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Nave de Haver -Fuentes de Ooro:No h compadres sem conflitos ou a Histria de uma raia em permanente definio.Antnio Maria Balco Vicente

Quero, em primeiro, lugar agradecer organizao destas Primeiras Jornadas de Estudo sobre Nave de Haver, o amvel convite que me endereou para participar nestes trabalhos. Fao-o a nvel pessoal, nesta terra qual me encontro to profundamente ligado por laos familiares h mais de trinta anos, e em nome do Instituto Alexandre Herculano de Estudos Regionais e do Municipalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que tem como uma das suas primeiras vocaes o apoio a este tipo de iniciativas. Tentar abordar uma possvel interpretao das relaes que as comunidades humanas, no Riba-Ca, foram, ao longo dos sculos, estabelecendo com o espao onde acabaram por se integrar e com o qual hoje se identificam no tarefa fcil. Dessa dificuldade resulta, alis, a ausncia de um estudo global da regio para qualquer dos perodos histricos, embora comecem a abundar monografias parcelares assentes em investigao que poderia potenciar um estudo mais amplo e generalizado. Ora, ciente destas dificuldades que tenho a ousadia de vos apresentar algumas perspectivas sobre os modelos que entendo como determinantes para a materializao do tipo cultural que enforma o vulgarmente designado homem raiano e no caso especfico, o de Nave de Haver. Para isso, importa ter presente as caractersticas fsicas deste espao que todos ns to bem conhecemos. Trata-se essencialmente de uma faixa planltica disposta no sentido sul-norte, com uma cota mdia superior a setecentos metros, e delimitada entre os vales do Ca e do gueda. Esse tambm o sentido das principais ribeiras que o atravessam, com especial destaque para a de Toures e a de Dos Casas com a sua nascente aqui bem prxima, junto da Fonte da Bicha. Todo este espao se caracteriza por solos pobres, pouco profundos e muito erosionados, com um elevado nvel de acidez, o que associado a um clima de

- Instituto Alexandre Herculano de Estudos Regionais e do Municipalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Texto apresentado nas I Jornadas de Estudo sobre Nave de Haver - 29/30 de Dezembro de 2006.

2 caractersticas continentais, com Veres quentes e secos e Invernos muito rigorosos, oferece fracas potencialidades ao desenvolvimento de uma agricultura rica. Exceptuam-se, naturalmente, a esta viso pessimista algumas pequenas bolsas de caractersticas especiais na rea das Barreiras e os inmeros vales que se alongam nas margens dos pequenos riachos e ribeiras que pululam um pouco por todo o lado como afluentes e subafluentes dos cursos de gua que j mencionmos. Algumas dessas bolsas, como , alis, o caso das barreiras onde se localizam as vinhas, sero protagonistas de alguns dos conflitos existentes entre as comunidades de Nave de Haver e as de Fuentes de Ooro. Face a este panorama geral, no surpreende que a pastorcia, especialmente a de ovinos e caprinos, se tornasse, em toda a regio, na mais importante actividade, cabendo agricultura um mero papel residual e subsidirio numa economia que para a generalidade das gentes no ia alm da subsistncia. Desta situao resultam algumas tradies, provavelmente milenares, que ainda recentemente associavam s festas populares o consumo da carne fresca identificada com a carne de borrego. A predominncia da pastorcia sobre a agricultura deve estar, tambm, na origem do tipo de ocupao do espao que se iria estruturando ao longo dos sculos em comunidades mais ou menos fechadas sobre si mesmas e que apenas estabeleciam laos de unio em caso de ameaa aos interesses comuns. So comunidades de pastores, que facilmente se hierarquizam num sistema de chefaturas, onde a valentia e a capacidade guerreira so especialmente valorizadas. Talvez o exemplo mais conhecido seja o modelo que nos transmitido pelos foros longos de Alfaiates, to bem estudados pelo Professor Jos Mattoso. Estes foros revelam-nos a existncia de uma comunidade em que as elites se caracterizam fundamentalmente pela sua capacidade guerreira, especialmente importante nas incurses de rapina que executavam em direco ao sul, geralmente sobre terras da moirama. Mas tambm na proteco dos rebanhos, ao longo de rotas de transumncia ancestrais, o que favorecia, por um lado, a perpetuao de costumes comunitrios e, por outro, a manuteno de uma forte autonomia face aos diversos poderes centrais que sempre tentaram controlar, tantas vezes em vo, estas comunidades marginais. Mas, analisemos, agora, como estas comunidades organizavam o espao em que viviam garantindo a manuteno de autonomias ancestrais. Cremos que a romanizao

3 apenas levemente ter influenciado a vida castreja1, pouco interferindo na vida quotidiana das populaes, desde que isso no chocasse com a administrao e a segurana da pax romana. Boa parte dos locais fortificados devem assentar sobre antigos castros das Idades do Bronze2 e do Ferro que, atravessando os perodos romano e visigtico, tero encontrado, a partir do sculo V, motivos para acentuar as suas tendncias de autonomia. A manuteno da ganadaria como a principal actividade econmica da regio, para alm da importncia crescente que a explorao mineira veio desempenhando a partir da Idade do Bronze, facto comprovado at finais do sculo XIV, permite-lhes manter a ambincia guerreira, garante do seu individualismo e independncia, situao que se reforaria, alis, no perodo que medeia at ao sculo VIII, pelo facto de constituir a extrema ocidental da Espanha Visigtica face s reas onde a tradio sueva mais se fazia sentir. Reflexo da ancestralidade deste tipo de modelo econmico e estrutura social poder ser o que a toponmia nos revela atravs do termo Batocas que, segundo Jos Pedro Machado, poder ter origem em lngua pr-indoeuropeia, idntica ao actual basco e formada a partir dos timos batz e oki, significando local de encontro de pastores com os seus rebanhos3. Foi, no entanto, aps a invaso muulmana que, certamente, se verificaram as maiores mudanas no modelo, at ento existente, que poderemos designar como de nichos ecolgicos, de comunidades cuja vida se alicerava na pecuria e onde as elites locais emergiam em funo do prestgio proveniente da posse de um maior nmero de cabeas de gado e da capacidade para as defender contra os inmeros perigos que se apresentavam ao longo dos trajectos de transumncia. Uma vez que detinham maior nmero de reses de admitir que lhes correspondesse uma maior responsabilidade na defesa dos rebanhos comuns, sem que tal deixasse, no entanto, de ser uma tarefa comunitria. Mas, se as responsabilidades aumentavam, naturalmente cresciam,1

- A quantidade de assentamentos da Idade do Ferro, atravs da identificao de castros e berres pode dar-nos uma perspectiva da densidade populacional na regio. No actual territrio de Ciudad Rodrigo, a Ocidente do gueda, podem identificar-se dois castros (Iruea e La Plaza) e quatro berres (Puerto Seguro, Barquilla, Gallegos de Argaan e Iruea).MARTIN BENITO, Jose Ignacio e MARTIN BENITO, Juan Carlos, Prehistoria y romanizacin de la tierra de Ciudad Rodrigo, Ciudad Rodrigo, 1994, p. 123. Mais a Norte, em rea intimamente ligada ao Riba Coa, a Poente do rio Camaces, h vestgios de berres em San Felices de los Gallegos, La Redonda e Lumbrales. Na parte portuguesa do Riba Coa, embora no exista uma inventariao sistemtica da ocupao da Idade do Ferro, h referncias a berres em Castelo Melhor, S. Pedro do Rio Seco, Freineda e Bismula. J na margem esquerda do Coa, Castelo Mendo continua a ostentar os seus berres porta da vila.- O museu da Guarda conserva duas espadas do Bronze, provenientes de Castelo Bom e Vilar Maior.

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- MACHADO, Jos Pedro, Dicionrio onomstico etimolgico da lngua portuguesa, Lisboa, 1993 I, p. 227.

4 tambm, os meios para as satisfazer, o que redundava no fortalecimento das prprias elites, lentamente associadas a chefaturas militares. Ter sido, alis, a prpria pecuria a influenciar a localizao de uma parte dos povoados mais antigos que, preferencialmente se situam no topo de colinas de onde era possvel controlar os rebanhos e as reas de pasto. Os povoamentos mais recentes preferiram reas de encostas suaves, junto de leitos de ribeiras. Correspondendo os primeiros a ncleos autnomos sem qualquer relao de dependncia com o exterior e estruturando-se somente em relaes internas de solidariedade, sero os segundos o resultado de uma polinuclearidade dos primeiros? Correspondem os primeiros a uma estrutura gentlica, que ao desintegrar-se assimilar laos preferencialmente de ndole territorial, originando comunidades aldes, sem que perca completamente aqueles? Nesta perspectiva se entenderia o abandono de alguns ncleos originais menos adequados a este modelo, como sucedeu com Caria Talaia, o Sabugal Velho, e mesmo Monforte, numa fase em que os poderes externos comearo a fazer-se sentir, com peso, na regio. Desta forma a cada ncleo original deveria corresponder um castelo rural4, herdeiro do antigo castro. Eram estes homens, simultaneamente pastores e guerreiros, quem assegurava a sua defesa contra as razias provenientes quer do Al Andaluz quer do reino asturo-leons. Alis, o carcter rudimentar e a ausncia de estruturas defensivas complexas apontam no sentido de estes castelos no integrarem qualquer rede de poder monrquico ou senhorial. o que sucede com o castelo de Vilar Maior que a comunidade de Nave de Haver continua carinhosamente a apelidar de vila, e que nunca ultrapassou uma simples cerca at D. Dinis lhe ter adossado uma imponente torre, contrastando com a simplicidade daquela. Provavelmente, escavaes arqueolgicas em Castelo Bom, Castelo Melhor e Almendra no revelariam uma realidade muito diferente, s alterada aps as intervenes dionisinas. Deveremos entender que qualquer poder central que pretendesse controlar estas comunidades dificilmente o conseguiria sem recurso s suas elites 5 que, eventualmente, veriam nessa ligao uma forma de reforar o seu prestgio e riqueza face aos vizinhos, mediante o eventual apoio s incurses que, por conta prpria,4

- Reyes Tllez, F. e Menndez Robles, M. L., Sistemas defensivos altomedievales en las comarcas del DuratnRiaza (VIII-X), II Congreso de arqueologa medieval espaola, 1987, vol. III, pp. 632-639 e MARTIN VISO, (=Sayago) p. 18. - A partir do sculo XII aparecero designadas como cavaleiros vilos. Ver MATTOSO, Jos, Da comunidade primitiva ao municpio: o exemplo de Alfaiates, Fragmentos de uma composio medieval, Lisboa, 1987, p. 40

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5 continuavam a fazer em territrio inimigo, como forma de complementar os escassos recursos proporcionados pela regio. certamente tendo em conta esta situao que Sancho II, j em meados do sculo XIII, estipula no foral de Castelo Mendo que non faciatis fossatum nisi cum domino uestro una uice in anno nisi fuerit per beneplacitum uestrum6. Mas a capacidade para gerir a autonomia face aos dois contentores e a possibilidade de se aliar ao que, conjunturalmente, maiores vantagens oferecesse diminuram, drasticamente, em meados do sculo XI, com a conquista definitiva da regio por Fernando Magno. O Riba-Ca iria, no entanto, manter-se uma rea propcia s correrias dos dois campos, o que continuaria a permitir, ainda, alguma margem de manobra s comunidades locais que continuavam a gozar de alguma autonomia. O cerco apenas se apertar cem anos mais tarde com a restaurao de Ciudad Rodrigo, em 1161, por D. Fernando II7, e a posterior redaco dos seus foros entre 1190 e 12098, modelo seguido por Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Cria, Cceres e Usagre. Deste facto poderemos depreender que a criao destes concelhos no deve corresponder a um repovoamento no sentido literal do termo, mas apenas ao reconhecimento da existncia destas comunidades e da integrao dos seus usos e costumes nas estruturas polticas leonesas. De facto, enquanto a coroa portuguesa se interessa preferencialmente pelo avano para sul ao longo da faixa litoral, a separao dos reinos de Leo e Castela aps a morte do imperador Afonso VII, obriga Fernando II de Leo a prestar uma particular ateno faixa ocidental do seu reino, onde se localiza o Riba-Ca, j que se encontrava liberto da responsabilidade do governo de Castela e que, em resultado da incluso de Bjar neste reino, ficava impedido de utilizar a Via Guinea, vulgarmente conhecida por Via da Prata, em direco a Cceres e ao vale do Tejo. Fica, assim, limitado rea de Ciudad Rodrigo para, atravs da Dalmatia ultrapassar a Transerra em direco ao Tejo. No admira, portanto que tenha repovoado Ciudad Rodrigo, apenas quatro anos depois de herdar a coroa, e se tenha empenhado no controlo das suas autnomas comunidades9.6 7 8

- IAN/TT, Chancelaria de D. Dinis, Lv I, fl. XXXVIII v. - XXXIX v - GONZLEZ, J. Alfonso IX, vol. I, pp. 265-270. - MATTOSO, Jos, Da comunidade primitiva ao municpio; o exemplo de Alfaiates, Fragmentos de uma composio medieval, pp. 35-48. - A prpria escolha de Ciudad Rodrigo no ter sido inocente. De facto, face ao cruzamento de eixos virios e sua localizao sobranceira ao principal vau do gueda, junto da Transerra, mostrar-se-ia estrategicamente fundamental no controlo de toda a regio. Tambm a coroa portuguesa se ter apercebido da sua importncia,

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6 Sintomaticamente, este processo inicia-se pela instalao de instituies estranhas regio, mas que mantinham laos preferenciais com o monarca: os monges cistercienses em Santa Maria de Aguiar (1165) e os cavaleiros militares de S. Julio no Pereiro 1156 1177). neste contexto que se deve entender o sbito interesse de D. Afonso Henriques pela regio, face ameaa que Leo ia estruturando sobre uma fronteira, at ento, pouco definida e amplamente disputada entre os dois reinos. D. Afonso Henriques, ao mesmo tempo que exerce um acto de soberania sobre o territrio atravs de uma doao a Santa Maria de Aguiar, tenta, em 1181, uma incurso militar em terras de Ciudad Rodrigo por intermdio do infante D. Sancho, a que corresponde uma derrota nos Campos de Argaan e qual se seguiria, em 1199, o desastroso recontro de Ervas Tenras contra os cavaleiros de Afonso IX. Mas as comunidades a Ocidente de Ciudad Rodrigo rapidamente passam a entrar na dependncia do poder rgio leons, perdendo grande parte da autonomia de que at ento tinham usufrudo, sem que tal facto tenha diminudo as suas condies de insegurana face ao perigo muulmano, sempre espreita para l da Transerra. De facto, uma bula de Lcio III reportando-se sede da Ordem de S. Julio do Pereiro, junto da aldeia de Cinco Vilas, refere que se localiza in sarracenorum faucibus. Alis, a insegurana da regio manifestar-se-ia, logo em 1174, com o cerco de Abu Jacub a Ciudad Rodrigo10. Alis, o interesse dos monarcas leoneses pelo Riba Coa pode ainda deduzir-se da permanncia, pouco habitual, dos dois monarcas na regio. H referncias de Fernando II se encontrar em Ciudad Rodrigo em 1171, certamente no regresso da campanha contra Badajoz, e em Janeiro e Maio de 1176. Afonso IX desloca-se a Castelo Rodrigo para lhe conceder foros em 1209, mas j em Maro de 1210 se encontra, de novo, em Ciudad Rodrigo para doar sua catedral tertiam partem de portaginem de illa populatione quam de novo feci in Castelo Roderici et tertiam partem de moneta quando illam ibi fecerint11, numa clara aluso s expectativas que colocava na importncia daquela fortificao fronteiria do Ca. Se Ciudad Rodrigo surge como um avano para Ocidente face importncia de Salamanca, Castelo Rodrigo aparece como

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justificando a reaco de D. Sancho. - GONZLEZ, Julio, Regesta de Fernando II, pp. 107-110.

- GONZLEZ, Julio, Alfonso IX, II, pp. 352-353.

7 a resposta de Afonso IX obra de seu pai, Fernando II que, 50 anos antes havia restaurado a velha Mirobriga. Do lado portugus a resposta muito lenta. Se a coroa portuguesa demorou vinte anos a responder obra de Fernando II em Ciudad Rodrigo, com a expedio derrotada em Gallegos de Argaan, Afonso IX cedo se apercebe do perigo representado pelo repovoamento de Pinhel por Sancho I, em 1191, invadindo o territrio portugus sete anos depois. Se no impediu que a vila continuasse fortificada 12 conseguiu, pelo menos, que at ao final do sculo XIII as foras portuguesas no reivindicassem militarmente a posse da regio que passou novamente a ser quase esquecida pela coroa portuguesa. D. Sancho I voltaria, ainda, no ano seguinte, a cercar Ciudad Rodrigo, mas sem qualquer consequncia. A ateno portuguesa apenas se dirigiria, novamente, para a fronteira do Ca em 1220, quando D. Afonso II concedeu foral Vila de Touro e em 1220, quando D. Sancho II criou os concelhos de Castelo Mendo e Sortelha em 1229. O primeiro concelho reconhecido pelo monarca leons deve ter sido o de Alfaites, seguido, em 1209, pela concesso dos foros s vilas de Castelo Rodrigo e Castelo Melhor. Do vasto termo do concelho de Castelo Rodrigo se formariam os de Castelo Bom e Almeida, tal como o de Alfaiates originaria os do Sabugal e Vilar Maior. A separao entre estes dois blocos do Riba-Ca estabelecia-se pela Carraria de Vale de Carros, topnimo que a maioria dos presentes nesta sala no ter qualquer dificuldade em identificar. Mas esta carraria, herdeira da velha Colimbriana que estabelecia a ligao entre Salamanca e Coimbra no separava apenas o vasto alfoz de dois extensos concelhos. Ela marcava a fronteira entre dois ambientes culturais identitariamente distintos, ainda que de caractersticas essenciais comuns. Provavelmente em resultado de uma mais prolongada ocupao muulmana e de um mais lento afastamento da fronteira, o sul do Riba-Ca criaria idiosincrasias que o individualizavam, embora mantivesse com as restantes comunidades as ancestrais solidariedades pastoris que a Idade Mdia consagraria sob a forma de germanitates. De alguma forma, poderamos afirmar que a estrada de Vale de Carros separava a zona das aldeias, a sul da dos vilares, a norte. De facto, a norte, a existncia do apelativo Vilar contrasta com a quase ausncia do termo Aldeia, to frequente no sul do Riba-Ca. A sul de Vilar Maior, localizam-se Aldeia da Ribeira, Aldeia da Ponte,12

- Receberia novo foral em 1209.

8 Aldeia Velha e Aldeia do Bispo. A norte de Vilar Maior, apenas Aldea del Obispo e Aldehuela de los Gallegos, em territrio espanhol, e Aldeia Nova no concelho de Almeida assinalam aquela forma. Por outro lado, na parte norte o apelativo Vilar surge em Vilar de Amargo, Vilar Formoso, Vilar Maior, Vilar Torpim, Vilar Tom, Villar de Ciervo e Villar de la Yegua j em territrio espanhol. Esta dicotomia poder reflectir uma ocupao crist mais antiga no norte da regio, uma vez que nas reas repovoadas aps 1185, em Portugal, o termo Vilar se torna bastante raro13. Nave de Haver situa-se, assim, na charneira entre estas duas reas, facto que ter sido determinante para que, durante as diversas reorganizaes administrativas do sculo XIX, ora integrasse o concelho do Sabugal, ora fosse includo no de Almeida. Mas analisemos, agora mais pormenorizadamente, o reconhecimento das comunidades de Vilar Maior, por parte de Afonso IX de Leo, uma vez que no alfoz que lhe atribui est claramente includo o termo do que vir a ser a freguesia de Nave de Haver. Por documento de Afonso IX de Leo, redigido no Sabugal, em 6 de Agosto de 1227, pela mo do magister Martini scriptor domini, e confirmado por carta de Afonso X de Leo e Castela, emitida em Valladolid em 6 de Agosto de 1258 14, foi criada a populationem de Villar Maior, concedendo-lhe os termos pelo portum de Vall Longo deinde ad ecclesiam de Meziuula, inde quomodo vertunt aque ad Alfaiates inde ad Cabeam de Anaziado deinde ad Atalaiam de Martyno Roderici inde ad Betoucas quomodo vadit ad Cabeam de Cavallo quomodo vertunt aque ad Fomte de Donouro inde ad Carraram que vadit ad Vall de Carros et intrat in Coa. O documento limita-se a identificar os topnimos que definem os limites do alfoz, no aludindo a nenhuma povoao do seu termo, excepto quando estas se localizam exactamente sobre a linde do concelho. Esto neste caso as povoaes de Valongo, embora o documento se refira mais precisamente ao porto com o seu nome, ou seja ao vau do rio para o Seixo do Ca, da Bismula, j que precisa que o limite vai bater justamente na sua igreja, e s Batocas, pelo mesmo motivo. No entanto, ao ignorar as povoaes de Escabralhado, Aldeia da Ribeira, Nave de Haver, Poo Velho, Malhada Sorda, Arrifana e Badamalos, no significa que no existissem. Pelo contrrio, a actual13

Sobre esta questo ver L. F. Lindley Cintra, Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, pp. XLII - XLVI, nomeadamente as notas 38-47. - Em 4 de Maro do mesmo ano j Afonso X havia confirmado o documento de seu av, em resposta a uma contenda sobre os limites concelhios que lhe havia sido colocada pelo concelho de Castelo Bom.

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9 manuteno dos microtopnimos que o documento referencia s pode ser explicvel se, nessa poca, o povoamento fosse idntico ao actual. De facto, de todos eles apenas no conseguimos identificar o Cabeo de Anaziado, que deve corresponder ao Cabeo de Guinaldo, a cerca de quilmetro e meio a leste da Aldeia da Ribeira, a uma cota de 883 metros. Todos os outros topnimos continuam a persistir na actualidade o que atesta a antiguidade deste povoamento. Trs deles, Cabea de Cavalo, Ribeira das Fontes e Estrada de Vale de Carros, localizam-se na freguesia de Nave de Haver e garantem que, apesar de o seu nome no ser mencionado, a presena dos seus povoadores no deixava de se fazer sentir. Facilmente se depreende que o limite norte do recm-criado concelho de Vilar Maior mantinha o que anteriormente correspondia separao entre os concelhos de Alfaiates e de Castelo Rodrigo. De facto, no documento que Afonso IX lhe concede em 1209 pode ler-se que o seu limite sul corresponde ho porto que he dito de Carros e dent adelant pela carreyra daquel mismo Porto de Carros, certamente localizado na proximidade das poldras do Ca que do acesso ao Jardo. Tudo dava a entender que o Riba-Ca estava definitivamente integrado no reino de Leo, no se perspectivando quaisquer iniciativas portuguesas que reivindicassem a sua posse. O longo e estvel reinado de Afonso X confirmava essa tendncia. No entanto, a morte do sbio rei, em 1284, daria incio a um perodo de grande instabilidade, com vrias guerras civis, em todo o reino de Castela de que D. Dinis saberia aproveitar-se habilmente. Sem pretender entrar em pormenores descabidos nesta assembleia, direi apenas que a Afonso IX sucedeu seu filho Sancho IV por entre conflitos armados, com o apoio de D. Dinis. Morto em Abril de 1295, instala-se definitivamente a guerra civil em Castela, com dois pretendentes ao trono: o infante D. Joo, irmo do defunto Sancho IV e o legtimo herdeiro, o seu filho Fernando, de apenas 9 anos de idade, sob a tutela da sua viva, D. Maria de Molina. D. Dinis joga com as duas partes em funo das conjunturas momentneas e, em meados de Outubro de 1295, encontra-se j em Ciudad Rodrigo, onde renova o contrato de casamento de sua filha Constana com Fernando IV, que na mesma cidade havia assinado com seu pai em Setembro de 1291, ao mesmo tempo que resolve alguns litgios relacionados com a fronteira alentejana. Trata-se, no entanto, de apenas mais um acordo conjuntural e destinado a ser esquecido por entre as nuvens de poeira levantadas pelas movimentaes militares da guerra civil que o rei portugus aproveita para ocupar as praas militares do Riba-Ca.

10 Em Setembro e Outubro do ano seguinte, avana com as suas tropas por Castela, ocupando Ciudad Rodrigo, Salamanca, Tordesilhas e Simancas, em apoio dos inimigos de Fernando IV. s portas de Valhadolid, face s presses de D. Maria de Molina, retira para a Beira, mas continua com a ocupao das praas ribacudanas. nessa altura, entre 8 e 27 de Novembro de 1296, que, a partir de Coimbra, concede cartas de foral aos diversos concelhos do Riba-Ca. Trata-se de documentos genricos, sem qualquer definio dos limites do respectivo alfoz, o que pressupe a necessidade de exerccio de um acto de soberania num espao que a tradio considerava em disputa entre as duas coroas, mas que no afectava a vida das comunidades locais. No ano seguinte, a posio de fora em que negociava, face fragilidade de Castela em plena guerra civil, levou-o a exigir em Alcaices o que a sabedoria aconselhava. A terra bastante para, na margem direita do Ca, criar uma marca de fronteira que garantisse a eficcia da segunda linha de defesa que se estendia de Numo a Penha Garcia, mas que para Castela no passava de um terreno pobre e marginal no justificador de uma guerra futura. O Riba-Ca entrava, para o bem e para o mal, definitivamente, no reino de Portugal. Menos de vinte e cinco anos depois, o Catlogo das Igrejas, realizado em 1320 e 1321, confirma a vitalidade da comunidade de Nave de Haver ao mencionar, entre as igrejas do termo de Vilar Maior, a de S. Bartolomeu de Nave de Haver, taxada em vinte libras, semelhana do que acontecia com a de Santa Maria da Bismula, com a de S. Joo da Malhada Sorda, com a de Santa Maria de Vilar Maior e apenas ultrapassada pela de S. Pedro da mesma vila que tinha rendimentos suficientes para ser taxada em quarenta libras. Em jeito de comparao, podemos avanar com os valores atribudos a outras igrejas, englobadas no vizinho termo de Castelo Bom, onde apenas as de Santa Maria da Freineda e S. Pedro do Rio Seco ultrapassavam aquele valor, com vinte sete libras e dez soldos e vinte e cinco libras respectivamente. A de S. Joo de Vilar Formoso era mais modesta, correspondendo-lhe uma taxa de apenas quinze libras, enquanto s de Santa Maria do Castelo e de S. Martinho de Castelo Bom correspondiam apenas vinte e dez libras respectivamente. Entretanto a vida da comunidade de Nave de Haver deveria prosseguir com a calma inerente rotina dos dias e dos trabalhos agro-pastoris.

11 Aps os documentos referidos anteriormente, apenas detectamos uma referncia indirecta a Nave de Haver, num documento de 14 de Dezembro de 1490. Trata-se de uma contenda sobre a definio da linha fronteiria entre a Freineda e Vilar Formoso do concelho de Castelo Bom, por um lado e Fuentes de Ooro por outro, dirimida entre as diversas partes acima de Nava Reyerta que es junto com el camino que va de Nava de Aver pera el dicho lugar de Villar Fermoso. Diferente situao se verifica em 1541, quando a contenda se verifica entre a comunidade de Nave de Haver e a de Fuentes pelo facto de que alguns moradores do Poo Velho da dicta Nave do Aver se entremetyo a fazer vinhas e faze las entre o dicto regno de Castylha ahy e em Vall Covo. Ora esta situao levou a que, face ausncia de documentos escritos, tanto em Vilar Maior como em Ciudad Rodrigo, que pormenorizadamente definissem a raia e a localizao dos malhes se realizasse um encontro entre as diversas partes envolvidas. Tal sucedeu em 16 de Maio de 1541, na folha de Nave de Haver, no Cabeo do Pinalejo, ao malho velho da raia que existia nas vinhas velhas. Por parte do reino de Portugal estavam presentes lvaro Eanes e lvaro Fernandes juzes ordinrios de Vilar Maior, lvaro Vaz e Francisco Choso vereadores de Vilar Maior, Duarte Gonalves, procurador da vila e Gonalo Eanes, morador em Nave de Haver, procurador do termo. Em representao de Castela, estavam presentes Diogo de Almodvar, alcaide de Ciudad Rodrigo, Fernando da Silva e Pedro Alvarez Centeno, regedores da cidade, Francisco Sanchez procurador da cidade e Pedro Pescoso, vyzinho de Vilar de Ciervo, sesmeiro do Campo de Argaan. Entre todos decidiram nomear diversos vizinhos que conhecessem por onde passava o limite da raia, desde o local onde se encontravam, ao Malho Velho do Pinalejo at ao outro malho que estava junto da Cabea do Cavalo, tendo todos jurado sobre os Santos Evangelhos concordar com o que eles decidissem. Da parte de Portugal foram nomeados Brtolo Esquerdo, Francisco Esteves e Joo Choroso, todos residentes na aldeia de Nave de Haver e por Castela foram indicados Pedro Miguel, Juan Joanes e Juan Perez, todos residentes em Fuentes de Ooro. Iniciaram no Malho Velho onde estavam nas cymas do Pinalejo em huma madronheira allvaryza e dahy foro cynquoenta passos cortando direitos onde fizero outro malho e dahy abaixando as vinhas velhas ate onde ouve corenta passos renovaro

12 outro malho, e hahy mais abaixo no valle decendo as dictas vinhas fizeram outro malho a cynquoenta passos, e dahy mays abaixo posero outro malho, e posero mais abaixo do dicto valle outro malho junto com h vinha de Joo Martinz, e outro malho em cyma do rybeiro das dictas vinhas, posero outro malho mais ao dyamte, no cabeo outeo malho, e dahy adyante outro malho em o meo da roca Pedro Gonalves Borrego, e ao Valejo posero outro malho, e em a Cabea de Valle Covo antre Valle Covo e as vinhas velhas fyzero outro malho, e dahy a mo esquerda contra Portugal fizero outro malho, decendo pra Vale Covo fizero outro malho, e dahy todo Valle Covo no meio da vinha de Joo Fernandes vizinho de Poo Velho fezeram outro malho, em o meo da lynde da dicta vinha fizero outro malho e em assumbre dambos os Vall Covos fizero outro malho e mays ao dyante o dicto Vall Covo fizero outro malho e mais ao dyante fyzeram outro malho ate o malho velho . Numa distncia de aproximadamente um quilmetro e meio foram colocados dezoito novos malhes. S uma utilizao muito intensiva do terreno, como o caso das vinhas pode justificar um to apertado controlo, situao perfeitamente explicvel se atendermos a que j no sculo XVI o topnimo vinhas velhas tinha razo de existir, comprovando a adequao destes terrenos para uma das culturas, desde sempre considerada das mais rendveis. Dever ter sido, alis, a excelncia destes terrenos para o seu cultivo que levou os moradores de Poo Velho a concretizar algumas incurses no termo das Fontes, exactamente no espao onde, ainda hoje, se localiza parte significativa das suas vinhas e no em qualquer outro ponto da raia. Mas, se dvidas tivssemos a este respeito, elas dissipar-se-iam ao constatar que, duzentos e quarenta e um anos depois, a situao se repetiria. certo que se trata, desta vez, no de moradores de Poo Velho, mas sim de Nave de Haver. E embora o documento no refira os motivos que levaram deligencia da demarcao e postura de marcos sobre que paresse haverem tido duvidas os povos fronteiros dita raya entre o lemite de NavedAver e Pinhal de Azaba15 dificilmente poder ser outro, distinto daquele que originara a contenda no sculo XVI, uma vez que se trata exactamente do troo da raia correspondente zona onde os moradores de Nave de Haver tinham e15

- Brs Garcia de Mascaranhas, no sc. XVII, referindo-se a Vilar Maior, afirma que a vila dista 3 lguas de Espeja que fica a hu lado do pinhal que comea na nossa arraia e vai ate perto de Cidad Rodrigo tem trs para quatro legoas de cprido hua e meia de largo, he mui espeso e ninho de ladres e animais seuaticos fica junto delle o lugar de Nave de Aver que he nosso. In Castelos, Raia da Beira:distrito da Guarda / [org.] Museu da Guarda, Departamento de Museus, Palcios e Fundaes do Instituto Portugus do Patrimnio Cultural; colab. Cmara Municipal de Almeida... [et al.] ; dir. e coord. Mrio Pereira, p.448

13 continuam a ter as suas vinhas. De algum modo, todo o traado da raia correspondente s vinhas de Nave de Haver foi verificado e confirmado pelas partes, se exceptuarmos o troo que se estende ao longo da cumeada, a Nordeste da Canada das Vinhas. Trata-se, neste caso, de uma distncia de cerca de mil e trezentos metros entre o Cabeo do Alto das Vinhas, correspondendo ao actual marco n 564, e o Cimo do Pinalejo, aqui identificado como Monte das Cabeas. Assim, no primeiro de Outubro de 1782, juntaram-se, no Cabeo das Vinhas de Nave de Haver, D. Joaquin Arrias e Pacheco, regedor permanente da Cidade Rodrigo, em representao do reino de Espanha e o Dr. Bento Jos do Amaral, cavaleiro da Ordem de Cristo, membro do Desembargo de Sua Majestade e Corregedor da Comarca de Viseu, pela parte de Portugal, acompanhados de Isidro Diogo e Jos Fernandes, vizinhos de Fuentes e Antnio Gonalves e Francisco Martins lvares , moradores em Nave de Haver, para examinarem os stios aonde se devio fixar os marcos devizorios regulando-se pelos vestgios que acharam No Cabeo do Alto das Vinhas, onde se encontravam, colocaram um marco que distava oitenta e sete passos do marco real que o antecedia. A a raia inflectia para nascente at ao local onde devia estar um outro marco que foi encontrado desenterrado e cado a meio da encosta. Deste marco, com uma cruz gravada a pico, a raia seguia em direco ao valado das vinhas de Nave de Haver e da respectiva ribeira, passando por uma outra cruz, virada a poente, e seguindo at encontrar um outro marco antigo, colocado dentro das ditas vinhas do referido lugar de Nave dAver, que dista do muro das mesmas dois passos. So naturalmente dois passos que se foram ilegitimamente acrescentando em detrimento do territrio do termo de Fuentes de Ooro, j que declararam os peritos de ambos os reinos have-lo sempre conhecido naquele referido stio. No houve sequer necessidade de mudar o marco para fazer avanar a vinha para terreno espanhol. Ainda no valado16, foram recolocados mais dois marcos, um dos quais num pequeno alto, antes de atingir o cume do teso do Monte das Cabeas, onde acharam um marco real divisrio, provavelmente o que ali havia sido colocado, no sculo XVI, na demarcao resultante da contenda com os moradores de Poo Velho. Mais uma vez, as questes entre estas duas comunidades vizinhas acabavam em total serenidade. certo que a tentao era grande. Afinal tanto La Alamedilla como16

- O termo valado deve entender-se no como topnimo, mas como a designao do terreno de plantio de vinhas, que se efectuava com a abertura de grandes valas.

14 Fuentes de Ooro ficavam a uma distncia superior a duas lguas e alguns metros de bom terreno de vinha podiam passar perfeitamente despercebidos. E mesmo quando a infraco fosse detectada, quase sempre compensava pelo tempo decorrido entre o crime e a sua correio. Mas, afinal, quantas famlias no tinham compadres nas povoaes espanholas vizinhas? E haver compadres que, uma vez por outra se no travem de razes? Assim se iam construindo os laos de amizade entre as comunidades dos dois lados da raia. Caxias, 28 de Dezembro de 2006

15 Concelho de Vilar Maior

16 Nave de Haver