cidade de mentiras - trilogia os defensores
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A eletrizante trilogia "Os Defensores" continua nesta sequência de tirar o fôlego.TRANSCRIPT
Goldie Roth é uma ladra treinada e hábil mentirosa. Junto com seu amigo Toadspit ela deve se tornar uma
das Defensoras do Museu de Dunt. Mas seus pais estão doentes e Goldie não pode abandoná-los.
Quando a irmã de Toadspit desaparece, Goldie é forçada a tomar uma decisão. Ela e Toadspit seguem as pistas deixadas pelos sequestradores e vão parar na vizinha cidade de Spoke. No caminho, Toadspit também é capturado, e Goldie terá de enfrentar sozinha as ameaças da cidade. Entre essas ameaças está o tradicional Festival das Mentiras, lugar em que cada
palavra dita signifi ca outra coisa e ninguém é confi ável.
Durante o Festival, Goldie descobre segredos que podem colocar em risco a sua vida e a de seus amigos. Ela vai precisar de um plano e de todo o seu talento
para sobreviver e salvar a todos.
Cidade de mentiras é o segundo volume de uma aventura que você não vai conseguir parar de ler! Um livro que mostra por
que devemos lutar por aquilo em que acreditamos.
UMA MENSAGEM DO MUSEU
O berro acordou Goldie Roth de um sono
profundo. Ela se levantou de supetão,
pensando por um instante que tinha
retornado aos acontecimentos terríveis de seis
meses antes, com a cidade de Jewel à beira da
invasão e seu amigo Toadspit pronto para ser
morto diante de seus olhos.
Então ela ouviu a voz baixinha de Ma no
quarto ao lado e percebeu que Pa tinha tido mais
um pesadelo. Ela escorregou para fora da cama,
jogou um penhoar em cima dos ombros e correu
para o quarto dos pais.
— Pa? — ela perguntou. — Está tudo bem
com você?
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
Pa lançou um sorriso fraco para ela do meio do emara-
nhado de lençóis.
— Desculpe ter acordado você, queridinha — ele balbuciou.
— O seu pai teve um sonho ruim — Ma disse. — Mas
agora já passou. — E ela também sorriu, apesar de seus nós
dos dedos estarem brancos e suas mãos tremerem.
Goldie sentiu uma pontada no coração por vê-los ten-
tando fingir que não havia nada de errado. Ela ajeitou os
lençóis e prendeu-os embaixo dos ombros de Pa, desejando
que houvesse algo mais que pudesse fazer.
— Estava sonhando com a Casa do Arrependimento mais
uma vez? — ela perguntou.
Pa se contorceu. Ele e Ma se entreolharam e um mundo
de dor e pesar passou por entre eles.
Fazia pouco mais de dez meses desde que os dois tinham
sido jogados no calabouço da Casa do Arrependimento. Eles
nunca haviam contado a Goldie o que tinha acontecido com
eles lá, mas ela era capaz de ver as cicatrizes que tinham fica-
do para trás.
Pa sofria com pesadelos terríveis. Ma ficara com uma tosse
que parecia capaz de arrancar seus pulmões. Os dois ainda
estavam magros demais, tanto tempo depois de terem sido
soltos, e apresentavam um ar de exaustão, como se algo os
corroesse por dentro.
Goldie queria que eles falassem sobre aquilo. Mas isso
nunca acontecia. Em vez disso, eles suspiravam e mudavam
de assunto.
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UMA MENSAGEM DO MUSEU
— Ch-chegou uma mensagem para você hoje, queridinha
— Pa disse, fazendo esforço para se sentar ereto. — Onde foi
que eu coloquei? Era do Museu de Dunt.
Desta vez, foi Goldie que se contorceu, apesar de ela ter
disfarçado tão bem que o pai nem percebeu. Lembranças
tomaram conta dela. Toadspit, com o corpo todo coberto de lama,
virando-se para ela e dando risada. Uma língua quente de cachor-
ro passando por seu rosto e uma voz profunda que ribombava:
“Você é tão corajosa quanto um cachorro brizzlehound...”.
Com esforço, ela se arrastou de volta ao presente. Pa reme-
xia nas coisas à procura de um pedaço de papel que estava na
mesinha de cabeceira.
— Aqui está. — A testa dele se franziu. — É de Herro
Dan e Olga Ciavolga. Parece que eles querem que você seja a
Quinta Defensora do museu!
A Quinta Defensora do Museu de Dunt... O anseio tão
conhecido cresceu dentro de Goldie de maneira repentina e
com tanta força que ela mal conseguia respirar.
Ela não disse nada, mas Pa deve ter percebido algum eco
daquilo em seu rosto.
— Você... Você quer ser a Quinta Defensora, querida?
Porque...
— Porque, se quiser — Ma interrompeu —, nós não
vamos impedir.
— Nós nem sonharíamos em impedir!
— É só que...
— É só que é uma responsabilidade tão grande — Pa falou.
— Estamos preocupados que talvez seja demais para você.
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
— E... — Ma apertou a mão de Goldie. — E você teria
de passar tanto tempo longe de casa. — Ela começou a tossir.
Goldie deu tapinhas leves nas costas dela e tentou não
pensar no Museu de Dunt nem em quanto, ah, quanto ela
queria ser a Quinta Defensora.
— Claro que é possível Herro Dan e Olga Ciavolga
realmente precisarem da sua ajuda — Pa disse, mordendo o
lábio. — Se precisarem...
— Se precisarem de você, então não deve hesitar — Ma
falou. Ela tentou soltar a mão de Goldie, mas não foi capaz.
— O seu pai e eu conversamos sobre isso hoje.
— Conversamos, sim — Pa disse. — E nós dois concor-
damos. Se precisam de você, deve ir.
Goldie mal conseguia suportar aquilo. Eles estavam
fazendo o máximo para serem justos, mas ela sabia que eles
realmente detestavam a ideia de ela se afastar de casa, ainda
que fosse por um curto período.
Por isso ela forçou cada restinho de anseio para longe de
sua voz e disse:
— Eles não precisam de mim de verdade. Eles têm Sinew
e Toadspit para ajudar.
Pa franziu a testa, querendo acreditar nela.
— Tem certeza?
— Não está dizendo isso por nossa causa, está? — Ma
perguntou, sem parar de apertar a mão dela. — Não deve
fazer isso. Nós queremos que você seja feliz.
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UMA MENSAGEM DO MUSEU
Uma língua quente de cachorro passou por seu rosto...
Goldie sorriu.
— Eu estou feliz — ela disse. E, como era uma mentirosa
treinada, aquilo soou como se fosse sincero.
Ela ficou com os pais até eles voltarem a dormir. Então
retornou para o seu quarto na ponta dos pés, vestiu a bata, a
meia-calça de lã e uma jaqueta, e se esgueirou para fora de
casa pela porta da frente.
Na verdade, dez meses não eram assim tanto tempo.
Mas, para Goldie, correndo pelo Old Quarter, que estava em
silêncio, na direção da casa de Toadspit, parecia uma vida
inteira. Dez meses antes, ela usava uma corrente de guarda de
prata que a prendia aos pais ou a um Guardião Abençoado.
Nunca tinha estado sozinha em lugar nenhum, e era quase
tão indefesa quanto uma criancinha bem pequena.
Mas então ela fugiu e encontrou refúgio no Museu de
Dunt. Nos meses que passou lá, ela cresceu. Mais do que
isso, tornou-se uma ótima ladra e uma mentirosa habilidosa.
Ela aprendeu os Três Métodos de Ocultação, e a Primeira
Canção, e como agir com coragem inabalável, mesmo quando
tomada pelo medo.
As lições alimentaram alguma necessidade muito profun-
da dentro dela, e o museu rapidamente passou a ser um lar
para ela. A única coisa que faltava era Ma e Pa. Eles estavam
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
trancados na Casa do Arrependimento, presos pelo Orienta-
dor, o líder dos Guardiões Abençoados.
E por que tinham sido presos?
Goldie fez a curva no Canal Gunboat.
— Por minha causa — ela sussurrou.
Na Jewel de seis meses antes, fugir era crime. O Orienta-
dor não conseguiu colocar as mãos em Goldie, mas foi a coisa
mais fácil do mundo arrancar Ma e Pa da cama e arrastá-los
perante o Tribunal das Sete Bênçãos. Ali, foram julgados e
sentenciados por serem os pais de uma criança criminosa.
“A culpa foi minha”, Goldie pensou. “Tudo o que aconteceu
com eles foi por minha culpa.”
Tinha chovido naquela noite, e as passagens do Canal
Gunboat estavam escorregadias por causa da lama. Goldie
parou na frente da casa de Toadspit, respirou fundo e jogou
uma pedrinha na janela lá em cima. Então se esgueirou de
volta para o meio das sombras e ficou esperando.
Ela tinha mentido quando disse aos pais que o Museu de
Dunt não precisava dela. O museu precisava dela, sim, para
ajudar a guardar os segredos perigosos que repousavam entre
suas paredes.
Mas Ma e Pa também precisavam dela, e ela não podia
abandoná-los.
Ela apertou os dedos ao redor do broche esmaltado que
usava na gola da camisa — o broche que tinha pertencido a
sua tia Praise, desaparecida havia tanto tempo. Mas o passari-
nho azul com as asas abertas não lhe trouxe nenhum conforto.
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UMA MENSAGEM DO MUSEU
Pa achou que só tinha havido uma mensagem do Museu
de Dunt. Estava enganado. Nos últimos meses, Goldie tinha
recebido mais de uma dúzia de mensagens, cada uma delas
perguntando quando ela iria assumir sua posição de Quinta
Defensora.
Naquela noite, ela iria responder.
Nunca.
OS LADRÕES DE CRIANÇA
Nunca? — Toadspit perguntou em
tom de descrença total.
Goldie engoliu em seco. Ela
sabia que aquilo seria difícil, mas foi
ainda pior do que esperava.
— Não. Nunca.
Enquanto falava, sentiu um formiga-
mento entre as escápulas. Deu uma olhada
para trás e avistou uma pequena silhueta se
esconder. Alguém os seguia.
Toadspit não tinha reparado.
— Mas você quer ser a Quinta Defensora
— ele disse. — Eu sei que você quer!
— Eu quero, mas...
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OS LADRÕES DE CRIANÇA
— Então, o que a impede?
— Eu já disse! Ma e Pa...
Toadspit a interrompeu.
— Fora eu, não houve nenhum novo defensor nos últimos
duzentos anos! Como é que você pode simplesmente jogar
fora um convite desses?
— Não estou simplesmente jogando fora...
— Está sim! Olhe só para isto! — Toadspit sacudiu o
braço esquerdo na frente dela. — Nada de algema, nada de
corrente de guarda! Nós nos livramos delas! Nós supostamen-
te somos livres, mas agora você... — ele parou de falar e olhou
para ela com desgosto. — Isso é tão idiota!
Magoada, Goldie também olhou feio para ele.
— Você não entende!
O rosto de Toadspit se fechou em uma expressão de des-
dém e Goldie ficou imaginando por que ela tinha se dado ao
trabalho de acordá-lo. Fazia meses que eles não se falavam, e
ela havia se esquecido de como ele era capaz de ser irritante.
Ela devia ter ido direto para o museu.
No fundo de sua mente, uma voz baixinha sussurrou: Mas
ele tem razão. Você nasceu para ser a Quinta Defensora. É o seu
destino.
Goldie a ignorou, assim como ignorou Toadspit. Ela não
podia abandonar Ma e Pa, e fim de papo.
As duas crianças prosseguiram seu caminho em um silên-
cio irritado. Goldie não avistou ninguém nas ruas, a não ser a
silhueta da sombra que continuava se esgueirando atrás deles.
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
Mas, ao atravessarem a Ponte Old Arsenal e começarem a
subir a colina na direção do museu, o silêncio foi rompido por
passos pesados que seguiam pela rua na direção deles. Goldie
hesitou, de repente se sentindo pouco à vontade. Havia algo
ameaçador naqueles passos, e, se estivesse sozinha, teria se
esgueirado para dentro da primeira porta que visse até que
aquela pessoa tivesse passado.
Mas a expressão de desdém de Toadspit era como um
desafio.
Ele está esperando que eu me esconda, ela se deu conta. Por
isso, empinou o nariz e continuou caminhando.
Os passos ficaram mais altos. Botas com sola de prego
batiam nos paralelepípedos. À luz das lamparinas de gás,
Goldie viu dois homens com casacos de lona encerada cami-
nhando cambaleantes pelo meio da rua. Um deles era um
sujeito grandalhão com cabelo loiro todo despenteado. O
outro era menor, e seu rosto era fino como um anzol de pesca.
Ao passarem pelas crianças, deram uma olhada nelas como
um açougueiro que inspeciona um par de bezerros gordos.
O medo lambeu a nuca de Goldie. Mas, depois do pri-
meiro olhar intenso, o homem de rosto fino pareceu perder
o interesse. Ele e seu companheiro atravessaram a ponte e
desapareceram no meio da escuridão.
Toadspit fez uma expressão de maior desprezo ainda. O
medo de Goldie se transformou em irritação. Ela se virou
para trás e chamou:
— Pode aparecer agora, Bonnie.
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OS LADRÕES DE CRIANÇA
Ouviu-se um soluço de surpresa vindo da direção da pon-
te, então uma menininha de cabelo escuro surgiu sob a luz do
poste. A barra do penhoar dela aparecia por baixo da bata e
ela trazia na mão um arco longo e antiquado, e também uma
aljava de flechas.
Toadspit ficou olhando fixo para a irmãzinha.
— O que você está fazendo aqui?
O queixo de Bonnie se ergueu.
— Eu vou ao museu com vocês. Estou seguindo os dois
desde que saíram de casa, e você nem percebeu.
— Claro que percebi.
— Não percebeu. Se tivesse percebido, teria me mandado
de volta — Bonnie sorriu. — Goldie quase me viu uma vez.
Mas eu me escondi bem a tempo.
— Perto do terminal — Goldie disse. — Quando você
escorregou.
Bonnie ficou com a cara no chão. Toadspit voltou seu
olhar de desgosto para Goldie.
— Você sabia que ela estava nos seguindo e nem me disse?
Goldie deu de ombros, ainda irritada com ele.
— Não vai acontecer nada de ruim com ela, não com a
gente aqui.
— Eu ficaria bem, mesmo se estivesse sozinha — Bonnie
disse. Ela ergueu o arco. — Estou armada.
— Você provavelmente iria acertar o próprio pé — Toad-
spit falou. — Onde foi que arrumou esse negócio?
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
— Olga Ciavolga me deu. Ela disse que eu tinha talento
para a coisa. Disse que eu poderia vir a ser campeã de arco e
flecha um dia, igual à Princesa Frisia.
Toadspit ficou com uma cara de quem não estava enten-
dendo nada.
— Você sabe, a princesa guerreira de Merne — Bonnie
disse. — Tem um quadro dela no museu. Ela viveu há qui-
nhentos anos e foi corajosa de verdade. Alguns assassinos
tentaram matar o pai dela, o rei, com ar envenenado, e ela o
salvou. E ela foi a melhor arqueira que qualquer pessoa já viu.
Eu vou ser igual a ela. Ando treinando.
Toadspit revirou os olhos.
— Você é uma peste, Bonnie. Aposto que acordou Ma e
Pa quando saiu.
— Não acordei.
— Vamos levar você para casa...
— Não temos tempo — Goldie interrompeu. — Precisa-
mos chegar ao museu.
— E, se encontrarmos inimigos pelo caminho, posso atirar
uma flecha neles — Bonnie disse.
Toadspit soltou uma gargalhada de desdém.
— Aposto que você não seria capaz de acertar nem a
parede de uma casa.
— Seria sim. Eu seria capaz de acertar... — Bonnie olhou
ao redor — eu seria capaz de acertar aquele poste de madeira.
Aquele com a lamparina a gás, do outro lado da ponte. Vocês
me deixam ir junto se eu acertar?
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OS LADRÕES DE CRIANÇA
— Não...
— Deixamos — Goldie respondeu. — Se acertar o poste,
pode vir com a gente.
Toadspit cerrou os dentes.
— Parece que você vai para casa, então, não é mesmo,
Bonniezinha?
A irmã dele deu um sorriso torto.
— Você só me chama disso quando acha que eu vou
perder.
— Parem com isso, os dois — Goldie disse. — Bonnie,
ande logo.
Bonnie pegou uma flecha da aljava, ajeitou com cuidado
no arco e se virou de modo a ficar de lado para a lamparina a
gás, com as pernas afastadas e a parte de trás da flecha alojada
entre os dedos. Puxou o braço direito para trás até a mão
encostar na bochecha. Ergueu o arco, então abaixou um pouco.
Houve um momento de imobilidade total. Então os dedos
dela estremeceram, a corda do arco fez um som de vibração
e a flecha voou por cima da ponte para se fincar com firmeza
no poste. Bonnie soltou um pequeno Hmm de satisfação e
baixou o arco.
Toadspit ficou olhando fixo.
— Foi sorte.
— Quer que eu faça de novo? Eu consigo, dez vezes
seguidas.
— Não — Goldie respondeu rápido. — Tudo bem, você
pode vir com a gente.
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
— Espere, preciso pegar a minha flecha — Bonnie disse e,
antes que Goldie pudesse detê-la, a menina já estava correndo
pela ponte.
Toadspit deu um passo na direção dela.
— Vou levar Bonnie para casa.
— Não pode fazer isso — Goldie disse. — Você deu sua
palavra.
— Não. Você deu sua palavra. Eu nunca disse que ela podia
nos acompanhar.
— Não seja tão teimoso. Você sabe que vai ficar tudo bem
com ela.
— Vai mesmo? — a voz de Toadspit se elevou, irritada.
— Fico feliz por você ter tanta certeza disso. Mas, bom, você
não é responsável por ela, não é mesmo?
— Não, mas...
— Bom, eu sou. E eu estou dizendo que ela vai voltar
para casa. — Ele berrou por cima do ombro. — Ouviu isso,
Bonnie? Vai voltar para casa.
— Mas por quê? — A essa altura, Goldie também estava
berrando de frustração. Ela estava vendo que a noite ia che-
gando ao fim. Nesse ritmo, eles não conseguiriam chegar nem
perto do museu, e isso significava que ela teria de deixar os
pais sozinhos de novo, na noite seguinte ou na outra.
— Porque ela é pequena demais — Toadspit respondeu.
— Ela só tem dez anos.
Goldie sacudiu a cabeça, descrente.
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OS LADRÕES DE CRIANÇA
— Você só está tentando fazer as coisas acontecerem do
seu jeito, como sempre. Bom, não fique achando que eu vou
junto enquanto você a leva para casa.
— Quem pediu para você vir junto? Eu não pedi.
— Que bom, eu vou seguir em frente, então.
— Muito bem!
Eles ficaram se olhando feio durante mais um momento,
então Goldie se virou e saiu colina acima pisando firme. Atrás
de si, ouviu um barulho de pedra, como se alguém estivesse
chutando o chão.
Ha!, Goldie pensou. Se ele ainda não estava irritado,
ficaria pior em breve. Ela desacelerou um pouco e esperou as
reclamações de Bonnie começarem.
Mas foi a voz de Toadspit que ela escutou, tão frágil quan-
to cristal no ar da noite.
— G-Goldie?
Ela se virou na direção dele. Toadspit estava parado do
outro lado da ponte, olhando para alguma coisa no chão.
De repente, a noite ficou mais fria. Com uma sensação
de enjoo no estômago, Goldie desceu a colina correndo e
atravessou a ponte. E ali, sob a luz nua da lamparina, ela viu
a coisa para a qual Toadspit olhava fixo.
No meio da rua, o arco de Bonnie estava abandonado.
A aljava tinha sido jogada para o lado e as flechas estavam
espalhadas a seu redor como trigo caído. Uma delas tinha
mancha de sangue.
Não havia sinal de Bonnie.
PARA AS DOCAS
T oadspit estava tão pálido que Goldie achou
que ele fosse desmaiar. Sua própria pele
parecia gelo, e ela precisou se forçar a exa-
minar o chão ao redor daquela flecha terrível.
— Não acho que o sangue seja de Bonnie — ela
sussurrou e então apontou para as marcas revela-
doras na lama. — Havia dois homens. Está vendo
as marcas de bota de quando correram na direção
dela? Eles a pegaram de surpresa. Olhe como as
pegadas dela estão misturadas.
Ela parou de falar, lembrando-se dos dois homens
que tinham passado por eles. Devem ter voltado e
visto Bonnie sair de seu esconderijo. Então espe-
raram até ela chegar perto o suficiente para que a
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PARA AS DOCAS
pegassem... enquanto Goldie e Toadspit, que deviam estar
cuidando dela, berravam um com o outro.
Ela engoliu em seco e examinou o chão mais uma vez.
— Acho que ela acertou um deles com a flecha. O sangue
é dele. E, olhe, um deles a ergueu. Dá para ver que as pegadas
dela param e as dele ficam mais fundas, como se estivesse
carregando algo. Olhe, eles foram por aqui.
Com a briga esquecida, eles saíram atrás da pista dos dois
homens pela cidade escura. Para o alívio de Goldie, Toadspit
voltara a se firmar sobre os pés, mas segurava o arco com força
no punho fechado, e havia algo obscuro nele que ela nunca
tinha visto antes.
Perderam as pegadas das botas várias vezes. Apesar de toda
sua habilidade, só eram capazes de seguir o que podiam enxer-
gar, e a luz do luar e das lamparinas a gás nunca era suficiente.
Às vezes as pegadas desapareciam totalmente, e eles tinham
de procurar em todas as direções até encontrar uma man-
cha fresca de lama, ou uma pedrinha chutada fora do lugar.
Era muito fácil cometer um erro. Chegaram a seguir a
pessoa errada por quase três quarteirões e precisaram retraçar
seus passos com rapidez. Depois disso, Goldie pegou empres-
tado o canivete de Toadspit e fez marcas em um graveto para
mostrar o comprimento e a largura das pegadas de bota, pa-
ra que eles não voltassem a se enganar.
As crianças seguiram os rastros dos homens pelo lugar
onde antes ficava o Grande Salão, passando pelas feiras
cobertas e pela carcaça de pedra cinzenta da Casa do Arre-
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OS DEFENSORES CIDADE DE MENTIRAS
pendimento. Finalmente, viram galpões surgirem da escuridão
e as barragens de ferro recém-reformadas que protegiam Jewel
do mar. Acima das barragens erguiam-se mastros de navio.
— As docas — Goldie sussurrou. Era a primeira coisa que
ela dizia em mais de meia hora, e sua voz pareceu estranha a
seus ouvidos.
As pegadas das botas levaram as crianças a um antigo
cais de madeira, onde havia barcos de pesca ancorados de
ponta a ponta, com as redes estendidas para secar e baldes
de lagosta em pilhas altas nos conveses. Uma névoa vinha se
aproximando do sul. O fedor de algas e peixes tomava conta
de tudo.
Goldie ouvia a água batendo contra os pilares embaixo
dela e o rangido lento dos cascos de madeira. Em algum lugar,
uma corrente chacoalhou. Um gato malhado cinzento dis-
parou à frente dela como uma nuvem de fumaça. A corrente
chacoalhou mais uma vez, agora bem perto.
Ouviu-se um assobio de gás e um motor ganhou vida.
As crianças se retraíram para dentro das sombras e ficaram
espiando o barco do outro lado. Era pequeno e atarracado,
com um único mastro e uma casa de convés na parte de trás.
Uma corda grosseira estava pendurada na lateral. O motor
engasgou, incerto, então se normalizou.
Os dedos de Toadspit se enfiaram na pele de Goldie.
— São eles — ele sussurrou. — Tem que ser.
Enquanto ele falava, o ronco do motor ficou mais pro-
fundo. A água fez redemoinho e bateu contra os pilares de
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PARA AS DOCAS
madeira. O mastro tremeu e o barco começou a se afastar
do cais.
Não havia tempo para ficar se perguntando se aquele era
mesmo o barco certo. Goldie e Toadspit dispararam pelo cais
e se jogaram na distância que ia aumentando. Foi um salto
longo e Goldie quase não conseguiu. Os dedos dela tocaram
a rede de corda. Erraram. Tocaram de novo. Ela remexeu com
a mão direita. A mão esquerda estava pendurada, de maneira
desesperada. Seus pés se agitavam no ar...
Então, bem quando ela achou que ia cair e ser engolida
pela água fria e agitada, os dedos de seus pés encontraram a
rede. Ela se agarrou a ela e pressionou o corpo todo contra a
lateral do barco, tomando fôlego.
Ao lado dela, Toadspit já subia pela rede. Goldie foi atrás
dele com dificuldade, e os dois escorregaram por cima da
amurada e se afundaram atrás da casa do convés, com o arco
de Bonnie no meio deles.
Em algum lugar próximo, um homem gritou:
— Meia velocidade!
O barco avançou e as luzes de Jewel desapareceram na
neblina. À frente, tudo era escuridão.