construtores do império, defensores da província: são paulo e
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Construtores do Imprio, defensores da provncia: So Paulo
e Minas Gerais na formao do Estado nacional e dos poderes
locais, 1823-1834
Carlos Eduardo Frana de Oliveira
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria
Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de
Doutor em Histria.
Orientadora: Prof. Dr.Cecilia Helena L. de Salles Oliveira
Verso corrigida
So Paulo 2014
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Nome: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Frana de.
Ttulo: Construtores do Imprio, defensores da provncia: So Paulo e Minas Gerais na formao do
Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834.
Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo
de Doutor em Histria.
Aprovado em:
Banca examinadora
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:_______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:_______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:_______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:_______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
Prof(a). Dr (a).: ________________________ Instituio:_______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura:______________________
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Dedico este trabalho a
Elia e Messias, meus pais
Heidi, minha esposa
Pedro e Joo, meus filhos
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Agradecimentos
Profa. Cecilia Helena L. de Salles Oliveira, a quem praticamente devo minha formao
como historiador. Sou imensamente grato por todos esses anos de orientao, convvio e amizade.
Aos meus pais, pelo apoio irrestrito.
querida Heidi, por ter suportado um doutorando. Por tudo.
Aos pequenos Pedro e Joo, por existirem.
Aos amigos de ontem e hoje, pela ajuda involuntria.
banca examinadora do meu exame de qualificao, composta pelos professores Wlamir
Silva e Maria de Lourdes Mnaco Janotti, pela importante contribuio ao trabalho.
Fundao de Apoio Pesquisa do Estado de So Paulo, que tornou possvel a realizao
desta pesquisa.
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Resumo
A presente tese tem como objetivo analisar a ascenso de polticos mineiros e paulistas no
mbito da construo do Estado nacional brasileiro entre 1823 e 1834, atentando para dois
movimentos simultneos e interligados. O primeiro diz respeito criao de esferas de poder em
nvel provincial em So Paulo e Minas Gerais, em que ser privilegiada a atuao dos conselhos
provinciais o Conselho da Presidncia e o Conselho Geral , sua relao com o Legislativo e
Executivo, e seu engajamento na viabilizao de um Imprio sediado Rio de Janeiro. Trata-se de
examinar de que maneira a composio dos poderes provinciais inscreveu-se no processo de
afirmao de uma monarquia constitucional representativa em meio a outras propostas vigentes de
organizao do Estado poca. O segundo movimento refere-se projeo de paulistas e mineiros
no cenrio poltico da Corte, seja no Legislativo, a partir de 1826, seja no Executivo, mormente
aps a Abdicao.
Pretende-se, assim, discutir possveis matizes do chamado projeto liberal moderado, o
qual obteve grande respaldo em So Paulo, Minas Gerais e na Corte no perodo estudado, partindo-
se da hiptese de que a atuao de polticos paulistas e mineiros, notadamente no encaminhamento
da reforma constitucional que se consubstanciou no Ato Adicional, em 1834, foi permeada por
interesses de grupos locais e influenciada pelo debate poltico ocorrido em nvel provincial.
Palavras-chave: conselhos provinciais; Minas Gerais; So Paulo; Imprio do Brasil; reforma
constitucional.
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Abstract
The aim of this thesis is to analyze the rise of Minas Gerais and So Paulo politicians in the
development of the Brazilian State between 1823 and 1834, considering two simultaneous and
interrelated motions. The first concerns the field of power creation at the provincial level in So
Paulo and Minas Gerais, in which will be prioritize the performance of provincial councils - the
Conselho da Presidncia and the Conselho Geral -, their relation to the legislative and executive
branches, and their alliance in achieving a Empire entrenched at Rio de Janeiro. The goal is to
examine how the organization of provincial powers managed to build the acceptance of
constitutional monarchy amid other current proposals for the State organization at the time. The
second movement refers to the projection of So Paulo and Minas Gerais in the political
background of the Court, both in legislature issues, from 1826, and executives, especially after the
Abdicao in 1831.
It is intended, therefore, to discuss some peculiarities about the so-called "Liberal
Moderado, which got great sheltering in So Paulo, Minas Gerais and in the Court during the
studied period, starting from the hypothesis that the role of So Paulo and Minas Gerais politicians,
mainly during the constitutional reform which led to the Additional Act, in 1834, was permeated by
concerns of local groups and influenced by political debate occurred at the provincial level.
Keywords: provincial councils; Minas Gerais; So Paulo; Empire of Brazil; constitutional reform.
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Lista de Siglas
ACD Anais do Parlamento Brasileiro. Cmara dos Deputados do Imprio
ACE Atas do Conselho de Estado
ALESP Assembleia Legislativa do Estado de So Paulo
APESP Arquivo Pblico do Estado de So Paulo
APM Arquivo Pblico Mineiro
ASI Anais do Senado do Imprio do Brasil
ACP Atas do Conselho da Presidncia
ACG Atas do Conselho Geral
CEDI-CD Centro de Documentao e Informao da Cmara dos Deputados
FCGP Fundo Conselho Geral de Provncia, ALESP
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Sumrio
Introduo 09
1. Poltica e economia no centro-sul do Imprio no incio do sculo XIX 23
1.1. Entre caminhos e vilas: aspectos socioeconmicos de So Paulo e Minas Gerais nas primeiras
dcadas do sculo XIX 27
1.1.1. So Paulo 27
1.1.2. Minas Gerais 38
1.2. Mineiros e paulistas na Independncia: a projeo da provncia como espao e poder 52
2. Os conselhos provinciais e a formao de espaos de representao poltica em So Paulo e
Minas Gerais 71
2.1. O Conselho da Presidncia em So Paulo e Minas Gerais, 1824-1834 85
2.2. Os Conselhos Gerais de provncia 114
2.3. Os Conselhos Gerais de provncia: So Paulo e Minas Gerais, 1828-1834 120
2.4. Os Conselhos Gerais e as Cmaras Municipais 147
2.5. Conselhos provinciais e finanas 158
3. Da provncia para a Corte: mineiros e paulistas no Parlamento 172
3.1. Deputados e senadores: a composio das bancadas de Minas Gerais e So Paulo (1826-1834)
178
3.1.1. A Cmara dos Deputados 178
3.1.2. Deputados paulistas e mineiros nas trs primeiras legislaturas 195
3.1.3. O Senado 218
3.2. Homens da provncia ou polticos da nao? Demandas provinciais na Assembleia Geral 229
4. Luta poltica, reforma constitucional e a redefinio do papel das provncias no Imprio
256
4.1. Abdicao e luta poltica 259
4.2. As provncias no centro do debate poltico: a reforma constitucional 281
4.3. So Paulo e Minas Gerais s vsperas da reforma constitucional 290
4.4. A reforma constitucional no Parlamento: da provncia para a Corte, da Corte para a provncia
301
4.5. O Ato Adicional 354
Consideraes finais 383
Fontes e bibliografia 392
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Introduo
O processo de formao do Estado nacional brasileiro1 inscreve-se num movimento de
ampla complexidade desencadeado por sucessivas transformaes precipitadas na Amrica
portuguesa desde meados do sculo XVIII, quando a poltica levada adiante por Lisboa, com vistas
a reestruturar as bases do Imprio luso, pretendeu remodelar a relao entre metrpole e colnias.
De um lado buscou-se modernizar o aparelho estatal administrativo e tributrio, fomentar as
manufaturas em Portugal e reforar o monoplio comercial. De outro, contraditoriamente, setores
proprietrios da Amrica portuguesa passaram a ter maior acesso administrao colonial, valendo-
se dessa condio para amealharem fortunas, muitas vezes revelia da metrpole. Isso tudo faz
mais sentido quando lembramos que tanto a separao entre Portugal e Brasil quanto as iniciativas
referentes criao de um Estado autnomo e sob o governo de d. Pedro s obtiveram sucesso
devido ao amplo apoio franqueado por grupos que vinham ascendendo economicamente desde o
1 A bibliografia sobre a formao do Estado nacional brasileiro vasta e diversificada. Sobre o tema consultar:
BARMAN, Roderick. Brazil. The forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University Press, 1988; BASILE,
Marcello. O Imprio em construo: projetos de Brasil e ao poltica na Corte Regencial. Tese de doutorado. Rio de
Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2004; CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial. Teatro
de sombras: a poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003; Pontos e Bordados: Escritos de Histria e
Poltica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no
Brasil. So Paulo: Globo, 2005; GOUVA, Maria de Ftima Silva. O Imprio das Provncias. Rio de Janeiro, 1822-
1889. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/Faperj, 2008; GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil
Imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009, 3v.; HOLANDA, Sergio Buarque de. A herana colonial sua
desagregao. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. (org.). Histria Geral da civilizao brasileira. So Paulo: Difuso
Europeia do Livro, 1965, v.1, t. II, p.09-39; LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso imprio: Portugal e
Brasil: bastidores da poltica, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994; MARSON, Izabel Andrade. Movimento
Praieiro, 1842-1849: imprensa, ideologia e poder poltico. So Paulo: Editora Moderna, 1980; O Imprio do progresso:
A revoluo Praieira em Pernambuco. So Paulo: Editora Brasiliense, 1987; MATTOS, Ilmar Rohllof de. O tempo
saquarema. A formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec, 2004; MONTEIRO, Tobias. Histria do Imprio: o
Primeiro Reinado. So Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1982, 2 vol; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. A astcia liberal.
Relaes de Mercado e Projetos Polticos no Rio de Janeiro (1820-1824). So Paulo, Editora cone e Edusf, 1999; A
independncia e a construo do Imprio. So Paulo: Atual, 1995; JANCS, Istvn (org). Brasil: formao do Estado e
da Nao. So Paulo: Hucitec/ Unijui/ FAPESP, 2003; Independncia: histria e historiografia. So Paulo:
Hucitec/FAPESP, 2005.
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final do Setecentos, especialmente no centro-sul da Amrica portuguesa,2 em virtude da
dinamizao das atividades econmicas do Rio de Janeiro, capital do Vice-Reino do Brasil desde
1763 e um dos centros comerciais de maior significncia dentro dos domnios lusos.3
Esse processo expressava, com peculiaridades e contradies, um movimento de expanso
do capital similar ao que se dava na Europa, qual seja, o de mercantilizao da terra e da fora de
trabalho, alm do surgimento de prticas de mercado ausentes de restries e regulamentaes. Por
esse vis possvel entender as modificaes ocorridas na Amrica portuguesa entre fins do sculo
XVIII e o incio do XIX como manifestaes particulares da conformao de relaes de mercado
liberais, o que provoca o reconhecimento da complexidade da sociedade colonial.4 A prpria
concretude de um novo Estado em moldes liberais se dava por meio do cruzamento dessas
dimenses:
(...) ao mesmo tempo que se reconhece que, nas primeiras dcadas do sculo XIX, o
territrio do imprio encontrava-se em processo de definio, seja no tocante s fronteiras
externas, seja em termos dos limites provinciais, observa-se tambm que, desde fins do
sculo XVIII, foram feitos investimentos significativos, por parte das autoridades e de
empreendedores coloniais, tendo em vista o mapeamento e explorao sobre os recursos
naturais disponveis para a gerao de riquezas. Essas experincias sustentaram a expanso
de fronteiras agrcolas, a criao e o alargamento de vias de comunicao, a diversidade de
atividades econmicas, as diferenciaes regionais e uma rede de negcios que articulava a
multiplicidade de segmentos sociais enraizados em vrios pontos da Amrica portuguesa,
expressando o dinamismo do mercado e sua insero no trfico atlntico. Por essa via, a
tangibilidade da nao revelava-se no s na projeo de potencialidades futuras, mas
principalmente no entrelaamento entre natureza, territrio, mercado e engendramento da
acumulao.5
2 Outras localidades da Amrica portuguesa se beneficiaram com o deslocamento da sede do Vice-Reino do Brasil para
o Rio de Janeiro e com a posterior transferncia da famlia real. O Rio Grande do Sul, por exemplo, consolidou-se como
pea-chave das pretenses portuguesas na bacia do Prata, seja pelo fornecimento de mo de obra escrava para a
Amrica espanhola, seja para adquirir metais preciosos daquela regio, alm de constituir importante rea produtora de
alimentos, carnes e couros para o mercado da Corte, cf. MIRANDA, Mrcia Eckert. A estalagem e o Imprio: a crise do
Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na provncia do Rio Grande do Sul (1808-1831). So Paulo: Hucitec, 2010. Ver,
tambm, OSRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande se So Pedro: formao e negcios de um grupo mercantil da
Amrica Portuguesa. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, n.39, v.20, p.115-134, 2000. 3 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Imprio: Rio de Janeiro no sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2003, v.1.; GORENSTEIN, Riva; MARTINHO, Lenira Menezes. (orgs.). Negociantes e Caixeiros na
Sociedade da Independncia. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Turismo, 1993. 4 OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. A astcia liberal. Relaes de Mercado e Projetos Polticos no Rio de Janeiro
(1820-1824). So Paulo, Editora cone e Edusf, 1999, p.62. Um dos principais referenciais tericos da autora , para
este trabalho, a filsofa Maria Sylvia de Carvalho Franco, para quem a sociedade colonial, a despeito da sua
especificidade, teve no lucro o seu esteio primordial. Da autora ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres
na ordem escravocrata. So Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1968; As ideias esto no lugar. Cadernos de
Debate, (1), So Paulo: Brasiliense, 1976, p.61-64; All the world was America. Revista USP, n.17, maro/maio, 1993,
p.30-53. 5 OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Repercusses da revoluo: delineamento do imprio do Brasil, 1808/1831. In:
GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.), op. cit., v.1, p.42. Da mesma autora, ver tambm A astcia liberal, op.
cit., especialmente captulo 2, e Tramas polticas, redes de negcios. In: JANCS (org.), op. cit., 2003, p.389-406.
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Se levarmos em conta que algumas das mutaes ocorridas na sociedade colonial
notadamente o aumento da produo, a racionalizao da estrutura jurdico-administrativa e o
processo de valorizao fundiria antecederam a chegada da Corte portuguesa, em 1808, esta
pode ser entendida como um rearranjo de foras j existentes e, simultaneamente, como uma
abertura de possibilidades para aqueles setores at ento distantes do poder poltico. O componente
nacional no s tardou a surgir na Amrica portuguesa como tambm foi gerado a partir de um jogo
de interesses que, pelo menos entre meados do sculo XVIII e as primeiras dcadas do XIX,
arregimentou portugueses reinis e americanos. Assim, durante esse perodo estabeleceu-se um
campo de pretenses comuns entre os grupos dirigentes metropolitanos e americanos, que por sua
vez tiveram no projeto do Reino Unido a Portugal e Algarves (1815) uma de suas principais
proposies para o problema do estatuto poltico entre Portugal e Brasil.6
O que particularmente interessa aqui o fato de que esse enraizamento de interesses em
terras americanas foi um dos vetores centrais no apenas no encaminhamento das relaes entre
portugueses da Europa e Amrica e, posteriormente, na instalao das bases do futuro Imprio
brasileiro , mas particularmente na dinmica da esfera pblica do eixo centro-sul da Amrica
portuguesa. A incerteza dos primeiros anos do sculo XIX fez com que atividades como o trfico
negreiro, o contrabando, o comrcio de abastecimento e os contratos de arrematao passassem a
congregar grupos diversos que, de acordo com a conjuntura vigente, aproximavam-se ou entravam
em conflito para manter sua influncia. Todos eles comerciantes de grosso trato do Rio de
Janeiro, negociantes portugueses vinculados importao, produtores associados ao comrcio de
cabotagem, setores representantes do ramo de abastecimento, agricultores, entre outros divisaram
na acomodao da Coroa no Rio de Janeiro a possibilidade de se instalarem tanto nos circuitos de
mercado como no aparelho administrativo da monarquia portuguesa em reformulao.7 H que se
lembrar a crescente demanda por gneros agrcolas nas regies industrializadas do Atlntico norte,
o alargamento dos centros urbanos industriais e a paz inaugurada em Viena ajudaram a alavancar a
produo agrcola na Amrica na primeira metade do sculo XIX.8 Assim, longe de constituir uma
associao coagida de foras, tal movimento contou com participao efetiva dos portugueses da
Amrica na execuo de redefinio da monarquia lusa.9
6 LYRA, op. cit. 7 FRAGOSO, Joo Luiz Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulao e hierarquia na praa mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Ver, tambm, FRAGOSO, Joo. Mercadores e
negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do Imprio portugus (sculo XVII e XIX). Histria: Questes e
Debates, n 36. Curitiba: Editora da UFPR, 2002, p.99-127. 8 BERBEL, Mrcia Regina; MARQUESE, Rafael B.; PARRON, Tmis. Escravido e poltica: Brasil e Cuba, 1790-
1850. So Paulo: Hucitec, 2010, p.183. Ver, tambm, TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravido. Trabalho, capital e
economia mundial. 1 ed. 2004. Trad. port. de Antonio de Padua Danesi. So Paulo: Edusp, 2011. 9 GOUVA, Maria de Ftima. As bases institucionais da construo da unidade. Dos poderes do Rio de Janeiro joanino:
administrao e governabilidade no Imprio luso-brasileiro. In: JANCS, Istvn (org), op. cit., 2003, p.707-752. Para a
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Peas dessa complexa engrenagem poltica e econmica, So Paulo e Minas Gerais
vivenciaram uma paulatina redefinio de posies dentro do centro-sul e, mais especificamente, na
relao que estabeleciam com o Rio de Janeiro.10 Um dos aspectos que mais chama ateno desse
cenrio o de que, entre fins do sculo XVIII e incio do XIX, tento em vista a praa comercial do
Rio de Janeiro, famlias paulistas e mineiras, muitas delas oriundas das atividades mineradoras,
concentraram seus esforos na produo e circulao de gneros de exportao e primeira
necessidade e no trfico de escravos, empreitada que envolvia o sul de Minas (especialmente a
Comarca do Rio das Mortes), reas do vale do Paraba, alm da prpria capital. Por meio de
aquisio de sesmarias, processo que se intensifica com a chegada da Corte, passam a ocupar
extensas faixas de terras e a participar da fundao de vilas e freguesias, da abertura de caminhos, e
da expulso de povos indgenas residentes nas reas destinadas lavoura, na regio configurada a
oeste pelo Rio Preto e a norte e sul pelos caminhos do ouro, envolvendo parte do vale do Paraba
Paulista e o fluminense.11
Foi justamente nesse perodo que ganharam projeo famlias como os Pereira de Faro,
Carneiro Leo, Velho da Silva e Pereira da Silva, todos comerciantes de grosso trato estabelecidos
na Corte e que viram ampliar seus negcios aps 1808, estreitando laos familiares com grupos
mineiros (os Nogueira) e paulistas (os Leme) envolvidos com agricultura e pecuria. Protagonistas
de um acelerado movimento de acumulao de recursos, a controlar boa parte de negcios rentveis
como a arrematao de contratos da Coroa, companhias de seguro, abastecimento via comrcio de
cabotagem e trfico de escravos.12 A insero cada vez maior desses grupos na economia da Corte
ocasionou o que Alcir Lenharo chamou de integrao do centro-sul, isto , um processo de
articulao comercial estabelecido entre as reas produtoras e o mercado consumidor, posto em
autora, o surgimento do Imprio luso-brasileiro significou o estabelecimento de uma grande empresa governativa,
administrada a partir da cidade do Rio de Janeiro. A velha sede do Estado do Brasil foi rapidamente transformada na
nova Corte do Imprio portugus, processo instaurado a partir do estabelecimento, em seu interior, de uma alta
administrao. A governabilidade da cidade, da capitania e do Estado do Brasil passava assim a se confundir com a do
Imprio, p.751-752. Sobre o tema, ver tambm LIMA, Oliveira. Dom Joo VI no Brasil. 3 educao. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996; MALERBA, Jurandir. A Corte no exlio. So Paulo: Companhia das Letras, 2000; OLIVEIRA, Cecilia
Helena L. de Salles, op. cit., 1999, cap.2, SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Imprio, monarquia e a corte real
portuguesa no Rio de Janeiro. Trad. brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008; SLEMIAN, Andra. Vida
poltica em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). So Paulo, Hucitec, 2006. 10 BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em So
Paulo (1765-1775). 2 edio. So Paulo: Alameda Editorial, 2007. Cabe notar, tambm, que durante os governos dos
vice-reis Marqus de Lavradio (1769-1779) e Lus de Vasconcelos e Souza (1779-1789) ampliaram-se
consideravelmente as lavouras e atividades pastoris nas capitanias de Minas Gerais e So Paulo, cf. OLIVEIRA, Cecilia
Helena L. de Salles, op. cit., 1999, p.63. 11 BITTENCOURT, Vera Lcia Nagib. De Alteza Real a Imperador: o governo do Prncipe D. Pedro, de abril de 1821 a
outubro de 1822. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 2007, p.136. 12 FRAGOSO, op. cit., 1992, p.360-365.
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prtica atravs de meios de comunicao, sobretudo pontes e estradas, organizados entre os dois
polos. 13
Integrao essa, todavia, que no era apenas econmica. Paulistas e mineiros estavam
prximos como nunca do centro decisrio da poltica, e por isso viram-se diante da possibilidade de
passar a gerir a coisa pblica. Afinal, a instalao da Corte tambm significava uma nova estrutura
de destinao de receitas fiscais, empregos, cargos a serem ocupados e outras questes de ordem
prtica. Ao ser aparelhada por instituies rgias como os Ministrios do Reino, Marinha e
Ultramar, da Guerra e Negcios Estrangeiros, o Errio Rgio, a Mesa da Conscincia e Ordens, o
Desembargo do Pao e a Junta do Comrcio, Agricultura e Navegao, a Corte centralizou o
aparelho administrativo em torno do Rio de Janeiro assim como criou uma burocracia capaz de
proporcionar um movimento mais amplo de articulao inter-regional, a fim de viabilizar a
permanncia da cabea da monarquia no Centro-sul brasileiro. Mais do que cooptar as lideranas
regionais para o fomento de uma infraestrutura (comercial, financeira e de transportes) que
satisfizesse as demandas da Corte, processo esse exteriorizado pela criao de novos impostos,
tratados de comrcio e vias de comunicao, a burocracia implantada durante o perodo joanino
instaurou uma estrutura poltica, ao mesmo tempo prtica e terica, que conferiu soberania ao Rio
de Janeiro diante das demais partes da Amrica portuguesa.14 Se assumirmos que, durante o perodo
colonial, o relacionamento direto entre as capitanias e a metrpole foi prtica comum
estabelecida, muitas vezes, revelia de outras instncias de poder situadas na colnia15 , a
instaurao de um aparelho administrativo que garantisse a legitimidade do Rio de Janeiro como
centro do governo esteve estreitamente atrelada criao de um aparato burocrtico com lastro nas
demais regies da Amrica portuguesa. A aproximao com os setores da antiga colnia foi,
portanto, um elemento chave no aparelhamento e na viabilizao de um novo Estado, notadamente
no estabelecimento de uma infraestrutura material que permitisse a acomodao dessa nova
realidade:
Na articulao desses projetos de infraestrutura de transportes que se pode notar o modo
como certos grupos familiares se aproximaram da Corte e, atravs da prestao de servios
13 LENHARO, Alcir. As tropas da moderao: o abastecimento da Corte na formao poltica do Brasil: 1808-1842. 1
edio: 1978. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993. 14 SOUZA, Iara Lis Carvalho de. A Ptria Coroada: o Brasil como corpo poltico autnomo 1780-1831. So Paulo:
Editora Unesp, 1999; ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Imprio: questo nacional e questo colonial na crise do
Antigo Regime Portugus. Porto: Afrontamento, 1993, principalmente captulo 8. 15 RUSSEL-WOOD, A. J. R. O poder local na Amrica Portuguesa. Revista de Histria, v.55, n 109, So Paulo, 1977,
p.25-79. Ver, tambm, os artigos sobre administrao portuguesa contidos em BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti (orgs.). Histria da expanso portuguesa. O Brasil na balana do Imprio (1697-1808). Lisboa:
Crculo de Leitores, 1999, v.3, e FRAGOSO, Joo, Gouva, Maria de Ftima; e BICALHO, Maria Fernanda (org.).
Antigo Regime nos Trpicos. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2001.
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ao Estado, conquistaram uma situao poltica e econmica favorvel. Muitos ascenderam j
com D. Joo VI, integrando parte da nobreza que apoiaria a gesto de D. Pedro I (...). Esse
encontro de interesses revela um trao fundamental da formao do Estado nessa etapa de
transio. No sendo capaz de produzir o aparato poltico-burocrtico necessrio, viu-se na
contingncia de lanar mo das iniciativas de setores empresariais nativos, de modo a
conceder-lhes amplos favores e troca da prestao de servios necessrios edificao de
suas bases materiais. Isto vale dizer que o Estado enraizado tendeu a abrigar um novo setor
emergente e interno classe dominante, setor esse que o prprio Estado favorecera em sua
criao. A nobreza de D. Pedro era, em grande parte, nativa.16
O quadro esboado por Lenharo remete quase de pronto figura de Manuel Jacinto
Nogueira da Gama (1765-1847), Marqus de Baependi, que principiou sua carreira pblica como
funcionrio da Coroa durante a administrao joanina. Originrios de So Joo-del-Rei, os
Nogueira da Gama deram suporte ao governo de d. Joo VI e por isso foram agraciados com
algumas das melhores terras virgens da Zona da Mata mineira e Vale do Paraba fluminense, as
mais promissoras fronteiras agrcolas de Minas e Rio de Janeiro. Estreitou seu lao com os Carneiro
Leo casando-se com uma filha de Ana Francisca Rosa Maciel da Costa, futura baronesa de So
Salvador de Campos de Goitacases. Magistrado por Coimbra e feito conselheiro de estado, ministro
e senador por d. Pedro, Nogueira da Gama tinha como par um Manuel Ferreira da Cmara
Bittencourt e S17, tambm mineiro, burocrata da Corte joanina e colocado no Senado por d. Pedro.
Algumas figuras no teriam tanta projeo na vida pblica, mas ainda assim desempenhariam
funes estratgicas, como no caso de Custdio Ferreira Leite, mineiro de So Joo del-Rei e futuro
Baro de Aiuruoca. Antes de se tornar um dos principais cafeicultores da Zona da Mata mineira,
Ferreira leite envolveu-se na prestao de servios de infraestrutura Coroa, como a construo dos
trechos derradeiros da estrada da Polcia, que ligava o Rio de Janeiro, o sul de Minas e o vale do
Paraba fluminense.18
16 LENHARO, op. cit., p.54. Alan K. Mancherster ainda mais enftico sobre este ponto, assinalando que a burocracia
nascida no perodo joanino foi um dos pilares que conferiu um mnimo de solidez poltica ao Primeiro Reinado: A
criao do mecanismo de um estado soberano no Brasil, paralelo e igual ao prottipo em Lisboa, produziu uma
burocracia nacional centralizada que contava com o Rio de Janeiro como fonte de autoridade. Ao mesmo tempo, a
burocracia das provncias expandiu-se no interior da estrutura da tradicional administrao colonial absolutista, agora
com seu foco no Rio de Janeiro. Esta burocracia, nacional e provincial, proporcionou uma estrutura administrativa j
pronta, com pessoal treinado para um Brasil independente, Apud SOUZA, op. cit., p.51. 17 Manuel Ferreira da Cmara Bittencourt e S (1767-1835) era natural de Caet, Minas Gerais. Engenheiro, ganhou
notoriedade pelos seus estudos mineralgicos sobre vrias regies do Brasil.17 O intendente cmara alcunha que
recebeu aps desempenhar a funo de intendente geral das minas e diamantes do Serro Frio foi deputado durante a
Constituinte (1823) e nomeado senador por d. Pedro, em 1826, pela bancada mineira, sendo ento o pleiteante mais
votado. Familiares seus de Caet participaram da chamada Sedio de Ouro Preto, em 1833, cf. GONALVES, Andra
Lisly. Estratificao social e mobilizaes polticas no processo de formao do estado nacional brasileiro: Minas
Gerais, 1831-1835. So Paulo: Hucitec, 2008, quadro 1, p.154. 18 LENHARO, op. cit., p.67-68. Lenharo tambm cita o caso de Joo Rodrigues Pereira de Almeida, futuro baro de
Ub. Dono de terras na regio de Vassouras, foi deputado da Junta Real do Comrcio (1808) e presidente do Banco do
Brasil (1809). Mais tarde, em 1821, representaria o Rio de Janeiro nas Cortes de Lisboa, p.67.
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A situao torna-se mais complexa quando famlia e negcios se estendiam para outras
provncias. De origem portuguesa, os Monteiro de Barros chegaram em solo mineiro no sculo
XVIII, fixando-se em So Joo del-Rei e Congonhas do Campo.19 Ao longo dos anos formaram
uma das famlias mais poderosas de Minas, inclusive contando com ramificaes em So Paulo.
Ainda durante o perodo joanino os Monteiro de Barros foram agraciados pela Coroa com cargos e
terras, cujas mais significativas estavam situadas em Leopoldina, nas proximidades de Mar de
Espanha, futura Zona da Mata.20 Romualdo Jos Monteiro de Barros, um dos maiores traficantes de
escravos das Minas Gerais nas dcadas de 1820 e 1830, atuou tanto no Conselho da Presidncia
como do Conselho Geral daquela provncia.21 Comercializava escravos com seu irmo Jos
Joaquim Monteiro de Barros, rico fazendeiro sediado em Congonhas do Campo e que tinha relaes
privilegiadas na praa fluminense com o comerciante de grosso trato Jos Francisco de Mesquita.22
Irmo de Romualdo e Jos Joaquim, o sacerdote Marcos Antnio Monteiro de Barros elegeu-se
senador por Minas Gerais, em 1826, mesmo ano em que o tambm irmo Lucas Antonio Monteiro
de Barros foi escolhido para a bancada senatorial paulista. O futuro visconde de Congonhas do
Campo j havia ocupado postos de destaque no governo joanino antes de ser indicado por d. Pedro
para a presidncia da provncia de So Paulo, em 1824, cargo que abandonou aps sua nomeao
para o Senado.23 Seu filho Antnio Augusto Monteiro de Barros foi membro dos Conselhos da
19 Sobre os Monteiro de Barros, ver BROTERO, Frederico de Barros. A famlia Monteiro de Barros. s/e, 1951. 20 CARRARA, ngelo A. A Zona da Mata mineira: diversidade econmica e continusmo (1839-1909). Dissertao de
Mestrado. Niteri: UFF, 1993, p. 35-36. 21 Romualdo Jos Monteiro de Barros (?-1855), futuro baro de Paraopeba, era natural de Congonhas do Campo e o
quarto filho do guarda-mor Manuel Jos Monteiro de Barros e de Margarida Eufrsia da Cunha Matos. Em Minas
Gerais foi membro do segundo governo provisrio (1823) e eleito conselheiro (1825-1829) e suplente (1830-1833) na
1 e 2 Sesses do Conselho da Presidncia de Minas Gerais. Foi eleito, tambm, para a 1 (1828-1830) e 2 Sesses
(1830-1833) do Conselho Geral de Minas Gerais. Exerceu a Vice-presidncia de Minas Gerais em 1850. Cavaleiro da
Imperial Ordem de Cristo, foi agraciado com o ttulo de baro de Paraopeba em 1854. Do seu casamento com Felizarda
Constncia Leocdia da Fonseca teve os seguintes filhos: Antnio Jos Monteiro de Barros, Francisco de Paula
Monteiro de Barros (indicado por D. Pedro para a ouvidoria da comarca do Serro), Francisca Monteiro de Barros,
Miguel Eugnio Monteiro de Barros e Margarida Eufrsia Monteiro de Barros e Maria Jos Monteiro de Barros, que se
casou com com Jos Cesrio de Miranda Ribeiro (1752-1856), deputado por Minas Gerias na 1 e 2 legislaturas e
suplente na 3. 22 Em conjunto com seu irmo Romualdo, Joaquim importou do Rio de Janeiro para a provncia de Minas Gerais, no
perodo de 1808-1830, mais de 620 escravos em 24 remessas. Cf. MARTINS, Roberto Borges Martins. A transferncia
da corte portuguesa para o Brasil: impactos sobre Minas Gerais. In: IIII Seminrio sobre a Economia Mineira:
Economia, Histria, Demografia e Polticas Pblicas. Diamantina, 2008, p.15 [online]. Acesso em janeiro de 2014. 23 Lucas Antonio Monteiro de Barros (1767-1851), baro e depois visconde de Congonhas do Campo, era natural de
Congonhas do Campo, Minas Gerais. Filho primognito do Guarda-Mor Manuel Jos Monteiro de Barros e Margarida
Eufrsia da Cunha Matos, seguiu jovem para Portugal onde estudou Direito da Universidade de Coimbra. Ao retornar
para o Brasil, foi nomeado pelo governo joanino ouvidor da comarca de Vila Rica (1808); desembargador da Relao
da Bahia (1808), continuando no exerccio da Ouvidoria de Vila Rica; Intendente do Ouro da Corte (1812);
Desembargador da Casa da Suplicao (1814), continuando no exerccio da Intendncia do Ouro; Superintendente-
Geral dos Contrabandos (1819); e Juiz Conservador da Companhia de Vinhos do Alto Douro. Durante a Regncia e o
primeiro Reinado de D. Pedro, foi nomeado Chanceler da Relao de Pernambuco (1821); Desembargador do Pao
(1821); Ouvidor da Comarca de Sabar (1825). Foi eleito deputado pela Provncia de Minas Gerais para as Cortes de
Lisboa (1821-1822) e para a Assembleia Constituinte de 1823. Foi nomeado o primeiro Presidente da Provncia de So
Paulo, cargo que ocupou entre 1 abril de 1824 e 5 de abril de 1827. Eleito senador pela Provncia de So Paulo em 22
de janeiro de 1826, tomou posse a 10 de maio de 1827. Recebeu o ttulo de Baro em 12 de outubro de 1825 e de
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Presidncia e do Conselho Geral de Minas Gerais, deputado e mais tarde senador do Imprio. A
temporada de Congonhas do Campo em So Paulo permitiu que os Monteiro de Barros
aumentassem sua insero na economia e sociedade paulistas, a exemplo de Rodrigo Antonio
Monteiro de Barros,24 filho do Visconde, que se casou com Maria Marcolina Prado, ao mesmo
tempo meia-irm e prima do influente Antonio da Silva Prado,25 futuro Baro de Iguape, alm de
conseguir ser eleito deputado por So Paulo para a 2 legislatura do Imprio. Homnimo do pai
visconde, Lucas Antonio Monteiro de Barros casou-se com Cecilia Breves de Morais, pertencente
ao ncleo dos Souza Breves, uma das famlias mais ricas do vale do Paraba fluminense.26 Tambm
membro da famlia, Manoel Jos Monteiro de Barros chegou a ser suplente do Conselho da
Presidncia e membro efetivo do Conselho Geral, ambos por Minas Gerais.
Os setores diretamente beneficiados com a chegada da famlia real sobretudo membros da
burguesia portuguesa e nobres emigrados para o Rio de Janeiro, bem como ricos negociantes e
proprietrios fluminenses estavam originalmente associados ao projeto do Conde de Linhares, o
qual buscava reformular o Imprio portugus a partir do reconhecimento do Reino do Brasil como
pea chave na estrutura imperial lusa.27 A ideia da formao de um Imprio protugus renovado
com sede no Rio de Janeiro compactuava com o entendimento de que o imenso territrio colonial
dotado de regies distintas economicamanete, repleto de recursos naturais e com uma populao
livre em crescimento guardava as condies necessrias para a produo de riquezas e para o
delineamento de uma entidade poltica autnoma, cujo sucesso poderia equipar-lo s naes ditas
civilizadas. Mais tarde, quando o movimento revolucionrio do Porto j encontrava desdobramentos
em terras brasileiras, esses homens, diante da impossibilidade de conciliar os interesses dos
Visconde no mesmo dia e ms do ano seguinte. Ainda recebeu o ttulo de Visconde com grandeza em 2 de junho de
1841. Cf. EGAS, Eugenio Galeria dos presidentes de So Paulo. So Paulo: Seo de obras do "O Estado de S. Paulo",
1926, v.1 (Perodo Monrquico), p.25-26. 24 Rodrigo Antonio Monteiro de Barros (?-1844) era natural de Minas Gerais. Filho de Lucas Antonio Monteiro de
Barros, o Visconde de Congonhas do Campo, tornou-se bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1827,
quando foi nomeado juiz de fora da cidade de So Paulo. Foi deputado por So Paulo na 2 e 4 legislaturas, ouvidor da
comarca de So Paulo e desembargador da Relao de Pernambuco em 1842. 25 Antonio da Silva Prado foi um dos principais arrematadores de contratos e comerciantes de reses e muares da
provncia de So Paulo nas primeiras dcadas do sculo XIX. No ocupou cargos polticos relevantes, talvez porque
tivesse quem o representasse. Ao longo do ano de 1832, por exemplo, atuou como comandante do 1 batalho de
Guardas Nacionais da cidade de So Paulo cf. APESP, Acervo Digital Ofcios Diversos, ofcio de 29/08/1832,
30/08/1832, 08/10/1832, 01/12/1832. Sobre a figura do negociante Silva Prado, ver PETRONE, Maria Thereza Schrer.
O Baro de Iguape. Um empresrio da poca da Independncia. So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1976. 26 LOURENO, Thiago Campos Pessoa. O Imprio dos Souza Breves nos Oitocentos: poltica e escravido nas
trajetrias dos Comendadores Jos e Joaquim de Souza Breves. Dissertao de Mestrado. Niteri: ICHF-UFF, 2010,
p.30-33. Outro filho de Lucas Antnio, o coronel Incio Gabriel Monteiro de Barros, tornou-se prspero fazendeiro em
Bananal. 27 Refiro-me aqui ao conhecido texto produzido por d. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), datado de 1797 ou
1798 e intitulado Memria sobre o melhoramento dos domnios de Sua Majestade na Amrica. Sobre o pensamento de
d. Rodrigo e suas implicaes na poltica metropolitana portuguesa, ver DINIZ-SILVA, Andre Mansuy (org.). D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, textos polticos, econmicos e financeiros (1783-1811). Lisboa: Editora Banco de Portugal,
1993; SILVA, Ana Rosa Coclet da. Inventando a nao. Intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do
Antigo Regime portugus (1750-1822). So Paulo: Hucitec-Fapesp, 2006.
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portugueses dos dois lados do Atlntico, participaram diretamente na separao de Portugal,
defendendo um Estado monrquico centralizado, unitrio, de dimenses imperiais, em que a
poltica local estaria subordinada ao governo central, reafirmando-se a a proeminncia do Rio de
Janeiro como centro do Imprio, e em que a Coroa gozaria de um papel de destaque na conduo da
mquina pblica, aspiraes essas que ganharam concretude na Carta de 1824.28
Essas figuras, todavia, no estavam a ss. Desde os primeiros decncios do sculo XIX
assistiram ao advento de mltiplos interlocutores no campo da poltica, uma das consequncias da
luta pela conquista de mercados, terras, capital e poder dentro do panorama acima descrito. Dito
isso, de se lembrar que participao de negociantes, agricultores, militares e burocratas na base de
sustentao do governo joanino e, posteriormente, do Primeiro Reinado, ainda que variada, no
abrangeu todos os setores proprietrios do centro-sul beneficiados com a instalao da Corte no Rio
de Janeiro. A projeo poltica da maior parte da classe proprietria, sobretudo de pequenos e
mdios produtores, ainda se encontrava atada esfera local, quadro que no se alterou
substancialmente com a instaurao do Imprio brasileiro.
Donos de engenhos de cana-de-acar e de lavras, produtores e comerciantes de gneros de
primeira necessidade, criadores e negociantes de tropas de burro, esses homens, especialmente
oriundos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e So Paulo, tiveram papel fundamental nos debates
ocorridos nas Cortes de Lisboa, na viabilizao do Fico, na composio das Juntas de Governo e
no endosso (ainda que momentneo) Carta de 1824, mas no chegaram a ser recrutados por d.
Pedro para o Ministrio.29 Acabaram organizando-se, alternativamente, nas esferas de poder as
quais dependiam de processos eleitorais,30 tais como as Cmaras Municipais, os Conselhos
Provinciais e, em especial, a Cmara dos Deputados, divisando nas sucessivas convocaes do
Parlamento, a partir de 1826, um modo de abrir espao poltico na Corte, ampliando sua rede de
negcios e projeo poltica.31 Tais espaos, no entanto, tambm foram granjeados fora das esferas
28 OLIVEIRA, Cecilia Helena L. de Salles, op. cit., 2009, p.45-46; JANCS, Istvn. A construo dos Estados
Nacionais na Amrica Latina. Apontamentos para o estudo do Imprio como projeto. In: SZMERECSNYI, Tams;
LAPA, Jos Roberto do Amaral (org). Histria Econmica da Independncia e do Imprio. So Paulo,
Hucitec/FAPESP, 1996, p. 3-26. 29 OLIVEIRA, Cecilia Helena L. de Salles, op. cit., 2009, p.45. 30 Nas ltimas dcadas a bibliografia tem aceitado a ideia de que, na primeira metade do sculo XIX, o voto era um
direito estendido boa parte dos cidados brasileiros. Para integrar o corpo de votantes e participar das eleies
primrias era necessrio ter cidadania brasileira e possuir renda lquida anual de 100 mil ris, ao passo que para ser
eleitor e integrar as eleies secundrias a renda apresentada deveria ser no mnimo o dobro. J relativamente baixos
quando da sua marcao pela Carta de 1824, os pr-requisitos exigidos, aliados crescente inflao, ficavam menos
restritivos a cada eleio e transformavam o voto em um direito em expanso, especialmente no que tange base de
votantes, fato esse que foi largamente percebido pelos contemporneos, de modo que o tema perpassaria todo o sculo
XIX, sendo questo presente nas ocasies em que se discutiram as reformas eleitorais. Sobre o assunto ver GRAHAM,
Richard. Formando un gobierno central: las elecciones y el orden monrquico en el Brasil del siglo XIX. In: ANNINO,
Antonio (coord.). Histria de las elecciones em Iberoamrica, siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica,
1995, p.347-380. 31 No plano da teoria poltica as eleies representavam, junto com a diviso de poderes e o constitucionalismo, a
essncia da ideia de regime representativo. No jurdico-administrativo, o instrumento legal que daria viabilidade
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oficiais de poder e dos negcios, como por exemplo, pela imprensa peridica. No toa que ao
longo das primeiras legislaturas viriam a compor um dos principais grupos de oposio ao governo
de d. Pedro.
Parte desses setores foi tema da j citada obra As Tropas da Moderao, de Alcir Lenharo,
que analisou o abastecimento de gneros de primeira necessidade da Corte feito por Minas Gerais
durante o perodo de 1808 a 1842, pormenorizando questes como a estruturao dos meios de
distribuio e o alcance das bases socioeconmicas da produo, sem perder de vista a
fundamentao poltica do fenmeno estudado e, notadamente, a projeo de homens do sul
mineiro ligados a esse ramo econmico, como Jos Bento Ferreira de Melo, que por sua vez tinham
ligaes com polticos de outras provncias, a exemplo de Evaristo da Veiga (Rio de Janeiro) e
Antnio Francisco de Paula Sousa (So Paulo). A amplitude poltica dos proprietrios interioranos
aumentou com a Abdicao, quando vrios representantes desse setor j se encontravam instalados
na Corte. Com a retirada de cena do imperador, a luta poltica fez abrir espaos para que grupos
regionais, como o do setor abastecedor, fossem coresponsveis pela administrao regencial.32
Estudos recentes tm apontado a importncia de se analisar o papel da dimenso local,
sobretudo das provncias, na configurao e viabilizao do estado monrquico-constitucional com
sede no Rio de Janeiro. contracorrente de interpretaes mais difundidas que tendem a
compreender o nascimento do Imprio como o resultado de um conjunto de acordos polticos de
carter clientelista,33 manifestos no governo supostamente centralizador de d. Pedro durante o
Primeiro Reinado, esses novos trabalhos vm matizando o entendimento a respeito da estrutura
poltica imperial a partir da nfase no estudo da dimenso provincial, que, no limite, consistiu na
principal esfera de poder local durante os primeiros anos do Imprio. Esse destaque conferido s
instncias polticas locais tem ampliado o conhecimento referente s diferentes provncias,
possibilitando construir um painel mais completo de suas diferenas, semelhanas e peculiaridades,
o que sugere olhar a construo da monarquia brasileira por um ngulo diferente: a consolidao do
Estado imperial no decurso do sculo XIX no seria o produto de uma mera cooptao dos
elementos provinciais pelo governo central enraizado no Rio de Janeiro, dominador e
participao poltica dentro de uma monarquia constitucional. E, no simblico, o motor que a cada novo pleito
conferiria legitimidade ao regime adotado, sedimentando a concepo de um Estado nacional no apenas de direito, mas
tambm de fato. As eleies ocorriam quase o tempo todo, de forma que a mobilizao de votantes e eleitores era
praticamente contnua. Assim, o processo eleitoral provinha tanto de uma nova ideologia quanto de um desejo prtico
dos grupos locais em acalentar suas antigas pretenses de alcanar o poder por vias legais. Cf. GRAHAM, op. cit. Sobre
o papel das eleies nos regimes representativos, ver MANIN, Bernard. Los principios del gobierno representativo.
Trad. esp. Fernando Vallespn. Madrid: Alianza Editorial. 32 LENHARO, op. cit. 33 Para uma anlise crtica recente sobre a questo do clientelismo na historiografia brasileira, ver VELLASCO, Ivan de
Andrade. Clientelismo, ordem privada e Estado no Brasil oitocentista: notas para um debate. In: CARVALHO, Jos
Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das (org.). Repensando o Brasil do Oitocentos. Cidadania, poltica e
liberdade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009, p.71-100.
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consensualmente estabelecido. Ela seria, antes, o resultado de um complexo jogo poltico em que os
agentes provinciais pugnaram no Parlamento, nas esferas de poder local, na imprensa e, no raro,
mediante o uso de armas no sentido de consolidarem sua participao no controle do novo Estado
a ser construdo. 34
Em outro sentido, trabalhos desenvolvidos nas ltimas dcadas dentro das universidades
brasileiras vm apontando para uma leitura renovada sobre a histria poltica do Imprio, ao
abordar questes como a formao da opinio pblica, a constituio de projetos polticos, a
atuao de estadistas e matizados segmentos sociais e os nexos da sociedade imperial com a
escravido. Tais estudos tm repensado a preeminncia do econmico sobre a prtica poltica e a
ciso entre ideias e realizaes sociais, rompendo assim com o paradigma explicativo da
polarizao entre dominantes e dominados e lanando luz, por conseguinte, ao carter fundamental
da cultura e da iniciativa dos homens na construo das sociedades modernas. 35
Embora ancoradas em matrizes terico-metodolgicas distintas, teses e dissertaes tm
posto em cheque uma das interpretaes mais persistentes sobre a formao do Estado brasileiro: a
de que sua gnese se deu em meio a uma contradio incontornvel, expressa na incongruncia
entre os princpios liberais e a realidade brasileira, supostamente timbrada pelo legado colonial, pela
escravido e pela ausncia de projetos que vislumbrassem transformaes sociais efetivas por parte
daqueles que conduziram o processo de construo do novo Estado-nao. Em contrapartida, essas
novas pesquisas vm questionando a tese do atraso da sociedade brasileira oitocentista em relao
modernidade europeia e estadunidense, bem como a ideia do inacabamento da nao e da
incapacidade de se erigir entre os brasileiros uma monarquia constitucional representativa que
contemplasse os interesses, ainda que divergentes, dos agentes polticos em disputa.36
34 Sobre o assunto, e tendo em vista o centro-sul do Imprio, ver os trabalhos de CARVALHO, Marcio Eurlio Rio de.
Afirmao de uma esfera pblica de poder em Minas Gerais (1821-1851). Tese de doutorado. Belo Horizonte:
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2003; DOLHNIKOFF, op. cit., GOUVA, op. cit., 2008;
SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construo da hegemonia liberal-moderada na provncia de Minas Gerais (1830-
1834). So Paulo: Hucitec, 2009; SILVA, Ana Rosa Cloclet da. De comunidades a Nao. Regionalizao do poder,
localismos e construes identitrias em Minas Gerais (1821-1831). almanack braziliense (online). So Paulo, n.2, nov,
2005; SLEMIAN, Andra. Sob o imprio das leis: Constituio e unidade nacional na formao do Brasil (1822-1834).
Tese de doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 2006. 35 MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Liberalismo, monarquia e negcios: laos de
origem. In: ________ (orgs.). Monarquia, liberalismo e negcios no Brasil: 1780-1860. So Paulo: Edusp, 2013, p.09-
33. 36 Ver, entre outras obras, BERBEL, Mrcia Regina; MARQUESE, Rafael B.; PARRON, Tmis. Escravido e poltica:
Brasil e Cuba, 1790-1850. So Paulo: Hucitec, 2010; BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Mrcia (orgs.). Memria e
(Res)Sentimento: Indagaes sobre uma Questo Sensvel, 2 ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2004; CARVALHO, Jos
Murilo de (org.). Nao e cidadania no Imprio: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007;
GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.), op. cit.; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles; BITTENCOURT, Vera
Lcia N.; COSTA, Wilma Peres (orgs.). Soberania e conflito: configuraes do estado nacional no Brasil do sculo
XIX. So Paulo: Hucitec, 2010; PEIXOTO, Antonio Carlos; GUIMARES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria
Emilia (orgs.). O liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prtica. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001;
RIBEIRO, Gladys (org.). Brasileiros e cidados: modernidade poltica, 1822-1930. So Paulo: Alameda, 2009.
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Considerando os aspectos acima tratados, a presente tese tem como objetivo analisar a
ascenso de polticos mineiros e paulistas no mbito da formao do Estado nacional brasileiro
entre 1823 e 1834, atentando para dois movimentos simultneos e interligados. O primeiro diz
respeito criao de esferas de poder em nvel provincial em So Paulo e Minas Gerais, em que
ser privilegiada a atuao dos conselhos provinciais o Conselho da Presidncia e o Conselho
Geral , sua relao com o Legislativo e Executivo e, consequentemente, seu engajamento na
viabilizao de uma monarquia constitucional sediada no Rio de Janeiro. Trata-se de examinar de
que maneira a composio dos poderes provinciais inscreveu-se no processo de afirmao de um
estado monrquico-constitucional representativo em meio a outras propostas vigentes de
organizao do Estado poca.
O segundo movimento refere-se projeo de paulistas e mineiros no cenrio poltico da
Corte, seja no Legislativo, a partir de 1826, seja no Executivo, mormente aps a Abdicao. O
horizonte temtico o das relaes/ mediaes entre a construo simultnea dos poderes locais e
central, problematizando-se a denominada oposio centralizao versus descentralizao, bem
como os fundamentos polticos desse debate no perodo. Em suma, quais seriam as inspiraes e
experincias que modelaram tanto o projeto de configurao da monarquia representada pela
legitimidade dinstica com os Bragana quanto as propostas ditas moderadas e exaltadas, que
questionaram as bases do governo de d. Pedro I? Com isso pretende-se matizar o chamado projeto
liberal moderado, o qual obteve grande respaldo em So Paulo, Minas Gerais e na Corte no
perodo estudado, partindo-se da hiptese de que a atuao de polticos paulistas e mineiros,
notadamente no encaminhamento da reforma constitucional que se consubstanciou no Ato
Adicional, em 1834, foi permeada por interesses de grupos provinciais e influenciada pelo debate
poltico ocorrido em nvel provincial.
Do ponto de vista do tema e da periodizao adotados, o debate e a ao poltica que se
deram nas provncias e na Corte ensejam o contato entre duas dimenses inseparveis, a crer nas
orientaes de Pierre Rosanvallon no que tange formao dos Estados modernos.37 De um lado, a
da paulatina institucionalizao do Estado imperial a partir do cumprimento da Carta de 1824 e da
implementao das instituies por ela asseguradas. De outro, a da prtica poltica desenvolvida
nessas instituies que, no tocante aos rgos provinciais, assumiu feies distintas de acordo com
as demandas e os interesses de determinados grupos locais. Para tentar dar conta desse
entrelaamento utilizou-se se um repertrio variado de fontes38 que nos permitiu cotejar diferentes
37 ROSANVALLON, Pierre. La Dmocratie Inacheve. Histoire de la Souverainet Universal em France. Paris:
Gallimard, 1992; The Demands of Liberty: Civil Society in France since the Revolution. Harvard: Harvard University
Press, 2007; Por uma histria conceitual do poltico. Revista Brasileira de Histria. So Paulo: APUHH/ Ed. Contexto,
n30, 1995. Trad. de Paulo Henrique Martinez. 38 Ver o tpico Fontes e Bibliografia.
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esferas de prtica poltica. Buscou-se, articuladamente, confrontar os discursos engendrados nesses
espaos da poltica com o objetivo de deslindar suas relaes, concordncias e divergncias com
relao insero do poder provincial no quadro mais geral de definio das bases do Estado
imperial.
Com intuito de obter um melhor entendimento dos grupos polticos paulistas e mineiros no
perodo, a tese visa, tambm, analisar outra dimenso da luta poltica, qual seja, a do debate
promovido pela imprensa nas provncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo entre o incio
do Primeiro Reinado e a concluso da reforma constitucional, em 1834. Diferentemente da pesquisa
de Mestrado,39 onde se procurou aprofundar a discusso sobre jornais especficos, aqui temos a
inteno de analisar uma gama maior de peridicos a fim de mapear os nexos e conflitos entre
redatores, propostas e projetos polticos veiculados pela imprensa nas trs provncias abordadas.
Cabe notar que, a despeito das diferentes matrizes interpretativas que compem as pesquisas sobre a
histria do Imprio, a imprensa peridica tem figurado entre seus estudiosos como importante
instrumento de discusso poltica, na medida em que, alm de difundir concepes e propostas
poltico-administrativas voltadas para a questo da instaurao do Estado nacional, desempenhou
tambm um papel fundamental enquanto rgo doutrinador do posicionamento poltico da poca.40
A escolha da cronologia 1823-1834 deu-se tendo em vista dois momentos fundamentais
no estabelecimento dos poderes provinciais ao longo do Primeiro Reinado e dos primeiros anos da
Regncia. O ano de 1823 marca a convocao da Assembleia Constituinte e uma primeira
definio, pela lei de 23 de outubro, da estrutura poltico-administrativa dos governos provinciais.
J o ano de 1834 se refere aprovao do Ato Adicional e da lei que regulamentou o
funcionamento do cargo de presidente de provncia, cujas implicaes afetaram a organizao dos
grupos polticos do Imprio, dentre eles os liberais moderados que se viram divididos e num
momento de reordenao , representando a supresso dos conselhos provinciais e o advento das
Assembleias Provinciais.
O trabalho est estruturado em quatro captulos: no primeiro sero analisados os vnculos
entre poltica e economia em Minas Gerais e So Paulo nos primeiros anos do Imprio, com nfase
39 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Frana de. Poder local e palavra impressa: So Paulo, 1824-1834. So Paulo:
Annablume/Fapesp, 2011. 40 MARSON, Izabel Andrade. Movimento Praieiro, 1842-1849: imprensa, ideologia e poder poltico. So Paulo:
Editora Moderna, 1980; MOREL, Marco. As transformaes dos espaos pblicos: imprensa, atores polticos e
sociabilidade na cidade imperial (1820-1840). So Paulo: Hucitec, 2005, FERREIRA, Tania Maria Bessonde da C.;
MOREL, Marco; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira. (orgs.). Histria e Imprensa: representaes culturais e prticas
de poder. Rio de Janeiro: DP&A/ Faperj, 2006; MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (orgs.). Histria da
Imprensa no Brasil. So Paulo: Editora Contexto, 2008. Para obras de referncia sobre a origem da imprensa na
Amrica portuguesa e no Brasil, ver RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil 1500-1822. So Paulo:
Imprensa Oficial do Estado/Imesp, 1988; SODR, Nelson Werneck. A histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:
Imprensa Brasileira, 1966; VIANNA, Helio. Contribuio histria da Imprensa no Brasil (1812-1869). Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro/ Imprensa Nacional, 1945.
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para os grupos de poder de ambas as provncias e a sua insero no processo de construo do
Estado nacional. O captulo seguinte ter como foco os chamados conselhos provinciais o
Conselhos da Presidncia e o Conselho Geral de So Paulo e Minas Gerais, atentando-se para a
atuao poltica e participao na composio do poder de ambas as provncias. No terceiro captulo
ser discutida de que forma paulistas e mineiros passaram a ocupar, a partir de 1826, o Legislativo
do Imprio, bem como de que modo os representantes dessas localidades atuaram com relao ao
encaminhamento das demandas especficas de suas provncias. O quarto e ltimo captulo versar
os projetos de Imprio e a reforma da Carta de 1824, lanando luz para a participao de polticos
paulistas e mineiros nesse processo, aprofundando-se o estudo sobre os nexos entre
poderes/demandas locais e governo central. Espera-se, dessa forma, contribuir para o debate
histrico e historiogrfico acerca das lutas polticas, dos protagonistas e dos projetos que esto
imbricados configurao do Imprio do Brasil entre 1823 e 1834.
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23
1.
Poltica e economia no centro-sul do Imprio no incio do
sculo XIX
Em princpios do sculo XIX, o adensamento do movimento de mercantilizao da produo
e da concentrao fundiria no centro-sul, aliado s disputas pelo controle do mercado fluminense,
do comrcio de cabotagem e das atividades importadoras e exportadoras, impulsionou embates
intensos entre negociantes radicados na Corte e no Reino de Portugal, mercadores ingleses,
proprietrios do sul de Minas, So Paulo e do norte fluminense (Recncavo e Campos de
Goitacases).41 Esses enfretamentos ganham amplitude quando cotejados bibliografia mais recente,
a qual vem mostrando que tanto em Minas Gerais quanto em So Paulo delineava-se uma economia
dinmica, com possibilidades variadas de produo e mercado, e que por isso mesmo era atrativa
para setores diversos da populao, situao distante do perfil decadentista42 replicado pelos estudos
tradicionais sobre ambas as provncias na primeira metade do sculo XIX.43
41 OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. A astcia liberal. Relaes de Mercado e Projetos Polticos no Rio de Janeiro
(1820-1824). So Paulo, Editora cone e Edusf, 1999, p.80. 42 Inconsistente em termos terico-metodolgicos, o conceito de decadncia oferece no poucas dificuldades para a
anlise histrica. Em primeiro lugar porque carreiam a ideia de que o desenvolvimento, entendido como algo
eminentemente econmico, algo natural e inevitvel, uma vez que as sociedades esto supostamente em constante
progresso e sempre na mesma direo a economia de mercado. Em segundo, ambas trazem tona a no menos
problemtica concepo de ciclo (ciclo da minerao, ciclo da cana-de-acar, ciclo do caf), que tende a enrijecer
os fenmenos histricos e interpret-los a luz de um nico paradigma explicativo, marcadamente etapista, ignorando
assim que as sociedades constituem-se a partir de diversas camadas da vida humana, sejam elas atreladas economia,
poltica e cultura. Sobre o tema, ver LE GOFF, Jacques. Histria e memria. 1 edio 1977. Trad. port. So Paulo:
Editora da Unicamp, 2003 e VEYNE, Paul. Como se Escreve a Histria. 1 edio 1971.Trad. port. Braslia: UNB,
1982. 43 Segundo parte da bibliografia consagrada, So Paulo passou por um sensvel perodo de decadncia entre o trmino
do movimento bandeirista e meados do sculo XIX, momento em que houve um incremento econmico proporcionado
pela lavoura cafeeira exportadora, cf. CANABRAVA, Alice. Uma economia de decadncia: os nveis de riqueza na
Capitania de So Paulo, 1765/1767. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: 26(4): 95-123, out./dez., 1972;
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24
Os textos mais conhecidos sobre a histria de So Paulo no se detiveram suficientemente
nos processos inseridos entre dois supostos marcos o bandeirismo e o advento do caf ora
enfatizando a proeminncia dos bandeirantes na ocupao do territrio e na descoberta das minas,
ora afirmando que o dinamismo socioeconmico de So Paulo cristalizou-se a partir de 1850, com o
desenvolvimento da lavoura cafeeira. A maneira grandiloquente como foram tratados esses dois
temas, aliada a uma suposta escassez de fontes referentes ao desenvolvimento socioeconmico
paulista no perodo anterior a 1872, ano do primeiro censo nacional, fez com que grande parte da
bibliografia considerasse esse perodo intermedirio como de pouca expressividade, portador de
uma estagnao socioeconmica que s seria superada com a consolidao do ouro verde.44
Trabalhos produzidos a partir da dcada de 1970 questionaram diretamente a insuficincia
do paradigma da decadncia paulistana e, em termos gerais, paulista.45 Ao discutir o grande
crescimento demogrfico ocorrido em So Paulo entre 1690 e 1765, Maria Luiza Marclio notou
que nesse perodo houve um aumento nas atividades agrcolas da capitania, seja em decorrncia do
acrscimo populacional ocasionado pelo advento da explorao do ouro, seja pela transplantao da
sede da Amrica portuguesa de Salvador para o Rio de Janeiro. No clssico A Lavoura Canavieira
em So Paulo, Maria Thereza Petrone demonstra que o sucesso das lavouras de caf a partir de
1850 s foi possvel devido infraestrutura comercial, financeira e de transportes implementada
pela cultura canavieira durante o ltimo quartel do sculo XVIII e a primeira metade do sculo
XIX. Tal infraestrutura, contudo, s pode ser concretizada na medida em que a economia de So
Paulo sofreu gradativamente uma alterao estrutural, ou seja, passou de uma configurao mais
regional e voltada para o mercado interno para outra assentada na grande produo exportadora e
escravista. Petrone nota que esses dois processos, ocorridos de forma simultnea e articulada,
resultaram da ao dos polticos da capitania como idealizadores de polticas pblicas voltadas para
a viabilizao dos mesmos.46 Mais recentemente, Ana Paula Medicci observou que o dinamismo
ELLIS JNIOR, Alfredo. A economia paulista no sculo XVIII: ciclo do muar, ciclo do acar. So Paulo: Academia
Paulista de Letras, 1979; PRADO, Paulo. Paulstica etc. So Paulo, Companhia das Letras, 2001; PRADO JR., Caio
Prado. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1999 [1942]; LYRA, Maria de Lourdes Viana.
Dzimos Reais na Capitania de So Paulo. Contribuio Histria Tributria do Brasil Colonial (1640-1750).
Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 1970. 44 LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evoluo da Sociedade e Economia Escravista de So Paulo, de 1750 a
1850. So Paulo: EDUSP, 2006, p. 15-24. Sobre o mito do bandeirante, ver o estudo pioneiro de MACHADO,
Alcntara. Vida e morte do bandeirante. So Paulo/ Belo Horizonte: Edusp/ Itatiaia, 1980 [1929] e ABUD, Ktia Maria.
O sangue intimorato e as nobilssimas tradies. A construo de um smbolo paulista: o Bandeirante. Tese de
Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 1985. 45 ABUD, Ktia Maria. Autoridade e riqueza. Contribuio para o estudo da sociedade paulistana na segunda metade do
sculo XVIII. Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 1978; KUZNESOF, Elizabeth Anne. The role of
merchants in the economic development of So Paulo: 1765-1850. Hispanic American Historical Review, v. 60, p. 571-
592, nov. 1980. MARCLIO, Maria Luiza. Crescimento demogrfico e evoluo agrria paulista. 1700-1836. So
Paulo: Hucitec/Edusp, 2000; RABELLO, Elizabeth Darwiche. As elites na sociedade paulista da segunda metade do
sculo XVIII. So Paulo: Safady, 1980. 46 PETRONE, Maria Thereza Schrer. A Lavoura Canavieira em So Paulo. Expanso e Declnio (1765-1851). So
Paulo, Difuso Europeia do Livro, 1968.
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econmico de So Paulo ao longo do sculo XVIII oriundo, sobretudo, da produo e do
comrcio de produtos agrcolas , alm de colocar em dvida a noo de declnio, permite
questionar o porqu da construo dessa ideia. 47 A autora assinala como o discurso da decadncia
produzido por autoridades pblicas entre 1782 e 1822, apropriado posteriormente por parcela da
bibliografia como indcio da fragilidade da economia paulista, esteve intimamente associado aos
interesses desses funcionrios, preocupados em legitimar sua interveno poltica diante de
situaes forjadas por sua prpria retrica, procedimento esse tambm observado por Milena
Maranho j para o sculo XVII.48 Cabe ressaltar, ainda, as pesquisas que vem desvendando os laos
entre negcios e poltica na capitania e depois provncia de So Paulo, especialmente ao mostrar a
participao dos comerciantes na economia paulista, bem como a insero desses homens nas
esferas oficiais de poder.49
No caso das Gerais, autores vm questionando o suposto refluxo econmico ocorrido nas
Minas oitocentistas com base em estudos que comprovam a disseminao da propriedade escrava,
de diferentes formas de acesso terra e produo distintas do binmio plantation/brao escravo
aplicado a outras regies e do desenvolvimento de um amplo leque de atividades econmicas.50
47 MEDICCI, Ana Paula. Entre a decadncia e o florescimento: capitania de So Paulo na interpretao de
memorialistas e autoridades pblicas (1782/1822). Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 2005. 48 MARANHO, Milena Fernandes. A opulncia relativizada: significados econmicos e sociais dos nveis de vida dos
habitantes da regio do Planalto de Piratininga (1648-1682). Bauru: Edusc, 2000. Cabe ressaltar aqui o trabalho de Ilana
Blaj, que notou, j para o final do sculo XVII e incio do XVIII, a insero da economia paulista numa complexa rede
comercial interna sociedade colonial que envolvia outras regies, sobretudo Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nesse
contexto, a vila de So Paulo j portaria o status de centro de trocas mercantis, cf. BLAJ, Ilana. A trama das tenses. O
processo de mercantilizao de So Paulo colonial (1681/1721). So Paulo: Humanitas, 2002. Da mesma autora, ver o
artigo Agricultores e comerciantes em So Paulo. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v.18, n.36, p.281-296,
1998. Ver, tambm, MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo, So
Paulo: Companhia das Letras, 1995. 49 ARAJO, Maria Luclia Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. So
Paulo: Hucitec/Fapesp, 2006; BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negcios e poderes em So
Paulo colonial (1711-1765). So Paulo: Alameda/ Fapesp, 2010; MATTOS, Renato de. Poltica, administrao e
negcios: a capitania de So Paulo e sua insero nas relaes mercantis do Imprio Portugus (1788-1808).
Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 2009; MEDICCI, Ana Paula. Administrando conflitos: o exerccio
do poder e os interesses mercantis na capitania/provncia de So Paulo (1765-1822). Tese de Doutorado. So Paulo:
FFLCH-USP, 2010; MONT SERRATH, Pablo Oller Mont. Dilemas e Conflitos na So Paulo restaurada: formao e
consolidao da agricultura exportadora (1765-1802). Dissertao de mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 2007;
PUNTSCHART, William. Negcios e negociantes paulistas (1808-1822). Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP,
1998. 50 No que se refere s Minas Gerais, a ideia de um perodo de inflexo econmica est associada ao declnio da
atividade mineradora. Para parte dos autores que corroboram dessa premissa, como Francisco Iglesias (Minas Gerais, in
HOLANDA, Srgio Buarque de (org.). Histria Geral da civilizao brasileira, tomo II, v.2. So Paulo: Difuso
Europeia do Livro, 1978, p.364-412; periodizao da histria de Minas. Revista Brasileira de Estudos Polticos, n 9,
julho de 1970) e Roberto Simonsen (Histria Econmica do Brasil, 1500-1820. So Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969), o decrscimo da atividade mineradora teria gerado uma economia de subsistncia sem importncia
econmica, que s seria superada com o advento da Repblica. Jnia Furtado acredita que a falta de estudos para Minas
Gerais no sculo XIX seja decorrente, em parte, da difuso dessa concepo entre a literatura acadmica. Cf.
FURTADO, Junia Ferreira. Historiografia mineira: tendncias e contrastes. Vria Histria. Belo Horizonte, n 20, mar.
1999, p.46. Ver ainda FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1989.
1 edio: 1959 e PRADO JR., op. cit., 1999. Em artigo recente, Eduardo Frana Paiva assinalou que at por volta da
dcada de 1980 perdurou um vis interpretativo sobre o sculo XIX mineiro fortemente influenciado pelo tema da
riqueza das Gerais, isto , ao faustoso sculo XVIII se contraps um Oitocentos pobre e decadente, a ser remediado
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Muito alm de um perfil provincial, historiadores tm ressaltado o carter plural da sociedade
mineira oitocentista, a qual era dotada de contrastes regionais, de uma populao livre e escrava
numerosa e ascendente e de uma economia diversificada.51 Roberto Borges Martins e Douglas Cole
Libby trouxeram tona aspectos reveladores sobre a economia mineira no sculo XIX. Ambas as
pesquisas mostraram que a provncia teve no apenas o maior plantel escravo do Imprio durante a
primeira metade do sculo, mas tambm esteve entre as principais importadoras de cativos. 52 Para
Martins, o alto nmero de escravos trazidos para as Gerais decorria da existncia de um intenso
mercado interno capaz de manter a demanda por novos cativos. Esse comrcio era constitudo em
sua maioria por gneros de primeira necessidade, produzidos em pequenas e mdias unidades
agrcolas que proliferaram em solo mineiro em fins do sculo XVIII e incio do XIX, trao que
indicaria no uma ruralizao forada, mas um redirecionamento de recursos e perfil econmico.53
Douglas Libby mergulhou mais a fundo na questo e observou como a provncia de Minas
conseguiu se estruturar em diferentes setores produtivos como a indstria txtil, siderrgica,
metalrgica, a minerao subterrnea e a lavoura canavieira exportadora54 e conjug-los a ponto
apenas com o surgimento da Repblica. Do ltimo quartel do sculo XX pra c floresceu, entretanto, um esforo
revisionista lastreado em extensa pesquisa documental, o qual tem proposto novas leituras a respeito das Minas Gerais
sob o Imprio, cf. PAIVA, Eduardo Frana. Minas depois da minerao [ou o sculo XIX mineiro]. In: GRINBERG,
Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009. V.1 (1808-1831),
p.271-308. Como notou Wlamir Silva, essa renovao historiogrfica tem recuado inclusive para o perodo colonial. O
autor cita, entre outros trabalhos, GUIMARES, Carlos M. & REIS, Liana M. Agricultura e escravido em Minas
Gerais (1700-1750). Revista do Departamento de Histria (2), Belo Horizonte: CFMH, junho de 1986; CHAVES,
Cludia Maria das Graas. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. Dissertao de mestrado. Belo
Horizonte: Fafich/UFMG, 1995; SILVEIRA, Marco Antnio. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas
setecentistas (1735-1808). So Paulo: Hucitec, 1997; MENESES, Jos Newton Coelho. O continente rstico:
abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaa, 2000. Cf. SILVA, Wlamir.
Liberais e povo: a construo da hegemonia liberal-moderada na provncia de Minas Gerais (1830-1834). So Paulo:
Hucitec, 2009, p.51. 51 Ver ANDRADE, Francisco Eduardo. A enxada complexa: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira
metade do sculo XIX. Dissertao de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1994; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de.
Minas Gerais no ps-auge minerador: uma trajetria historiogrfica. Registro: Informativo do Centro Nacional de
Referncia Historiogrfica. Mariana, ano 2, n 4, set.1995-fev.1996; CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da
capitania provncia: elites polticas e a administrao da fazenda em um espao em transformao. Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro: UFF, 2007; REZENDE, Irene Nogueira de. Negcios e participao poltica: fazendeiros da
Zona da Mata de Minas Gerais (1821-1841). Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 2008; SCHWARTZ, Stuart
B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. 52 MARTINS, Roberto Borges. Growing in Silence: the Slave Economy of Nineteenth-century Minas Gerais, Brazil.
Tese de Doutorado. Nashville: Vanderbilt University, 1980; Minas e o trfico de escravos no sculo XIX, outra vez. In:
SZMRECSNYI & LAPA, Jos Roberto (orgs.). Histria econmica da Independncia do Brasil e do Imprio. So
Paulo: Hucitec-Fapesp, 1993; MARTINS FILHO, Almicar & MARTINS, Roberto B. Slavery in a Nonexport Economy:
Nineteenth-Century Minas Gerais Revisited. HAHR, v.63, n.3, 1983; LIBBY, Douglas Cole. Transformao e trabalho
em uma economia escravista. So Paulo: Brasiliense, 1988. 53 A tese de Martins no foi de todo aceita pelos estudiosos das Gerais. Robert Slenes chegou a afirmar que Martins
conferira muita importncia ao mercado interno, quando na realidade era o setor exportador aquele responsvel pelo
incremento da mo de obra escrava, cf. PAIVA, op. cit., p.283. Ver SLENES, Robert W. Os mltiplos de porcos e
diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no sculo XIX. Estudos Econmicos, So Paulo, v.18, n 3, 1988,
p.449-495. 54 Para a dcada de 1830, calcula-se que Minas Gerais possua mais de 4 mil unidades produtivas com transformao da
cana-de-acar, que empregavam, sazonalmente, aproximadamente 40% da fora de trabalho escrava da provncia na
fabricao de acar, rapadura e aguardente, cf. GODOY, Marcelo Magalhes. No pas das minas de ouro a paisagem
vertia engenhos de cana e casas de negcios. Um estudo das atividades agroaucareiras tradicionais mineiras, entre o
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de estabelecer uma economia dinmica, voltada tanto para o mercado externo como interno. A
constatao da diversidade de situaes regionais, atividades produtivas e relaes de trabalho tm
gerado estudos microrregionais que, em conjunto, evidenciam a impossibilidade de tratarmos as
Gerais oitocentistas de forma homognea.55
1.1. Entre caminhos e vilas: aspectos socioeconmicos de So Paulo e Minas Gerais nas
primeiras dcadas do sculo XIX
1.1.1. So Paulo
Na primeira metade do sculo XIX, a cidade de So Paulo constitua o ponto de referncia
para a provncia como um todo.56 Centro poltico-administrativo e militar, sede do bispado local e o
principal elo poltico com a Corte, sua localizao estratgica lhe rendera muito cedo a condio de
entroncamento virio para as principais regies da provncia: para o norte, seguindo pelos sertes
do Camanducaia e do Sapuca, atingia-se Juqueri, Atibaia, Bragana e o sul de Minas; para
norte/nordeste, passando por Jundia, Campinas, Moji-Mirim e o serto do Rio Pardo, chegava-se a
Minas Gerais e Mato Grosso; para leste estendia-se o vale do Paraba, que fazia fronteira como o
Rio de Janeiro; para o noroeste o viajante encontrava Itu e Porto Feliz e, mais a oeste, trilharia por
Sorocaba, Faxina, at chegar nos campos de Curitiba; por fim era possvel seguir para o sul, rota
que desembocava no litoral e no porto de Santos.57 Por isso mesmo o centro administrativo paulista
era local de passagem de viajantes e tropas que escoavam a produo do planalto, impondo-se como
espao privilegiado de negcios da provncia.58
So Paulo no era, em si, um ncleo produtivo de grande importncia.59 Alm do ch,60 a
principal cultura agrcola da cidade, esta produzia em pequena escala aguardente, arroz, farinha de
Setecentos e o Novecentos, e do complexo mercantil da provncia de Minas Gerais. Tese de Doutorado. So Paulo:
FFLCH-USP, 2004, p.525. 55 Ver, especialmente, GODOY, Marcelo Magalhes. Intrpidos viajantes e a construo do espao: uma proposta de
regionalizao para as Minas Gerais do sculo XIX. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 1996; PAIVA, Clotilde Andrade
de. Populao e economia nas Minas Gerais do sculo XIX. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 1996. 56 MOURA, Denise A. Soares de. Sociedade movedia: economia, cultura e relaes sociais em So Paulo 1808-1850,
So Paulo: Ed. Unesp, 2006. 57 PRADO JR., Caio. Evoluo Poltica do Brasil e outros estudos. So Paulo: Brasiliense, 1972. Inspirado em
Capistrano de Abreu, particularmente em sua obra Caminhos antigos e povoamento do Brasil, Teodoro Sampaio
chamaria esses caminhos de artrias histricas, dada sua importncia no processo de ocupao do planalto paulista,
cf. SAMPAIO, Teodoro. So Paulo no sculo XIX. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo. So
Paulo, 1902, v.06, p.163. 58 PUNTSCHART, op. cit. 59 Tal caracterstica acabou sendo mal interpretada por estudiosos sobre a capital paulista. sabido que desde o fim do
sculo XIX, com a publicao de estudos como os de Afonso de Freitas e Teodoro Sampaio, ligados ao Instituto
Histrico e Geogrfico de So Paulo, de Spencer Vampr e Almeida Nogueira, vinculados Faculdade de Direito do
Largo So Francisco, e de memorialistas ou jornalistas como Nuto SantAnna e Aluisio de Almeida, tornou-se prtica
comum atribuir cidade de So Paulo do incio dos Oitocentos um perfil de atraso econmico e cultural quando
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mandioca, feijo, milho, amendoim, fumo e algodo, alm de contar com criaes de porcos e de
algum gado cavalar, muar e vacum. Havia, tambm, a confeco de telhas e couros.61 As atividades
urbanas eram o cerne da vida econmica paulistana, que contava com alfaiates, carpinteiros,
sapateiros, ferreiros, caixeiros negociantes, pescadores, seleiros, pedreiros, costureiras, marceneiros,
serradores, tanoeiros, oleiros, barbeiros, dentre outros profissionais.62 No campo da cultura So
Paulo dava os primeiros passos para se aproximar de outras capitais do Imprio, sendo
fundamentais neste quesito o advento do Gabinete Literrio (1825) primeira biblioteca pblica da
cidade , do Curso Jurdico (1827), da primeira tipografia da provncia (1827), da Sociedade
Filomtica (1830) e da Sociedade Harmonia Paulistana (1832).63
So Paulo, porque capital, era por excelncia o palco da poltica paulista, seja por abrigar as
mais altas esferas do poder institucionalizado seja por contar com um espao extraoficial de debate
mais dinmico, que tinha como combustvel a nica tipografia em solo paulista at meados dos anos
1830. Fato curioso, todavia, o de que durante o Primeiro Reinado e o incio da Regncia a cidade
de So Paulo foi, por assim dizer, menos o reduto de nomes consagrados do que propriamente um
centro de articulao poltica onde setores de diferentes partes da provncia se faziam presentes e
lutavam pelo poder. evidente que entre os paulistanos havia nomes de certa projeo, sobretudo
no seio dos autointitulados liberais, e que as corridas eleitorais da poca revelam um esforo no
comparada a outras localidades da Amrica portuguesa e, depois, do Imprio, situao que em termos gerais espelharia
a condio de outras vilas paulistas. Movidas por um tom memorialstico e carentes de pesquisa emprica e referncias
tericas, essas obras forjaram uma falsa dicotomia, qual seja, a de uma So Paulo antiga autrquica, isolada,
pertencente ao passado e outra moderna, urbana e desenvolvida, com razes na segunda metade do sculo XIX. Cf.
FREITAS, Affonso A. de. Tradies e reminiscncias paulistanas. Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1985
[1921]; SAMPAIO op. cit.; VAMPR, Spencer. Memrias para a histria da Academia de So Paulo. So Paulo:
Saraiva, 1925, 2 v.; NOGUEIRA, J.L. de A. A Academia de So Paulo. Tradies e reminiscncias. So Paulo:
Saraiva, 1977, 3v.; SANTANNA, Nuto. So Paulo histrico: aspectos, lendas e costumes. So Paulo: Departamento de
Cultura, 1944, 6 v.; ALMEIDA, Aluisio de. Vida e morte do tropeiro. So Paulo: Martins/EDUSP, 1981. As pesquisas
de Afonso Taunay, Ernani Silva Bruno e Richard Morse, publicadas em meados do sculo XX, conferiram maior
profundidade interpretativa ao desenvolvimento histrico da capital paulista, notadamente por conta da variedade da
documentao utilizada atas de Cmara, relatos de viajantes, almanaques, jornais e documentos avulsos , mais ainda
assim no chegaram a alterar substancialmente a memria que se constituiu sobre So Paulo. Taunay tratou So Paulo
das primeiras dcadas do sculo XIX como pacfica e modorrenta, ao passo que Silva Bruno definiu-a como um
arraial de sertanistas que s a partir da instalao do Curso Jurdico (1828) comearia a livrar-se do seu longo
perodo de decadncia, transformando-se assim num burgo de estudantes que, por volta de meados dos Oitocentos,
ganharia importncia econmica com a insero da lavoura cafeeira em terras paulistas. Richard Morse, por sua vez,
compreendeu a So Paulo desse perodo como uma cidade em transio, que deixava de ser uma comunidade
estruturada na economia de subsistncia e na introverso sociocultural para dar espao metrpole mercantil do caf,
o que se configuraria apenas depois da metade do sculo XIX. Cf. TAUNAY, Affonso de Escragnolle. Histria da
cidade de So Paulo. So Paulo: Melhoramentos, 1953; Histria colonial da cidade de So Paulo no sculo XIX. So
Paulo: Departamento de Cultura, 1956; BRUNO, Ernani da Silva. Histria e Tradies da cidade de So Paulo. Rio de
Janeiro: Jos Olympio, 1953, 3 v.; MORSE, Richard M. Formao histrica de So Paulo. So Paulo: Difuso
Europeia do Livro, 1970. Para uma leitura crtica desses autores, ver SILVA, Rodrigo da. Sobre taipas e textos: um
estudo sobre as narrativas a respeito da cidade de So Paulo (1772 e 1953). So Paulo: Alameda, 2013. 60 Um dos introdutores do ch na cidade de So Paulo, o marechal Jos Arouche de Toledo Rendon escreveu um
opsculo chamado Memria sobre a plantao, cultura, e fabrico do ch. 61 ARAJO, op. cit., p.42. 62 MOURA, op. cit., p.74-75. 63 QUEIRZ, Suely Robles Reis de. So Paulo. Madrid: MAPFRE, 1992.
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sentido de promover polticos de razes locais, em sua maioria homens ligados s atividades da
administrao municipal, como vereadores, juzes de paz, oficiais de milcias e, posteriormente, das
guardas nacionais. Mas o diferencial da poltica da cidade estava justamente na atuao de homens
como o baiano Jos da Costa Carvalho, que se fi