, obtidas de modo artificial. (HALBWACHS, 1950, p. 98). A história escrita, apartir de grandes marcadores nacionais ou mundiais, não resulta senão umarepresentação do que do passado já passou. A memória coletiva, por seu turno,garante uma história viva, o que do passado mantém-se, ou seja,

7 Marc Bloch está apontando para aquilo que não foi feito com o intuito de dar testemunho no futuro de um acontecimento, mas que pode ser usado como tal.

30

[...] ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua e serenova através do tempo e onde é possível encontrar um grande númerodestas correntes antigas [de pensamentos e experiências] que nãodesapareceram senão aparentemente. (Ibid., p. 52).

A oposição entre memória e história é, entretanto, uma espécie de complemento, pois“[...] em geral a história começa no ponto onde acaba a tradição, momento onde sedecompõe a memória social.” (Ibid., p.68), de tal modo que aquilo que perdeu suaeficácia presente só pode ser salvo do esquecimento se fixado e explicado por escrito.

Foucault propõe um caminho de investigação que privilegia as variadas práticas queprojetam objetivações, ao invés de tomar objetos dados como causa das práticas(VEYNE, 1982, p.164). As práticas discusivas apontam às condições de possibilidadepara formas de objetivação. Assim, não se trata de entender as práticas e relaçõesque se constituem a partir da emergência do Estado (objetivação), mas as variadaspráticas que possibilitam a objetivação do Estado.

Os estudos de Foucault se aliam a questões já fervilhantes no campo da historiografia,que culminam com o entendimento da impossibilidade de uma história total outotalizante. A historiografia passa a alargar suas conversas com outros campos doconhecimento (economia, sociologia, filosofia, psicologia etc.) constituindo novosinstrumentos de análise histórica. Para Burke (1992, p.35) os historiadores da novahistória conversam cada vez melhor com outros campos, mas têm dificuldades deconversar entre si. Importa-nos que as demandas e visões diferentes doshistoriadores, podem significar num novo entendimento de memória. Mesmo que nãosejamos capazes de já compreender, implica num alargamento do que sejadocumento historio, do que se aceito como evidência histórica. O alargamento pordemandas externa e interna à historiografia já estava presente nas palavras

As novas representações acabam por solicitar à ciência histórica e ao museu umaconstante revisão do passado. Martín-Barbero pleiteia o museu não como lugar deapaziguamentos, mas de lugar “[...] de memória como experimentação, de resistênciacontra a pretendida superioridade de umas culturas sobre as outras, com diálogo enegociação cultural; [...] que sonda no passado o que há de vozes excluídas, dealteridades, de ‘resíduos’ [...]” (MARTÍN-BARBERO, p.8). Um passado re-visto, re-contado, em uma constante negociação, são uma história e um museu instáveis (paraa maioria dinâmicos). O que é admitido ou não como documento de memória,incluindo-se aqui prédios e mesmo cidades preservadas como patrimônios históricos,sofre não só um alargamento por parte dos autorizados a sancioná-los como tal(conceitual), como torna o conceito de documento de memória algo flexível, cambiantee sem contornos muito claros.

No caso da história, Le Goff aponta que

[...] a reflexão histórica se aplica hoje à ausência de documentos, aossilêncios da história [...] Falar dos silêncios da historiografiatradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar adocumentação histórica sobre as lacunas, interrogar-lhe sobre osesquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história. Devemosfazer o inventário do arquivo do silêncio, e fazer a história a partirdos documentos e das ausências de documentos. (1996, p.109 –grifo meu).

REFERÊNCIAS:

AGOSTINHO, Santo. O homem e o tempo (Livro XI). In: ______. Confissões. Tradução de: J.O.Santos e A.A. Pina. São Paulo: Victor Civita/Abril Cultural, 1973, p. 236 –257. (Os Pensadores, VI).

31

BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London, New York: Routledge, 1996.

BIGNOTTO, Newton. O círculo e a linha. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de J. F. de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In:______ (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992.

CARBALHAL, Ângela et al. Escuta diferenciada para a ‘verdade’ histérica como fator desecandeante da psicanálise. Disponível em: <http://www.frb.br/ciente/PSI/PSI.BRANDAO.et%20al.F2%20.pdf.>.Acesso em: 18 de outubro de 2008.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª Ed. Tradução de Ma. De Lourdes Menezes.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de M. M. Galhardo. Lisboa: Difel/ Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. (Memória e Sociedade).

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 36ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Primeiros Passos; 13).

FENTRESS, James; WICHAM, Chris. Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Tradução de T. Costa. Lisboa: Teorema, 1992.

HALBWACHS. Maurice. La mémoire collective. Paris: Puf, 1950.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad.: Ferreira, Leitão e Borges. Campinas: Unicamp, 1996.

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Das mídias às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. Trad.:: G.A.G. de Andrade. São Paulo: Unesp, 1995.

MENESES, Adélia Bezerra de. Memória e ficção. Resgate, n. 3, p. 9-14, 1991.

NIETZSCHE, Friedrich W. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. In: ______.Considerações intempestivas. Lisboa: Editorial Proença/São Paulo: Martins Fontes, 1976.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Editions du Seuil, 2000.

TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses de Hesíodo. 5ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2003

VEYNE, Paul Marie. Foucault revoluciona a história. In: ______ . Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: UnB, 1992

2.4. A Memória e seus Acompanhantes

A noção de memória, dependendo do campo de conhecimento em que esteja sendotratada e das relações que aí se façam, pode cobrir um extenso conjunto de redes-conceitos que têm em comum o remetimento ao homem, à sua capacidade de mantero passado, sem o que nenhuma memória, mesmo digital ou celular, faria sentido.

Vamos tratar de apontar algumas destas relações, que serão úteis para abordar os“documentos”, cuja análise é, em última instância, o objeto desta disciplina.

32

i) Memória / Ser

O verbo ser, tão caro aos filósofos, designa tanto a existência como serve paraenunciarmos as características de qualquer coisa. A relação com a memória se faz emambos os sentidos do verbo, já que FOI aponta para algo que não existe mais(recordação) e É aponta para algo que está ausente (representação).

Platão FOI um filósofo grego. (foi, não existe mais) = recordação

Leão É um mamífero, felídeo, carnívoro, cujo macho possui juba = representação eenumeração de características identificadoras.

ii) Memória e suas potências/ existência/ os outros

São duas as potências da memória, ao menos assim pensavam os gregos, lembrar eesquecer. Uma garante a existência da outra; elas se auxiliam. Deve ser por isso quede vez em quando ouvimos dizer “Eu não posso me lembrar de tudo!”. Umareclamação justa. Este par, associado ao Ser como existência, é algo que possorelacionar para pensar a minha própria existência, como eu mesma (identidade).

Caso eu não me lembrasse de nada, quem seria eu? É uma pergunta que poderíamosfazer a um desmemoriado, muito embora ele se lembre como falar (o que diríamos dealguém com mal de Alzheimer?). Se eu não me lembrasse das coisas queaconteceram há anos atrás, há meses, ontem, como eu projetaria minha existênciapara um futuro? De onde eu tiraria a noção de minha permanência no tempo?

E se ninguém se lembrasse de mim? Será que eu ainda existiria? Bem, eu acho queiria supor que sim, mas estaria incerta de minha própria identidade. Minha identidadetambém depende da memória (lembrança) do outro sobre mim. Afinal “um homem semmemória” é uma frase que nos fala tanto de um desmemoriado como de alguém quenão é mais lembrado por ninguém.

Agora vamos imaginar que eu me lembro de um acontecimento ocorrido na semanapassada, quando estava junto com um grupo de amigos. Se nenhum de meus amigosse lembrasse de nada, poderia ter eu certeza de que aquilo de que me lembrorealmente aconteceu? Estaria eu imaginando coisas?

Quando se trata de garantir a existência (permanência, projeção ao futuro), minhaexistência (identidade), dependemos da memória, não só de nossa memória pessoal,mas da memória dos outros. Eu, enquanto me lembro, sou testemunha do passado,mas este testemunho se apóia em outros testemunhos, sem os quais eu ficariaincerta.

iii) Memória Coletiva/Individual

33

Passado foi não existe mais

Presente é existe

Futuro seráainda não existe

Será que tudo que me lembro foram coisas que realmente vivi? Supondo-se que euseja histérica, Freud diria que algumas de minhas recordações são de fato fantasias.Supondo-se que eu não seja, mesmo assim tenho algumas dúvidas quanto isto.

Lembro-me de ter visto certas imagens, quando era criança, que realmente não possoter visto, como o início da aterragem sobre o mar, onde é agora o atual Parque doFlamengo. São imagens que construí a partir do que eu ouvia falar entre si oucontavam a mim meus pais, seus amigos. Como eu era muito criança e faz muitotempo, tornou-se difícil distinguir entre uma imagem resultante de minha própriaimpressão visual e as imaginadas por mim a partir da impressão visual deles. Outalvez eu tenha visto alguma foto da aterragem e associei aos seus relatos e, daí,imaginei ter visto diretamente; não sei.

Em 1950 foi publicado um livro chamado “A Memória Coletiva”, de Maurice Halbwachs(ele já havia morrido). A tese central do livro é que toda memória individual é coletiva(e, podemos dizer, toda memória coletiva só existe no indivíduo). Convivendo emdiversos grupos, começando lá pela família, durante nossas vidas, aprendemos epartilhamos com os outros costumes, noções, crenças, hábitos (HALBWACHS, 1950,p. 13). Ouvimos histórias do passado, que viveram nossos antepassados. Já desdecrianças aprendemos a relacionar nossas experiências pessoais com osacontecimentos que nos cercam e que cercaram nossos antepassados(HALBWACHS, 1950, p.41). É assim que dizemos: “Durante a Segunda Guerra meupai se encontrava em Paris”, ou, “Eu estava cursando economia quando aconteceu ochoque do petróleo.”

A memória coletiva não é, posto isto, algo que exista fora dos indivíduos (fora sótemos uma memória documentária) e toda memória individual é coletiva. Mais do queisso, revendo as frases acima lembrei-me de Paul Ricoeur. O filósofo fala de umanoção de partilha e de continuidade da memória lançando mão da proposição deAlfred Shultz chamada de os três reinos: o dos antepassados, o dos contemporâneose o dos sucessores. No reino dos contemporâneos, no qual sempre estamos, vivem ossimultâneos no tempo. Mas isto garante uma continuidade indefinida (um passar opassado), porque duram juntos diversos fluxos temporais: crianças, jovens, adultos evelhos (RICOEUR, 1997, p. 192-193). É por causa desta simultaneidade de diferentesfluxos temporais que é possível haver uma mediação, uma relação entre o tempoprivado (Eu estava cursando economia) com o tempo público (quando aconteceu oprimeiro choque do petróleo). Também é por ela que posso me lembrar (encadear notempo, colocar num sentido) acontecimentos que não vivi diretamente.

iv) Memória / Temporalidade

A primeira relação que propusemos (memória/ser) colocou implícita uma noção detempo nas flexões verbais foi, é e será. Organizamos, damos ordem, damos sentidoaos acontecimentos que podem ser passados, presentes e futuros. Dissemos quepassado e presente estão fora da existência. Bem, talvez isso tenha sido um poucoexagerado. O termo passado também significa o que permanece, o que continua,porque foi passado para nós, os contemporâneos. O futuro fala de nossasexpectativas, de nossos temores presentes, porque é agora que tememos oudesejamos certo futuro.

Para que não façamos confusão com o tempo newtoniano que passa, vamos chamaresta maneira de organizar de temporalidade. Falamos da presença no agora dopassado e do futuro. O agora é a sustentação da continuidade, que mantém unidos epresentes o passado e o futuro. Assim, nosso desenho precisa ser alterado.

A existência está acolhida, preservada no agora, como presente, não num bolo decoisas desconexas, mas como o que existiu o que existe e o que existirá. É por isso

34

que podemos nos remeter a um tempo newtoniano, é por isso que podemosdependurar os acontecimentos passados em um calendário.

v) Memória/Esquecimento/Apagamento

Mas o que é feito daquilo que nós esquecemos? Não está mais na existência? É bempossível que algumas coisas tenham deixado a existência para nunca mais. Ficamapenas as coisas protegidas pela memória e pela imaginação. Mas, a memória temduas forças e se não as tivesse há quem pense que estaríamos imóveis. Eu melembrei de dois autores que têm histórias bem interessantes. Um é Jorge Luís Borges,um literário argentino, que escreveu um conto chamado “Funes, o memorioso”. Ooutro é Nietzsche, que em sua Segunda Intempestiva imagina um sujeito incapaz deesquecer. Peguei pequenos trechos dos dois.

[Funes] sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trintade abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las nalembrança aos veios de um livro encadernado em couro que virasomente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou norio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembrançasnão eram simples; cada imagem visual estava ligada ás sensações

Pa

ssad

o d

o

pre

sent

e

E X I S T Ê N C I A

Futuro pre sente

35

musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todosos entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um diainteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinharequerido o dia inteiro. Disse-me: ‘Mais recordações tenho eu sozinhoque as tiveram todos os homens, desde que o mundo é mundo’ [...]

De fato, Funes não só recordava cada folha de cada árvore de cadamonte, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ouimaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas aumas setenta mil lembranças, que definiria depois por cifras.Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefaera interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na horada morte não teria acabado ainda de classificar todas as recordaçõesda infância.Funes discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção,das cáries, das fadigas. Era o solitário e lúcido espectador de ummundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato [...]Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim.Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar éesquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo deFunes não havia senão pormenores, quase imediatos [...]Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um dos meusgestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me otemor de multiplicar gestos inúteis [...]“ (BORGES, 1999).

Vejamos agora um trecho do texto de Nietzsche, que fala sobre um homem que estáobservando um rebanho. Ele sente inveja dos animais, por sua felicidade perante avida. O animal vive o instante presente, sem recordar de nada, tudo, bem e mal, lheescoa.

‘Porque é que não me falas da tua felicidade? Porque te limitas aolhar-me?’ O animal gostaria de responder: ‘É que eu esqueçoexatamente o que eu queria dizer.’ Até mesmo esta resposta éafogada no esquecimento, e cala-se [...]É um fato extraordinário: o instante aparece como um relâmpago edepois desaparece também como um relâmpago. Nada antes, nadadepois, e, contudo, ele vem perturbar como um fantasma, a paz deum instante ulterior[...] um homem que fosse incapaz de esquecer e que fossecondenado a ver permanentemente um devir; deixaria de acreditar noseu próprio ser, deixaria de acreditar em si, veria dissolver-se tudonuma infinidade de pontos móveis e acabaria por perder-se natorrente do devir. Finalmente, como verdadeiro discípulo de Heráclito,não ousaria sequer mexer um dedo. (NIETZSCHE, 1976, p. 105 e107).

Não estaríamos nem no modo animal, que tudo esquece, e nem como o discípulo deHeráclito imóvel, que como Funes percebe toda mudança. De certo modo, aspotências da memória nos retiram destes extremos.

Mas e o apagamento da memória, isto seria possível? É uma pergunta difícil deresponder. Enquanto o termo esquecimento remete a uma força interna da memória(minha, de meu grupo, dos contemporâneos), o termo apagamento remete a umaespécie de ação externa e deliberada que quer impedir a recordação. Disse-me umaaluna de museologia que não é mesmo possível apagar a memória, porque aqueleque age no sentido de apagá-la não se esquece. Para garantir um apagamento épreciso sempre lembrar o que deve ser mantido no esquecimento.

Acho difícil haver uma “borracha” capaz de apagar a memória, mas será que existeuma “borracha” capaz de apagar a história? E se houver, existe uma “anti-borracha”?

36

Estamos já em ponto de refletir sobre “o que é documento”, este suporte da história edos direitos e que é o nosso objeto de análise.

REFERÊNCIAS:

BORGES, Jorge Luís. Funes, o memorioso. In: _____. Obras completas. Vol I. São Paulo: Glob, 1999,p.539-546.

HALBWACHS. Maurice. La mémoire collective. Paris: Puf, 1950.

NIETZSCHE, Friedrich W. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. In: ______. Considerações intempestivas. Lisboa: Editorial Proença/São Paulo: Martins Fontes, 1976.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo III. Tradução de Roberto L. Ferreira; Revisão Técnica de Ma.Da Penha Villela-Petit. Campinas: Papirus, 1997

3 DOCUMENTO

Como identificamos algo como documento? Como trocamos e aceitamos uns dosoutros certos artefatos como documentos? Ou, o que é documento?

3.1 Da Inscrição ao Documento

Quando utilizamos o termo "passado" podemos inicialmente entender que tudo aquiloque dispomos no presente e que não é mais atual é passado, ao menos em um dossentidos da palavra passado. O termo inscrição definirá aqui aquilo que, no presente,se nos apresenta como algo do passado, que se dá a "ler" no presente, mesmo quenão seja um texto, como algo do passado. As inscrições aparecem diante de nossosolhos apenas quando experimentamos mudanças. Quer dizer, um objeto como ummartelo, que foi idealizado e produzido no passado é ainda atual. Já as mudançasarquitetônicas em uma cidade colocam à vista prédios construídos segundo umaarquitetura do passado, não mais em vigor – tais prédios são inscrições. Assimtambém são para nós formas de produção não atuais, mas mantidas em algunspoucos lugares, como é o caso da antiga forma de se fazer rapadura em uma fazenda.O lugar: uma praça, um prédio, uma estátua, um engenho de cana, uma estátua,entrelaça camadas de passado no presente (RICOEUR, 2000, p. 183). As inscriçõesnos remetem a uma apreciação temporal, num mesmo espaço.

Já os relatos sobre outros tempos, como quando dizemos "naquele tempo aquifuncionava tal coisa" remetendo-nos a costumes, lugares, hábitos ou modos de ser dopassado e que não existem atualmente, senão na memória, são os testemunhos dopassado. Parece que Ricoeur diz que os relatos, que testemunham as mudanças, sãouma possibilidade de proteção do passado em desaparição. Para que possamosconstituir um arquivo de memória documentária são necessários, portanto, tanto amudança como a existência dos relatos de "como era".

O termo documento nos remete a algo que imediatamente parece que já sabemos oque é. Mas num exame da literatura vamos encontrar esforços de delimitação do que

37

A mudança é a condição formal dasinscrições.

A mudança e o relato são as condições do arquivamento. Sempercepção de mudança não há relatos do passado. Os relatos

escritos podem ser arquivados

seja documento. Como o termo está para nós atrelados às noções de garantia,evidência, comprovante ou representação, então deve haver um conjunto de forças,nos campos que tratam da documentação, que disputam a colocação destasfronteiras.

Os documentos como comprovantes, ou como evidências de um fato, são modosmuito familiares para nós e estão associados ao Direito e à Historiografia. Mas antesde examinar alguns de seus aspectos vamos, nós mesmos, fazer um exercício paradelimitar porque consideramos determinados objetos como documentos.

Por que uma carteira de identidade é um documento e um papel no qual eu escrevomeu nome e assino, não o é? Ora, mesmo que eu colocasse neste papel todos oselementos constantes na carteira de identidade, mesmo assim isso ainda não teriavalor de documento. Parece-me que eu sozinha não consigo estabelecer algo comodocumento. Este estatuto jurídico necessita de sustentação institucional, quer dizer, deacordos sociais prévios, regras, que estabelecem direitos e deveres e cujosdocumentos são registros. Neste sentido alguns documentos já nascem para serdocumentos, como é o caso da carteira de identidade. Isto não significa que não possaperder este estatuto. Imagine um náufrago solitário em uma ilha deserta e com suacarteira de identidade. Ela seria ainda documento? Acho que não.

Já outros têm finalidade dupla. É o caso de minha conta de luz que serve de iníciopara que eu possa saber o meu consumo de energia e ir ao banco pagar o valorcorrespondente e, em seguida, é um documento que serve para comprovar quepaguei pelo serviço prestado. Sei que minhas contas de luz, com o carimbo do banco,serão aceitas diante da fornecedora como comprovante do pagamento. Isto quer dizerque, enquanto documento, minha conta de luz deve passar por um acordo mútuo desua aceitação como comprovante.

Podemos também pensar em objetos que não nasceram para ser documentos, comoé o caso de uma cadeira, feita para se sentar, mas que em um museu ganha a funçãodocumentária.

No campo do direito, os documentos, mais do que papéis com assinaturas einformações sobre o titular do direito, são símbolos de acordos e normas, de garantiasde reciprocidade aceitas por todos. Há um conjunto de instituições de direito público eprivado que sustenta estes direitos e estabelece sanções àqueles os ferirem.

3.2 Documento no Renascimento

O Renascimento é um momento apontado tanto pelo campo do Direito como daHistória como crucial na mudança do status do documento. Como verificar aautenticidade do documento? As falsificações proliferavam na Idade Média. Não quenão houvesse neste tempo meios que buscassem garantir a autenticidade. Umexemplo é o Quirógrafo.

O texto do contrato, escrito a mão pelos contratantes, como seunome indica (quiro-grafo), era transcrito duas ou três vezes numamesma folha. A palavra 'quirógrafo', inscrita entre os dois textos,servia de linha divisória, função às vezes desempenhada tambémpelas letras do alfabeto [...] Cada contratante guardava assim umaversão do contrato, cuja autenticidade era atestada pelo ajustamentodas letras cortadas. (FRAENKEL, 1995, p. 87).

38

Ainda se utilizariam outros meios de garantia como a subscrição, que continha umdesenho chamado de colméia, feito por um chanceler e que era passível deverificação. Mais tarde vieram as "marcas dos notários" utilizadas do século 12 ao 148.Estas marcas tinham por função "validar" os documentos, não tinham um caráterprobatório, mas representativo do ato que registrava. A noção de instituições quevalidam e sustentam o documento enquanto tal já estão presentes nestas marcas esubscrições, conforme nos explica Fraenkel (1995, p. 95).

A multiplicação das marcas visa a reforçar o valor legal documento.Ele exibe assim a sua oficialidade, isto é, sua pertinência a umsistema jurídico e, por conseguinte, a uma política [...] Possuem[estas marcas] uma referência comum, a do poder. Este poder éparticipado pelo fato de estas marcas serem firmas, signos própriosdos notários e identificáveis como tais.

Entretanto, o Renascimento se defronta, além do problema da autenticidade, com anecessidade da guarda dos documentos. Se um ato jurídico é único e irrepetível, aguarda do registro do ato permite a consulta e é um meio de fazer frente àsfalsificações.

Imaginamos sem dificuldade o embaraço causado pela perda,quando sabemos que os registros dos atos, que permitia justamenteguardar as suas marcas, são começa no século XIV. Logo, aimportância do suporte é extrema, não só do ponto de vista de suaconservação mas também do ponto de vista de sua autenticidade, daqual depende o valor do ato jurídico. (FRAENKEL, 1995, p. 90).

No meio dos estudiosos eruditos também se apontavam os problemas da corrupçãodos textos, especialmente os textos da antiguidade, aos quais tanto os humanistasrenascentistas recorriam, como fonte de sabedoria. Conforme Le Goff, oRenascimento é uma ruptura com a Escolástica da Idade Média, ele instaura o novo, anovidade e o moderno, como oposições explícitas ou implícitas às práticas e idéiasvelhas da Idade Média. O Renascimento dá um salto por cima da Idade Média e buscaas culturas greco-romana e pagã da antiguidade, como um passado a ser resgatado."O 'moderno' só tem direito de preferência quando imita o antigo". (LE GOFF, 1996, p.176).

Daí a recorrência aos textos dos antigos. Mas o que em geral se dispunha era a cópiados textos, que eram cópias das cópias das cópias, feitas à mão e que colocavammuitas dúvidas acerca das reais idéias de seus autores. Os eruditos precisaram demeios para acesso e guarda dos documentos autênticos, os 'autógrafos', aos quaispodia se recorrer a fim de elucidar dúvidas sobre as cópias9.

Os historiadores do Renascimento vão examinar as fontes já existentes de modocrítico. Os documentos devem ser aqueles que se remetem aos acontecimentos e nãoa lendas, fantasias e crendices. Este conjunto de ações, de diversos campos e

8 O termo "cartório de notas" advém deste tipo de validação por assinatura e registro de um documento.9 Este mesmo problema foi enfrentado pela Biblioteca de Alexandria, que pretendia reunir todas as obras gregas. Os filólogos faziam verdadeiros tratados para discernir entre as variadas versões. Para saber mais sobre o assunto leia: JACOB; Cristian. Ler para escrever: navegações alexandrinas. In: BARATIN; JACOB. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro; UFRJ, 2008.

Texto do contrato escrito a mão Q U I R Ó G R A F OTexto do contrato escrito a mão

39

interesses, desemboca na seleção e na preservação do que seja documento. Nãobasta ser autêntico, precisa ser também verdadeiro para ser protegido. São ações quenão apenas constituem a noção moderna de documento, mas também uma espéciede filtro que deve ser utilizado sobre as inscrições deixadas pelo passado.

3.3 Expansão do conceito de documento: Séculos 19/20

História

Mas a historiografia também iria mudar. Além de sua dinâmica interna, pressõesexternas questionando sua cientificidade e demandas sociais por representação deexcluídos, iriam alargar o funil de seleção do documento histórico. A história modernaé uma história fundada no documento. Para que algo fosse considerado documentohistórico passou a ser necessário uma espécie de exame, segundo critérios pré-estabelecidos. Portanto, é o ato seletivo do historiador que “cria” o documentohistórico, ao menos assim pensa de Certerau. Vejamos:

Em história tudo começa com o gesto de separar, de reunir, detransformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outramaneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Narealidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fatode recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando aomesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto [...] As origens de nossosarquivos modernos já implicam, com efeito, na combinação de umgrupo (os ‘eruditos’), de lugares (as ‘bibliotecas’) e de práticas (decópia, de impressão, de comunicação, de classificação, etc.)[...] Nelas[coleções] se conjugam a criação de um novo trabalho (‘colecionar’) asatisfação de novas necessidades (a justificação de grupos familiarese políticos recentes [...]), e a produção de novos objetos cujo sentido,de agora em diante, é definido pela sua relação com o todo (acoleção). Uma ciência que nasce [história] [...] recebe com estes‘estabelecimentos de fontes’ – instituições técnicas – sua base e suasregras. (CERTEAU, 2007, p. 81)

Conforme Burke (1992, p. 10), a história tradicional resumia-se à história política,relacionada ao Estado e à Igreja. É contra esta história e em favor de uma "históriatotal" que emerge a Escola dos Annales.

Com a Escola dos Annales, a noção de documento histórico foi modificada. Acompreensão de que a história não é a coleção de grandes feitos ou de grandesepisódios, mas um contínuo no qual se podem encontrar períodos onde dominamdeterminadas concepções (regularidades), idéias ou mentalidades e cujas condiçõesestariam sustentadas por aspectos sócio-econômico-culturais, como propõe a novaEscola dos Annales, significa uma nova teoria histórica e novos métodos. Ora, sob talcontexto, documentos existentes, mas que não eram considerados como documentosde relevância histórica, passarão agora a ser vistos sob outro prisma. Sériesestatísticas de dados econômicos, sociais e culturais serão admitidas comodocumentos históricos. Isto também quer dizer que a história será recontada; haveráuma nova narrativa sobre o passado. A historiografia fará um laço teórico com asciências sociais em vista de modelos da análise de tais dados.

Com as gerações seguintes a Escola dos Annales iria debruçar-se sobre novosobjetos como a infância, o clima, os odores, os gestos, a leitura e muitos outros. Omovimento tenderá não só a questionar a possibilidade de uma história de coberturacomo levará a aceitar uma nova tipologia documentária. É aí que se encaixa a frase deBloch, destacando para a nova abordagem da história os testemunhos contra avontade que, até então, estavam relegados ao esquecimento pelos historiadores, poruma herança da história medievalista. “Tudo quanto o homem diz ou escreve, tudo

40

quanto fabrica, tudo em que toca, pode e deve informar a seu respeito.” (BLOCH,/s.d./, p.61). Contra a exclusão que a seleção documentária praticava, Bloch reabilitaaté mesmo os documentos falsos, pois “[...] uma mentira, como tal, é à sua maneiraum testemunho.” (Ibid., p.85). O relato oral, hoje tão amplamente aceito comodocumento é uma destas novidades.

[...] o movimento da 'história vista de baixo' [...] expôs as limitaçõesdeste tipo de documento. Os registros oficiais em geral expressam oponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dosrebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outrostipos de fonte. (BURKE, 1996, p. 13).

Portanto, documento histórico é aquilo que os historiadores consideram comodocumento histórico. Suas considerações giram em torno de suas concepçõesteóricas. Estas, por seu turno, dependem das circunstâncias onde está inserido ohistoriador, como herdeiro de concepções e normas e regras de seu campo passadasdo mestre ao aprendiz, dependem das relações com seus pares no presente, e comseus contemporâneos de outros grupos sociais, que sempre exercem pressão nosentido de reivindicar representação histórica.

Mas a questão da historicidade de todo e qualquer acontecimento, como oposição auma história seletiva e dominante, coloca para a historiografia uma demanda derepresentatividade que não pode jamais ser atendida E o que é e o que não é históricoimplica no que pode ou não pode ser documento histórico. As demandas porrepresentação fizeram este leque sempre se ampliar. As respostas da historiografiasão colocadas em questão por Paul Veyne

Os historiadores clássicos [...] expõem-se [...] a cair em um erro aindamaior, visando à objetividade, sentem-se obrigados a evitar todoponto de vista seletivo [...] A todo momento, dão-se acontecimentosde toda a espécie e o nosso mundo é o vir a ser; é não crer-se quealguns desses acontecimentos teriam uma natureza particular, seriam'históricos' e constituiriam a História. Ora, a questão inicial que ohistoricismo colocava era a seguinte: o que é que distingue umevento histórico de um outro que não é? [...] logo tornou-se evidenteque não era fácil fazer-se essa distinção [...] o historicismo concluiuque a História era subjetiva, que ela era a proliferação de nossosvalores e a resposta as perguntas que houvéssemos por bem fazer-lhe." (VEYNE, 1982, p.25).

Em livro recente, Beatriz Searlo (2007) protesta contra a proliferação da concorrênciaacrítica do testemunho pessoal (subjetivo) e memorial de experiências vividas frenteao trabalho da história. Isto não quer dizer que ela deseje excluir o testemunhopessoal do âmbito documentário, mas que tal testemunho deve passar pelo exame dohistoriador. Para Searlo, por trás desta proliferação de testemunhos pessoais que sãoapresentados especialmente pela mídia, se esconde a utopia de um relato completodo passado, do qual nada escape (vamos ouvir todo mundo para completar o quadro),utopia da qual a história abriu mão.

Aqui não nos cabe discutir a problemática da historiografia, mas apontar aoalargamento sistemático do funil de seleção dos documentos e, portanto, de suaconceituação. O que nos interessa é que, para ser documento, um conjunto deinstituições, de especialistas e especialidades reconhecidas precisam negociarconstantemente para entrar em algum tipo de consenso e que sejam estabelecido umconjunto de práticas que operam quase automaticamente na sua produção. Esteconsenso valida institucionalmente as práticas documentárias, criadoras dosdocumentos. É claro que os Museus e Bibliotecas estarão aí implicados.

Documentação

41

Ainda na virada do século 19 para o século 20, um novo campo, que passará a serdenominado de Documentação, é, por assim dizer, constituído por um belga chamadoPaul Otlet. Entendendo a Documentação como seleção, guarda e tratamento par usode documentos, Otlet faz um exercício de delimitação dos objetos que deveriam serconsiderados documentos.

Primeiro vamos entender que Otlet não era historiador. Estava preocupado com ummétodo para poder reunir a totalidade do conhecimento produzido pela humanidade.Sua proposta, já no final do século 19, era a de fazer uma espécie de inventário daprodução mundial do conhecimento registrado. Para tanto ele necessitava derecursos, espaços, instrumentos, métodos e de muita colaboração em nívelinternacional.

Para definir o que era “documento”, portanto objeto apto a ingressar neste granderepertório do conhecimento, Otlet lança mão dos traços ou características queencontra nos livros para propor um alargamento. "Os livros são ao mesmo tempo oreceptáculo e o meio de transporte das idéias” (OTLET, 1996, p. 43). Portanto, tudoaquilo que cumprir esta mesma finalidade deve fazer parte do inventário e serchamado de documento.

É uma grande expansão do que pode ser incluído sob o termo documento. A tipologiade objetos da Documentação foi subdividida em Livros e Documentos Bibliográficos eestes em Documentos Gráficos e Substitutos do Livro (OTLET, 1996, p. 124-246).Otlet indica como partes da documentação: os documentos particulares (textos ouimagens fixas), a biblioteca (coleção de livros); os arquivos documentais (fragmentosde livros, periódicos e notas); os arquivos administrativos de uma organização; osarquivos antigos com documentos das administrações do passado; os documentos deoutros tipos que não sejam bibliográficos ou gráficos como imagens em movimento esom; os objetos das coleções museológicas e as enciclopédias (OTLET, 1996, p. 6-7, grifo meu).

Para Otlet, uma fotografia, uma filipeta ou partitura deveriam ser consideradosdocumentos. É uma concepção aproximada de alargamento, assim como a queocorria na historiografia, onde Marc Bloch dizia que até mesmo um documento falso é,a seu modo, um testemunho.

Otlet, de meios para organização dos documentos e precisa de colaboradores em todomundo. Para isso toma um Sistema de Classificação que havia sido desenvolvido peloBibliotecário americano Melvil Dewey (O CDD) e que depois transformará até construirseu próprio sistema de organização por assunto, o CDU, um sistema de classificaçãopara os assuntos de que tratam os documentos, associado a um código numéricodecimal. Propõe também um conjunto descritores padronizados a serem adotadasmundialmente para descrever os documentos, colocados em uma ficha catalográficade tamanho padronizado.

Se o estabelecimento de padrões mundiais era um movimento do século 19, resultanteda maior proximidade entre as nações, Otlet segue esta trilha e, porque não pensar, amesma trilha emergente de Henry Ford que vê na linha de montagem, com a reuniãode peças padronizadas produzidas em diferentes locais um caminho de eficiência eredução de custos na produção.

3.4 Reflexões Após a Segunda Guerra Mundial

A segunda metade do século 20 está marcada por mudanças no campo daDocumentação e da História, que de novo iriam alargar o funil de filtragem dedocumentos.

42

O desenvolvimento teórico e tecnológico durante e logo após a Segunda Guerra, nocampo das comunicações, as crescentes demandas de melhor tratamento edivulgação mais acelerada do conhecimento científico e o discursodesenvolvimentista, no e para o terceiro mundo, foram planos de fundo da emergênciado campo da Ciência da Informação (CI). A CI seria aliada da já constituídaDocumentação que, após a guerra, tornara-se uma prática especializada noatendimento às demandas informacionais nos domínios do conhecimento científico. Adocumentalista francesa Suzanne Briet foi um ícone destas práticas especializadas eescreveu, em 1951, um texto com o título "O que é a documentação". Segundo Maack(200-?), Briet faz aí um mapeamento da documentação muito similar às definições daCI, disciplina então recém estruturada nos EUA.

Para termos uma idéia do caminho de serviço à ciência que a documentalista tem emvista, Briet propõe uma espécie de cooperação entre as Bibliotecas Nacionais, com aestruturação do que chamou de 'centro nacional de informação para pesquisa', queserviria aos especialistas nas suas buscas de documentos e informações nasbibliotecas do mundo. Briet considera que "A evolução do conhecimento humano é umcompromisso em curso entre duas atitudes intelectuais. Invenção e interpretação,reflexão e teste de hipóteses compartilhados no cenário intelectual. A documentaçãoos serve." (BRIET, 1951 apud MAACK, 2000_?)

Com seus argumentos, Briet acabaria se lançando em uma nova delimitação dedocumento, operando uma nova ampliação na extensão do conceito. Um dos pontosinteressantes do texto de Briet, uma documentalista que trabalhava com documentostextuais, na Biblioteca Nacional da França, é que um antílope, em um zoológico, é umdocumento.

Para colocar as novas delimitações ao documento Briet parte de uma série deexemplos. Dentre eles ela afirma: uma pedra num rio não é um documento, mas umapedra em um museu é. Portanto, a primeira coisa que deixa clara na sua delimitação éque não há documentos em si. Documento é uma função que pode serdesempenhada por objetos animados ou inanimados. A questão seguinte é sabercomo algo pode ser investido de tal função. Para Briet, o que torna um antílopedocumento é a produção do que chama de “documentos secundários” e quesustentam o antílope como documento. Vejamos seu exemplo:

#5. À nossa época de transmissões multiplicadas e aceleradas, omenor acontecimento, seja científico ou político, uma fez que foilevado ao conhecimento do público, se avoluma com uma espécie de‘vestimenta documental’ (Raymond Bayer) [3]. É admirável afertilidade documental de um simples fato de partida: por exemplo,um antílope de uma espécie nova foi encontrado na África por umexplorador, que teve êxito a capturar um indivíduo trazendo-o paraEuropa, para o nosso Jardim Plantas. Uma informação na imprensaindica o acontecimento através de jornais, de rádio, ou poratualidades passadas no cinema. A descoberta se faz objeto de umacomunicação à Academia de Ciências. Um professor de Museologiainclui a descoberta no ensino de sua matéria. O animal vivo é postoem uma jaula e catalogado (jardim zoológico). Uma vez morto eempalhado será conservado num acervo (Museu). É emprestado parauma Exposição. Filmado, passa no cinema. O seu grito [voz] éregistrado em um disco. A primeira monografia sobre este tipo deantílope é publicada, e em seguida seus considerações incluídasnuma enciclopédia especial (zoológica), e, logo depois em umaenciclopédia geral. As obras são catalogadas numa biblioteca, apósterem sido oferecidas em livraria (catálogos de editores e Bibliografiada França). Os documentos iconográficos [sobre o animal](desenhos, aquarelas, quadros, estátuas, fotografias, filmes,microfilmes), são selecionados, analisados, descritos, traduzidos

43

(produções documentais). Os documentos que se referem à esteacontecimento são objeto de uma classificação científica (fauna) e deuma classificação conceitual (classificação). A sua conservação e asua utilização são determinadas por técnicas gerais e métodosválidos para o conjunto dos documentos, métodos estudados emassociações nacionais e Congressos internacionais. #6. O antílopecatalogado é um documento inicial e os outros documentos sãodocumentos secundários ou derivados. (BRIET, 1951, p.7-8)

Daí que o trabalho da documentação, no auxílio e na construção de documentosderivados é o que constitui o documento primário como tal. Briet considera quedocumento é "[...] qualquer signo [índice] simbólico ou físico, preservado e arquivadopara demonstrar um fenômeno físico ou conceitual". Buckland (1997, p. 806), aoanalisar a proposta de Briet acaba por enunciar um conjunto de elementos que eleconsidera relevantes para se entender o que é documento. Vejamos::

(i) Materialidade. Embora Buckland destaque os aspectos físicos comonecessários à existência do documento, a questão nos parece mais de suamaterialidade enquanto algo capaz de produzir efeitos. Se digo “a aulaterminou”, isto tem um efeito. Assim, minha fala, embora não tenhafisicalidade tem materialidade. Mesmo que consideremos que osdocumentos existem fisicamente, Buckland aponta principalmente para esteseu aspecto de efeito.

(ii) Intencionalidade: o documento é criado para servir como evidência. Aquipodemos retomar a questão da pedra. Uma pedra num museu é um'documento criado' para servir como evidência de um acontecimento ouidéia, ou crença etc. Suponhamos que seja uma pedra lunar para serevidência do homem ter ido à lua. Devemos entender que a pedra não foicriada por Deus para ser uma evidência. É portanto uma ação posterior quea torna evidência de algo. Do mesmo modo, um texto não é por si só umdocumento. Ele precisa ser considerado, por um conjunto de atributosdesignados por “especialistas”, como evidência de algo. Bem claramentedizem os arquivistas que é o Arquivo (ato de arquivamento) que cria odocumento arquivístico.

44

(iii) O objeto deve ter sido inserido em um acervo documentário. Aqui podemossublinhar que, enquanto evidência ou testemunha de algo, o documento seapóia em outros documentos que lhe dão o suporte da "acreditação"10, doser crível.

(iv) O objeto deve ser percebido como documento. Esta é uma conclusão deBuckland, que engloba os itens anteriores e que tem um cunhofenomenológico. (BUCKLAND, 1997, p.806).

Assim, o que é documento, ou melhor, o que é considerado como documento, varia notempo e no espaço. Podemos dizer que documento é aquilo que é tratado como sendodocumento, conforme considera Buckland, ou seja, aquilo que cumpre a função dedocumento (evidência, relevância, prova etc.) segundo um conjunto de concepções(teóricas ou não), de normas, de regras e costumes.

As TICs, de cunho eletrônico e de acesso remoto, a partir do final do século 20,aparecem como uma revolução técnica que também deve afetar a leitura, o acesso adocumentos e o entendimento do que seja a biblioteca e seus papéis, muito emboraseus efeitos e a reflexão acerca deles estejam apenas no começo.

No aspecto da memória, as possibilidades de armazenamento coletivo de toda equalquer inscrição vieram acompanhados de termos como "febre de memória" e de"memória total", a bem da fragilidade de preservação destes novos suportes. Outroaspecto diz respeito à caracterização destes escritos. Chamados de recursos pelainformática e pela economia, tais escritos estão à margem da normalização e decritérios de validação11 que até então prevaleciam, de modo que qualquer um podedisponibilizar qualquer coisa para todos. O que é documento? E como organizá-lospara dar acesso mais preciso ou adequado a esta massa de inscriçõesdisponibilizadas em rede?

10 O termo "acreditação" está no sentido dado por Ricoeur (2000, p. 202 -207). Poderíamosresumir da seguinte maneira: até que ponto um testemunho é confiável? Primeiramente estánas mãos de um juiz definir as condições de validade do testemunho. O que aquiexaminaremos é o <paradigma da registrabilidade> de um lado e o observador, o juiz, de outro.O exemplo de base é uma narrativa autobiográfica, onde se coloca a "acreditação"1. De um lado temos um evento passado relatado e, de outro, a certificação ou

autenticação do que é declarado por experiência de seu autor. 2. A especificidade do testemunho consiste em indicar sua realidade recoberta pela auto-

designação do sujeito que testemunhou. O fato relatado religa-se com a vida do sujeito<Eu estava lá>.

3. A auto-designação, entretanto, supõe um diálogo. Ele afirma a alguém e pretende que estecreia em seu testemunho. Ele depende da acreditação do outro. <Creia-me>. Aqui entraa questão da confiabilidade da testemunha, sua reputação, de modo que a acreditaçãosignifica também autenticação.

4. A suspeita do testemunho abre caminho à controvérsia, em geral remetida a diversostestemunhos confrontados. Ele diz <Se não acredita em mim, pergunte a um outro> .

5. No âmbito moral espera-se que a testemunha reforce sua credibilidade dispondo-se areiterar seu testemunho, o que equivale a manter a palavra, a promessa.

6. Se um bom número de agentes sociais acredita no testemunho ele se torna umainstituição. O que faz a instituição é primeiramente a estabilidade do testemunho,decorrente de ser reiterado, em seguida a confiabilidade da testemunha, resultante daconfiança estabelecida no vínculo social de acreditar na palavra do outro. Assim,acreditar na palavra do outro faz do mundo social um mundo de intersubjetividadepartilhada. A principal base da confiança é a similitude em humanidade dos membros dacomunidade.

11 Para que algo seja considerado livro ou periódico científico, por exemplo, deve seguir determinadas normas e critérios de validade que foram sendo estabelecidos ao longo da modernidade, tais como ISSN, ISBN, avaliação dos pares, resumo etc.

45

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Introdução à história. 6. ed. Tradução de M. Manuel e R. Grácio. [Lisboa]: Europa-América, [19--?].

BRIET, Suzanne. Qu'est-ce que la documentation? Paris: Éditions Documentairs Industrielles et Techniques, 1951. Disponível em: <http://martinetl.free.fr/suzannebriet/questcequeladocumentation>. Acesso em: 22 de setembro de 2011.

BUCKLAND, Michael. What is a document? JASIS, v. 48, n. 9, p. 804-809, Sept. 1997. Disponível em: <http://www.sims.berkeley.edu/~buckland/whatdoc.htm >. Acesso em: 3 de março de 2002.

BURKE, Peter. Abertura: a nova historia, seu passado e seu futuro. In: ____. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 7-39.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª. ed. Tradução de Ma. De Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

FRAENKEL, Béatrice. A assinatura contra a corrupção do escrito. In: BOTTÉRO, Jean; MORRISON, Ken et al. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995, p. 81-99.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad.: Ferreira, Leitão e Borges. Campinas: Unicamp, 1996.

MAACK, Mary Niles. The lady and the antílope: Suzanne Briet's contribution to the French documentation movement. 2000-? Disponível em: <http://www.gseis.ucla.edu/faculty/maaack/ BrietPrePress.htm>. Acesso em 22 de julho de 2006.

OTLET, Paul. El tratado de documentación: el libro sobre el libro. Teoría y práctica. Tradução de M.D. Ayuso García. Bruselas: Ediciones Mundaneum, Palais Mundial, 1934. Impressão da tradução espanhola em Murcia, Espanha: Universidad de Murcia, 1996.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l’hoistoire, l’oubli. Paris: Editions du Seuil, 2000.

4 ANÁLISE DOCUMENTÁRIA COMO PRÁTICA DOCUMENTÁRIA

Para entender a análise documentária precisamos passar pelo que está estabelecidocomo sendo documento e o seu papel na construção de uma memória documentária.

4.1 As Práticas Documentárias

Se tomarmos a definição de Buckland, onde documento é aquilo que é tratado "comosendo" documento, não temos como apontar nenhuma característica que possa seratribuída a um objeto de forma a que vejamos ali um documento. Então, são oscostumes, práticas, hábitos que herdamos do passado e partilhamos no presente comnossos contemporâneos, que na hermenêutica poderíamos aproximar de "horizonteda compreensão", aquilo que nos faz identificar certos objetos como documento eoutros como não sendo documentos.

Podemos dizer que a constituição de algo que irá cumprir a função de documento estácercada por uma série de práticas e de saberes institucionalizados. As instituições,enquanto costumes, práticas usuais, normas, acordos, contratos, leis etc., emergemna sociedade como resultado de acordos (não de unanimidade) e estão em constantesnegociações, sujeitas a chuvas e trovoadas. Tais práticas são geralmentedesenvolvidas por grupos especializados e se articulam de algum modo, fazendo comque reconheçamos algo "como sendo documento".

46

Podemos entender que há condições ou uma espécie de infra-estrutura que vai sendoconstruída aos poucos, a partir de dispositivos e ferramentas que moldam tanto odocumento como a noção de documento. São códigos, leis, costumes, tecnologias,métodos, manuais, etc. historicamente estabelecidos por um coletivo e que permitem ofuncionamento orquestrado e não visível, exceto em alguns aspectos nos quaisestamos diretamente envolvidos. (ÁLVARES Jr.; GONZÁLEZ DE GÓMEZ, SOUZA,2008, p. 52).

Bruno Latour é um dos autores que tem sido utilizado no campo da informação paraexplicar o modo de construção de um aparato documentário e informacional a partir deconjuntos de práticas que se estabelecem historicamente em diferentes níveis. Latournão considera que as práticas ensejadas nestas camadas ou níveis sejamarquitetadas por uma central. Entretanto, considera que é possível, a partir de suaarticulação e normalização, consolidar o que ele chama de "centros de cálculos"(digamos que sejam nós de redução e ampliação de níveis de dados em uma redecooperativa), que articulam, padronizam e sumarizam informações.

Latour chama esta grande articulação de "rede sócio-técnica", porque articula pessoase objetos técnicos que constituem o social. Assim, por exemplo:

Nossas comunicações com os outros são mediadas por uma rede deobjetos – o computador, o papel, a imprensa. E é também mediada porredes de objetos-e-pessoas, tal como o sistema postal. O argumento éque essas várias redes participam do social. Elas o moldam. [...] na prática nós não lidamos com essas intermináveis ramificações.Na verdade, na maior parte do tempo, nós nem mesmo estamos emposição de detectar as complexidades da rede. O que ocorre é oseguinte. Sempre que uma rede age como um único bloco, então eladesaparece, sendo substituída pela própria ação e pelo autor,aparentemente único desta ação. Ao mesmo tempo, a forma pela qual oefeito é produzido é também apagada: nas circunstâncias ela não évisível e nem relevante. Ocorre, então, que algo muito mais simplessurge – uma televisão (funcionando), um banco bem administrado, ouum corpo saudável –, por um tempo, para cobrir as redes que oproduziram (LAW, 199_?).

As práticas sociais que vão se institucionalizando, formam

[...] rotinas -, as quais podem ser, mesmo que precariamente,consideradas mais ou menos estáveis no processo da engenhariaheterogênea. Em outras palavras, elas podem ser tomadas comorecursos, recursos que podem surgir numa variedade de formas:agentes, dispositivos, textos, conjuntos relativamente padronizados derelações organizacionais, tecnologias sociais, protocolos de fronteira,formas organizacionais,– qualquer um ou todos esses. (idem)

Como são diversas camadas que se constituem separadamente e vão se articulando,é necessário uma espécie de negociação entre elas. Como se articulam o nome deuma rua e um mapa da cidade onde alguém pode se guiar para encontrar a rua?Existem diversas camadas de interesse e de práticas como: controle da populaçãopela burguesia (nome de rua e número das casas); divisão e controle das atividadesem uma cidade (zoneamento urbano); controle do território nacional (político);desenho dos marcos do território (cartografia); soberania nacional (aceitação políticaentre nações); articulação comercial, comunicacional etc. (estabelecimento mundialdas coordenadas) e por aí vai. (LATOUR, 2008).

Constituem-se processos de orquestração, de ordenação, que precisam superarresistências locais e estabelecer meios de tradução entre tais camadas. Segundo Law(199-?) a tradução constitui dispositivos que geram efeitos de ordenação.

47

No campo da CI, parte daqueles que têm se detido a estudar as práticas construtorasdo documento e da informação têm por base as concepções desenvolvidas pelofilósofo francês Michel Foucault. Um deles é Bernd Frohmann que enfatiza o exameque Foucault fez dos relatórios disciplinares das escolas, prisões etc. produzidossegundo certas normas e armazenados para consultas no século 19. Estes relatóriosdariam peso ao poder da escrita, capturando indivíduos e fixando-os de modo a partirconstruí-los como objetos do conhecimento. Foucault refere-se aos documentos queprocuram dar conta das anotações de atividades disciplinares que vão sendoconstruídos na modernidade em escolas, prisões, hospitais, fábricas e etc.

Para Foucault, aquilo que inicialmente trata de um sistema de vigilância individual e deum conjunto de punições que visa adequar o comportamento do indivíduo acaba porgerar verdadeiros arquivos de anotações sobre o comportamento. Sua acumulaçãopermitira a formulação de hipóteses teóricas acerca dos tipos comportamentais, demédias e desvios da média, enfim, um saber que serve para interferir nocomportamento, um saber que também é um poder (FOUCAULT, 1987).

Vejamos no campo da ciência como funciona o controle da produção de documentos.Um físico que concebe uma nova teoria como resultado de seus trabalhos de pesquisae de suas trocas de informações informal com seus pares. A norma da ciência é queele divulgue seus resultados através de um artigo de periódico em sua área, onde seráavaliado para publicação. Para tal é necessária a articulação de diversas camadaspara constituir do artigo e que operam separadamente e com finalidades diversas(normas da língua portuguesa, normas do texto científico, política de financiamento àciência, uso de software adequado e partilhado etc.).

Se o artigo for aceito e publicado, a estabilidade de sua teoria dependerá, ao longo dotempo, de seu artigo vir a ser reutilizado, citado por vários autores. Se a aceitação forampla e suas concepções utilizadas como base para novas pesquisas, então elepoderá escrever um livro sobre sua teoria. Mas, se ao invés disso, o físico resolverpublicar sua teoria diretamente na forma livro, seu trabalho será ignorado pelacomunidade de pesquisadores da física.

Ou ainda, um físico, que tem sua teoria amplamente aceita junto a seus pares, resolveescrever um livro. Ele o produz e manda imprimir em uma gráfica, sem fazer o registrodo livro. O produto fere as práticas institucionalizadas de passagem por uma editora(ou um editor registrado junto à Biblioteca Nacional), que deve registrar o livro,garantindo-lhe um ISBN. O resultado é que o produto não será considerado como umlivro.

Às ações que permitem fornecer a um objeto a função de documento vamos chamarde práticas documentárias. Estas práticas são as autorizadas a constituir documentocomo função e valor. Dentre tais práticas encontramos a análise documentária queopera como mais um constrangimento, seleção e, ao mesmo tempo, como meio demanter e divulgar, tornar visível, um documento.

Até agora estivemos trabalhando com esta noção de poderes que tiram ou colocamem evidência quando falamos de representação, de memória e de documento.Entretanto estas práticas são como salvaguardas da memória. Permitem mantermemória da ciência, da literatura, dos quadrinhos, da cartografia etc. Permitemtambém novos olhares, portanto, novos sentidos para o futuro. As práticasdocumentárias são modos de sustentação presente do passado e de projeção aofuturo: modos da temporalidade. As práticas documentárias circunscrevem umpassado, selecionam um passado; têm em vista um futuro, um uso futuro; sãoherdeiras do passado, de valores que foram passados, de modos de entender queforam passados; são também atravessadas por demandas imprevistas, por tensões deinteresses. É no presente, com estas práticas documentárias, que se constitui,sustenta e mantém documentos/acervo.

48

Os historiadores, por exemplo, são, antes de tudo, homens de sua época e não sãosurdos aos clamores de seus contemporâneos à representatividade das memórias. Seassim não fora, um acontecimento histórico, uma vez representado pela história,ficaria fechado, de uma vez por todas. A história, ao contrário, é uma constanterevisão; há sempre um novo olhar e o historiador é aquele que está sempre noencalço dos rastros do passado, de novas evidências. Estas podem aparecer nosdocumentos já existentes, quer dizer, no colocar em evidência aquilo que antes estavaapagado. Um bom exemplo é o fundo arquivístico “Casa dos Contos”, que ilustra aação da historiografia na agenda do Arquivo Nacional. O interesse de historiadorespela documentação, para estudo histórico da mineração em Minas Gerais, pôs emcurso um projeto de tratamento do acervo, financiado por agência de fomento. Isto deuao fundo um destaque e visibilidade que até então não possuía.

As evidências também podem aparecer em novos tipos de documentos. Oalargamento da tipologia documentária, incluindo relatos orais é, a partir dos clamoresda memória, ver evidência onde antes não se via.

O salvamento da memória em vias de desaparição, a representatividade de gruposconstrutores da vida de um lugar, seu papel no passado e nas heranças presentesestão, no Ocidente, enlaçados com as práticas documentárias institucionalizadas.

Assim, Museus, Arquivos e Bibliotecas aparecem como lugares vivos, perpassadospor demandas, tensões e reviravoltas e amparados por um conjunto de instituiçõesque sustentam a função de documento de seus objetos.

Pa

ssad

o d

o

pre

sent

e

E X I S T Ê N C I A

Futuro pre sente

Museu, Bibliotecas, Arquivos e suas instituições de suporte ACERVO

Em vista do futuroCircunscreve o passado

Herança Demandas imprevistas

49

4.2 Funções Específicas da Análise Documentária

Já no início do curso tomamos a análise documentária como sendo uma atividade quetem em vista dar acessibilidade a documentos considerados relevantes, sendo,portanto, uma prática mediadora entre usuários e documentos.Agora podemos pensar nesta atividade como uma das práticas documentárias, que dáprosseguimento, dentro do Museu ou da Biblioteca, a um processo que se iniciou foradele: encontrar pistas, seguir rastros, guiados pela memória. Selecionar o relevante,dentro de uma ordem e enviar para salvamento, proteção, para ser base para novashistórias e novos conhecimentos. Um processo que não termina com a inclusão de umobjeto/documento em um museu ou em uma biblioteca, mas continua indefinidamente.Vamos pensar nesta função inicial de dar acessibilidade. Ora, se a memória é, além deeletiva, um jogo entre esquecer e lembrar, a acessibilidade não deve ser encaradacomo um "prover todos os acessos passíveis" aos documentos.

A mediação, por sua vez, não é meramente uma mediação entre os usuários e oacervo. Nos termos de Silva, "[...] sugere um trabalho de ligadura continuada entrepassado e futuro, a partir do presente. Dá garantia de validade a uma imagem dopassado com força de evidência, considerando uma utilidade perspectivada sobre osusos para o acervo." (SILVA; FERNANDES, 2012). A mediação se articula no pontode tensão entre interesses, visões de mundo e tempos. Tal mediação deve serconcebida a partir de produtos e serviços que irão ser oferecidos pela Unidade deInformação. Assim, a atividade de tratamento documental deve ser encarada não

FilosofiaIPHAN ICOM

Geologia IBRAMQuímica Museologia Artes

Arqueologia História

Astronomia MUSEU Arquivologia Física Ciências Políticas Sociologia

Paleontologia Biologia Economia

50

Dar acesso é por em evidência e para que algo fique em evidência énecessário que outras coisas saiam de evidência. É o jogo deMnemosyne, ora faz lembra, ora esquecer.

Ciências IBICT ISSN

Biblioteconomia

ABNT ISO IBGE ISBN

Editoras

Direito (autoral)

Regras da língua

CI ABL ABI

BIBLIOTECA

como um fim, mas como um meio para produção de produtos e serviçosinformacionais (catálogos de exposição, planejamento de exposições, clipping diáriode jornais, resumos, bibliografias comentadas etc.) .

51

52

A criação da documentação museológica e bibliográfica gera artefatos de informaçãoque devem descrever e dar acesso físico e intelectual aos documentos ou coleções.Vamos inicialmente pensar em um conjunto de objetos selecionados para compor umMuseu, uma coleção, ou uma Biblioteca, para os quais não haja ainda uma sistemáticade tratamento documentário, ou que ela seja ainda muito incipiente, necessitando denovos meios de descrição.

Vamos pensar nesta função inicial de acessibilidade. Ora, se a memória é, além deseletiva, um jogo entre esquecer e lembrar, a acessibilidade não deve ser encaradacomo um "prover todos os acessos passíveis" aos objetos. Dar acesso é por emevidência e para que algo fique em evidência é necessário que outras coisas saiam deevidência. É o jogo de Mnemosyne (deusa grega), ora faz lembra, ora esquecer. Oesquecimento ou não evidência não é, posto isto, um estado permanente, mas acondição mesma da evidência, e do lembrar.

A análise documentária pode ser útil em ambos os aspectos. O que nos interessa maisde perto é o segundo: a análise de cada documento para ingresso em um acervo.

Análise Documentária

Auxiliar para: Auxiliar para:

Criar Linguagens Documentárias Atribuir ou identificar pontos deacesso no documento

Criar Normas Evitar dispersão de formas e termos

Criar entradas de Catálogos Catalogar

Criar Relações Relacionar

Criar Ordem Ordenar

Em vista de um uso futuro Em vista de um uso futuro

Isto significa que para que haja uma “biblioteca” ou um “museu” são necessários tantoum acervo como instrumentos que permitam organizá-lo e fornecer-lhe acessibilidade.Como são construídos tais documentos? Formatos para catalogação, tesauros,ontologias, sistemas de classificação, como são construídos? Não é possível pensarem quesitos descritores de um documento sem que se analisem os documentos.Assim, podemos ter, por exemplo, os seguintes quesitos para descrição de livros e deanimais:

LIVROS ANIMAIS

Autor Família

Título Gênero

Editora Local de ocorrência

ISBN Alimentação

Local de publicação Modo de reprodução

Ora, não poderíamos pensar nestes aspectos descritores para livros e para animaissem que examinássemos exemplares de livros e de animais (documentos). Daí, aanálise documentária será um auxiliar na construção destes instrumentos, porque

51

apresenta uma metodologia para exame de características de interesse nosdocumentos.

Por outro lado a análise documentária entra de novo em cena para auxiliar noprocesso de exame de cada documento ingressante em um acerto e a ele atribuircaracterísticas dos quesitos previamente estabelecidos como bons para suarepresentação. Por exemplo:

LIVRO: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: ANIMAL: Ganso-das-searaso nascimento da prisão. 27ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

Autor: FOUCAULT, Michel Família: Anatídeos

Título: vigiar e punir: o nascimento da prisão Gênero: Anser

Editora: Vozes Local de ocorrência: regiões boreais

ISBN: 85.326.0508-7 Alimentação: vegetariana

Local de publicação: Petrópolis Modo de procriação: ovíparo

Para que ambas as tarefas sejam possíveis, é necessário que a unidade deinformação tenha um objetivo, que tenha um em vista de para constituir e manter oseu acervo. Esta previsão de usos futuros, que se consubstancia em produtos eserviços, é a chave tanto para seleção de objetos como para seu arranjo e descrição.

Para termos isto claro, tomemos como exemplos dois tipos de organização em umcampo bem diverso, mas que será útil ao entendimento. Vamos falar na classificaçãode mercadorias para duas finalidades: uma a exportação e importação, que visa acobrança de impostos e a outra para transportes destas mesmas mercadorias.

Na classificação para o comércio exterior, as mercadorias estão organizadas porcapítulos (categorias) que as separam por tipos, valor agregado e carga de impostos.Ora, temos mais do que um objetivo aqui. Como não é possível atender a todos estesquesitos de uma única forma e como as cargas tributárias podem mudar, observamosnesta classificação aspectos muito interessantes. Por exemplo, no capítulo dedicadoàs "massas, pães, produtos de confeitaria e pastelaria" encontramos o item "ravióli decarne", com código que indicará qual a sua carga tributária, desde que o ravióli tenhaaté X% de recheio. Para os raviólis com mais de X% de recheio de carne, o importadorou exportador, deverá utilizar um outro código, que está no capítulo (categoria) de"carnes", pagando uma tarifa maior de imposto. Da mesma maneira, as roupas quecontenham metais preciosos ou pedra preciosas e semi-preciosas devem serclassificadas não no capítulo de "vestuário", mas no capítulo de "metais preciosos,pedra preciosas e semi-preciosas e jóias".

Quando olhamos a classificação destas mesmas mercadorias para fins de transporte,mesmo que seja transporte no comércio exterior, a criação de categorias (capítulos)faz um arranjo completamente diferente. O que se leva em conta é se as mercadoriassão ou não perecíveis (frigorificadas ou não), a granel ou containerizáveis, inflamáveisou não inflamáveis, tóxicas ou não tóxicas etc. Não há, posto isto, uma ordem dosobjetos em si, mas uma ordem para alguma finalidade. O mesmo pode-se aplicar aosobjetos que constituem os acervos das instituições de memória e informação comoMuseus, Bibliotecas e Arquivos, juntamente com os especialistas na circunscrição dopassado, os especialistas em cada campo de conhecimento prático ou teórico, juntoaos usuários e em vista dos futuros, que deve estabelecer esta finalidade.

52

REFERÊNCIAS

ALVARES Jr, Laffayete.; GONZÁLEZ DE GÓMEZ, Maria Nélida ; SOUZA, RosaliFernandez de. Infra-estrutura de informação: classificações e padronizações comofatores de convergência em gestão de ciência e tecnologia. In: FUGITA, MariângelaSpotti Lopes; MARTELETO, Regina Maria; LARA, Marilda Lopes Ginez de. (Org.). Adimensão epistemológica da ciência da informação e suas interfaces técnicas,políticas e institucionais nos processos de produção, acesso e disseminação dainformação. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Fundepe, 2008, p. 51-64.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 27ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

FROHMANN, Berdt. O caráter social, material e público da informação. In: FUGITA,Mariângela Spotti Lopes; MARTELETO, Regina Maria; LARA, Marilda Lopes Ginez de.(Org.). A dimensão epistemológica da ciência da informação e suas interfacestécnicas, políticas e institucionais nos processos de produção, acesso e disseminaçãoda informação. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Fundepe, 2008, p. 13-34.LATOUR, Bruno. In: BARATIN, Mark; JACOB, Christian (Org.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. 3ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008, p..

LAW, John. Notas sobre a teoria do ator-rede: ordenamento, estratégia, e heterogeneidade.(199_?). Disponível em: < http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20Ator-Rede.htm>. Acesso em: 22 de maio de 2006.

SILVA, Eliezer Pires da; FERNANDES, Geni Chaves. A temporalidade como constituinte do documento de arquivo: problematizando relações entre os contextos de geração, de tratamento e de uso dos documentos. Morpheus, v. 9, n. 14, p. 144-160, 2012. Disponível em: <http://www.unirio.br/morpheusonline/numero14-2009/artigos/geni_eliezer_pt.pdf>. Acesso em: 09 de abril de 2012

5 OBJETIVOS USUÁRIOS E ANÁLISE DOCUMENTÁRIA

Não há possibilidades de se pensar em Análise Documentária, sem que a Unidade deInformação (UI), seja ela um centro de documentação, um museu, um arquivo, umabiblioteca escolar ou especializada etc., tenha estabelecido um objetivo, um motivopara manter acervo, que sempre está relacionado a um "em vista", um futuro. Tal emvista deverá ser atendido por produtos e serviços e para sua produção é necessárioum processamento.

Ao se estabelecer um objetivo para uma UI, estabelece-se, também, uma ordem. Ora,uma ordem é impeditiva de outras ordens também possíveis, quer dizer, é um modode colocar em evidência, nos termos apontados por Buckland. Então, a escolha deveser consciente, planejada, deliberada.

Para quem? (usuários)

Objetivo

Para quê? (motivos da organização constituinte da UI)

O quê? (circunscrição documentária: tipo, assunto, nível etc. e projeto de produtos e serviços)

Delimitação

Como? (base teórica e construção ou adaptação deinstrumentos, LDs, catálogos, normas, produtos e serviços etc.)

53

Quando pensamos nos objetivos para constituir um Museu ou uma Bibliotecacircunscrevemos certa área/assunto do passado recente ou remoto e vamos embusca de vestígios que possam ser evidências de certos acontecimentos,conhecimentos ou práticas do passado, de objetos/documentos, consideradosimportantes ou representativos para um grupo de pesquisa, para uma nação, oumesmo para a humanidade. Pensamos, também, em quem será o usufrutuário de talacervo no futuro, quer dizer, idealizamos sujeitos que, por suas práticas enecessidades, verão naquele acervo uma fonte de pesquisas, um lugar deaprendizagem, uma salvaguarda de suas origens, enfim, supomos seu uso futuro.

Se um museu ou biblioteca tivesse em vista constituir seu acervo em vista de servirexclusivamente a historiadores, a organização documentária seria precedida de umestudo destes usuários, do que consideram importante nos documentos e como osutilizam em suas pesquisas. Quais suas teorias e metodologias, quais os critérios evalidação e de articulação destes documentos. Se fosse um museu de história naturalpara atender a pesquisas de biólogos, as taxonomias vegetais e animais seriamexcelentes pontos de partida. Mas se esta mesma coleção fosse servir aos estudosecológicos, talvez sua organização a partir de biomas fosse mais interessante. Sefosse uma biblioteca de fisiologia na medicina, para ensino/pesquisas seria necessárioconhecer bem os usuários e usos da informação, já que uma biblioteca de história dafisiologia na medicina possivelmente teria demandas e modos de organização e usoda informação bem diferentes das encontradas no ensino/pesquisa.

Os museus costumam ter em vista atender a sujeitos diferenciados e com variadosinteresses sobre os objetos do passado. Devemos pensar em uma cobertura dedescrição documentária que possa servir a estes diversos interesses. De um lado ospesquisadores, que além dos objetos, solicitam acesso à documentação museológica,que descreve as peças, suas origens, articulações etc. De outro, turistas, estudantes,famílias e instituições específicas, para quem se devem prever possibilidades deexposições. Quer dizer, o conjunto de descritores que constitui a documentaçãomuseológica deve ser pensado em função de seleções que permitam exposições parapúblicos variados, assim como o atendimento à pesquisa. Já no caso das Bibliotecas,vamos encontrar tanto aquelas que pretendem atender a um público amplo e nãoespecializado com as que são dirigidas a um domínio específico do conhecimentoteórico ou prático.

i) Para quem?

Quando falamos de um objetivo falamos do uso do acervo por alguém e não é muitodifícil delimitar quem entendemos que é ou será o usuário da UI. De que modo ele irárealmente ser examinado e entendido? Primeiro precisamos conhecer estes usuáriose os possíveis usos das informações e documentos.

Os estudos de usuários dependem em grande medida da fase em que se encontra aUI e as decisões que está tomando nestas fases e da base teórica em que se apoiarápara tanto. Em termos de fase podemos ter, por exemplo:

- A UI será constituída. Tem um pequeno acervo e precisa de instrumentos, LD,normas de procedimentos. É claro que tudo está por fazer aqui e a escolha da baseteórica será fundamental.

- A UI já existe e se utiliza instrumento de organização e descrição documental.Aqui o estudo pode visar o feed-back dos instrumentos e dos procedimentos. Ele deveimplicar em adaptações ou mudanças mais amplas. Como o mundo e seuconhecimento são dinâmicos, adaptações sempre serão necessárias.

- A UI já existe e quer adotar novos instrumentos de organização e descriçãodocumental. Aqui pensamos que uma UI começa com um pequeno acervo e

54

instrumentos precários ou não bem adaptados a seus usuários e percebe que énecessário fazer uma mudança profunda.

- A UI já existe e passará a servir a uma nova comunidade de usuários, abrangendoum novo domínio (ampliação). Aqui tanto pode se tratar de incluir usuários para amesma temática coberta pelo acervo (economia para economistas e depois parajornalistas) ou de uma ampliação que implica em abrangência de uma nova temática(economia já existente e depois ciência política). Possivelmente toda a estruturadeverá ser modificada, sob pena de se construir uma "meia água" e "puxadinhos" aquie ali, e no fim constrói-se um emaranhado.

Os estudos de usuários não podem ser feitos sem uma escolha teórica, que implicaem concepções diversas acerca do que sejam informação e conhecimento. Vejamosalguns exemplos:

- Estudos Tradicionais de Usuários (perfil). Nestes estudos, que podem serextremamente úteis como feed-back, trata-se de levantar um conjunto de dadoscruzados onde se possa ter noções do perfil médio do usuário e algumas de suasdificuldades no acesso à informação na UI. Faz-se um cruzamento de dados, notempo, tais como:

Sexo Número de empréstimos por período

Escolaridade Assuntos mais procurados

Para que busca informação Uso do serviço de referência (dificuldades)

Nível de renda Pontualidade na devolução

Domicílio Queixas e sugestões

Local de trabalho

Embora se possam aplicar questionários aos usuários para alguns quesitos, não érecomendado seu uso amplo, devendo, senão todos, a maioria dos dados ser coletadanas fichas destes usuários ou por observação direta. O usuário vai à UI para buscarinformação e não para preencher questionários longos.

Os resultados permitem feed-back tais como: o uso freqüente do serviço de referênciaapontando dificuldades de entender e utilizar os instrumentos de representação pararecuperação da informação, prazo de empréstimo inadequado, acervo inadequado àescolaridade média dos usuários etc.

Este tipo de estudo, em geral, tem uma base de entendimento objetivista ouracionalista, e embora possa ser útil para alguns aspectos é bastante limitado, já queignora o não-usuário (o usuário indireto ou potencial). O estudo se fecha na própria UIe o usuário é mais um informante do que objeto de um estudo acerca de suasnecessidades.

- Estudo do Perfil Cognitivo do Usuário

Baseado nas ciências cognitivas que adentraram os campos da CI e daBiblioteconomia, este tipo de estudo tem em vista o mapeamento aproximado daestrutura cognitiva do usuário, de modo a atendê-lo individualmente, conforme seumodo específico de organizar os conceitos-assunto de seu interesse. A UI é entendidacomo interlocutor de um usuário e, na negociação com ele, a UI deve ser capaz dereproduzir o mapeamento dos conceitos conforme faz o usuário e fazer a recuperaçãode informação e/ou documentos, segundo esta ordenação. Estudos de mapeamentode estruturas cognitivas são apresentados por Savage, Belkin (1997) e Dervin (2003).

55

As bibliotecas e museus pode, por exemplo, mapear o conjunto de autores e/ou deassuntos que um usuário frequentemente relaciona (empréstimos). Também é possívelconhecer suas necessidades por conversas sobre o que está fazendo ou lendo o queele tem produzido. Aqui a UI não se limita a esperar o usuário, antes lhe envia asnovidades de publicação que, segundo o mapeamento previamente realizado, podelhe interessar.

- Estudo do Perfil da Organização

Ao invés de se partir dos indivíduos em uma organização, parte-se da organização,seus objetivos e seus setores componentes. Assim, começa-se por pesquisaraspectos como a missão da organização, seus objetivos, seus setores componentes,seus concorrentes, e fornecedores. Isto implicará uma tipologia documentária ampla.

Haverá um conjunto do acervo de interesse da direção ou administração geral, eoutros conjuntos de interesse de cada setor da organização, como Marketing,Embalagem, Produção, Financeiro, Pesquisas etc. Entretanto, certamente haveráinteresses comuns aos setores neste acervo, muito embora o aspecto de maiorinteresse possa variar de um setor para outro. Isto deve ser observado no estudo, demaneira a que se possa desenhar o sistema de informação de acordo com a partilhadestes interesses, mas com focos diferenciados.

- Estudo de Comunidades Usuárias

O foco na comunidade implica no estudo e acompanhamento das dinâmicas denecessidades de informação na construção de conhecimentos. Tal dinâmica deve serapreendida a partir das redes sociais e de seus problemas e objetivos. Trata-se, então,a partir de um núcleo encontrado, ou eleito, de um grupo detectado, mapear suasrelações em rede e os motivos de suas relações (numa associação de bairro, porexemplo, numa favela, num conjunto de empreendimentos do mesmo setor, nummovimento social etc.).

As redes não apresentarão apenas relações cooperativas, mas também conflitivas ecompetitivas. Seria por exemplo o caso de uma UI que atende aos interesses ligados àquestão fundiária, cujos usuários fossem os participantes do MST e os donos deterras. Tais perfis delimitarão não só o assunto, mas a tipologia documentária, e osinstrumentos de representação e recuperação de informação.

Algumas das questões a se colocar aqui são:

Quais os problemas-chave que mobilizam a comunidade? Saúde, propriedade,drogas, produção acadêmica, pesca? Como a comunidade relaciona noções ouconceitos? Há partilha? Pode haver tradução ou ao menos aproximação? Quais asfontes documentais adequadas? Que serviços podem ser elaborados? Quem deveparticipar na construção destes serviços? Quais os elos da comunidade com outrascomunidades?

O Público Não Especializado: a Exposição

Quando pensamos no grande público, no público em geral, ou melhor, no leigo, aexposição é um excelente instrumento que o museu pode lançar mão em vista de“contar uma história”, “ensinar algo”, mostrar um estilo”, “divertir”, “apontar diferentespontos de vista”, enfim, a exposição propõe algo ao público acerca do acervo quesalvaguarda.

Para Lara Filho (2009, p. 167) a exposição enquanto proposta deve ter em vistapermitir diversas produções de sentido. Seu conselho é que devemos evitar narrativasque pretendem uma decifração por parte do público leigo, porque isto cria um fossopela impossibilidade de produção de sentido. Quer dizer, uma narrativa muito fechadaque pressupõe uma interpretação "verdadeira" e um código de decifração. No caso depúblico leigo, que não conhece tal código, a proposta não será compreendida.

56

Também se deve ter cautela com as ações excessivamente pedagógicas quepretendem criar pontes para "aproximar o público", porque ao fim e ao cabo podemfazer com que este considere que aquele tipo de conteúdo só pode ser apreendidocom muito estudo.

A divisão por faixas etárias e escolares pode, em alguns casos, ser extremamenteúteis. É claro que tal exercício deve ser feito para cada museu específico. De qualquermodo, consultar um especialista sobre a possibilidade de entendimento e de interaçãodo público infantil com as propostas da exposição deve estar na linha de frente.

Por Exemplo: imagine uma exposição sobre o tempo e seus marcadores.

Exposição 1) Faixa Etária até 8 ou 9 anos de idade

Para este público, que acabou de ingressar na escola, os contextos históricos em quese inserem os mecanismos e as explicações técnicas dos instrumentos não são muitoadequados. Para isto vamos ter em conta algum suporte do campo da psicologiacognitiva. Conforme Piaget (1973, p. 21), crianças até esta idade não compreendem anoção de tempo absoluto. A noção de igualdade de durações sincrônicas não é aceitaaté os oito anos. Portanto, relacionar um marcador a um movimento pode serincompreensível.

A exposição de objetos do tempo deve, portanto, ter em conta as cores, tipos demovimentos e efeitos visuais que pode produzir, tamanho e sons etc. As explicaçõesacerca de relações entre a medição do tempo e o movimento devem estar restritas àde iniciar algo ou terminar algo.

Exposição 2) Faixa Etária em cerca de 10 a 14 anos

Este público já tem capacidade de abstração e opera com realidades matemáticasindependente dos objetos. As crianças já estudam história como seqüência temporal,sendo capazes de associar tempo e movimento (mudança). Já lidam com o tempoabsoluto newtoniano, mas de modo prático e compreendem a noção de temporelacionada com a duração do movimento dos astros.

Podem-se explorar relações entre contextos históricos (com marcas bem amplas ecom história do Brasil) e objetos de tempo e relações entre diferentes medidores comdiferentes movimentos. A exposição pode auxiliar a compreensão de conceitosaprendidos nas aulas de ciências oferecendo elementos visuais associados a eles.

Exposição 3) Adultos

Para este público a exploração das diferenças entre marcação do tempo, cronometria,sincronia entre atividades e ajustes do tempo à realidade da vida humana podem serexplorados. A relação entre a invenção de tais instrumentos e aspectos históricosdevem ser previstas.

Aqui, quesitos mais elaborados de contextualização histórica e de aspectos técnicos (ede possibilidades técnicas) na concepção e uso dos marcadores de tempo seriamfundamentais para a realização da exposição.

De qualquer modo, quando pensamos na exposição ao público em geral é necessárioque os quesitos (características, pontos de acesso e relação) existentes na descriçãocatalográfica tenham sido previstos a fim de permitir seu acesso no acerco e modo deorganização na exposição. Dito de outro modo, não podemos fazer a exposição dosobjetos “azuis” se o sistema de catalogação não previu o item “cor do objeto” como umdescritor.

57

O Usuário Especialista: a Documentação

Já quando se trata de público especializado o acesso à documentação sobre osobjetos museológicos parece ser a mais importante. O levantamento de quesitos(características) que prevejam o uso futuro de informações deve ter em conta o quechamaremos de estudo de usos e comunidades usuárias. Um único museu podeabrigar interesse de pesquisadores de áreas diversas. Cada grupo interessado écapaz de ver nos objetos informações que se tornam praticamente invisíveis paraoutros grupos.

Um museu que trate de circunscrever um recorte temporal (o período do império, porexemplo) poderá contar com o interesse de historiadores, historiadores da arte,cientistas políticos, dentre outros. Uma vez estabelecidos os especialistas - alvo seránecessária uma varredura de seus modos de abordagem a fim de prever os quesitosque comporão o catálogo. A descrição de um quadro neste museu, por exemplo, terácomo relevantes aspectos diferentes para um historiador e para um historiador da arte.

Dito de outro modo, a elaboração das formatos ou sistemas catalográficos deve serprecedida por um estudo do uso de informação, por parte destes especialistas,composto pelo estudo da literatura da área coberta (vocabulário e suas relações),questionários e entrevistas junto a esses pesquisadores. O que se vê nestes objetoscomo ou que aspectos deles podem ser úteis à pesquisa são os guias para encontraros quesitos de descrição.

Bem, você deve estar pensando se terá de realizar esta tarefa quando for trabalhar emum Museu. Eu diria que todos os Museus já possuem algum tipo de sistema ouformato de descrição de seus objetos e que você apenas terá de passar para a faseposterior, descrever os objetos segundo tal sistema ou ficha de descrição. De qualquermaneira, há um movimento no sentido de repensar descritivos padronizados paradescrição de objetos museológicos de modo a permitir o intercâmbio entre Museus,portanto, em algum momento você estará diante de um processo de reestruturaçãodos instrumentos de descrição. Além disso, uma vez que as novas propostas não sãoapenas um padrão de descrição, mas um modelo conceitual para pensar “como”descrever os objetos do acervo e suas relações, então, é possível que você mesmovenha a ser aquele que irá implantar uma reformulação nos instrumentos já existentesno Museu em que estiver trabalhando. Tudo a seu tempo.

É claro que esta é uma tarefa de fôlego que exige o trabalho de equipesinterdisciplinares, mas que, penso eu, deve ser conduzida e coordenada pelomuseólogo.

O Museu do Índio no Rio de Janeiro, por exemplo, mantém documentação paraacesso a uma diversidade de especialistas em diferentes fundos arquivísticos(Comissão Rondon; Serviço de Proteção aos Índios, Conselho Nacional de Proteçãoaos Índios, Fundação Brasil Central e Museu do Índio). Para dar acesso não só aopúblico, mas também a diferentes pesquisadores e suas perspectivas, o museu contacom um quadro de técnicos em Ciências Sociais e Humanas (antropologia, etnologiaindígena, etno-história e comunicação). Isto quer dizer que o objetivo de dar acesso àinformação aos pesquisadores conta com trabalho interdisciplinar que envolvemuseólogos, bibliotecários, arquivistas (profissionais da informação) e os técnicosespecialistas com seus diferentes olhares aos mesmos objetos e documentos.(MUSEU DO ÍNDIO).

REFERÊNCIAS

LARA Filho. Museu, objeto e informação. Transinformação, v. 21, n. 2, p. 163-169, maio/ago. 2009.

58

LOUREIRO, Maria Lúcia Matheus. Museu, informação e arte: A obra de arte como objeto museológico e fonte de informação. 1998. Dissertação ( Mestrado em Ciência da Informação) – IBICT/ECO, UFRJ, Rio de Janeiro.

MATOS, Alexandre Manoel Ribeiro. Os sistemas de informação na gestão de colecções museológicas: contribuições para a certificação de museus. 2007. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio, Universidade do Porto, Porto.

MUSEU DO ÍNDIO. Instituição. Pesquisa. Disponível em: <http://www.museudoindio.gov.br/template_01/defaut.asp?ID_S=45>. Acesso em: 02 de outubro de 2009.

PIAGET. Jean. Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1973.

ii) Para quê?

Embora o motivo último da organização de uma UI seja o usuário, a organização que ainstitui deve ter planos que deverão ser levados em conta. Assim, se uma empresa,por exemplo, constitui uma UI ela terá em vista informações que sejam úteis aos seusnegócios, independentemente de outras necessidades de informações de seusempregados.

Neste ponto precisamos entender que o constituinte da UI pode ter ou não umapercepção diferente de seus usuários diretos. Aqui alguma negociação é necessária,especialmente se os lados concebem e organizam o mundo de modos diferentes.

Pode haver coincidência quando uma associação de moradores de um bairro decideinstituir uma UI para atender aos moradores do bairro. Mas poderá haver nãocoincidência quando a Embrapa decide constituir uma UI de modo a transferirconhecimentos sobre plantio aos agricultores de uma dada região. As partes podemdiferir na percepção de necessidades informacionais, no modo de sua organização ena forma de apresentação. Neste caso o bibliotecário deverá ter habilidades denegociador.

O objetivo, que pode ser resumido em "para quem" e "para que" é a condiçãonecessária para que se possa delimitar: "o quê?" e "como?"

iii) O quê?

A tipologia documental, legislação, periódicos, matérias de jornal, folders, descriçõesde patentes, mapas, que irá integrar o acervo, depende das necessidades dosusuários, seu perfil e das metas da organização instituidora da UI, também osassuntos de interesse a serem cobertos e o nível de complexidade do material: sematerial técnico, teórico, prático, para que nível de escolaridade etc.

Com a delimitação dos usuários, usos e objetivos a UI desenhará os produtos que iráoferecer: ações como palestras, seminários, encontros, ou bibliografias, clipping,resumos etc. Isto quer dizer que o acesso direto aos documentos, via catálogo(manual ou eletrônico) é apenas um produto e que serve no processamentointermediário para construção de outros produtos. Além disso, os produtos podem serdesenhados tendo em vista a pesquisa que o bibliotecário poderá realizar em serviçosde outras UIs como insumos para seus produtos finais.

iv) Como?

As fases anteriores prepararam o caminho para escolha e construção dosinstrumentos que disporá a UI. Aqui contam tanto as escolhas teóricas como adisponibilidade de recursos.

59

Trata-se de desenhar os produtos e serviços e de escolher os instrumentos deinformação que serão adequados às finalidades.

REFERÊNCIAS

DERVIN, Brenda. Human studies and user studies: a call for methodological inter-disciplinarity. Information Research, v. 9, n. 1, Oct. 2003. Disponível em: http://informationr.net/ir/9-1/paper166.html>. Acesso em 22 de março de 2007.

SAVAGE, Pamela A.; BELKIN, Nicholas J.; COOLT, Colleen; XIE, Hong. An investigation of mental models and information seeking behavior in a novel task. Philadelphia: Rutgers University, July 1997. Disponível em: < http://mariner.rutgers.edu/tipster3/sigir97.html>. Acesso em: 12 de abril de 2006.

6 CATEGORIZAÇÃO E ELEMENTOS DESCRITIVOS

Existe um jogo que eu gosto muito e que se chama Perfil. O jogo propõe 4 grandescategorias que separam: pessoa, ano, coisa e lugar, cada uma delas definidassegundo critérios apresentados aos jogadores. Um dos jogadores pega uma cartela eanuncia aos demais se devem descobrir uma pessoa, um ano, uma coisa ou um lugar.A cartela contém 20 dicas que vão sendo escolhidas por cada jogador e lida poraquele que está de sua posse. Cada dica é um aspecto que pretende nos aproximarda identificação do que devemos descobrir. Cada dica é, portanto, um atributo.Ganhará pontos o que primeiro identificar o item proposto.

Por exemplo:

COISA: Pipoca

1. Posso ser doce

2. Costumo estar em festas infantis

3. Sou amarela, mas quando me esquentam fico branca.

4. Dou saltos

5. Sou vendida em carrocinhas

6. Gostam de me comer durante os filmes

7. Sou feita a partir de um grão

8. Posso ser salgada

9. Sou pequena

10. Quando estou sendo preparada faço muito barulho

11. Quem usa aparelho ortodôntico não deve me comer

12. Quando me esquentam mudo de aparência

13. Sou geralmente vendida em saquinhos de papel

14. Posso ser preparada em microondas

15. Sou um alimento

16. Muitos gostam de mim com manteiga

17. Posso ser preparada com bacon

18. Você me encontra em parques, circos e cinemas

19. Você deve tampar a panela para me preparar, senão eu fujo

20. As crianças me adoram

60

Cada atributo (dica) pertence à pipoca, mas pode pertencer a outras coisas (feijoada éfeita a partir de um grão; pão é bom com manteiga). Assim, uma variedade deatributos (que são categorias) pode ser escolhida para permitir a aproximação de umadiversidade de objetos. São dicas que permitem tanto identificar um objeto comoidentificar relações entre objetos.

6.1 As categorias Aristotélicas

O aluno de Platão, Aristóteles, embora apresentasse algumas discordâncias acercadas noções de seu mestre, foi em frente, traduzindo de modo mais preciso um métodopara se chegar à descrição das coisas. Sua pergunta poderia ser algo como “o que fazcomo que alguma coisa seja ao invés de não ser?”, ou, “quais são as causas, asbases de toda a existência e de todo existente?”.

Por substância designa tudo o existente. Cada ente determinado é uma substância:eu, você, esta cadeira, o gato de minha avó, todos são substâncias. Para Aristóteles, aessência de uma substância não podia ser algo fora dela, mas era ela mesma, tal quea essência de um sujeito determinado [este, João] é o sujeito determinado [este,João]. Portanto, para Aristóteles, não se poderia querer encontrar a essência de“homem”, já que homem é um gênero e somente os sujeitos determinados existem.

Haveria 4 causas (coisas necessárias) para que algo exista: a matéria; a forma; umaação, que faça com que ela venha a existir, e um motivo. As substâncias sãocompostas de matéria (que pode ser qualquer coisa, matéria-prima) e de forma (quefaz com que ela seja alguma coisa determinada e não coisa alguma - indeterminada) enão há matéria separada de forma e vice-versa.

Aristóteles explica que as substâncias se apresentam em ato (como são atualmente) eem potência (o que está embutido nelas como um DNA, mas que ainda não podemosperceber). Aquilo que guia a substância, durante sua existência, em vista de realizartodas as suas potencialidades é a forma. Assim, parece-nos que um ovo se transformaem um pintinho. Mas, na verdade, esta substância apenas atualiza suaspotencialidades. Um ovo já era um pinto em potencial (mesmo que não se visse). E opinto se torna um frango e este um galo. As mudanças que vamos percebendo nãosão propriamente mudanças, mas as atualizações das potencialidades que já existiamnaquela substância, sustância que é sempre igual, não muda nunca (substância =atualidade + potencialidades). Diz Aristóteles, que uma substância jamais realiza umaimpossibilidade. Quer dizer que tudo aquilo que aparece em uma substância já existianela potencialmente, portanto, é o que ela já podia ser.

Mas, então, como se pode conhecer algo? Devo acompanhar a trajetória dasubstância até sua total realização? Aqui temos mais um complicador: Aristóteles dizque como as substâncias são compostas de matéria e forma, elas jamais se realizamtotalmente, jamais mostram tudo que são em potência, porque se decompõem antesdisso.

Quando se trata da possibilidade de atribuição que se pode ou não fazer às coisas,Aristóteles enumerou um conjunto de atribuições possíveis, que denominou decategorias. “A palavra kategoría vem do verbo kategoréo, que significa: falar, contar,acusar, revelar, tornar visível, dar a conhecer, significar e afirmar” (CHAUÍ, 2002, p.359).

Cada categoria é um indicador de um ente, modos de dizer (aparecer) um ente. Ecomo existem dez categorias, “o ser se diz de muitos modos”. Tais modos aproximam,iluminam, indicam algo. As categorias são:

61

- Substância ou essência, onde o ente (substância) e sua essência são o mesmo. Éuma categoria de afirmação da existência de uma substância determinada.João é João [a essência ou substância de João é o sujeito determinado João]

- Quantidade. João é único- Qualidade. João é belo. João é alto.- Relação. João é maior do que Pedro- Lugar. João está em casa- Tempo. João morreu ontem- Estar (como – posição). João está sentado- Posse (ter posse de). João está vestido (possui roupas)- Ação (momentânea) João está derrubando a árvore.- Paixão (afetado por). João foi alvejado.

Você consegue pensar em algum aspecto que se possa observar em um ente que nãoesteja presente nesta lista? Acho que não. É isto que Aristóteles está querendo dizer,ele pretende que estas 10 categorias são tudo o que se pode dizer sobre qualquercoisa.

Por substância entende-se um ente determinado (substância primeira que é o queexiste) ou a substância segunda (que não é propriamente uma substância, mas umuniversal ou gênero). Observe-se que ao se dizer “João é Homem”, João é um homemdeterminado, de maneira que Homem é entendido como substância segunda.Designar João de homem é uma aproximação de quem ele é, mas aplica-se também aoutros homens determinados, não sendo, deste modo, sua definição, essência oudelimitação.

[...] o gênero não é algo que exista por trás das espécies [espécimes –indivíduos] a ele pertencentes [...] Com efeito, parece-nos impossível quequalquer termo universal, qualquer que seja ele, seja uma substância.Primeiramente a substância de um indivíduo é aquilo que lhe é próprio e quenão pertence a nenhum outro; o universal é, ao contrário, comum, porquenomeamos como universal aquilo que pertence naturalmente a umamultiplicidade. (ARISTOTE, 1991a, Z13,1038 a 5-b 5).

João não pertence à categoria Homem, ao contrário, Homem é que pertence a João ea outros (José, Maria, Elenice).

Então, como é possível o conhecimento, já que "João é João" ou "esta mesa é estamesa" não são frases que geram conhecimento sobre estas substâncias? E as demaiscategorias? Nelas o que se observa varia no tempo (se atualiza), pois, por exemplo,João pode ser pequeno hoje e grande amanhã. Assim, o que nas demais categoriasirá aparecer não pode ser previamente percebido.

[...] o ser propriamente dito pode ser apreendido de diversas maneiras [...]Uma vez que falamos acerca das diferentes acepções do ser, devemosdestacar primeiramente que aquilo que é por acaso [acidente] não é objetode qualquer especulação [previsão]. A prova disto é que nenhuma ciência [...]disto se ocupa. (Idem., E, 2, 1026 b 5).

Assim é que, na Lógica, Aristóteles busca os métodos para fazer ciência(conhecimento seguro), que não pode pautar-se pelo que é por acaso (imprevisível) enem pela substância primeira (incognoscível), mas no universal (substância segunda)e no necessário. Disto entendemos que o conhecimento aí constituído tem validadelimitada para cada substância sobre a qual se aplica, no sentido de não poder darconta de sua totalidade. As categorias fornecem modos de acercarmo-nos de umasubstância, delimitando aquilo que o ente nos oferece, nos mostra. Suas combinaçõesem proposições (dizer, discursos) podem ser possíveis, impossíveis, prováveis. Sendo a substância (essência) aquilo que o ente é, não pode ser entendida como algoque se atribui a um ente, mas o próprio ente em si. Já as demais categoriascompreendem atributos atuais substância. As nove categorias podem oferecer graus

62

que vão de um extremo a seu oposto. Por exemplo: belo e feio admitem gradações emum sujeito determinado no tempo. Assim, conhecer algo belo é, necessariamente,conhecer algo feio que permite gradações comparativas. Mas, para um mesmo enteou substância não se podem atribuir características contrárias “ao mesmo tempo”.Quer dizer, João não pode ser, ao mesmo tempo, feio e bonito. João pode ser

- bonito quando comparado a Pedro e, depois,- feio quando comparado a Henrique, ou,- bonito quando jovem e, depois,- feio quando velho.

Portanto, o conhecimento gerado pelas 9 categorias é comparativo, dependendo dosentes e de suas relações e vai se atualizando no tempo.

Ao se atribuir a uma essência predicados, podemos verificar diferenças. Por exemplo:“João é baixo” e, depois de alguns anos, “João é alto”. As substâncias são passíveisde estados contrários. Entretanto, de acordo com o que já vimos, tais mudanças nãoimplicam senão em manifestações, atualizações da substância, quer dizer, fazemparte do seu “pode”. A substância João não muda, ela se atualiza, tal que João podetornar-se alto, porque já era alto em potência. Já quando comparamos João a Pedro eHenrique, cada uma destas substâncias é incomparável com as outras.

6.2 Análise Documentária para Catalogação

A análise documentária em museus e bibliotecas está condicionada por práticasdocumentárias que lhe antecedem e constituem documentos bibliográficos oumuseológicos. Portanto, certos modos de ordenação, relação e descrição destesdocumentos/objetos já estão estabelecidos por áreas como a história, a arqueologia,campos científicos etc. e são assumidos pelo museu. Entretanto, os diferentespúblicos demandam a inclusão de quesitos descritores sem os quais determinadasformas de exposição não seriam possíveis.

Não é possível explorar a priori a totalidade informacional de um objeto museológicoou bibliográfico, ou, dito de outro modo, um documento pode sustentar uma infinidadede informações que os caracterizam. Não é possível descrever ou representar odocumento/objeto museológico “em si”, já que estes são já sempre para alguém.

Mas é possível fazer alguns exercícios de previsão em vista do público e dasfinalidades que o museu se coloca. As possibilidades de quesitos ou informações a umdado objeto não podem ser mapeados fora de um contexto, porque, conformeMeneses, citado por Loureiro (1998, p. 40), "[...] o que torna um objeto documento sãoforças que operam fora de seu contexto original: o objeto não encerraria em si,portanto, uma carga de informação 'pronta para ser espremida como o sumo de umlimão'". Enquanto atribuição, valor sobre o objeto, tais quesitos precisam serelaborados no contexto de formação do acervo (presente).

Como se podem aplicar estas categorias? Aristóteles nos fornece a lógica como leis eregras e como devemos aplicá-las em proposições (juízo, frase que enuncia algosobre) verdadeiras. Lembramos que, com as limitações impostas, tal conhecimentonão pode ser pleno. Cada substância segunda (gênero) tem uma intensão (oucompreensão) que é o conjunto de características ou atributos deste gênero (peixe:animal vertebrado, aquático, dotado de nadadeiras e guelras) e uma extensão que sãoas coisas que podem ser colocadas dentro deste gênero (este pacú, esta cocoroca,este salmão, esta sardinha etc.)

63

Aqueles que hoje trabalham com a organização de informação têm em vista, também,que a categorização é um bom modo para pensar, a partir de grandes grupos, quesitosrelevantes para descrição documental. Categorizar é reunir, separar e relacionar.Como princípios gerais para categorizar tem-se: que as categorias são elaboradas apartir do exame dos objetos a serem categorizados; devem abranger a totalidade dosobjetos. As categorias principais devem ser mutuamente excludentes. Entretanto,pode-se admitir, para as subcategorias, alguma poli-hierarquia, que deve serdocumentada.

6.3 A Ordem dos Objetos Museológicos

Como bem representar um documento, a partir de suas características, relações quemantêm com outros documentos e a diversidade de olhares que o constitui como co-testemunha, como evidência? Pergunta difícil e cuja resposta, por melhor que seja,nunca será definitiva.

O uso de um acervo documentário é sempre um uso feito por diversos pontos de vista(do leigo e dos especialistas). Podemos dizer que estes pontos de vista não são merascontemplações dos objetos, antes, são ações que interferem tanto na constituiçãocomo na “ordem dos documentos”. Quando os historiadores “usam os objetosmuseológicos” como documentos na composição de suas narrativas, eles interferemnuma ordem já dada, que lhes antecede, enxergam novas relações, fazem novasinferências e com isto propõem uma nova “ordem dos documentos”. São novascamadas de informações, novas camadas interpretativas, que se desenham sobre osobjetos museológicos.

Do mesmo modo, podemos dizer que o impressionismo e a entrada destes trabalhosnos museus, deslocaram a ordem dos documentos. Que tal Picasso? Quando MarcelDuchamp pinta uma monalisa de bigodes e cavanhaque, a Monalisa no Louvre acabarecebendo uma nova iluminação, mesmo que não ingresse no museu. A monalisabigoduda põe questão sobre a ordem documentária. Você não acha?

Aqui em nosso museu resolvemos organizar e relacionar os nossos crânios representativos da evolução do homem tendo em conta o entendimento evolucionista proposto pelos pesquisadores. Olhando bem, é mesmo óbvio que estes Homens fazem parte do processo evolutivo da humanidade.

Alguns anos depois, o que acontece à ordem dos objetos quando se diz que:

64

Antigamente acreditava-se em uma linha evolutiva que seguia aseguinte ordem: Australopiteco, homo habilis, Homo erectus, homemde Neandertal e o homo sapiens. Entretanto com uma análise maisatenciosa dos crânios a teoria da linha evolutiva caiu por terra [...] Através de tais evidencias os antropólogos classificaram o Neandertalcomo um ramo paralelo da evolução. Anos depois, com oaperfeiçoamento da datação de ossos através do carbono-14,descobriu-se que o Homo erectus, o Homo sapiens (que se originoude uma variação do erectus) e o homem de Neanderthal eramcontemporâneos. (MUDANÇA NO ROTEIRO, 200?).

Se existem diversas camadas de interesses pontuais, cuja negociação e tentativas deestabilização acabam por constituir documentos, que chamamos de práticasdocumentárias, aí também poderíamos incluir os instrumentos (software, sistema decatalogação, instrumentos de representação em geral). Tais práticas são produtorasde uma documentação informativa, de apresentações informativas, enfim de artefatos(produzidos intencionalmente) para informar (PACHECO, 1995). Dentro do Museu, osinstrumentos de representação apresentam uma ordem dos objetos, mas esta ordemestá sempre sendo refeita, por novas interpretações, pela entrada de novos objetos noacervo.

A representação documentária em meio eletrônico e seu acesso remoto não deixa deser uma camada de interferência na “ordem dos documentos” e um novo fator naconstrução e aceitação de algo como documento. Existem obras de arte virtuais? Querdizer, objetos virtuais propostos como arte são aceitos enquanto tal? Bem, não foi poracaso que Maria Lúcia N. Matheus Loureiro (2004) dedicou sua tese à questão ereflexão sobre os Museus de Arte no Ciberespaço.

Mas não se trata apenas de possíveis novos documentos, com estruturas bemdiferentes daquelas que já estamos habituados, trata-se, também da possibilidade depropor formas de representação (sistemas catalográficos) que ampliam aspossibilidades de apontar relacionamentos entre os documentos e de um meio onde ousuário pode navegar em tais relações.

6.4 A Ordem dos Livros

A maneira como se organizam e descrevem os livros e documentos textuais tambémse modificou e se modifica no tempo e no espaço, seja por interesses sociais,políticos, econômicos, culturais, como por novas apresentações textuais que lhescorrespondem.

Quando pensamos no autor (autoria) como um importante quesito descritor ecaracterizador de um documento textual, não podemos nos esquecer que nem sempreeste aspecto foi relevante. Aliás, na Idade Média, muitos documentos nãoapresentavam a ”autor”. Interesses políticos e econômicos estão na base dosurgimento do autor-autoria conforme entendemos hoje. O autor recebe tanto os“louros” de sua obra como deve ser conhecido em vista de suas responsabilidadessobre aquilo que escreve (direitos). A identificação de a”autores” e de “obras” foi semdúvida uma luta das Editoras, na garantidas de seus direitos de reprodução.

O que acontece à ordem dos documentos textuais quando se passa a construir aCiência como conhecimento da totalidade do real, onde cada parte complementa aoutra (da Filosofia à Ciência)? Os conhecimentos separados e bem definidos de cadaespecialidade da ciência (física, biologia, química etc.) são entendidos comocomplementares (sistemas hierárquicos de organização)? O que acontece com aordem dos documentos textuais quando a ciência assume a produção deconhecimentos interdisciplinares ou transdisciplinares? Qual é a ordem dos livros?

65

ARISTOTE. Métaphysique.T.1. Trad:J.Tricot. Paris:Librarie Phylosophyque J.Vrin, 1991a.

ARISTÓTELES. Categorias. Tradução de Silvestre Pinheiro Ferreira. Apresentação de Pinharanda Gomes. 3ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1994.

LARA Filho. Museu, objeto e informação. Transinformação, v. 21, n. 2, p. 163-169, maio/ago. 2009.

LOUREIRO, Maria Lúcia Matheus. Museu, informação e arte: A obra de arte como objeto museológico e fonte de informação. 1998. Dissertação ( Mestrado em Ciência da Informação) – IBICT/ECO, UFRJ, Rio de Janeiro.

MATOS, Alexandre Manoel Ribeiro. Os sistemas de informação na gestão de colecções museológicas: contribuições para a certificação de museus. 2007. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio, Universidade do Porto, Porto.

MUDANÇA NO ROTEIRO. In: Grandes primatas. 200-?. Disponível em: http://primatas.no.sapo.pt/homem.htm

MUSEU DO ÍNDIO. Instituição. Pesquisa. Disponível em: <http://www.museudoindio.gov.br/template_01/defaut.asp?ID_S=45>. Acesso em: 02 de outubro de 2009.

PACHECO, Leila Serafim. A informação enquanto artefato. Informare, v.1, n.1, p. 20-24, jan./jun. 1995.

PIAGET. Jean. Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1973.

7 MEDIAÇÃO COMO PRÁTICA DOCUMENTÁRIA

A Análise Documentária, enquanto meio para dar acesso a itens de um acervodocumentário a partir de representantes, de artefatos informacionais, deve ser umafacilitadora de processos comunicativos. Podemos dizer que todo processocomunicativo utiliza-se de meio e canal, seja na comunicação face a face, já que elautiliza uma linguagem, como naquelas em que os agentes que se comunicam estãoseparados no tempo e no espaço (telefone, internet, livros etc.).

Quando pensamos em uma Unidade de Informação, temos um "[...] sistema socialtecnicamente disponibilizado: inserido na ação; contextualizado e institucionalizado,propositalmente desenvolvido e sempre em desenvolvimento (sujeito a mudanças)"(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2004, p. 58).

A UI media a comunicação entre sujeitos separados no tempo ou no espaço, e éconstituída por agentes que têm interesses em comum. Podemos pensar nascomunidades de pesquisadores, de moradores de um bairro, de uma empresa ou dequalquer outra organização como uma intersubjetividade atual que se encontra em umprocesso permanente de interpretação, de aprendizagem e de produção de novossaberes que jamais encontra um ponto final. (PEIRCE, citado por GONZÁLES DEGÓMEZ, 2004, p. 63). A UI busca constituir instrumentos com os quais diferentespessoas se comunicam em uma linguagem formal.

Se pensarmos em termos mais amplos do processo podemos entender que noprocesso comunicativo existem várias instâncias de regulação, validação e seleção.

66

disponibilização

seleção tradução

recuperação

produção validada busca

ou relevante disseminação

transmissão

É nesta cadeia ou circuito que se encontra o que González de Gómez chama de açãode informação. Nela existem vários extratos ou camadas que interferem enquantomediadores do processo comunicacional. Estes extratos regulam, selecionam, filtram efornecem determinadas ordens à informação, e que chamamos ao longo do curso depráticas documentárias.

Na esfera das práticas sociais produtoras interferem, por exemplo, regras de validadepara a produção e meios técnicos. Por exemplo: a produção de um filme depende decondições técnicas disponíveis, de verbas obtidas por analistas de seu conteúdo e desua possibilidade de audiência, valores éticos, culturais etc. Do mesmo modo, nemtodo acontecimento é considerado relevante para se tornar candidato a uma seleçãopelo telejornalismo: do conjunto de acontecimentos comunicados por pessoas comunsou por assessorias de imprensa das organizações, nem todos irão ganhar o status deacontecimento relevante a ser registrado. O mesmo pode-se dizer de um livro que,para ter validade, precisa ter um editor registrado na Biblioteca Nacional, um ISBN etc.Se for um texto acadêmico, precisa ter sido validado pelos pares, precisa que opesquisador ter obtido financiamento por uma agência de fomento para sua pesquisado tema etc. Portanto, já na esfera das práticas sociais, que ocorrem dentro dascomunidades com interesses comuns, atuam normas de validação e atribuição derelevância à produção. A esta instância González de Gómez chamametainformacional.

Mas nem toda produção validada ou relevante terá espaço em UIs. Nem todoacontecimento filmado pela equipe do telejornal irá para o noticiário e nem todo filmeirá para filmoteca, nem todo livro para as bibliotecas, nem todo site será coberto porum mecanismo de busca. Aí interferem novos critérios de validade, de relevância, deadequação, além de critérios técnicos. Aí também, para que algo seja informativo deveencontrar relações já dadas no plano das esferas produtoras, que são seu universo dereferência. A esta instância, González de Gómez chama informacional.

Nas UIs, os documentos selecionados serão ordenados, juntamente com outrosdocumentos do acervo, seja uma matéria em um caderno de jornal, seja uma matéria

ArtefatosInformacionais

Representantes

AcontecimentosObjetosSaberesFilmesLivros

Esfera das práticas sociais produtoras, constituídas por comunidades em que agentes partilham interesses comuns.

ME

TAIN

FO

RM

AC

ION

AL IN

FOR

MA

CIO

NA

LEsfera de pro-dução de arte-fatos de infor-mação: UIs

67

em um espaço do telejornal, seja um livro num sistema de classificação de umabiblioteca etc. Este ordenamento tem em vista fornecer meios de acesso e de colocarem evidência. A classificação, a indexação utilizando uma linguagem, a catalogação, oresumo, as técnicas de edição, a formulação de uma manchete ou de um lead12sãoexemplos de instrumentos desta ação que tem em vista tornar disponível, transmitirinformações por representações e que, como se vê, também indisponibilizam e tiramde evidência. A mediação é intencionalmente interventora e segue regras e meios quevão se estabelecendo ao longo do tempo por negociações que implicam tanto emconsenso como em imposições (violência simbólica, conforme nos diz Ricoeur). Nemsempre temos clareza de que estamos inseridos neste tipo de intervenção.

Ao estabelecermos os critérios técnicos básicos para o tratamento dainformação, devemos ter em conta que não só estamos operandouma tarefa técnica encontrada em qualquer manual dedocumentação, mas exercendo uma atividade de 'escolha ideológica'que permeia todos esses critérios. (LARA; CIOFFI, 1989, p.92).

Estas ações colocam disponíveis não os documentos, mas artefatos produzidos parainformar. No caso de um telejornal, o que se disponibiliza não é o acontecimento, masa filmagem editada e comentada (uma produção) de um acontecimento. Já no caso deum filme ou de um livro, o que se disponibiliza são acessos através de catálogos,códigos etc. que também são artefatos informacionais. A ação de disponibilização outransmissão também intervém os instrumentos técnicos como sofware, aparelhos derecepção, interfaces.

Conforme González de Gómez (2004), estes diversos estratos agem em cascata, demodo que o que é feito em um estrato, afetará o próximo e este o seguinte. Portanto,não bastam bons instrumentos de organização e representação, tendo-se que ter emconta as inúmeras camadas ou extratos de validação, regulação, seleção eorganização de informações. Do mesmo modo, preconceitos, visões de mundo,valores éticos, dentre outros, estão sempre em jogo e precisam ser percebidos e tidosem conta pelas UIs.

8 CONSTRUÇÃO DE INSTRUMENTOS DESCRITORES E CATALOGAÇÃO

A Análise Documentária, no que se refere à descritiva e à temática tem em vistafornecer um conjunto de pontos de acesso aos documentos de um acervo. Cada umdestes pontos é um quesito que pode gerar catálogos independentes como os deautores, assunto, editores (as), assim como podem permitir acesso pelo cruzamentode dados tais como "do autor tal" e "entre os anos x e y", ou ainda permitir avisualização de um mapa de documentos com suas relações internas e externas. Acatalogação gera possibilidades de variadas pesquisas em um acervo, além dalocalização física de um item.

Observe-se que um catálogo constitui uma oferta de informações sobre osdocumentos e suas relações, que vai muito além de seus conteúdos. Isto fica maisfacilmente percebido quando pensamos em um acervo museológico. As informaçõessobre uma cadeira que se encontra em um acervo (o designer, estilo, fabricante, exproprietários, motivos de transferência etc.) ou o que esta cadeira informa sobrealguém (que a possuiu) ou sobre um grupo (que a fabricou) constitui informações alémda própria cadeira. Do mesmo modo, as informações sobre um livro (seu autor, datade publicação, outros livros do mesmo autor, livros que o citam ou criticam, etc.)

12 "[...] o lead é um relato condensado de fatos e que responde a cinco questões básicas: que, quem, quando, onde, como/por quê." (MEDEIROS, 1999, p. 352). O termo pode ser encontrado aportuguesado: lide.

68

fornecem ao livro um contexto que está além do assunto que trata e serve comoelementos para sua identificação.

Cutter, Paul Otlet e Ranganathan são exemplos de pensadores destes pontos deacesso de maneira a facilitar seu levantamento exaustivo em uma biblioteca ou portodo o mundo e para todo mundo. Hoje, os livros brasileiros têm catalogação napublicação (na fonte).

Os quesitos escolhidos para descrever os mais variados tipos de documentos em umaficha ou planilha de catalogação devem ser criteriosamente qualificados enormalizados e são chamados de metadados. A generalização de metadados emformatos variados de catalogação dependeu de um processo longo e sistemático depadronização na produção dos objetos candidatos a ingressarem em um acervo, comoé o caso dos livros ou dos periódicos científicos.

A padronização se constitui por costume e imitação que se transforma em tradição,como é o caso de certos padrões encontrados em jornais (cadernos, manchetes,resumos de matérias), pode ser objeto de demandas de organizações que selecioname mantêm acervos documentários aos produtores dos objetos (catalogação napublicação, ou catalogação na fonte) ou pode ser impossível (caso dos objetosmuseológicos).

Quando pensamos na representação documentária estamos indagando quais seriamos aspectos relevantes para descrever bem um conjunto de documentos, levando emconta tanto os elementos que caracterizam cada documento como aqueles queapontam para suas relações.

Vamos começar pensando em quais seriam os aspectos relevantes para descrever umleão. Para descrever o que é um leão para uma criança, devemos partir daquilo queela conhece. Que tal um gato? “É um bicho parecido com um gato, mas muito maior;maior do que um cachorro bem grande. Eles têm uma espécie de cabeleira em voltado pescoço e são de cor parda, mais ou menos como a cor de um papelão. Diferentedos gatos, eles não podem conviver com o homem em casa, porque são ferozes.Vivem nas florestas.”

E se eu tivesse que descrever um leão para um seringueiro da floresta amazônica,que jamais viu um leão? Do mesmo modo vamos partir de seu universo doconhecimento. “É um animal parecido com a onça. Um pouco maior. Eles têm umaespécie de cabeleira em volta do pescoço que chamamos de juba. Caçadores como aonça, também vivem em florestas.”

E se eu tivesse que descrever um leão para estudantes de zoologia? Vamos lá:“Mamífero carnívoro, da família dos felídeos, exclusivo da África, nome: Felis Leo”

Conforme bem disse uma de minhas alunas, não se oferece em uma biblioteca infantillivros para as crianças esperando que ela escolha entre descritores como “título”,“autor”, “assunto”. O modo mais fácil é mostrando a capa. Já se temos dar a escolherlivros para crianças a uma professora que vai à biblioteca, aspectos como“ilustrações”, “nível de escolaridade recomendada”, “tipo de ensinamento que propõe”,por exemplo, serão aspectos relevantes para sua escolha.

O que queremos dizer com isso é que: descrever é apontar aspectos e que bemdescrever é apontar aspectos que estejam dentro do horizonte da compreensãodaquele para o qual descrevemos. Bem no início das notas de aulas, ao falarmossobre representação, fizemos uma citação que pode ser retomada agora, vejamos:

A estabilidade das representações é garantida por seu aspectocompartilhado, consensual e nesse sentido pouco importa sua basereal. Não há sentido ou mesmo utilidade em afirmar a existência darealidade por si mesma um mundo objetivo tal como pugnam os

69

"realistas" de diferentes matizes, se ela só é conhecida por suasrepresentações. As representações se tornam tangíveis para ogrupo considerado já que seus membros acreditam em suaexistência. A representação não é apenas a expressão simbólica darealidade como sua via de acesso, ou seja, deriva da atividade dohomem e a direciona, é simultaneamente produto e processo.Refere-se à transformação do não-famililar em familiar, quando onovo é incorporado a categorias preexistentes e se torna sensocomum. Na perspectiva desta teoria e das pesquisas por elamotivadas, significa apreender a ancoragem e a objetivação em quesão geradas e desenvolvidas. (CARVALHO; ARRUDA, 2008, grifomeu).

Assim, para fazer uma boa descrição é primordial que já saibamos para quem e paraquê, sem o que não daremos acesso. Pensemos, agora, em um conjunto de quesitosou aspectos para descrever plantas, pensando em três diferentes grupos deinteressados, ou seja, para três domínios do conhecimento: botânicos, produtoresrurais e jardineiros domésticos.

QUESITOS PARA DESCRIÇÃO DE PLANTAS PARA DIFERENTES DOMÍNIOS

BOTÂNICOS PRODUTORES RURAIS JARDINEIROS

Nome Vulgar Nome Vulgar Nome Vulgar

Nome Científico Nome Científico Necessidade de rega

Espécie Necessidade de luz

Família Família Tamanho médio

Locais de Ocorrência Solo adequado ao plantio

Polinizadores Fertilizantes adequados Fertilizantes adequadosFlores pendúculo floral receptáculo floral carpelos

Período de floração Floração cores duração

Folhas filotaxia Orientação estrutura nervação

Pragas mais frequentes Pragas mais frequentes

Caule Herbicidas Herbicidas

Raízes Período de plantio

Frutos Período de colheita

O que são os quesitos apresentados acima, para cada domínio, senão categorias nasquais podemos inserir os objetos que estamos analisando? Cada um destes quesitossão “modos de ser” das plantas que, como já apontava Aristóteles, uma coisa pode serdescrita a partir de muitos aspectos (o ser se diz de muitos modos).

O mesmo se aplica aos documentos. Temos documentos de tipos variados. Algunsforam altamente padronizados ao longo do tempo pelas tradições, costumes, normas,como é o caso do periódico ou do livro. Há, neste caso, certa expectativa de queaspectos padronizados sejam quesitos descritores destes objetos (p.ex.: autor, título,isbn). Entretanto, haverá bons quesitos descritores que não podem ser previstos semo exame de usuários, usos e finalidades (p.ex.: recomendação de literatura infantil pornível de alfabetização). Portanto, podemos dizer que não há como descrever asinformações de um documento “em si”, porque as descrições que informam sobre odocumento são sempre informativas para alguém, para um domínio, para uma dadafinalidade.

70

8.1 A descrição bibliográfica – FRBR

A normalização de elementos bibliográficos para descrição em catálogos, como acordode cooperação internacional é identificada nos anos 60 com a Conferência de Paris,com a edição do padrão MARC (Machine Readable Cataloguing) e com a publicaçãoda ISBD (International Santadard Bibliographic Description), que definia bases paraum sistema de intercâmbio. Em 1972 a UNESCO criou o UNISIST (SistemaInternacional de Informação para a Ciência e Tecnologia), que possibilitaria atransferência, permuta ou cooperação de informações, que se fundiria ao NATIS(National Documentation, Library and Archives Infraestrutctures) elaborado pelo IFLAem 1977. Hoje o programa de Controle Bibliográfico Universal é liderado pela IFLA(International Federation of Library Associations and Institutions). (SILVEIRA, 2007, p.28-32).

Em 1998 a IFLA iria publicar o relatório com o título de Functional Requirements forBibliographic Records (Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos). Os FRBRconstituem princípios teórico-lógicos que servem de base tanto para construção demodelos de catálogos como para a catalogação de documentos específicos. Portanto,trata-se de um modelo conceitual que aponta aos elementos úteis para registrobibliográfico, especialmente em ambientes eletrônicos. Os requisitos recomendam quea estrutura dos registros bibliográficos reflita a estrutura conceitual de buscas deinformação, de modo que a centralidade se volta para os usuários, agora entendidosnão apenas como pessoas com interesses específicos, mas grupos com interessescomuns, outras bibliotecas e seus bibliotecários e os próprios autores. (Idem, p. 43).

O modelo dos FRBR é composto por três categorias: Entidades, Atributos eRelacionamentos. Se nas categorias aristotélicas tínhamos a substância ou essência(a primeira categoria) como o próprio ente determinado, onde não cabe mais oumenos, nem comparações, ou seja, a substância é o que ela é, nas nove categoriassubseqüentes temos o que ocorre ao longo do tempo, revelando aspectos até entãodesconhecidos da substância. Dizemos que tais categorias são passíveis de mais emenos e nelas o nosso conhecimento se dá por relações. Assim, se digo que João ébaixo, digo isto em comparação com outro homem que considero alto. Tambémquando utilizamos as categorias das FRBR para descrever um documento, taldescrição será feita a partir de relações, que tornam o nossa busca mais precisatambém por comparações. Vejamos:

TODO/PARTEOBJETO CONCEITOS, COISAS IMPLÍCITOS LUGARES,EVENTOS

DE RESPONSA- DE ASSUNTOPESSOAS E ORGANIZAÇÕES BILIDADE

CARACTERÍSTICAS DAS ENTIDADES

ENTIDADE ATRIBUTOS RELACIONAMENTOS

Isto é pensar nos documentos, cujos registros serão objeto de descrição, nãocomo entidades isoladas, mas antes como documentos com relações que podemser explicitadas nestes registros e que tais relações refletem o modo mesmo comoos homens os constroem e os compreendem.

71

ENTIDADE – OBJETO

A primeira coisa que devemos ter em mente quando pensamos nesta sub-categoria éque em uma Unidade de Informação o que dispomos é de objetos físicos(documentos). Deste modo, das entidades-objeto Obra, Expressão, Manifetação eItem, apenas o item tem existência física. As demais entidades-objeto têm existênciamaterial (não física), mas são condição da existência de qualquer item e servem paraque possamos criar relações entre os itens existentes.

Cada uma das entidades-objeto possui características ou atributos tais como (obra)título, forma, data; (expressão) título, forma, data, língua (manifestação) título, meiofísico, distribuidor, editor; (item) número ou modo de identificação, proveniência,marcas, história, condições, acessibilidade etc. Além disso, as entidades-objetoapresentarão relacionamentos entre si e com as demais entidades, como: a obraRomeu e Julieta é criada por William Shakespeare. Ou, o item Livro autografado,impresso, texto em idioma original, da obra Romeu e Julieta, é propriedade daBiblioteca Nacional da Inglaterra.

Obra

Expressão

Manifestação

Item

ENTIDADE – Pessoas e organizações

Esta entidade- pessoa ou de organização está relacionada com a Entidade – Objeto.Assim, são pessoas ou entidades coletivas que, por exemplo: criam uma obra(Fernando pessoa; BRASIL), que realizam uma expressão (editor), que produzem ouencomendam uma manifestação (webdesigner), que possuem um item (BibliotecaNacional). (BOEUF, 2007). As pessoas têm atributos como nome, títulos, pseudônimosetc. e as organizações atributos nome, cpnj, tipo de organização etc.

ENTIDADE – Conceitos, Coisas, Lugares e Eventos (Assunto - trata-se do "sobre oque")

A Entidade-Assunto também está relacionada à Entidade- Objeto, porque é do quetrata o objeto. Aqui temos alternativas. O conceito é atribuído a um texto ou a um filme,é o termo que designa seu conteúdo (ex. Romance, para a obra Romeu e Julieta). Oobjeto tem como atributo o nome do objeto (termo para designar o objeto),

Romeu e Julieta

Texto no idioma original

Edição ilustradaEm português

Edição de bolsoem inglês

Tradução portuguesa

Impresso Html PDF

Livro autografado Livro -exemplar

www[...]. Cópia impressa

72

suponhamos, coroa (em um Museu). O evento tem como atributo seu título (IISeminário de Semiologia do Rio de Janeiro). E lugar tem por atributo o nome do lugar(Londres – para o mapa de Londres em uma mapoteca).

Conceito Objeto Evento Lugar

Cada um destes metadados implica em quesitos aplicáveis a diferentes tipologiasdocumentais.

ATRIBUTOS

Os atributos são pensados a partir dos tipos de Entidades às quais estamosanalisando. Alguns dos atributos já foram apontados quando apresentamos os trêstipos de entidades. Elas incluem também características físicas (número de página etamanho, por exemplo, para um item), aspectos formais (tipo documentário – jurídico,científico) e atributos externos, quer dizer, não contidos na entidade (número nocatálogo, contexto de realização da obra, história de uma organização).

Embora as FRBR listem e explique os atributos de cada entidade e suas sub-classes,o nível de detalhamento é uma questão de reflexão para aqueles que irão desenhar osmodelos catalográficos em primeira instância. Em segunda instância, a escolha depreenchimento de campos do catálogo deve estar de acordo com o acervo e atipologia documentária em uma UI (a catalogação é uma operação cooperativa) e comos elementos que se considerem primordiais para as buscas dos usuários em questão.

RELACIONAMENTOS

Os relacionamentos tratam de criar elos para navegação, por parte dos usuários. Aísão relacionadas as Entidades, tanto dentro de um mesmo conjunto relacionamentosentre as entidades contidas nos Objetos, por exemplo, relacionamentos entrediferentes entidades. Vejamos:

Todo/Parte: O item autogra-Implícitos ou Estruturais: fado é parte da coleção Shakespeare da BNIObra A Obra Romeu e

Expressão Julieta tem uma Expressão De responsabilidade: De Assunto: Impressa em Inglês O livro autografado é Julieta é Drama/Assunto Manifestação de propriedade da BNI genérico Romance A Manifestação Impressa A manifestação em pdf temItem tem um item autografado design assinado por X na Biblioteca Nacional da Inglaterra

Assunto (sobre o quê?)

Relacionamentos

73

Os FRBR permitem pensar organizadamente a catalogação, seja para criar catálogos,seja para a atividade de catalogar documentos. Além disso, ela foi criada paraproporcionar o melhor aproveitamento dos recursos dos meios de acesso remoto eeletrônico e configurar catálogos por onde o usuário pode navegar.

No que diz respeito aos usuários, em benefício de quem o modelo conceitual foicriado, os FRBR estabelecem como tarefas dos usuários: encontrar, identificar,selecionar e obter o que procuram. Neste sentido, nos diz Tillett (2003)

'Encontrar' envolve o atendimento de algum critério de busca de umusuário através de um atributo ou um relacionamento de umaentidade. Isto pode ser visto como a combinação dos objetivostradicionais dos catálogos 'encontrar' e 'arranjar'. 'Identificar' permitea um usuário confirmar se encontrou aquilo que procurava,distinguindo entre os recursos similares. 'Selecionar' envolve oatendimento das especificações do usuário quanto ao conteúdo,formato físico, etc. ou à rejeição de uma entidade que não atende àsnecessidades do usuário. 'Obter' permite a um usuário adquirir umaentidade através da compra, empréstimo etc. ou através do acessoeletrônico remoto.

Observa Silveira (2007, p. 43) que as FRBR ampliam o conceito de usuário, incluindo

[...] os profissionais que elaboram os registros e as bibliotecas quebuscam minimizar custo e tempo na preparação de registrosbibliográficos, compartilhando registros existentes em outroscatálogos ou bases de dados.

Estes requisitos continuam em discussão, servindo de base modelar e estando abertoa aperfeiçoamentos. Nem todas sub-categorias descritas são aplicáveis a todos osdocumentos. Quando pensamos em um mapa do Rio de Janeiro, produzido pelo IBGEno ano de 2002, por exemplo, não parece que possamos aí atribuir o conceito maisgeral de Obra. Do mesmo modo, quando temos um artigo de jornal ou um artigo deperiódico, certas subcategorizações da entidade-objeto não são aplicáveis.

Quando se trata da Análise Documentária para a indexação, estamos inseridos noprocesso da catalogação, no que se refere à atribuição de assunto e, nos termos dosFRBR, no CONCEITO. Neste sentido, a descrição do conjunto de elementos de umdocumento (incluindo seus relacionamentos com outros documentos e com formasnão físicas deste objeto) em um catálogo facilita a tarefa do indexador.

REFERÊNCIAS

BOEUF, Patrick Le. O admirável mundo novo do FRBR. Tradução de Fernanda Moreno.Preparado para a 5ª reunião da IFLA de especialistas para um código de catalogaçãointernacional. Pretória, 2007.

MEY, Eliane Serrão Alves; SILVEIRA, Naira Christofoletti. Catalogação no plural. Brasília:Briquet de Lemos, 2009.

MORENO, Fernanda Passini; ARELLANO, Miguel Angel Márdero. Requisitos Funcionais paraRegistros Bibliográficos – FRBR: uma apresentação. Revista Digital de biblioteconomia eCiência da Informação, v. 3, n. 1, p. 20-38, jul./dez. 2005.

SILVEIRA, Naira Christofoletti. Análise do impacto dos Requisitos Funcionais paraRegistros Bibliográficos (FRBR) nos pontos de acesso de responsabilidade pessoal. 2007.Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas/UNICAMP, Campinas.

TILLET, Barbara O que é FRBR? Tradução de Lídia Alvarenga e Renato Rocha Souza. (Originalmente publicado em: Technicalities, v. 25, n. 5, Sept./Oct. 2003). Disponível em: <www.loc.gov/cds/FRBR.html>. Acesso em: 12 de fevereiro de 2009.

74

8.2 A Descrição Museográfica – CRM

Existem dois grandes modelos teóricos para pensar a representação de característicasde documentos e suas relações, o modelo FRBR (Functional Requirements forBibliographic Records) para acervos bibliográficos e o modelo CRM (ConceptualReference Model) para acervos museológicos. O FRBR foi proposto pelo IFLA((International Federation of Library Associations and Institutions) e teve uma amplarepercussão no campo da biblioteconomia. O CRM foi proposto pelo ICOM (ConseilInternational des Musee). Em 2003 representantes do IFLA e CIDOC constituíram umgrupo de trabalho a fim de harmonizar os dois modelos conceituais.

O CRM – CHIOS (Cultural Heritage Interchange Ontology Standardisation) é umaontologia que tem em vista o intercâmbio informacional entre museus. Não é ummodelo geral para os museus, mas uma linguagem de referência e de padronizaçãode elementos descritivos e relacionais essenciais. Isto significa que, enquantoproposta conceitual, o modelo pode servir de base para aqueles que desejarem criarsistemas de catalogação específicos.

A ontologia CHIOS é uma linguagem representacional lógica, cujos conceitos erelações devem prover uma espécie de modelo da realidade (realidade aí entendidacomo a construção de conhecimento realizada em um domínio, como é o caso damuseologia). As entidades são organizadas em categorias e estas em sub-categorias.As entidades podem ter relações hierárquicas e não hierárquicas. As propriedadespermitem relacionar as entidades.

A CHIOS parte de duas entidades que se desdobram em sub-grupos, até que sepossam chegar a descritores específicos dos objetos. Deixe-me explicar melhor:imagine uma classificação de reinos com a categoria animal, sub-dividido em: peixes,répteis, mamíferos, aves, moluscos, artrópodes e celenterados. Ora, nenhum destesobjetos existe, são objetos conceituais. Mas se eu tenho um dado objeto,suponhamos, um exemplar empalhado de Sabiá Laranjeira, poderei atribuir a ele serum tipo de pássaro, que é um tipo de animal. Daí, as entidades não são objetos, masatribuições que posso fazer aos objetos. Vamos começar por um olhar amplo sobre aontologia.

75

CRM CLASS HIERARCHY76

Temos duas grandes categorias E1 e E59. Observe que é a partir delas que sedesdobram todas as sub-categorias. Como você pode ver, uma ontologia nãoapresenta rigidez hierárquica, de modo que, já no início, vemos que a sub-categoriaE77 pertence às duas grandes categorias. Vamos examinar um pouco estas entidadespara compreendermos a proposta do CRM- CHIOS.

E59: Primitive Value. Começamos mal. Bem, não há uma definição ou explicação naontologia do que seja tal entidade. Ela serve apenas para agrupar 4 outras entidades.Vamos mostrar esquematicamente:

E59: Primitive Value. Começamos mal. Bem, não há uma definição ou explicação na ontologia do que seja tal entidade. Ela serve apenas para agrupar 4 outras entidades

E61 – Time Primitive. Valor de tempo que pode ser validade com precisão como de 1994 – 1997, ou 13 de maio de 1910

E62 – String. Valor atribuído a um conjunto de strings de um texto, a um vetor gráfico, pixels de imagens etc.

E60 – Numbers. Valores numéricos como inteiros, reais, complexos, vetores etc.

E 77 – Persistent Item. Objetos, idéias que podem ser encontrados em qualquer lugar, em qualquer

período de tempo.

E1 CRM Entity. Classe que abrange o universo discursivo do CIDOC CRM. Se eu posso traduzir, acho que seria tudo que se pode dizer e que diz respeito aos objetos museológicos. Serve para agregar, numa única categoria, todos os aspectos destes objetos

E2 Temporal Entity. Reúne fenômenos que são temporalmente limitados

E3 State Condition (em ruínas de 1650 a 1720)

E4 Period. Serve para reunir fenômenos que ocorreram no mesmo período. Na era Glacial, Durante o IluminismoE52 Time-Span. Extensão

de tempo de um fenômeno cuja duração pode ser indicada por um mecanismo de tempo (de 30/06/1800 a 03/07/1800)

E54 Dimension. Entidade abstrata que acolhe propriedades mensuráveis e traduzíveis em algum tipo de unidade de medida (tamanho, diâmetro, valor monetário, peso etc.

E53 Place . Trata de uma localização que pode ser feita por diversos referenciais (coordenadas, distante de X tantas milhas etc).

77

Mas, como eu já havia dito, a ontologia não apresenta apenas as entidades e suasrelações hierárquicas. Cada entidade possui propriedades. A propriedade de umaentidade é outra entidade, de modo que duas entidades se relacionam por ser umapropriedade da outra. Vejamos a entidade denominação: tanto pessoas como lugaressão conhecidos por sua designação (ou denominação), assim como os objetos, tantofísicos como conceituais. Assim eu posso dizer que ter uma designação é umapropriedade de uma pessoa. Tal propriedade a identifica. O mesmo se pode dizer deum lugar ou de um objeto.

Vamos ver esquematicamente que simplifica muito.

P87 é identificado por

Indicador de relação de herança, é identificado por setas duplas

P87 é uma propriedade e pode relacionar diversas entidades. A ontologia CHIO tem148 propriedades, que podem ser utilizadas de maneira inversa. Vejamos algumas:

P51 foi influenciado por (influenciou)P35 modificou (foi modificado por)P44 tem como condição (é condição de)P70 documenta a (é documentado em)P94 criou a (foi criado por)

Com o conjunto de entidades e de propriedades que as relacionam, os objetosmuseológicos podem não só ser descritos em suas relações internas (a é autor de b),mas reunidos por diversas instâncias com períodos, técnicas, autoria etc.

A partir desta proposta é possível pensar em vários quesitos (descritores, entidades) esuas propriedades e relações que possam interessar mais especificamente paradescrever um dado acervo que tenha como finalidade atender a um ou mais grupos deespecialistas.

Uma documentação bem detalhada é já uma fonte de pesquisas que permite conhecermuito acerca dos objetos e de suas relações. Permite navegar por entre as co-testemunhas do passado que o museu abriga.

REFERÊNCIAS:

CIDOC. CHIOS work package 5 Dissemination and Concertation. D¨: CRM –compreensive discription. CIDOC, March 2004. Disponível em: < http://www.ville-ge.ch/musinfo/cidoc/oomodel>. Acesso em: 8 de setembro de 2010.

E53 Place

E41 Appelation

E 44 Place Appelation

E45 Address E48 Name Place E47 Spatial Coordinates

78

CIDOC. Definition of the CIDOC conceptual reference model. Version 5.0.2. Jan. 2010. Disponível em: < http://www.cidoc-crm.org/docs/cidoc_crm_version_5.0.2.pdf>. Acesso em: 29 de setembro de 2010.

SILVEIRA, Naira Christofoletti. Análise do impacto dos Requisitos Funcionais paraRegistros Bibliográficos (FRBR) nos pontos de acesso de responsabilidade pessoal.2007. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Centro de Ciências SociaisAplicadas/ UNICAMP, Campinas.

LOUREIRO, Maria Lúcia de Niemeyer Matheus. Museus de arte no ciberespaço: uma abordagem conceitual. 2003. 187f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – IBICT-ECO, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003

MUDANÇA NO ROTEIRO. In: Primatas. Disponível em: http://primatas.no.sapo.pt/homem.htm. Acesso em: 23 de setembro de 2010

9 METADADOS E NORMALIZAÇÃO DE CAMPOS DE DADOS

Quando tratamos de criar um instrumento de representação, é necessário definir atipologia dos dados ou informações que estamos incluindo como descritores. Assim,não basta definir com um termo o campo para preenchimento (autor, cidade,dimensões, local) é necessário descrever o que se está querendo dizer com cada umdestes campos, de maneira a que tanto aqueles que irão fazer a descrição de cadaobjeto como os que irão fazer consultas ao sistema de documentação possam terclareza do que irá encontrar sob cada uma destas etiquetas.

Imagine que para textos em XML onde se podem marcar autor, designer, título,assunto etc. Se não estiver claro no instrumento de referência o que se entende porcada um destes elementos, como iremos saber se autor é autor do conteúdo textualda página ou se o autor da página? Para isso servem os metadados. Mas tambémserá necessário definir normas para o modo de entrada destes dados.

Quando houver normalização para entrada de dados estabelecida por organismo ouinstituição internacional, ela deve ser utilizada, a fim de facilitar o intercâmbio. Taisnormas podem ser de âmbito amplo, como as estabelecidas pela ISO, ABNT,INMETRO etc. ou pode haver convenções para grupos ou atividades específicas.Quando não houver normas internacionais, nacionais ou de grupos de interesse, deve-se estabelecer, sempre que possível uma norma ou recomendação para entrada dedados. Quando o costume local for diferente do padrão utilizado, podem-se utilizardois campos com normas local e internacional que devem ser relacionados. Vejamosalguns exemplos de necessidade e possibilidade de normalização de campos.

Vocabulário Controlado

O vocabulário controlado é um meio de permitir alternativas limitadas de descriçãopara um campo a ser preenchido. Isto evita dispersão e o uso de sinônimos paradesignar um único item.No exemplo abaixo para quesitos de indumentária, saia, permitimos apenas opreenchimento das alternativas dadas, que são uma limitação do vocabulário descritor.Evite, nestes casos, colocar a opção outros.

Saia:

Acima do joelho Sobre o joelho

79

Abaixo do joelho No tornozelo Arrastando no chão

Norma de entrada de nomes

Devem ser criados padrões para entrada de nome. Um exemplo de regra é a deutilizar o nome completo do autor, entrando-se pelo último sobrenome, seguido devírgula, depois o pré-nome e os outros sobrenomes, se houver. Veja os problemas derecuperação que se evitam:

Guimarães, João Roberto de AlmeidaGuimarães, João R. de AlmeidaGuimarães, J. R. de AlmeidaGuimarães, João Roberto de A.

Norma para dimensões

Utiliza-se o sistema métrico decimal. Entretanto, caso seja prática comum local adotaroutro tipo de medida, pode-se fazer uma entrada associada para dimensões nestasmedidas. A simbologia do sistema métrico é internacionalmente padronizada e podeestar disponível durante o processo de inserção do dado em uma janela de consultas.

Norma para Datas

Deve-se estabelecer um único critério para entrada de datas, e, de preferência, que ocampo não aceite entradas diversas. Caso haja risco de escolha inadequada (02 é odia e não o mês 02), pode-se optar por um menu de escolha para cada componenteda data.

dia/mês/ano00 / 00 / 0000 oumês/dia/ano00/00/0000

Sempre que possível normalizar a entrada de um campo deve-se fazê-lo, porque oscatalogadores terão de lidar com um número grande de descritores e haverá muitoscatalogadores ao longo da vida do museu. As normas devem estar disponíveis em ummanual e, de preferência, devem estar disponíveis no sistema durante o processo decatalogação.

Mesmo os campos onde se possa inserir um texto (resumo, histórico, técnica etc.)deve ter recomendações para seu preenchimento. Os resumos podem contar com asnormas da ABNT e o que descreve uma trajetória histórica ou conjunto de técnicasdeve seguir algum padrão.

80

10 INSTRUMENTOS PARA ORGANIZAÇÃO DE ASSUNTOS E OBJETOS

No que se refere à organização temática dos objetos e documentos museológicostemos um quesito à parte no processo de catalogação. Existem diferentesinstrumentos que podem ser utilizados isolados ou articuladamente para atribuição deassuntos.

A Organização e Representação documentária, realizadas pela análise dosdocumentos, opera em dois planos, um que pretende fornecer ordem previamenteestabelecida dos assuntos e o outro de uma ação de representação de documentosdentro desta ordem.

Primeiro precisamos entender que cada instrumento deve ser examinado do ponto devista de sua adequação ao contexto. Em segundo, precisamos ter em vista que omodo de organização temática pode tanto colocar em evidência como tirar deevidência, pode permitir o acesso ou encobri-lo.

Uma vez estabelecidos os objetivos e conjunto de usuários pesquisadores ou nãopesquisadores que serão alvo do museu, já sabemos que diferentes especialistasterão diferentes modos não só de designar assuntos e objetos, mas também derelacioná-los. Para contemplar vários grupos é possível utilizar diferentes instrumentosde organização por assuntos, buscando criar articulações entre eles (isto será tãomais possível quanto maior a proximidade de conceitos entre as áreas). Vamos, antes,examinar os tipos de instrumentos para depois pensar em sua aplicação epossibilidades de articulação.

10.1 Sistemas de Classificação

Quando se trata de fazer escolhas de instrumentos para representação temática,devemos ter em conta que:

- Concepção de instrumentos de representação temática encerra certasconcepções que vieram se alterando ao longo do tempo;

- Apresentam melhores ou piores critérios de adequação dependendo doscontextos;

- Cada museu tem um montante de recursos disponíveis para construção,aquisição e uso destes instrumentos;

- Cada museu conta com certa quantidade de recursos humanos orientadapara a tarefa de análise documentária;

- Museus têm diferentes tamanhos de acervo; - As ciências ou especialidades atendidas pelo museu podem apresentar

campos conceituais com maior ou menor organização hierárquica;- Os museus podem contar com recursos tecnológicos diferentes.

Isto significa que um instrumento para representação temática não deve ser adequadoapenas por sua concepção ser mais recente ou inovadora, mas por um conjuntocontextual mais amplo que deve ser levado em conta.

Vamos apresentar sinteticamente alguns destes instrumentos, pensando nasconcepções explícitas ou implícitas que os motivaram e indicando algumas críticas àssuas adequações, que ensejaram novos instrumentos.

No século 18 as classificações eram entendidas como um método de conhecimento.Acredita-se que o mundo é ordenado e lógico, de modo que a classificação devecorresponde a esta ordem, onde cada coisa já tem sempre o seu lugar reservado. Ou

81

acredita-se que o mundo é logicamente ordenado pela razão. Isto irá refletir-se emuma orientação para ordenação documentária (classificação de documentos).

A classificação de documentos que segue tal orientação pressupõe que tododocumento já deva ter seu lugar previsto no esquema de classificação. Este modo deconceber o mundo, o conhecimento e seus produtos não admitem mudanças outransformações na realidade, que é tida como "dada" e "a ser conhecida porpreenchimento". Assim é que Foucault argumenta que a noção de progresso aindanão está aí instalada. Temos uma ordem hierárquica do tipo: Deus/ Arcanjos/ Anjos/Homens/ Animais/ Plantas. Mas tal ordem não supõe a transposição de um patamarda hierarquia a outro. Ora, as dificuldades encontradas para classificar em esquemasdesta natureza levariam a questionamentos.

Mas a diversificação e o entrecruzamento dos conhecimentos, além da demandacrescente por serviços documentários especializados, não combinam bem como estetipo de instrumento. Mudar, progredir, evoluir são termos não muito compatíveis coma fixidez destes esquemas. Entretanto, é interessante observar que no plano daspossibilidades de intercâmbio e de organização física, as classificações universais (eeventualmente também as por ciências) não parece fácil encontrar um substituto.

Os sistemas de classificação mono-hierárquicos, que podem ser universais ouespecíficos, são linguagens documentárias extremamente úteis quando se trata de darum primeiro formato de organização a uma massa documentária, porque nos exigepensar em termos de grandes categorias em vista de um uso futuro. Eles servem,também, como base para a geração de outras linguagens documentárias, como é ocaso do tesauro.

Primeiro é necessário que já se tenha uma massa documentária, uma coleção ou umacervo que demande de nós uma ordem. Dito de outro modo, não se cria umaclassificação, nem qualquer linguagem documentária, sem objetos previamente dados,para depois adquiri-los e organizá-los. Os objetos fazem parte da análisedocumentária em vista da criação de um sistema classificatório.

Elas também apresentam a vantagem, para quem trabalha com objetos, porquefornecem uma posição entre outros objetos, uma vez que cada objeto só pode ocuparum único lugar. Os dois grandes problemas das classificações são: primeiro ela seruma estrutura fechada que permite um crescimento apenas interno (detalhamento) esegundo é a rigidez mono-hierárquica, que falei ser útil, mas é impeditiva de outrasrelações. Quando criamos um conjunto de categorias, elas devem abranger arepresentação de todo o universo de objetos a representar. É como quando se pensounos três reinos da existência: reino vegetal, reino mineral e reino animal. Qualquerexistente tem de ser passível de encaixe num destes três reinos. Cada existente novopode gerar subdivisões na categoria, mas deve estar numa delas.

Isto quer dizer que se um objeto, por exemplo, uma luneta, está dentro de umahierarquia na categoria de instrumentos de observação astronômica, não poderáingressar em outra sub-categoria, por exemplo, instrumentos de tempo. Supondo queuma luneta específica em uma coleção, que servia obviamente à observação dosastros, fosse também utilizada como auxiliar na marcação do tempo, esta relação nãopoderá ser representada senão por um artifício que quebra o princípio mono-hierárquico.

De qualquer modo, constituir um sistema de classificação para objetos de um museu,sem descer a grandes detalhes (que poderão ser cobertos por outros instrumentos),serve para separá-los em grandes blocos e sub-blocos que também podem serutilizados na recuperação, desde que ao sistema tenhamos atrelado algum códigonumérico decimal, que acaba contemplando um número único para cada objeto.Vejamos:

82

Fig. Arranjo de Objetos de um Museu de Astronomia em esquema classificatório

Imaginemos este museu organizado por instituições de astronomia no Brasil. Paracada grande categoria colocamos uma divisão por: trajetória histórica da instituição,astrônomos que delas participaram e objetos e instrumentos de astronomia. Bem, tudoo que for de astronomia no país e que não estiver contido nestas instituições depesquisa fica de fora. Será tão fácil assim separar documentos que fazem parte dabiografia de um astrônomo da trajetória histórica da instituição que ele participou? Ecomo faremos caso um ou mais astrônomos tenham mudado de instituição? O mundoestá cheio de ornitorrincos. Bem, mas já demos uma ordem ao acervo e isto é mais doque uma massa documentária sem qualquer tratamento.

Como a criação de categorias é um ato arbitrário (ao menos que se pense que omundo tem uma ordem em si), os mesmos objetos podem ser ordenados porcategorias distintas, servindo a finalidades também distintas. Imaginemos o mesmogrupo de elementos: vegetais e animais da fauna e flora brasileiros. Eles podem serorganizados segundo uma taxonomia da biologia para fins de estudo desta área. Elestambém podem ser organizados por biomas brasileiros a fim de fornecer elementospara estudo do ecossistema. Vejamos:Taxonomia da Biologia

REINOS

[...]

[...]

[...] Pássaro X CupuaçuFig: Organização dos Seres Vivos por Reinos

Instituição A Instituição B Instituição H Instituição n

[...] [...]

Trajetória histórica

Astrônomos

[...]

Objetos e instrumentos

Biografia Produção Acadêmica

MUSEU DA ASTRONOMIA BRASILEIRA

Animais Vegetais

Mamíferos Aves

Mo

Répteis

Fu

Esterculináceas

83

Neste esquema taxonômico, não há como aproximar o cupuaçu do pássaro X, que nobioma amazônico tanto se alimenta destes frutos como promove a difusão da planta.

Já numa organização por biomas, os pássaros não estaria todos reunidos, masseparados por biomas. Teríamos:

BIOMAS BRASILEIROS

[...]

[...]

Pássaro X Cupuaçú

Uma vez que tratamos dos mesmos objetos (cada item representado), é possívelarticular dois sistemas de classificação a partir deles. Deste modo, para pesquisa,tanto se poderia consultar o acervo a partir da organização da biologia como pelaorganização por biomas. Observe-se, no entanto, que o problema da mono-hierarquianão é superado.

Amazônico Caatinga Cerrado

84

10.2 Vocabulários

Para compensar as dificuldades de relação que encontramos em sistemas mono-hierárquicos pode-se lançar mão dos vocabulários controlados que permite o acessoalfabético, ao invés de sistemático aos objetos e documentos das coleções.

Um vocabulário controlado é um conjunto de termos, apresentados em ordemalfabética, que devem ser utilizados para indexação dos documentos. Pode tambémser um pequeno conjunto de termos alternativos, para um quesito específico, dentre osquais o catalogador deve escolher um para descrição do documento.

No primeiro caso devem estar presentes os termos preferidos (p.ex. calçados) queserão utilizados na indexação ou catalogação, e os termos não preferidos (sinônimosou quase sinônimos) que devem remeter ao termo preferido (por link ou por ficha VER)e ainda poderá ou não contar algumas regras de combinação destes termos. É precisoter clareza, aqui, quando realmente trata-se de termos ou objetos consideradossemelhantes ou sinônimos ou quando se trata de mais de um tipo de objeto.

A indexação poderá ser feita atribuindo-se ao item em questão tantos termos quantosejam seus descritores, permitindo ao usuário, durante a busca por assunto, reunirtermos. Diz-se que há pós-coordenação de termos. Ou pode-se previamente indexararticulando os assuntos (pré-coordenação), a partir de regras determinadas. Porexemplo, na descrição da indumentária militar pode constar como regra de uso dovocabulário de um quesito: combinar termos na indexação os termos, utilizando o maisespecífico primeiro e o mais amplo em segundo:

Traje de gala – marinhaMarinha – traje de gala

Observe que utilizar palavras isoladas para combinação de termos na recuperação (aoinvés de na indexação) pode resultar em falsas noções:

Água e Tratamento Isto significa água de tratamento ou tratamento de água?

A construção de um vocabulário, além de ter em vista os objetivos ou finalidades doMuseu, deve contar com alguns suportes como:

i) um esquema de classificação, mesmo que não seja muito detalhado, que auxilia navisualização dos conjuntos e subconjuntos de objetos das coleções;

ii) da observação dos tipos de objetos e das necessidades de detalhamento de seuscomponentes, ou do material utilizado, ou do estilo etc., que servem para adiferenciação e reunião dos documentos.

iii) as necessidades dos usuários (lembremos que não podemos ter uma diversidadegrande de usuários, porque isso implicaria em uma diversidade de objetivos).

iv) os termos mais comumente utilizados pelos especialistas (garantia literária) e ostermos mais utilizados pelos usuários (garantia do uso).

v) se existe algum padrão descritivo já utilizado por museus nacionais, ou padrõessugeridos por órgãos internacionais, que facilite o intercâmbio.

Quando, durante o uso de um vocabulário, o indexador verifica que há impossibilidadeou inadequação na descrição de muitos objetos, é hora de reformular o vocabulário,sob pena de se reunir itens diversos sob um mesmo descritor. Entretanto, não é umatarefa das mais fáceis manter um vocabulário atualizado e coerente ao longo dotempo. Como os termos não estão articulados por relações hierárquicas, como é ocaso das classificações, não será muito difícil incluir termos sem um controle

85

adequado. Além disso, este tipo de instrumento é muito pouco instrutivo aosindexadores, já que não lhes indica a ordenação dos objetos ou dos assuntos.

10.3 Tesauros e Ontologias

Os tesauros são instrumentos de organização e representação do conhecimento quecircunscrevem campos específicos (e não o universo do conhecimento) e foramdesenvolvidos na tentativa de conjugar as vantagens da noção de estruturahierárquica dos esquemas de classificação, as diferentes relações e pontos de vista(facetas) e o vocabulário.

São ferramentas instrutivas para os indexadores, uma vez que seu uso e consultapermitem que aos poucos se vá compreendendo a organização conceitual do campocoberto. São resultado de pesquisas do vocabulário e suas relações tanto comoaparecem na literatura de um campo (botânica; história; artes) como da pesquisa dostermos e relações conforme aparecem nas pesquisas feitas pelos usuários sobre adocumentação museológica.

Apresentam (ou devem apresentar) duas formas de ordenação: a sistemática, que éum plano geral de classificação, e a alfabética. Estes planos permitem a verificação docontexto geral em que se insere um termo, assim como permite consultar os termosespecíficos constantes em uma classe. Na ordenação alfabética, os termos sãoapresentados dentro de contextos relacionais com outros termos, a saber:

Termo e sua definição

Termo Genérico, hierarquicamente superior ao termo. Aqui poderemos ter umúnico termo genérico ou mais, no caso de poli-hierarquia, embora essa deva serevitada.

Termos específicos que são os termos hierarquicamente subordinados aotermo.

Termos relacionados, ou seja, que têm relação não hierárquica com o termo13.

Usado para: onde se listam os termos não preferidos e que são sinônimos ouquase sinônimos.

Use: quando o termo não é preferido e deve-se utilizar um sinônimo preferido.

Notas Explicativas. As notas devem conter as aplicações cabíveis no caso depolissemia do termo e também "[...] indicam os pontos de vista pelos quais o conceitofoi hierarquizado." (DODEBEI, 2002, p. 108). Portanto a noção de faceta está aquiimplicada.

Com a estrutura flexível que apresenta relações hierárquicas e não-hierárquicas, otesauro é um instrumento de mapeamento de um campo do conhecimento (suaorganização) e permite uma indexação mais consistente, na medida em que oindexador tem uma visualização mais ampla desta estrutura. Do mesmo modo, a

13 O uso dos termos relacionados podem ser limitados aos que aprecem no tesauro, de modo que não se lança mão de novas relações, ou deve haver uma política para a inclusão do novo termo relacionado no corpo do tesauro. O uso pode não ser limitado, de maneira que o indexador pode fazer relações entre termos existentes no tesauro.

86

recuperação de documentos, a partir de busca de termos específicos, permite suavisualização nos diversos contextos em que podem se apresentar.

Outra vantagem que o instrumento apresenta é a possibilidade de inclusão maisadequada e precisa de termos-conceito. Se o conhecimento em qualquer campo édinâmico, este dinamismo deve aparecer nos termos utilizados no campo e na suarelação. Comparativamente aos vocabulários, a inclusão de um novo termo no tesauroexige sua definição e a pesquisa de relações que ele mantém com outros conceitos,que deverá ser explicitada. Ora, isto garante que não estamos utilizando um sinônimode um termo já existente e que o termo-conceito realmente está inserido no campo deconhecimento.

Infelizmente, o tesauro não tem sido amplamente utilizado como ferramenta depesquisa nas buscas de informação, ficando seu uso quase sempre restrito ao corpoprofissional das unidades de informação. Sua disponibilização como ferramenta depesquisa deve privilegiar a visualização dos conjuntos de documentos encontrados emcada relação.

No meio eletrônico, a oferta de uma interface que permita visualizar os resultados das buscas por assunto no esquema relacional do tesauros, deve ser um trabalho conjunto feito entre o museólogo, o bibliotecário, o analista de sistemas e o designer. Vamos apenas dar uma possibilidade de exemplo visual.

Termo buscado: INFLAÇÃO

Recuperação na tela:

Procure na Internet os seguintes tesauros: “Tesauro de Folclore” e “Thesagro”, ambosnacionais. Procure navegar neles e veja o que acha de suas diferentes interface. Qualvocê considera mais instrutiva?

INFLAÇÃO DE CUSTO 30

INFLAÇÃO DE DEMANDA 52

BASE MONETÁRIA 20

CÂMBIO 12

INFLAÇÃO 210 15 52 30

MACROECONOMIA

GASTOS PÚBLICOS 40

POLÍTICA MONETÁRIA 30

POLÍTICA FISCAL 6

INFLAÇÃO INERCIAL 15

87

As especificações das quantidades de documentos sobre inflação, sobre inflação emgeral ou sobre inflação e outros assuntos, podem ser explicitados de maneira a facilitara escolha durante a pesquisa. Observe que um mesmo texto pode estar indexadocomo sendo de "inflação de demanda" e "gastos públicos". O que interessa aqui,assim como no exemplo dado por Araújo na classificação facetada, é a possibilidadede apontar os diversos ângulos ou aspectos tratados no documento.

Outro interessante instrumento que vem sendo desenvolvido pela Ciência daComputação e que está sendo incorporado aos estudos da CI são as Ontologias.Desenvolvidas para meios eletrônicos, as ontologias podem ser disponibilizadas paraaqueles que desejam indexar seus documentos a partir de um instrumento quetambém será utilizado na recuperação. Uma vez que ela também é um instrumento debusca, o uso da ontologia na indexação garantiria a recuperação do documento paraaqueles que dela fazem uso.

As ontologias são instrumentos de representação de conceitos e suas relações.

'[...] ontologia se refere a um artefato constituído por um vocabulário usadopara descrever uma certa realidade, mais um conjunto de fatos explícitos eaceitos que dizem respeito ao sentido pretendido para as palavras dovocabulário. Este conjunto de fatos tem a forma da teoria da lógica deprimeira ordem, onde as palavras do vocabulário aparecem comopredicados unários ou binários.' (Guarino, 1998). O vocabulário formadopor predicados lógicos forma a rede conceitual que confere o caráterintensional às ontologias. A ontologia define as regras que regulam acombinação entre os termos e as relações. As relações entre os termossão criadas por especialistas, e os usuários formulam consultas usando osconceitos especificados. Uma ontologia define assim uma “linguagem”(conjunto de termos) que será utilizada para formular consultas.(ALMEIDA; BAX, 2003, p.9).

Portanto, as ontologias, assim como os tesauros são instrumentos flexíveis, quepermitem acompanhar a dinâmica do conhecimento em um domínio ou campo deconhecimento.

Observe que a Ontologia CHIOS não é uma ontologia de assunto, mas de aspectosdescritores amplos (autor, proprietário, dimensões etc.) No que se refere à descriçãode assunto, uma nova ontologia (ou outro instrumento) é necessária a fim de criarconsistência neste tipo de descrição.

Mas tanto ontologias como tesauros também apresentam suas desvantagens. Umavez que se trata de uma forma de organização talhada para um domínio deconhecimento teórico ou prático, supõe-se que poderão ser feitos diferentes arranjos,conforme o domínio. Isto cria barreiras de comunicação. Vejamos 3 modos deorganizar um mesmo conjunto de termos:

88

ALIMENTOS

DOMÍNIO DOMÉSTICO DOMÍNIO DAS DIETAS DOMÍNIO NUTRICIONAL

CATEGORIA ALIMENTO CATEGORIA ALIMENTO CATEGORIA ALIMENTO

Café damanhã

Café LeitePãoBiscoitoManteigaQueijo

Alto valorcalórico

PãoManteigaBiscoitoQueijoMacarrãoArroz

Grãos ederivadosde grãos

FeijãoArrozBiscoitoPãoMacarrão

Almoço ouJantar

Arroz FeijãoMacarrãoBatataBife PeixeLingüiçaAlfacePepinoTomate

Médio valorcalórico

FeijãoBatataBife

Leite ederivados

do leite

LeiteManteigaQueijo

Carne ederivadosda carne

BifePeixeLingüiça

Baixo valorcalórico

PeixeTomatePepino

Legumes everduras

BatataTomateAlfacePepino

O problema que temos nesta categorização é o da impossibilidade decorrespondência. Assim, se alguém quer escolher alimentos com baixo nível calóriconão terá como encontrá-los nos esquemas do Domínio Doméstico e nem no doDomínio Nutricional.

REFERÊNCIAS

ALMDEIDA, Maurício B.; BAX, Marcello P. Uma visão geral sobre ontologias: pesquisa sobre definições, tipos, aplicações, métodos de avaliação e de construção. Ciência da Informação, v. 32, n.3, p. 7-20, set./dez. 2003.

ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Classificação temática para mapeamento de campos científicos:estudo de caso na área de comunicação social. In: FUGITA, Mariângela Spotti Lopes;MARTELETO, Regina Maria; LARA, Marilda Lopes Ginez de. (Org.). A dimensãoepistemológica da ciência da informação e suas interfaces técnicas, políticas e institucionaisnos processos de produção, acesso e disseminação da informação. São Paulo: CulturaAcadêmica; Marília: Fundepe, 2008, p. 253-267.

CLARKE, Stella G. Dextre. The last 50 years of knowledge organization: a journey through my personal archives. Journal of Information Science, v. 34, n. 4, p. 427 – 437, 2008. Disponível em: <http://jis.sagepub.com/cgi/content/abstract/34/4/427>. Acesso em 12 de fevereiro de 2009.

DODEBEI, Vera Lúcia Doyle. Tesauro: linguagem de representação da memória documentária. Niterói: Intertexto; Rio de Janeiro: Interciência, 2002.

KLEIN, Michael; Noy, Natalya F. A component-based framework for ontology evolution. In: -03 Workshop on Ontologies and Distributed Systems. Proceedings ... CEURWS, 2003. Disponível em: < ftp.informatik.rwth-aachen.de/Publications/CEUR-WS/Vol-71/Klein.pdf>. Acesso em: 22 de abril de 2008.

HJORLAND, Birger. What is knowledge organization? Knowledge Organization, v, 35, n. 2/3, p. 86-101. Disponível em: <http://dlist.sir.arizona.edu/2402/>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2009.

TRISTÃO, Ana Maria D.; FACHIN, Gleisy Regina Bória; ALARGON, Orestes Estevam. Sistemade classificação facetada e tesauros: instrumentos para organização do conhecimento. Ciênciada Informação, v. 33, n. 2, maio/ago. 2004.

89

11 POLÍTICA PARA ANÁLISE DOCUMENTÁRIA

Enquanto agente que participa na produção de conhecimento coletivo nas redessociais, os Museus, Bibliotecas e Arquivos devem ser também entendido comounidades produtoras (com fornecedores/fontes e clientes/usuários), cujo desempenhodependerá do estabelecimento de diretrizes e políticas administrativas que, em vistados objetivos, articule as diversas etapas de produção dos serviços de informação eproporcione um ambiente favorável ao intercâmbio entre seus profissionais.

A manutenção de uma documentação, sua coerência, atualização relativamente aosnovos documentos, às mudanças teóricas de áreas que interferem na ordenação elegitimação documental, às tecnologias disponíveis e, principalmente, a atualizaçãoem vista dos interesses dos usuários, dependem da constituição de uma política degestão da informação que se desdobra e articula o permanente estudo dos usuários ea pesquisa na literatura das áreas de cobertura.

Tal política precisa estabelecer as articulações entre os diversos integrantes dosistema de documentação, em vista de troca de conhecimentos, métodos de registrode conhecimentos produzidos na prática de trabalho e de decisões que vão sendotomadas no campo técnico.

Uma vez que a organização documental não é um fim em si, antes, serve àelaboração de produtos, serviços e eventos, a política de informação é aquela quegarante a cada técnico envolvido no ciclo de produção documental clareza das fazesdas quais depende sua parte do trabalho no ciclo documental depende e das fazesque dela dependem.

É neste sentido que Fujita e Rubi (2006) entendem uma UI como uma empresa que,“na produção” de seus serviços, possui, utiliza e cria conhecimentos. Umempreendimento produtivo não se reduz a um conjunto de tarefas pré-estabelecidas,nas quais os indivíduos são treinados para simples execução. Cada profissional utilizanão apenas seus conhecimentos técnicos (teóricos e de procedimentos), comomobiliza conhecimentos sociais e culturais, cuja configuração, mesmo que similar a deseus pares, é única. O conjunto dos saberes profissionais em um dadoempreendimento é o que se chama conhecimento organizacional14, envolvendo todasas tarefas e fases necessárias à produção do bem ou serviço em questão, é umconhecimento sobre a produção. A produção de um bem como calçados em umaempresa, por exemplo, implica que a empresa possui conhecimentos sobre aprodução de calçados, que constitui seu conhecimento organizacional.

No conjunto de etapas articuladas para a produção de serviços de informação, otratamento temático dos documentos tem em vista a geração de produtos comoíndices, notações de classificação, catálogos etc., para servirem como roteiros ouapontadores na recuperação de documentos por assuntos, temas ou objetos.

Os serviços e produtos informativos e artefatos de informação serão tão melhores ecapazes de atender às necessidades da comunidade de usuários quão melhores ascondições de compreensão dos objetivos institucionais; das redes sociais15 queconstituem esta comunidade e suas necessidades de informação; quão melhor o

14 Uma vez que uma organização não se constitui alguém que possa possuir conhecimento, otermo conhecimento organizacional é uma espécie de metáfora para o coletivo de seusprofissionais. É o que podemos entender como sujeito coletivo, na medida em que suas açõessão colaborativas e interdependentes.15 Trata-se aqui de conhecer as tensões de interesses que existem nestas redes, suas relações,temas de interesse, suas finalidades, a tipologia de informação que precisam e como asutilizam. O estudo de comunidades usuárias e de usos da informação deve fornecer as basesteóricas e os métodos para tal estudo, sendo condição fundamental para o estabelecimento de*objetivos e diretrizes da UI.

90

acesso destes profissionais ao conhecimento já produzido sobre serviços deinformação; e quão melhores forem as condições para colaboração e partilha internade conhecimentos.

No que tange às condições de acesso ao conhecimento explícito, ou passível de serexplicitado, sobre a atividade de análise documentária, pode-se fornecer acesso aoque se encontra registrado e disponível em livros e textos técnicos ou acadêmicos.Entretanto, é necessário também contar com diretrizes, normas e recomendações, quedevem estar documentadas, ou seja, uma Política.

Ter de antemão registrado um quadro claro de objetivos da UI, recomendações enormas, fundamentadas teoricamente, coerentes com o estudo da comunidade deusuários e passíveis de realização com as condições objetivas existentes (recursoshumanos, materiais financeiros etc.) é um modo de favorecer a partilha deconhecimentos, de um lado, e de garantir qualidade dos serviços, de outro.

Do mesmo modo, é necessário manter registro dos obstáculos, impasses e decisõestomadas no processo de indexação, catalogação, classificação etc. É uma maneira demanter e colocar ao dispor o conhecimento sobre que vai sendo construído noexercício desta prática. É uma memória do serviço de análise documentária, quepoderá ser mobilizado para concepção de novas normas e rotinas de trabalho. Istopermite dar respostas às dinâmicas das redes sociais que constituem a comunidadede usuários e amplia o conhecimento organizacional tanto sobre análise documentáriacomo sobre serviços de informação.

Uma vez que nesta Política não se ignore o papel das trocas e colaborações diretasentre os profissionais, deve-se também contar com estratégias que estimulem estetipo de interação entre dos profissionais que integram a unidade de informação.

APÊNDICE 1

91

A DEUSA MEMÓRIA E ALGUMAS CONCEPÇÕES DO PERÍODO ARCAICO NAGRÉCIA ANTIGA

No mito grego, Memória – Mnemosyne- é a deusa titã, mulher de Zeus, com quemteve nove filhas, as Musas16. Mnemosyne rege “o que foi”, “o que é” e “o que será”,operando duas forças: lembrar e esquecer. O esquecimento é a possibilidade dalembrança e a lembrança sempre requer esquecimentos. As Musas são o poder dapresentificação, de tirar da não existência (do não é mais ou do ainda não é) para aexistência. É graças ao esquecimento, comandado por elas, que os males podem seresquecidos (TORRANO, 2003, p. 16).

À organização social do mundo grego, antes do período clássico, em clãs/oîkoscorrespondia o mito, na ordem do conhecimento, do sagrado e do simbólico. O rei, oadivinho e o poeta eram considerados como que veículos das divindades, de maneiraque sua palavra tinha um caráter oracular. Ela revelava, era Alétheia (revelação,iluminação, verdade), quer dizer, o rei, o poeta e o adivinho eram receptores daorientação divina que não podia ser questionada, apenas obedecida (DETIENNE,1988).

O poeta mantinha a lembrança das origens (passado), dos heróis exemplares,antepassados. O poeta contava e recontava estas histórias não porque possuía umaboa memória, mas porque era instruído pela deusa Memória que concedia honra aosdeuses e aos antepassados, quer dizer, concede-lhes memória (honra).

O adivinho (Mântis) proferia suas visões, oráculos (futuro), dos quais nenhum homemou deus podiam escapar. Sua palavra já iniciava a realização do acontecimento. Odeus da vidência (também da música) era Apolo a quem os gregos erigiram umtemplo, na cidade de Delfos, chamado de Oráculo de Delfos.

O rei decidia acerca das ações e julgava os conflitos (presente), era juiz. Sua palavra,oracular, era indiscutível, não cabendo qualquer discordância. Seus decretos ejulgamentos eram como oráculos. Zeus preside os julgamentos e a virtude política.

Até a estruturação das cidades (até o início do período arcaico), o governo em tornodo oîkos era patriarcal. Com as cidades ele passa a ser oligárquico (os chefes dosclãs). A riqueza estava construída pela propriedade e produção agrícolas.

Entre os séculos VII e V a.C. os historiadores dão conta de que havia na Grécia umacrise fundiária. Os camponeses pobres, que não tinham terras, alugavam-nas para oplantio aos proprietários, pagando com uma parte da produção (não se sabe se tinhamde dar 1/6 ao dono das terras, ou se ficavam apenas com 1/6 da produção), outrosofereciam-se como servos. Sólon foi nomeado chefe do conselho que governava acidade de Atenas e teria buscado solucionar esta crise. Conforme Mossé (1989, p.137), Sólon “[...] gabava-se de ter libertado a terra escrava, arrancando as estacas dedelimitação, marca da dependência daqueles que a cultivavam, e de ter tornado livresos que suportavam aqui mesmo em Atenas uma servidão indigna, tremendo de medodiante do mau humor de seus amos.” Também criou quatro classes de renda e umtribunal popular de recursos contra as decisões das autoridades. No século VI a.C.Clísteres realizou reformas na organização do poder em Atenas, que abriram caminhopara a democracia do século V.

O Mito

16 Clio (a glória, preside a reputação), Euterpe (o deleite – preside a música), Tália (a que sempre floresce – preside a comédia), Melpômene (a que diz e canta – preside a tragédia), Tarpsícore (o prazer – preside a dança), Érato (a amável – preside as poesias lírica e erótica), Polímnia (muitos hinos – preside a oratória), Urânia (a celeste – preside as ciências), Calíope (a voz bela – é a rainha das musas). (TORRANO, 2003).

92

As histórias mitológicas, dos deuses e dos heróis, eram primeiramente transmitidasoralmente. A genealogia dos deuses e a saga dos heróis, antepassados dos gregos,eram recitadas pelos poetas (aêdo), nos poemas épicos. As forças divinas não sóinstauram a existência, mas a tudo mantêm.

Para o grego típico, mundo era harmonia e equilíbrio que se manifestava peloscontrastes que garantiam a medida justa, a ordem. Nenhum homem, nem mesmo umdeus, podia escapar ao Destino. O Destino associa-se à Justiça (Themis) e àVingança (Nêmesis) para manter o equilíbrio, o Cosmos. O Destino, mesmo que sejadramático, incompreensível, irracional, é responsável pela manutenção da ordem epela garantia da continuidade da vida. As Parcas ou Moiras eram três divindades quepersonificavam o destino humano:

Cloto <a fiandeira>, fia desde o nascimento até o fim, a trama da vidahumana. Láquesis fixa um ponto nessa trama, determinando o <tamanho>de cada existência. Ela enrola o fio, tira a sorte e estabelece a <qualidade>da vida de cada ser. E Átropos, a irremovível, corta o fio quando a existênciaque simboliza deve estancar. (PESSANHA, 1973, p. 758).

O destino não era entendido como uma força ruim ou despropositada. Inexplicável eimplacável em seus desígnios, a divindade garantia o equilíbrio.

Sempre que a ordem estabelecida é violada (por perjúrio, matricídio,parricídio, quebra das leis da hospitalidade), Nêmesis, a Vingança, age nosentido de restaurar o equilíbrio [...] O Destino confunde-se, então, com aprópria moral e atua de forma impositiva sobre os indivíduos. (Ibid., p.758).

Um exemplo da força do Destino é a história de Édipo (Anexo 2), que veio a serencenada como um gênero teatral, a tragédia grega. O destino de Édipo estáassociado ao desequilíbrio causado por seu pai, Rei Laio, ao seqüestrar uma criança.O Destino é inescapável. Quando a ordem é violada ele lança mão da vingança paracompensar, reequilibrar e ninguém pode dele livrar-se.

Mas, por volta do século VII a.C. os astrônomos- matemáticos17 gregos começavam aindagar qual seria o princípio de tudo, quer dizer, o que é que a tudo originou emantém na existência? Portanto, aqui não se trata mais de explicar a existência apartir do mito. Estes pensadores acreditavam nos deuses, mas acreditavam que haviaalgo que manteria tudo que existe, manteria a Physis (todas as coisas existentes e quese mantêm existindo, às vezes traduzido por natureza, mas é a totalidade, da qual osdeuses não estão excluídos).

Ao princípio, origem que a tudo sustenta, o grego dá o nome de arkhé (ou arché). Aarkhé é também o que mantém tudo “em comum”, em comunidade. É o que nuncapassa e que a tudo sustenta e faz existir. A transição das explicações mitológicas paraa busca da arkhé indica o início de uma mudança que iria desembocar no surgimentoda filosofia.

APÊNDICE 2

17 A astronomia era um importante conhecimento, pois relacionava-se com a atividade agrícola.

93

Mito Platônico da Criação do Homem

Era o tempo em que os deuses já existiam, mas as raças mortais ainda não existiam.Quando chega o momento marcado pelo destino para o seu nascimento, os deusesmodelam-na no interior da Terra, com uma mistura de terra e de fogo e de todas assubstâncias que se podem combinar com o fogo e a terra. No momento de trazê-las àluz, os deuses ordenaram a Prometeu e a Epimeteu que distribuíssem,adequadamente, entre elas, todas as qualidades com as quais devessem ser providas.Epimeteu pediu a Prometeu que lhe deixasse o cuidado de fazer, ele mesmo, adistribuição: “Quando ela tiver sido feira, inspecionarás a minha obra”. Dada apermissão, pôs-se a trabalhar.

Na distribuição, ele dá a uns a força sem a velocidade; aos mais fracos, atribui oprivilégio da rapidez; a alguns, concede armas; para aqueles cuja natureza édesarmada, inventa alguma outra qualidade que lhes possa assegurar a salvação. Aosque reveste de pequenez, atribui a fuga alada ou a habitação subterrânea. Aos quetorna grande em tamanho, salva-os por isso mesmo. Enfim, entre todos os dons,mantém um equilíbrio. Com essas diversas invenções, preocupa-se em impedir quequalquer raça venha a desaparecer.

Depois de ter premunido adequadamente contra as destruições recíprocas, ocupou-seem defendê-las contra as intempéries que provêm de Zeus, revestindo-as com Pêlosespessos e peles grossas, abrigos contra o frio e, também, abrigos contra o calor; e,além disso, quando fossem dormir, coberturas naturais e próprias para cada um.Calçou uns com cascos, os outros com couros maciços e vazios de sangue. Emseguida, cuidou de fornecer a cada um alimentação distinta; a uns, as ervas da terra; aoutros, os frutos das árvores; a outros ainda, raízes. A alguns atribui como alimento acarne dos outros. A estes deu uma descendência pouco numerosa; suas vítimasreceberam, em partilha, a fecundidade, salvação da sua espécie.

Ora, Epimeteu, cuja sabedoria era imperfeita, já tinha esgotado sem se dar conta,todas as qualidades com os animais e faltava, ainda, dotar a espécie humana, para aqual, por falta de petrechos, não sabia o que fazer. Estava nesse embaraço quandoPrometeu chegou para examinar o trabalho. Este viu todas as outras raçasharmoniosamente equipadas e o homem nu, sem calçado, sem cobertas, sem armas.E tinha chegado o dia marcado pelo destino em que era preciso que o homem saísseda terra para aparecer à luz.

Diante dessa dificuldade, não sabendo Prometeu que meio de salvação poderiaencontrar para o homem, decidiu roubar a habilidade artística de Hefesto [deus dametalurgia, da forja de instrumentos e armas] e de Atena [deusa da guerra] e, aomesmo tempo, o fogo – pois, sem o fogo, era impossível que essa habilidade fosseadquirida por alguém ou, de alguma maneira, fosse útil; isto feito, deu-os de presenteao homem.

Foi assim que o homem recebeu a posse das artes úteis à vida, mas a políticaescapou-lhe. Essa, com efeito, pertencia a Zeus; ora, Prometeu não tinha mais tempopara penetrar na acrópole, que era a morada de Zeus; além disso, havia, às portas deZeus, sentinelas terríveis. Mas pôde penetrar, sem ser visto, no ateliê onde Hefesto eAtena praticavam juntos as artes que amavam, de modo que, tendo roubado tanto asartes do fogo que pertencem a Hefesto quanto outras que pertencem a Atena, pôdedá-las ao homem. Foi assim que o homem veio a ter a posse de todos os recursosnecessários à vida e que, em conseqüência, Prometeu, dizem, foi acusado de roubo.

Porque o homem tinha participação no quinhão divino, foi, em primeiro lugar, o únicoentre os animais a honrar os deuses e se pôs a construir altares e imagens divinas;além disso, desenvolveu a arte de emitir sons e palavras articuladas, inventou as

94

habitações, as vestimentas, os calçados, os alimentos que nascem da terra. Mas oshomens, desse modo equipados, viveram, inicialmente, dispersos, e não existianenhuma cidade. Assim, eram destruídos pelos animais, em todas as circunstânciasmais fartes do que eles; e sua indústria, suficiente para alimentá-los, era ineficaz naguerra contra os animais, pois ainda não possuíam a arte política, da qual a guerra éparte. Procuravam, portanto, reunir-se e fundar cidades para se proteger. Mas, umavez juntos, lesavam-se reciprocamente, por não possuírem a arte política, de tal modoque recomeçavam a se dispersar e morrer.

Por isso, Zeus, temeroso por nossa espécie ameaçada de extinção, envia Hermespara trazer aos homens o pudor e a justiça, a fim de que houvesse nas cidadesharmonia e laços criadores de amizade.

Então, Hermes pergunta a Zeus de que maneira deve conceder aos homens o pudor ea justiça: “Devo distribuí-los como foi feito com as outras artes? Aquelas foramrepartidas da seguinte maneira: um único médico é o bastante para muitos leigos; omesmo acontece com os outros artífices. Assim também devo estabelecer a justiça e opudor na raça humana ou devo reparti-los entre todos?” - “Entre todos”, disse Zeus, “eque cada um receba a sua parte, pois as cidades não poderiam sobreviver se algunsapenas fossem deles providos, como acontece com as outras artes [...]” (DROZ, p.21-22, 1997).

O estudo deste e de outros mitos platônicos pode ser encontrado em DROZ,Geneviève. Os mitos platônicos. Brasília: UnB, 1997.

APÊNDICE 3

95

A Escolha do Legislador na República de Platão

Uma vez que instalada a democracia todos tinham direito à palavra e ao voto e asopiniões são diversas, como o cidadão pode julgar com independência e segurança?O mundo grego passa por transformações que vão colocando os valores, a tradiçãoem questão, os antigos valores enfraquecem-se. A filosofia metafísica colocará umaespécie de método para alcançar “valores perenes”, a partir dos quais se possaescolher com segurança, escolher com autonomia, sem estar sujeito às palavrassedutoras, instáveis e contingentes, que são um ouvir dizer, um achar que, saber semfirmeza.Em seu diálogo República, a questão de Platão gira em torno da política e justiça.Compreende que cada homem deve governar a si mesmo, ter medida, ter controle deseus desejos (afetos) que o colocam à mercê do objeto que o afeta. Medida aqui émoderação, é controle do corpo e dos desejos, das paixões. Na cidade é a moderaçãoo equilíbrio e a hierarquia entre suas funções (produtiva, militar e legislativa) quegarantem a justiça.Atenas vive um período de degradação que Platão identificará como “anarquia”(anarquia é para o filósofo uma forma degradada, um simulacro da democracia), ondereina a anomia (falta de regras, desrespeito às leis e costumes). Neste diálogo Platãoconcebe que a cidade justa é dependente da educação de seus cidadãos, portanto, ajustiça é dependente do conhecimento. Sugere que:

- Todas as crianças deveriam ser educadas pelo Estado (Cidade) até a idade desete anos, aprendendo poesia, dança e jogos que facilitem o aprendizado damatemática e da leitura rudimentares;

- Aos sete anos devem ser examinadas e selecionadas, sendo as menos dotadasenviadas às famílias da classe dos produtores para tornarem-se futurosprodutores;

- As demais serão alfabetizadas e continuarão seu aprendizado em artes marciais emilitares, até passarem por um novo exame, aos 20 anos;

- Após o exame, as menos dotadas serão enviadas para ser soldados (militares) eviverão em uma comunidade militar.

- As demais estudarão aritmética, geometria, astronomia, música, até os 30 anos.Um novo exame colocará os menos dotados na composição de funçõessubalternas da administração da cidade e no comando militar;

- Os mais aptos estudarão dialética até os 35 anos, passando a um novo exame.

- Os aprovados estudarão ética, física e política até os 50 anos.

- Em um exame final, os aprovados tornar-se-iam legisladores, quer dizer, osdirigentes políticos da cidade.

Resumo baseado emCHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia 1: dos pré-socráticos àAristóteles. 2ª ed. São Paulo: companhia das Letras, 2002, p. 305-310.

APÊNDICE 4

96

O Mito de Tót – A invenção da escrita SÓCRATES: - Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada íbis. Quanto ao deus, porém, chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a Geometria e a Astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito, Tamuz, que residia ao sul do país, na grande cidade que os egípcios chamam Tebas do Egito, e a esse deus davam o nome de Ámon. Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamuz fez a Thoth diversas exposições sobre cada arte, condenações ou louvores cuja menção seria por demais extensa. Quando chegaram à escrita, disse Thoth: “Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábio e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria”. Responde Tamuz: “Grande artista Thoth! Nem é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em conseqüência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios”FEDRO: - Com que facilidade, Sócrates inventas histórias egípcias assim como de outrasterras, quanto isso te apraz!SÓCRATES: - Caro amigo! Dizem alguns que as primeiras profecias foram feitas porum carvalho do templo de Zeus em Dodona. Os homens daquele tempo,evidentemente, não eram tão sábios como os da nossa geração, e como eramingênuos era para eles suficiente ouvir o que lhes dizia um carvalho ou uma rocha;para eles, a única coisa importante era que se lhes dissesse a verdade. Mas a ti talvezfaça diferença saber quem disse uma determinada coisa e de que terra ele é natural.Não te basta examinar se essa coisa é verdadeira ou falsa.FEDRO: - Tua repreensão é justa. Mas, com respeito à arte da escrito, acho que o tebano tinhade fato razão.SÓCRATES: - Imagina que alguém expõe por escrito as regras da sua arte e um outroaceita o livro como sendo a expressão de uma doutrina clara e profunda; esse homemseria tolo, pois, não entendendo a advertência profética de Ámon, atribuiria a teoriasescritas mais valor do que o de um simples lembrete do assunto tratado. Não éassim?FEDRO: - Perfeitamente.SÓCRATES: - O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha àpintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguémas interrogar conservar-se–ão gravemente caladas. O mesmo sucede com osdiscursos. Falam das coisas como se as conhecessem, mas quando alguém querinformar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir semprea mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entreos conhecedores mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode dizerpara quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamentecensurado, necessita do auxílio do pai, pois não é capaz de defender-se nem de seproteger por si só [...]

PLATÃO. Fedro. In: ____. Diálogos. Trad. Jorge Peleikat. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p.129-183 (Clássicos de bolso), p. 178 –179.

97