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“No tom que faz a vida”: Música, Anatomia e Fisiologia na literatura médica francesa
(1750 – 1789).
João Luiz Garcia Guimarães
COC – Casa de Oswaldo Cruz
Introdução
Na tradição pitagórica, o termo latino musica designou, nos séculos medievais, o estudo
das proporções e razões de viés matemático “que supostamente governavam tanto o cosmos
quanto os reinos humanos” (FIX, 2015:177). Ela era ensinada nas universidades junto à
aritmética, à geometria e à astronomia, conjunto que foi denominado quadrivium (lat. “quatro
vias”). Para muitos letrados a música do cotidiano nada mais era que uma forma inferior de
tentar imitar as harmonias cósmicas. Esses valores sobreviveram até o século XVIII, momento
em que o estatuto social do músico e de sua atividade foi denominado por Norbert Elias como
“arte de artesão” (ELIAS, 1995: 49). Perto da década de 1750, entretanto, muitas dessas visões
estavam em franca mudança. Já perto do fim do século XVII, a teoria musical não mais se
contentava com a aritmética e se voltava para a física graças aos trabalhos do matemático
Joseph Sauveur (1653 – 1716) e do músico Jean-Philippe Rameau (1683 – 1764). Segundo
James Kennaway, o resultado disso é que o som adquire uma materialidade inédita, passando a
ser considerado um agente físico capaz de atingir o corpo diretamente (KENNAWAY, 2012:
23).
Não por acaso, a filosofia mecanicista reinante na medicina nas primeiras décadas do
século XVIII muito ajudaria a produzir uma ideia também mecânica da ação da música sobre
os indivíduos, fato este que está presente em abundancia nas fontes que considerei neste
trabalho. A música fica associada às forças capazes de causar vibrações, movimentos e
sensações no corpo, modificando o estado de saúde do paciente. Dentro da limitada literatura
produzida nesse campo, alguns médicos assumiram posições próximas do que acabo de expor,
outros, contudo, a entenderam – dentro de um quadro teórico mais eclético – como algo ideal
apenas para tratar a melancolia; outros ainda, associaram a música à pulsação, desenvolvendo
métodos de medir os batimentos utilizando a escrita musical. Mantendo em vista as possíveis
divergências teóricas entre os seus escritos, uma constante é a presença de um ambiente cultural
rico em que novas tendências e estilos musicais transparecem em alguns desses textos.
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Embora se tenha falado exclusivamente do curso das ciências do no século XVIII,
acreditamos que as mudanças socioculturais – no gosto musical, na difusão de práticas culturais
pelas camadas sociais, etc. – que se encontram em curso na sociedade francesa por volta de
1750 tiveram enorme influência na produção das visões terapêuticas destes autores. Em outras
palavras, todos os textos refletiriam certos elementos constitutivos da cultura musical francesa,
cultura esta que se desenvolvera em relação com os valores de uma sociedade de corte, como
denominaria Norbert Elias (2001). Por isso, as ideias sobre música – e principalmente sobre a
“boa música” – estavam impregnadas de valores e visões de mundo. Além disso, as próprias
óperas podem ser pensadas como a “encenação musical de crenças e identidades”
(GEOFFROY-SCHWINDEN, 2015: 26).
A música na sociedade parisiense do século XVIII
A década de 1750 ficou marcada na capital francesa como um momento de profundas
tensões políticas. Interconectado com esses acontecimentos estava a politização, ao longo do
século XVIII, de esferas antes não atingidas por esse fenômeno, principalmente a da atividade
musical. A historiografia da música nesses anos identificou um importante acontecimento que
consistiu em uma guerra de panfletos em torno de dois estilos musicais que tinham o favor dos
setores sociais cuja relação não deixava de apresentar algumas potencialidades de conflito. As
virulentas críticas ao estilo francês – sobretudo o operístico – presentes na Lettre sur Omphale
[Carta sobre Omphale], de Melchior Grimm (1723 - 1807 )1 desencadearam a famosa Querela
dos Bufões (GOLDET, 1997: 501)2.
Fenômeno político tanto quanto artístico, ela teve relevância porque o partido
enciclopedista – desde o início sob ataque cerrado dos religiosos e conservadores
(BADINTHER, 2007: 258) – se utilizou da crítica ao estilo francês e ao teatro de ópera nacional
regulamentado pela poderosa Academia Real de Música para criticar indiretamente o
stablishment político.
1 Omphale, opera em estilo francês de André-Cardinal Destouches (1672 – 1749). 2 Os Bufões eram uma trupe de atores italianos que se instalara no teatro da Academia Real de Música
e representara La Serva Padrona de Giovanni Pergolesi (1710 – 1736), causando instantânea sensação
no público da capital. O sucesso da peça é compreendido por diversos historiadores como o estopim da
guerra de panfletos que se seguiu. A Querela dos Bufões também é conhecida como Guerra dos Cantos
(Guerre des Coins) pelo fato de que os partidários dos dois estilos se reuniam sob os camarotes do rei
ou da rainha – este apoiava naturalmente o estilo nacional enquanto aquela amava os italianos – para
defender seus artistas e atrapalhar os do canto adversário.
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Os apoiadores da instituição real defenderam a ópera francesa, forjada nos
princípios do classicismo francês e da ideologia absolutista, enquanto os
proponentes do iluminismo viam a ópera italiana como um veículo para
ataques subversivos ao estabelecimento (HIGGINS, 2012: 550).
Não havia nada de que os franceses se orgulhassem mais do que sua ópera, executada
na Salle du Palays Royal, espaço sede da Academia. Em vários sentidos, a ópera francesa era
um espetáculo de corte, refletia os valores e as visões de mundo de uma aristocracia opulenta
regida por uma etiqueta que determinava várias características da apresentação (JOHNSON,
1995: 10). Para os partidários da música italiana, frequentadores de salões e filósofos
enciclopedistas, a ópera parecia representar o estado francês (HIGGINS, 2012; 551); não se
podia falar mal do espetáculo. Em A Nova Heloísa (1761), Rousseau comentava que a ópera
francesa era um “monumento à magnificência de Luís XIV”, e que poucos se aventuravam a
criticá-la, pois “tudo pode ser transformado em ponto de disputa aqui, excetuando música e
ópera” (ROUSSEAU apud HIGGINS, 2012: 551).
Do outro lado do campo do campo de batalha, o partido que defendia a tradição
operística francesa, fundada por Jean-Baptiste Lully (1632 - 1689) sob os auspícios do Rei Sol,
via a ópera italiana como frívola, excessivamente irreverente e, o que é mais, uma verdadeira
ameaça à sua tradição musical, sua língua e ao seu estilo de vida3. O que tornava toda a situação
mais absurda era o fato de que a ópera italiana parecia fazer sucesso exatamente por essas razões
e, para piorar drenava receitas das companhias de teatro francesas (HIGGINS, 2012: 551; 559).
Os defensores da tradição lullista foram descritos por Rousseau como uma “inquisição não
menos arbitrária do que severa” (HIGGINS, 2012: 552). Diderot mostra uma atitude bastante
semelhante com relação aos membros do stablishment no verbete “Partidário” da Enciclopédia:
“Aquele que abraçou o partido de alguém ou alguma coisa; houve um tempo em que se pensou
3 Além disso, os comediantes italianos que seguiam o estilo comedia dell’arte haviam sido expulsos da
França por Luís XIV em 1697 após terem sido advertidos diversas vezes pela polícia. Eles haviam sido
acusados de apresentarem indecências e licenciosidades nas suas comédias, criticar autoridades reais e
membros da família real, o que parecia ferir a pureza que se esperava de um teatro subvencionado pelo
Rei e coparticipe na construção de sua imagem. O banimento não teria efeito, uma vez que os atores
italianos passaram a atuar nas proximidades de Paris nos Teatros de Feira, onde representavam peças
satíricas e ópera-comiques apesar das tentativas reiteradas dos teatros oficiais de proibir sua prática. Em
1709, os seus espaços nas feiras foram destruídos por ordem do Regente, e em 1744 um banimento
definitivo fez com que os italianos fossem totalmente removidos de cena. Assim, a representação dos
Bufões em 1752 adquire importância devido aos vários anos de ausência dos italianos.
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tratar aqui dos partidários da música italiana como se fossem criminosos de estado”
(DIDEROT, 1765: 105).
Os defensores da tradição vão reunir-se, a partir de 1753, atrás do músico e teórico
Jean-Philippe Rameau. Ele ficou conhecido como grande sistematizador, sobretudo após a
publicação de seu tratado Traité de l’harmonie réduite a ses príncipes naturels [Tratado da
harmonia reduzida a seus princípios naturais], em 1722.
Pode ser evidente para nós, mas não o era, de maneira alguma, na época. Um
som jamais é puro, ele é a combinação de um som fundamental com sons
secundários que chamamos de “harmônicos”. O achado de Rameau consistiu
em explorar até as últimas consequências o fato, comprovado empiricamente,
de que o acorde perfeito maior constitui-se dos primeiros harmônicos naturais.
Assim, toda a lógica da composição musical clássica vê-se fundada na razão.
Um homem do século XVIII precisava disso para sentir-se à vontade. Em
1722, Rameau voltou a instalar-se em Paris de onde não mais arredaria o pé.
Já se tornara celebre, mas somente como teórico e filósofo; para a cabeça de
seus contemporâneos era difícil aceitar que Rameau fosse “também” músico.
É que naquela época os compositores não tinham habito de divagar
longamente sobre a teoria; dali para a frente as coisas mudaram
(BEAUSSANT, 1997: 494).
A importância do estudo de Rameau foi capital, pois o músico conseguiu unificar
teoricamente a prática composicional de seu tempo, dotando-a de princípios físicos, em um
estilo que conquistou a simpatia da Academia Real de Ciências: esta emitiu um parecer
favorável ao seu trabalho em 1749. Esse momento viu um rápido flerte do músico com o partido
filosófico, mas as pretensões de Rameau de fundamentar a música em bases naturais – um
“princípio da harmonia” presente na natureza e capaz de explicar a prática musical e informá-
la – era visto como excessivamente ambicioso e insuficientemente fundamentado pelos
enciclopedistas (CHANDLER, 2017: 19).
Apesar da rusga com Diderot e d’Alembert, o trabalho de Rameau já gozava de intensa
vulgarização; esse era o momento em que esse tipo de investigação ganhava as prensas e atrai
cada vez mais o público (IORDANOU, 2011: 177). A partir de 1733, o músico também
começara a se destacar como escritor de óperas, trazendo algumas reformas para a orquestra da
Academia Real de Música e atingindo uma fama estrondosa que durará quase incólume até a
Querela. Rameau assume a defesa do estilo francês, do qual ele era um praticante e ao mesmo
tempo um reformista moderado após a publicação da virulenta Carta sobre a música francesa
de Rousseau.
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Em 1753 boa parte dos ânimos já avia se acalmado, estado que a Carta logo reverterá.
Rousseau a conclui afirmando que a música francesa era incapaz de representar
verdadeiramente as paixões da alma – à época, um dos paradigmas artísticos maiores de todas
as artes –, sobretudo porque tinha uma harmonia complexa demais; as execuções da orquestra
abafavam o poder de tocar o coração que pertencia apenas à melodia. Longe de ser a descoberta
de um princípio seguro para tocar o coração humano pela semelhança das consonâncias com as
nossas paixões, a harmonia era apenas uma forma de compor música agradável, mas não
sublime ou voluptuosa. Concluindo a Carta, o genebrino afirma “que os franceses não têm
música e não podem tê-la, ou, se alguma vez a tiverem, será tanto pior para eles” (ROUSSEAU,
2005: 37).
É interessante notar que a música que Rousseau defendia estava tipificada, para ele, na
forma de composição italiana, mais leve, tragicômica e prosaica em seu enredo; ademais, a
harmonia complexa, campo de Rameau por excelência, era vista como um “exercício de
colégio” (ROUSSEAU, 2005: 37). Nem Lully escapa das críticas do enciclopedista, de modo
que Rameau se sente profundamente provocado e responde, no ano seguinte, com suas
Observations sur notre instinct pour la musique et son principe (RAMEAU, 1754). Nos anos
seguintes, ele também publicou correções aos artigos da Enciclopédia, os Erreurs sur la
musique dans l’Encyclopédie (RAMEAU, 1755) e os Suite des erreurs sur la musique dans
(RAMEAU, 1765). Neles, o músico acusa a Rousseau de subverter propositalmente os
princípios de sua ciência musical (O’DEA, 2011: 109). O resultado desse conflito foi que, pelo
fim da década de 1750, os enciclopedistas estavam completamente distanciados de Rameau.
Além disso, “o término e o resultado do debate entre Rameau e seus oponentes” contribuiu para
definir “o gosto musical francês durante as décadas seguintes” (NEUBAUER, 1992: 121).
Música e Medicina
Jean-Joseph Ménuret de Chambaud se formou em Montpéllier, universidade que por
volta dos anos 1740 vinha propagando um novo tipo de fisiologia. O modelo de compreensão
mecânica do corpo já não era decerto o mais popular, contudo, ele ainda compunha em boa
parte a base da nova escola – conforme Thomas Wolfe, essa fisiologia seria mais um
“mecanicismo expandido” (WOLFE; TERADA, 2008: 535). Um arsenal conceitual renovado,
construído principalmente por Théophile de Bordeu (1722 – 1776), Louis de Lacaze (1703 –
1765) e Paul-Joseph Barthez (1734 – 1806), visava superar a dependência de modelos vindos
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das matemáticas e ultrapassar uma linha traçada havia muito entre o homem físico e o homem
psíquico – o homem “moral”, no dizer dos letrados. O campo da moral havia sido delegado a
confessores e filósofos, o médico até então se preocupava quase exclusivamente com o corpo,
entendido através das leis gerais da mecânica; as operações corporais eram pensadas como
sendo estritamente dessa natureza. Outro elemento de destaque é a reabilitação dos “seis não-
naturais”, efeito de um movimento europeu de recuperação do hipocratismo (RILEY, 1987: 9).
Os não-naturais passam a assumir um peso importante na etiologia das doenças; as emoções,
no caso da música, eram uma via importante de ação. Segundo John Neubauer, “a maioria dos
escritores do século XVIII pensaram que os sons e as emoções estavam unidos por leis naturais”
(NEUBAUER, 1992: 90).
Ménuret foi um grande sintetizador da Escola de Montpellier, tendo colaborado com a
Enciclopédia de Diderot a partir do tomo VIII até o XVII (c. 1758 – 1765), contexto em que
produziu cerca de 90 verbetes. Neles, os ensinamentos de Barthez, Lacaze e Bordeu estão
sucintamente resumidos e aplicados aos diferentes males humanos, como a mania, a melancolia
e as doenças inflamatórias. Ménuret, curiosamente, dedicou bastante tempo para produzir uma
teoria da aplicação da música ao tratamento de doenças diversas: o verbete “Efeitos da Música”
(DE CHAMBAUD, 1765: 903-909). É possível traçar, no seu pensamento, uma divisão precisa
entre os novos interesses dessa fisiologia e o mecanicismo; de acordo com ele, a música age no
homem de duas maneiras: uma delas é puramente mecânica, a segunda, diz respeito à
sensibilidade da “maquina humana” (DE CHAMBAUD, 1765: 907).
A palavra sensibilidade é um conceito fundamental da Escola de Montpellier, pois é
precisamente essa propriedade que caracteriza o ser vivo enquanto tal: é um ser dotado de
movimento e sentimento. Anatomicamente, a música afeta o homem em suas fibras (nervos e
músculos), que são como tantas cordas esticadas – à semelhança de um instrumento musical –
e que vibrariam em consonância com os sons, produzindo movimentos que, de acordo com a
sensibilidade individual, poderiam causar mais ou menos prazer e assim, induzir estados
emocionais terapêuticos. Um melancólico precisa de músicas alegres, um frenético precisa de
músicas lentas; elas devem ser adequadas ao estado do paciente. Em todo esse processo, a
sensibilidade é condição sine qua non do tratamento pela música: ela é a capacidade das
menores partes do ser vivo de serem afetadas, movidas e de reagirem provocando também
movimentos e efeitos no corpo.
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Dupla forma de ação da música: pelo movimento e pelo sentimento, canais que
caracterizam o ser vivo como ser que se move e sente. A fibra é, como partícula elementar do
corpo, dotada de sensibilidade e de tônus. Esses elementos já haviam sido reunidos por Bordeu
em suas primeiras pesquisas:
[...] aos nervos de um cadáver falta apenas uma coisa para que eles possam ter
ação por si mesmos, que é estar colocados no tom que faz a vida (BORDEU,
1751: 200).
A sensibilidade une o físico ao moral, na medida em que as partes sensíveis do corpo
vivem em uma troca de ações e reações. Na verdade, existem uma forte tendência redutiva do
segundo para o primeiro: o próprio Ménuret diz que a sensibilidade é estritamente redutível à
forma de ação mecânica. O médico define a música como um conjunto de sons organizado
pelos “princípios da harmonia” (1765: 907). O vocabulário utilizado aqui é, como se pode notar,
inspirado no trabalho de Rameau. Mas nem tudo é tão simples: há um outro registro em seu
discurso que mostra a tensão entre as visões rameauistas e rousseaunianas (ou dos
enciclopedistas), que se caracteriza pela crítica ao estado da música francesa. Ao falar da
música de seu tempo, Ménuret usa termos bastantes pessimistas. Ecoando o Discurso
Preliminar, ele comenta:
Ao prazer que excita a Música, pode-se unir seu efeito sobre as paixões, parte
em que a música moderna é muito inferior à antiga, sem dúvida pela simples
falta de atenção de nossos músicos (DE CHAMBAUD, 1765: 908).
A música antiga era “simples” e mais “imitativa”; escorada no patético, pouco
informada dos “princípios da harmonia”, ela se voltava mais para “agitar o coração, para mover
as paixões, do que para satisfazer a mente e inspirar prazer” (1765: 904). Deve-se notar, nesses
trechos, a associação da música moderna à uma complexidade que se relaciona diretamente
com a harmonia; assim, Ménuret mobiliza argumentos de ambos os partidos em disputa, por
razões diferentes. Suponho, primeiramente, que adote a nova teoria harmônica por sua
popularidade e sua aceitação ampla (mesmo Rousseau opera dentro do seu modelo, mas com o
objetivo de criticá-lo e miná-lo); havia, contudo, um sentimento muito forte de cansaço com a
música francesa e com os modelos que a Academia Real de Música impunha às novas
composições, expresso no argumento da falta de dramaticidade das óperas encenadas no Palais
Royal. As camadas médias e mais humildes da população, à essa época, se deleitavam nos
teatros da Feira Saint Germain, onde o teatro italiano sobrevivia sob perseguição
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(ISHERWOOD, 1978: 303). As óperas italianas – tal como a Serva Padrona dos Bufões – eram
encenadas na Academia, onde só encontravam concorrência nos balés, que ainda atraiam
muitos espectadores do espetáculo francês.
À época em que Ménuret redige seu verbete, a tragédie lyrique soçobrava.
Interessantemente, a própria estreia de Rameau como músico nesse gênero causou
estranhamento pelo pouco costume que existia dos teóricos serem compositores e vice-versa;
esse foi o fato que havia trazido glória à Rameau junto aos enciclopedistas, para os quais a
filosofia havia finalmente feito progressos no campo da música, mas para quem o valor desses
progressos não era tão grande quanto o que o compositor queria dar a entender. Talvez esses
elementos expliquem a imbricação dos dois discursos sobre a música em Ménuret, mas para
ficar mais claro o contraste, podemos evocar o texto de Tissot sobre a terapia musical. Esse
médico de origem suíça passara por Montpellier entre 1745 e 1749 e escreveu dois tratados
onde o tema da terapia musical é abordado: o Traité des nerfs et ses maladies (1784) e De
l’influence des passions de l’âme dans les maladies (1798). Vejamos como esses livros podem
contribuir para a discussão.
Gosto musical em Tissot e Ménuret
Enquanto Ménuret não recomenda nenhuma obra específica para o tratamento musical,
Tissot recomenda explicitamente ouvir as óperas de Rousseau. Indo mais longe, ele cita um
trecho do Ensaio sobre a Origem da Línguas, onde o genebrino havia feito uma importante
crítica das teorias harmônicas. Nesse trecho, Rousseau aponta que nos efeitos da música, os
“nervos não tem tanta importância quanto o espírito que os dispõe”. Assim, quanto ao ouvinte,
se faz “necessário que ele ouça a língua que se lhe fala, para que aquilo que se lhe diz o possa
mover” (ROUSSEAU apud TISSOT, 1798: 59).
A naturalização e a universalização da harmonia, depreendida dos modelos de Rameau
está totalmente fora de questão aqui; Ménuret admite que o homem traz uma “espécie de regra”
da harmonia ao nascer; outro médico, seu contemporâneo e coeducando em Montpellier,
Joseph-Louis Roger (m. 1761), exprime a mesma ideia. Quando fala da preferência por um
estilo musical em detrimento de outros, Roger comenta:
Nós poderíamos crer que esses homens receberam da natureza princípios da
harmonia diferentes dos nossos. A natureza lhes deu os mesmos meios que a
nós; mas esses meios, tendo sido diversamente modificados de acordo com o
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caráter particular e o gênio próprio da sua nação, eles procuram prazeres
acomodados a sua maneira de sentir (ROGER, 1803: 132).
A diferença fundamental está, primeiramente, na ausência de comentário harmônico em
Tissot. Em segundo lugar, as diferenças de gosto são atribuídas, em Ménuret e Roger, ao
sentimento e à organização física (as fibras nervosas, ou os músculos) enquanto que em
Rousseau e Tissot ela adquire um caráter mais linguístico-cultural (GOLDET, 1997: 505). O
genebrino discorda totalmente de que a diferença no gosto seja uma questão de nervos:
“Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que despertam em
nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da música, nem noção de seu
poder sobre os corações” (ROUSSEAU, 1978: 191). As instruções dadas por Ménuret, ademais,
são voltadas para a produção de uma música talhada ao modo de sentir do paciente, de caráter
variado demais para identificarmos um estilo ideal em detrimento do outro: os prazeres da
harmonia e as convulsões passionais não são opostos, mas complementares.
O Homem-Instrumento, ou o modelo vibratório dos nervos
O pensamento francês sobre a fisiologia se vê, com frequência, povoado por imagens
musicais. A analogia com a máquina, base do projeto mecanicista, ainda é uma relevante
hipótese heurística: é preciso estudar o corpo do mesmo modo com que um relojoeiro monta e
desmonta um relógio. É nesse sentido que as analogias mecânicas não são meras analogias, mas
modelos de inteligibilidade do homem. Espalhados pelos autores médicos franceses que
tratamos aqui se encontram argumentos muito semelhantes e que estabelecem conexões entre
diferentes estirpes de discursos médicos: anatomia e fisiologia as fibras, a doutrina de
Montpellier e mesmo a tradição hipocrático-galênica. Delas, extraímos uma significativa
concordância quanto ao modo de funcionamento da música no homem, através da sonoridade:
Se não se considerar o corpo humano como nada mais do que um conjunto de
fibras mais ou menos tesas, e de licores de diferentes naturezas, feita a
abstração das suas sensibilidades, suas vidas e seus movimentos, perceber-se-
á sem dificuldade que a Música deve fazer o mesmo efeito sobre as fibras que
aquele que ela faz sobre as cordas de instrumentos contíguos; que todas as
fibras do corpo humano serão postas em movimento; que aquelas que são mais
tesas, mais finas e mais ágeis serão preferencialmente afetadas, e que aquelas
que estão em uníssono o conservarão por mais tempo [...] (DE CHAMBAUD
1765: 907).
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A expressiva descrição de Ménuret põe em jogo a analogia entre as fibras e as cordas
dos instrumentos. Seu amigo e coeducando, Joseph-Louis Roger, descreveu o mesmo fenômeno
da seguinte maneira:
Dentre os sólidos, aqueles que têm mais semelhança com as partes do corpo
humano são as cordas, que, como as fibras, tornam-se sólidas e sonoras pela
tensão, e as caixas dos instrumentos, que semelhantes aos músculos em
contração, são formadas de fibras juntas e tesas, isto é, partes sólidas de
diferentes comprimentos (ROGER, 1803: 152).
Constituindo um último modelo, comparemos os trechos citados acima com o seguinte
texto do médico Pierre-Joseph Buchoz (1731 – 1807):
A música que se deve empregar para a cura dos temperamentos melancólicos
secos deve começar pelos tons mais baixos, e se elevar em seguida
insensivelmente, até os mais altos; é por essa gradação harmônica que as fibras
rígidas habituadas aos diferentes graus de vibração, se deixam
insensivelmente flexionar (BUCHOZ, 1769: 198).
É à anatomia e à patologia das fibras que se devem os modelos apresentados acima.
Unida a isso, uma verdadeira “teoria vibratória dos nervos” (MAZZOLINI, 1991: 81) tenta dar
conta da sua atuação, ao mesmo tempo em que admite, nos três autores, o modelo de
funcionamento tradicional, baseado na circulação dos “espíritos animais” 4 . Outro médico
popular, François-Nicolas Marquet (1687 – 1759), também se dedicou a usar a música como
espaço de compreensão do corpo:
À luz do “maravilhoso mecanismo de [Joseph Guichard] Duverney [1680 –
1730]”, Marquet pensou que a cóclea causava a sensação de tom ao ressoar
com as várias vibrações recebidas. Esse mecanismo então transmite essas
vibrações para os fluidos internos, que a partir daí mudam seu estado de
acordo com o caráter da música [...]. A música “estimula o nervo auditivo e
outros nervos simpáticos, que sendo atingidos agradavelmente” afetam os
sistemas linfático e cardíaco, “de onde vêm as doces e agradáveis ideias”
(PESIC, 2015, 148).
A questão é como explicar o processo pelo qual as qualidades do som se converterem
em estímulos sensórios: nos casos acima, através da vibração simpática sofrida pelas estruturas
do ouvido, e que os nervos transmitem para toda a “máquina humana”. Foucault chamou essa
forma e explicação de “mecânica das qualidades”, operada da forma mais pura pela música
4 Os espíritos animais, um tipo sutil de fluido, seriam responsáveis por transmitir os impulsos nervos
através dos nervos. Sua existência dependia da ideia de que os nervos fossem ocos, o que investigações
anatômicas vinham contestando em meados de 1750. Por causa disso, o modelo é citado com bastante
cuidado em alguns autores.
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(FOUCAULT, 2012: 323). Marquet havia também criado um método de caracterizar o pulso
por meio das notas musicais que fez bastante fama em seu tempo, sobretudo por utilizar como
referência a forma dos minuetos, uma dança cortesã. O estudo do pulso, terreno não apenas de
Marquet, mas também de Bordeu e Ménuret, se assemelha ao estudo de uma estrutura cuja
acústica pode revelar o estado de saúde do indivíduo.
Ménuret, no verbete “Pulso”, comenta que “de acordo com os chineses, o homem é, por
meio dos nervos, músculos, veias e artérias, como uma espécie de alaúde ou instrumento
harmônico”. As diferentes partes do corpo têm seu temperamento:
Os diferentes pulsos são como os vários sons e vários toques desses
instrumentos, pelos quais se pode julgar infalivelmente sua disposição, bem
como um cabo mais ou menos tenso, tocado em um lugar ou outro, de uma
maneira ou mais forte ou mais fraca, faz sons diferentes, dando a conhecer se
está muito tensa ou solta (DE CHAMBAUD, 1765b: 225).
Assim, o corpo tem uma sonoridade. Essa sonoridade é tanto a capacidade de vibrar em
seu todo como a de, ao fazê-lo, revelar ao médico os seus segredos. Mas as simpatias e
sensibilidades que o impregnam fazem com que, longe de seguir apenas o percurso dos nervos,
a vibração se transmita também pela simpatia – uma “mecânica das qualidades” –, primeiro do
meio externo ao ouvido, e deste para toda a economia animal (termo presente em todos os
autores, exceto Marquet) através da troca de sensibilidades. Desse modo, as analogias utilizadas
têm uma enorme facilidade de se encaixar em um modelo harmônico como o rameauísta,
sobretudo pelo fato deste modelo ter não apenas popularidade, como ser “o assunto do
momento” em matéria de teoria musical – isso se vê em Ménuret e Roger, fontes muito
próximas da Querela dos Bufões.
Considerações Finais
Ao longo deste artigo, tentei apontar como algumas transformações socioculturais e
políticas influenciaram a formação ou a aceitação de teorias médicas e musicais. Comecei
indicando as principais mudanças teóricas na música e na medicina e mostrando que as
diferentes atitudes para com a primeira nesse momento acabam por interferir no discurso da
segunda. Tomando como exemplo o texto de Ménuret, tentei explicar a sua aparente
ambiguidade, apontando como as teorias de Rameau, tão populares por volta da época em que
este médico escreve, apresentam uma afinidade com os modelos anatômicos e fisiológicos das
fibras, mas não podem apagar o desinteresse da tragédia clássica (gênero que o músico
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representava). A tragédia musicada foi atacada pelos enciclopedistas e proscrita pelo gosto das
classes médias e de uma pequena nobreza, de cuja opinião os philosophes se consideravam
portadores (CHARTIER, 1991: 37). Essas tendências seriam responsáveis pelo aparecimento
da crítica de Ménuret à musica de seu tempo ao mesmo tempo em que adere às ideias de um
expoente significativo dela.
Ademais, o episódio da Querela dos Bufões ajuda a explicar porque a teoria rameauísta
não se consolidou como o compositor tencionava, sobretudo junto aos membros da Academia
Francesa. Longe de ser apenas devida à sua inconsistência lógica interna, a não aceitação da
sua teoria parece mais o resultado de Rameau ter investido contra o empreendimento
enciclopédico ao criticar Rousseau; ao fazê-lo, todos os envolvidos na Encyclopédie acabaram
se enfileirando atrás do genebrino, mesmo não gostando da música italiana (O’DEA, 2011:
113). O teatro da Academia Real de Música exigia etiqueta, e era lá onde se adquiria, segundo
o costume da década de 1750, o bom gosto. Assim, a ópera francesa refletia os ideais de uma
sociedade aristocrática, que “procurava ver no palco a representação de seus costumes e
comportamentos” (LOPES, 2014: 264) – honra, dever, casamento e autocontrole – em contraste
com os valores mais “liberais” que se difundia na ópera italiana.
Por outro lado, existe outro registro, em que a expressão natural dos sentimentos em sua
espontaneidade – uma cultura de sensibilidade surgida justamente da tentativa de criar espaços
alternativos ao ambiente cortesão “opressor” (REDDY, 2014: 146) – começa a cobrar da
música francesa uma maior naturalidade e verossimilhança. Não a encontrando, volta-se para a
música italiana. Diante disso, a terapia musical de Ménuret pode mesmo utilizar o “princípio
da harmonia” rameauísta, mas não consegue negar a flagrante impopularidade dos espetáculos
franceses tradicionais. Tissot, por seu turno, era um eminente discípulo de Rousseau e um
defensor da música italiana contra os modelos rameauístas; nele, a ausência de analogia
harmônica das fibras nos parece um importante contraponto às tendências apresentadas pelos
demais autores, cuja afinidade com o modelo harmônico de Rameau é bastante plausível.
Esperamos ter exposto aqui, de forma clara, o modo com o qual as mudanças e tensões
socioculturais e políticas influenciaram a recepção das teorias de Rameau na comunidade
científica de seu tempo, e também nos círculos médicos. Parece-nos claro que a defesa do estilo
italiano pela intelectualidade ligada à enciclopédia se fez em nome não apenas da defesa
-
(política) daquele empreendimento editorial, mas em nome de um movimento cultural maior
de questionamento de um gosto musical que encarnava certos valores aristocráticos.
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