não auto-incriminação

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1 - Princípios de Direito Processual Penal 1.2 - Princípio da não auto incriminação Tamanho da letra a a a Trata-se de um princípio de sede constitucional que não se encontra expresso na Constituição Federal. A afirmação acima, apesar de aparentemente contraditória, está correta. Afinal, tem-se que o §2° do artigo 5° da Constituição Federal estabelece que os direitos e garantias expressos na Carta Magna não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais firmados pela República Federativa do Brasil. O Pacto de São José da Costa Rica, firmado pelo Brasil, estabelece que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo, ou seja, consagra o princípio da não auto incriminação (artigo 8°, II, g). Logo, apesar de não estar no corpo da CF/88, trata-se de um princípio de ordem constitucional. O princípio da não auto incriminação traz várias consequências de ordem pratica. Uma delas, muito ventilada

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Page 1: não auto-incriminação

1 - Princípios de Direito Processual Penal1.2 - Princípio da não auto incriminação Tamanho da   letra

a a a  

Trata-se de um princípio de sede constitucional que não se encontra expresso na Constituição Federal. A afirmação acima, apesar de aparentemente contraditória, está correta. Afinal, tem-se que o §2° do artigo 5° da Constituição Federal estabelece que os direitos e garantias expressos na Carta Magna não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais firmados pela República Federativa do Brasil.

O Pacto de São José da Costa Rica, firmado pelo Brasil, estabelece que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo, ou seja, consagra o princípio da não auto incriminação (artigo 8°, II, g).

Logo, apesar de não estar no corpo da CF/88, trata-se de um princípio de ordem constitucional.

O princípio da não auto incriminação traz várias consequências de ordem pratica. Uma delas, muito ventilada até mesmo fora do meio jurídico, diz respeito ao conhecido teste do bafômetro.

Princípio da não auto-incriminação: significado,conteúdo, base jurídica e âmbito de incidênciaExtraído de: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes  -  26 de Janeiro de 2010 

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LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Investigação Preliminar e Direito ao Silêncio

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Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Princípio da não auto-incriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em http://www.lfg.com.br 26 janeiro. 2010.

Significado: o privilégio ou princípio (a garantia) da não auto-incriminação (Nemo tenetur se detegere ou Nemo tenetur se ipsum accusare ou Nemo tenetur se ipsum prodere) significa que ninguém é obrigado a se auto-incriminar ou a produzir prova contra si mesmo (nem o suspeito ou indiciado, nem o acusado, nem a testemunha etc.). Nenhum indivíduo pode ser obrigado, por qualquer autoridade ou mesmo por um particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração ou dado ou objeto ou prova que o incrimine direta ou indiretamente.

Qualquer tipo de prova contra o réu que dependa (ativamente) dele só vale se o ato for levado a cabo de forma voluntária e consciente. São intoleráveis a fraude, a coação, física ou moral, a pressão, os artificalismos etc. Nada disso é válido para a obtenção da prova. A garantia de não declarar contra si mesmo (que está contida no art. 14.3, g, do PIDCP, assim como no art. 8º, 2, g, da CADH) tem significado amplo. O não declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestação (ativa) do agente, seja oral, documental, material etc.

Origem histórica: o direito de não auto-incriminação é de origem muito antiga, porque fundado (como veremos logo abaixo) no instinto natural de preservação (ou autoconservação). De forma bastante clara pode-se afirmar que ele nasceu (na era moderna) como refutação (civilizadora) dos horrores gerados pela inquisição (Idade Média), conduzida pelo absolutismo monárquico e pela Igraja, que tinha na confissão a prova mais suprema (a rainha das provas), podendo-se alcançá-la inclusive por meio da tortura. A cultura civilizatória foi se posicionando gradativamente contra as atrocidades do sistema inquisitivo (procedimento secreto, desrespeito ao sistema acusatório, ausência de advogado, obrigatoriedade da confissão etc.), destacando-se nesse papel crítico (denunciador), desde logo, o iluminismo e o seu prócer máximo, que foi Beccaria (que dizia: com a tortura, enquanto o inocente não pode mais que perder, porque opondo-se à confissão e sendo declarado inocente, já sofreu a tortura, o culpado, por seu turno, pode até ganhar, se no final resiste à tortura e é declarado inocente).

De (mero) objeto de prova o investigado passou a ser sujeito de direitos, presumindo-se em seu benefício a inocência (art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789). Antes de Beccaria, claro, existem vários antecedentes importantes, merecendo destaque o do juiz inglês Dyer (citado por Jauchen), que concedeu um habeas corpus a um cidadão que havia sido forçado a prestrar juramento, que o compelia a se incriminar.

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Durante a inquisição a tortura era permitida e ainda se exigia do suspeito o juramento (conspurcatório) de que falaria a verdade (isso foi obra do papa Inocêncio III). No tempo da República romana o réu não tinha a obrigação de confessar ou de declarar. Isso começou a mudar com o Direito Canônico, que via na confissão arrependimento e expiação (submetimento a uma pena e suplício). Esse cenário sombrio para os direitos fundamentais do acusado (que monopolizou toda a Idade Média) sofreu profundas modificações (ulteriormente) durante os séculos XVII e XVIII. O art. 8º da Declaração dos Direitos de Virgínia (1774), por exemplo, já proclamava que "em todos os processos criminais o acusado não pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo".

Esse antecedente legislativo histórico foi a fonte da V Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que consagra o mesmo direito ("ninguém é obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmo). A Corte Suprema norte-americana ratificou o direito de não auto-incriminação em 1965 (Caso Griffin vs. California), observando que o acusador não pode se valer do direito ao silêncio para prejudicar o réu. Nesse mesma linha acha-se o famoso Caso Miranda vs. Arizona, de 1966 (onde a Suprema Corte sublinhou os limites do Estado frente a seus cidadãos, enfatizando que o Estado tem que produzir as provas de forma independente, sem contar com a colaboração do réu).

Fundamento natural: é da natureza do ser humano não se incriminar, lutar pela sua liberdade (inclusive pela fuga), defender-se de agressão injusta etc. Tudo deriva do instinto de conservação (da preservação da existência ou da liberdade etc.). O direito não pode remar contra a natureza. Como se vê, o direito de não auto-incriminação tem fundamento natural (instinto de preservação ou de auto-preservação, como dizia Bentham). O suspeito ou indiciado ou acusado pode até contribuir para a produção de uma prova incriminatória, mas isso fará se quiser. Obrigado ele não é, mesmo porque ele é presumido inocente.

Topografia (o direito de não auto-incriminação faz parte da autodefesa): não existe pena sem comprovação da responsabilidade (culpabilidade) do agente; não existe comprovação da culpabilidade sem processo (sem o devido processo); não existe o devido processo criminal sem garantias. Dentre todas as garantias do devido processo criminal está a ampla defesa. Da ampla defesa fazem parte: (a) a autodefesa e a (b) defesa técnica. Pertencem à primeira (autodefesa) (a) o direito de ser ouvido, (b) o direito a intérprete, (c) o direito de presença e, dentre tantos outros, o direito de não auto-incriminação. O direito de não auto-incriminação, como se vê, integra a autodefesa, que faz parte da ampla defesa, que é uma das garantias do devido processo criminal.

Conteúdo: o direito de não auto-incriminação (que faz parte da autodefesa, como estamos vendo) possui várias dimensões: (1) direito ao silêncio, (2) direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (3) direito de não declarar contra si mesmo, (4) direito de não confessar, (5) direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros, (6) direito de não apresentar provas que prejudique sua situação jurídica. A essas seis dimensões temos que agregar uma sétima, que consiste no direito de não produzir ou de não contribuir ativamente para a produção de provas contra si mesmo. Esse genérico direito se triparte no (7) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa, (8) direito de não participar ativamente de

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procedimentos probatórios incriminatórios e (9) direito de não ceder seu corpo (total ou parcialmente) para a produção de prova incriminatória.

Base jurídica: todas essas dimensões estão previstas tanto no direito interno como no direito internacional. Alguns aspectos acham-se expressamente previstos na Constituição (CF, art. 5º, inc. LXIII número 1 supra), enquanto outros na CADH (art. 8º, 2, g) e no PIDCP (art. 14, 3, g) números 3 e 4 supra. Os demais aspectos substanciais do princípio (da garantia) da não auto-incriminação vem sendo reconhecidos pela jurisprudência brasileira (cf. especialmente o STF, HC 96.219-SP, rel. Min. Celso de Mello), como emanações naturais dos enunciados formais. Explicitamente, como se vê, três dimensões estão contempladas. As demais são implícitas.

Em virtude dessa incompletude normativa explícita, há corrente restritiva doutrinária (Sérgio Moro) e jurisprudencial (Corte Suprema dos Estados Unidos, Caso Schmerber vs. Califórnia, 1966), no sentido de que o direito de não auto-incriminação só valeria em relação ao silêncio e às declarações comunicativas do réu (orais ou escritas).

O cerne do direito de não auto-incriminação reside (fundamentalmente) numa inatividade (o réu tem direito de não falar, se falar, direito de não falar a verdade, direito de não confessar, de não apresentar prova contra ele, de não participar ativamente da produção de uma prova incriminatória etc.). Isso explica porque o réu, quando ultrapassa esse campo da inatividade para ingressar numa atividade perturbadora da produção da prova, como é o caso da inovação do local dos fatos por exemplo (remoção de sangue do local, mudança do local do veículo etc.), já não mais se encontra amparado pelo princípio (garantia) da não auto-incriminação (podendo até ser responsabilizado criminalmente, pelo delito de fraude processual, por exemplo). A única manifestação ativa do direito de não auto-incriminação consiste no direito de declarar o inverídico. Nesse caso, o limite está na afetação de direitos de terceiros. O réu pode declarar o inverídico, mas não pode prejudicar terceiros.

O direito ao silêncio é só uma parte do direito de não auto-incriminação: não se pode nunca confundir a parte com o todo. O direito ao silêncio (direito de ficar calado), previsto constitucionalmente (art. 5º, inc. LXIII, da CF), constitui somente uma parte do direito de não auto-incriminação. Como emanações naturais diretas desse direito (ao silêncio) temos: (a) o direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (b) o direito de não declarar contra si mesmo; (c) o direito de não confessar e (d) o direito de não falar a verdade.

Essas cinco dimensões acham-se coligadas diretamente ao silêncio, que afeta a produção da prova. Disso decorre a evidente conclusão de que o direito ao silêncio implica uma relevante questão probatória; constitui, aliás, um dos limites ao princípio da liberdade de provas. Todas as demais dimensões do direito à não auto-incriminação reconhecidas pela jurisprudência tem essa mesma origem limitativa ao direito à prova.

O direito ao silêncio (previsto expressamente na CF brasileira) exprime, acima de tudo, que do acusado não se pode exigir que contribua ou que produza ou que participe ativamente de qualquer procedimento probatório que o incrimine. Nesse mesmo diapasão está o direito de não declarar contra si mesmo assim como o direito de não confessar (ambos previstos na CADH art. 8º, 2, g e no PIDCP art. 14, 3, g). A leitura desses textos normativos poderia nos conduzir a uma interpretação restritiva do direito

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fundamental à não auto-incriminação, para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relação aos atos"comunicacionais"(declarações, confissões etc.). Na verdade, não importa se o meio probatório é oral ou documental (escrito) ou material ou corporal ou puramente procedimental.

O direito de ficar calado, previsto na Constituição brasileira (CF, art. 5º, inc. LXIII), assim como o direito de não declarar ou o direito de não confessar (previstos nos tratados internacionais), não podem ser interpretados restritivamente. Por força do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais (que são vinculantes e de aplicação direta e imediata CF, art. 5º, 1º), onde existe a mesma razão (ratio legis), deve preponderar o mesmo direito. Se a razão de conferir ao réu o direito ao silêncio está no seu direito de não se auto-incriminar, onde este último direito der o ar da sua presença (da sua graça), o mesmo direito, ou seja, as mesmas consequencias do direito ao silêncio hão de vingar. É nesse raciocínio (lógico e dedutivo) que descansa a base constitucional e internacional não só do direito ao silêncio, senão também de todas as (nove) dimensões da não auto-incriminação. Para não se incriminar o réu tem até o direito de mentir, porém, também esse direito tem limite: não pode prejudicar terceiros.

O sistema norte-americano vem sendo citado como exemplo dessa interpretação restritiva do direito de não auto-incriminação, sobretudo a partir da decisão da Suprema Corte, proferida no Caso Schmerber vs. Califórnia, em 1966. Por 5 votos a 4 a Corte delimitou o direito de não auto-incriminação às declarações comunicativas do réu, orais ou escritas.

Cuida-se de restrição que no nosso sistema seria inconstitucional e inconvencional, porque do direito ao silêncio, do direito de não declarar contra si mesmo e do direito de não confessar (CF, art. 5º, LXIII; CADH, art. 8º, 2, g; PIDCP, art. 14.3, g) fazem parte, implicita e naturalmente, todas as demais dimensões da não auto-incriminação, que tem seu núcleo essencial fundado em uma inatividade (ou em uma atividade não prejudicial a terceiros). Nesse sentido é a consolidade jurisprudência do STF, sendo disso exemplo o HC 96.219, rel. Min. Celso de Mello, que sublinhou:

"A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal.""O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512)."Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito (a) de permanecer em silêncio, (b) de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais, para efeito de perícia criminal. Precedentes." O exercício do direito contra a auto-incriminação, além de inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, não legitima, por efeito de sua natureza constitucional, a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a "persecutio criminis."

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Âmbito de incidência do direito de não auto-incriminação: as dimensões do direito de não auto-incriminação que acabamos de elencar valem (são vigentes, incidem) tanto para a fase investigatória (qualquer que seja ela: inquérito policial, CPI etc.) como para a fase processual (propriamente dita). Vale também perante qualquer outro juízo (trabalhista, civil, administrativo etc.), desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecução penal contra ele. Em síntese, o direito de não auto-incriminação não projeta seus efeitos apenas para o âmbito do processo penal ou da investigação criminal ou civil. Perante qualquer autoridade ou funcionário, de qualquer um dos poderes, que formule qualquer tipo de imputação penal (ou se suspeita) ao sujeito, vigora o princípio (a garantia) da não auto-incriminação (que consiste no direito de não falar ou de não se incriminar, sem que disso possa resultar qualquer prejuízo ou presunção contra ele). Se a garantia citada não tivesse essa extensão sua importância seria quase nenhuma. É irracional imaginar que alguém possa invocar a garantia perante o juízo penal, sendo obrigado a se incriminar perante um juízo trabalhista, civil, administrativo etc. A prova decorrente dessa auto-incriminação lhe compromete seriamente.

Testemunha ou vítima e o direito de não auto-incriminação: já sublinhamos e agora cabe reiterar que a testemunha (ou mesmo a vítima ou perito etc.) também tem direito ao silêncio ou direito de não declarar contra si mesma (Bebê Júnior e Senna). Ninguém é obrigado a se auto-incriminar, nem sequer a testemunha ou a vítima quando está prestando seu depoimento ou suas declarações. Nesse caso não há que se falar no crime de falso testemunho (para a testemunha), porque quem exerce um direito não pratica nenhum ilícito. A testemunha tem a obrigação de dizer a verdade, mas essa obrigação está limitada pelo direito de não auto-incriminar. Não importa se essa testemunha já está sendo ou não processada ou investigada pelo fato que pode lhe trazer prejuízo, se esse fato já foi descoberto ou não. Nada disso interessa, visto que a preponderância é da garantia da não auto-incriminação. Mesmo nas CPIs, quem foi convocado para prestar esclarecimentos, em princípio, tem o dever de dizer a verdade. Porém, caso alguma resposta possa lhe incriminar, esse convocado tem todo direito de permanecer em silêncio, de não declarar contra si mesmo, de não confessar.

Autor: Luiz Flávio Gomes

Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2066298/principio-da-nao-auto-incriminacao-significado-conteudo-base-juridica-e-ambito-de-incidencia. Acesso em: 02/05/2011

Professora Ana Claudia Lucas29 Setembro 2009Princípio de Não Auto-incriminação ou “Nemo tenetur se detegere”. Li na edição escrita do Diário Popular de hoje que o Superior Tribunal de Justiça negou pedido de Habeas Corpus ajuizado por motorista que contestava a obrigatoriedade do teste do bafômetro em caso de abordagem policial, sob o argumento de que a Lei é inconstitucional, por obrigar à produção de prova contra si mesmo.

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Referida notícia, assim, motivou-me a escrever sobre o Princípio “nemo tenetur se detegere”, ou seja, o princípio da não auto-incriminação, muitas vezes objeto de indagações que me são feitas pelos alunos.

Pois bem, referido princípio, dentro das mais diversas classificações que podemos adotar, está inserido nos chamados princípios de garantia, porque através dele se concede ao cidadão uma garantia, sendo, ao mesmo tempo, um princípio fundamental, um direito do homem, juridicamente e institucionalmente garantido, inclusive por Convenções e Tratados Internacionais. Cite-se, à titulo ilustrativo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Assembléia Geral das Nações Unidas, ambos declarando que todo o cidadão tem “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a confessar-se culpado”.

O princípio “nemo tenetur se detegere” tem origem nos Princípios da Dignidade Humana, da Ampla Defesa e da Presunção de Inocência, residindo neste último, talvez, sua mais evidente fundamentação.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVII inscreveu, em definitivo, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, assegurando, assim, a presunção da não culpabilidade, ou da inocência.

Ora, a conseqüência imediata de presumir-se o acusado como inocente está na atribuição do ônus da prova à acusação, pois que se a Constituição Federal, e a lei presumem essa inocência, até que transite em julgado a sentença condenatória, não é o acusado que deve provar ser inocente mas, ao contrário, a acusação deverá indicar-lhe a culpa. Extrai-se, portanto, do princípio da inocência o direito a não auto-incriminar-se, próprio do “nemo tenetur se detegere”.

Assim, a garantia da não auto-incriminação está presente na necessária afirmação do Princípio de Presunção de Inocência.

Por outro lado, no Princípio da Ampla Defesa pode-se identificar a origem principiológica do “nemo tenetur se detegere” . O artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, como meios e recursos a ela inerentes”. Assim, através deste postulado, se concede importante garantia do processo penal, tanto no que respeita à autodefesa, quanto no que pertine à defesa técnica. Ora, o direito ao silêncio, forma de autodefesa, é decorrência do “nemo tenetur se detegere”.

E, por fim, o Princípio da Não Auto-incriminação encontra forte amparo no Princípio da Dignidade Humana, já que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, conforme insculpiu o artigo 1º., inciso III da Carta Constitucional. Por isso mesmo, ainda que não houvesse previsão do princípio “nemo tenetur se detegere” na seara processual penal,

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estaria contemplado no âmbito jurídico-constitucional em face da proteção à dignidade humana.

No âmbito processual penal, as conseqüências do Princípio do “nemo tenetur se detegere” se apresentam de várias formas, e em diversos momentos processuais.

No interrogatório do acusado, por exemplo, está garantido o direito ao silêncio – que pode se estender a todas as fases do processo – assim como também estarão proibidas as perguntas obscuras, dúbias, tendentes a perseguir a confissão do acusado, assim também a utilização de formas inescrupulosas, torturantes, inclusive no que pertine ao tempo de duração do interrogatório. Além disso, para o interrogando inexiste o dever de dizer a verdade, pelo simples fato de que, para a sua mentira, não há qualquer sanção.

Já no âmbito da prova, há limites, por certo, que decorrem do princípio em comento.

Veja-se, por exemplo, como o princípio pode ser atacado diante das chamadas provas invasivas, aquelas que demandam intervenção corporal no acusado (perícias, exames de sangue, exame ginecológico, identificação dentária etc), ou outras, não invasivas, como os reconhecimentos, as reconstituições, acareações, exames grafotécnicos, do etilômetro (bafômetro), o clínico de embriaguez etc.

Ora, parece decorrência do “nemo tenetur se detegere” a inexistência de obrigação, para o acusado, de contribuir na produção da prova e, portanto, negar-se a realização de qualquer destes meios de prova é direito que se impõem.

Do ponto de vista jurisprudencial não são poucas as decisões, tanto no Supremo Tribunal Federal, como nos Tribunais de Justiça, inclusive o do Rio Grande do Sul, que vem reconhecendo que a prova não pode ser obtida sem a permissão da pessoa, porque, de outro modo, seria obrigá-la a se auto-incriminar, o que tornaria, inclusive, ilícita a produção probatória. Do mesmo modo a negativa do acusado em colaborar com a produção da prova, a fim de não se auto-incriminar, não pode importar prejuízo a si mesmo.

Não obstante, se por um lado fica a garantia do cidadão em não se auto-incriminar, por outro se pode experimentar um sentimento de que, deste postulado, resulte, sempre, impunidade. Não é isso que se quer; não é isso que se deseja. E é evidência disto o fato de que, o princípio em comento, embora venha sendo adotado, reconhecido e assegurado seja sempre aplicado com limitações, e essas não devem ser mal acolhidas, desde que não interfiram no equilíbrio que deve existir na relação do Estado que acusa com o indivíduo que tem direito a defesa ampla.

(Observação: Para quem se interessar particularmente pelo assunto, sugiro a leitura de: Elizabeth Queijo, Maria. O Direito de não produzir prova contra si mesmo. Editora Saraiva, 2003).

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Disponível em : http://profeanaclaudialucas.blogspot.com/2009/09/principio-de-nao-auto-incriminacao-ou.html. Acesso em: 03/05/2011.

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO NO CENÁRIO MUNDIAL E NO DIREITO BRASILEIRO

RESUMO: Traça breve histórico da busca da verdade dentro da história humana, constatando que a tortura era um meio legalmente admitido, cuja contestação se deu pelo movimento iluminista. É inglesa a origem do princípio contra a autoincriminação, em face de suas peculiaridades históricas. Com sua evolução, o princípio hoje encontra previsão inclusive em diversos estatutos internacionais.

No Brasil, antes da alteração promovida pela lei 10.792/2003, o princípio já encontrava aplicação por força do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal de 1988 e pelos Decretos nº 592 e 678, ambos de 1992.

PALAVRAS-CHAVE: Direito processual penal. Princípio contra a autoincriminação. História. Constituição Federal Brasileira de 1988. Art. 186 do Código de processo penal.

1.    INTRODUÇÃO

A verdade sempre foi um objetivo perseguido pelo homem, iniciado a partir dos seus primeiros passos na Terra.

E nessa busca incessante, na descoberta de sua origem, a razão de ser das coisas, se encontra uma das grandes forças que o impelem para vencer dificuldades e dar continuidade a sua sobrevivência.

No âmbito do direito, a busca da verdade (ou daquilo que se crê ser ela) permeia todo o trabalho dos seus operadores; todavia, nesse aspecto, nada mais significativo do que sua história e conseqüências no processo penal.

2.    BREVE INCURSÃO HISTÓRICA MUNDIAL

De fato, “a apuração da verdade é uma meta essencial do direito processual penal” (DIAS, 1987, p. 180) e o principio contra a auto-incriminação revela-se uma conquista da luta do indivíduo (acusado) contra o poder de investigação do Estado.

Haddad (2005, p. 69) define o princípio contra a auto-incriminação em não obrigar o acusado à “apresentação de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor incriminatório.” Ou seja, veda-se a obrigação de se produzir qualquer elemento de prova contra si mesmo.

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Sua origem, defende parte da doutrina, estaria localizada na cultura dos Hebreus, no Velho Testamento.

Zainaghi (2004, p. 134), citando Leonard W. Levy, esclarece que entre os Hebreus prevalecia “a máxima ein Adam se ipsum tenetur. Numa tradução literal, significa que um homem não poderia apresentar-se como culpado, ou como transgressor. (...) Estava proibida a admissão em depoimento de qualquer testemunho auto-incriminatório, mesmo dado voluntariamente.”

A lógica desse entendimento resulta do fato de que o homem, na medida em que não poderia dispor de sua vida, já que pertencia a DEUS, também não poderia confessar o cometimento de um crime que o sujeitasse à morte.Todavia, a atual compreensão do instituto permite concluir que sua origem é outra.

Com a proibição da aplicação das ordálias pelo 4º Concílio de Latrão, em 1215, convocada por Inocêncio III, posteriormente adotou-se na Europa um novo sistema de provas, a saber, o sistema da prova legal ou também denominada tarifada.

Nessa mesma oportunidade, a Igreja também decidiu adotar o sistema inquisitório de persecução criminal (RAMOS, 1996, p. 67), o qual passou a ser observado também pelos tribunais civis de toda a Europa, com exceção da Inglaterra, como adverte GRINOVER (1978, p. 98).

Logo, o magistrado valorava as provas seguindo uma hierarquia previamente prevista na lei (GOMES FILHO, 1997, p. 22) e a confissão era considerada a rainha das provas. Além do mais, buscava-se a verdade por todas as formas possíveis, inclusive a tortura e o juramento (FOUCAULT, 2005, p. 35).

Quando interrogado, o acusado deveria colaborar manifestando a verdade, caso não o fizesse, seria submetido à tortura, a qual era perfeitamente aceitável, na medida em que o acusado era considerado não um sujeito, mas um objeto de prova (característica do sistema inquisitório).

O apogeu da tortura se deu entre os séculos XIII e XVII com o movimento da Inquisição (BOUÇAS, 1997, 5), perdurando até o final do século XVIII, cujo fim se deu em razão das críticas promovidas pelo Iluminismo (Século das Luzes).

Deve-se ponderar, no entanto, a advertência de Tornaghi (1995, p. 17) de que: “é preciso não esquecer que a tortura não foi uma invenção do processo inquisitório. Ele já a encontrou com larga tradição entre todos os povos antigos.”

Antes de tudo, era um meio legítimo e legal para o obtenção de provas.

Cesare Beccaria e Pietro Verri, influenciados pelas obras de pensadores como Jean Jacques Rousseau e Charles de Montesquieu, focalizaram os princípios

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do Iluminismo ao sistema penal e carcerário, que resultou numa ampla reflexão e combate ao sistema inquisitório, fazendo ressurgir o sistema acusatório, porém renovado.Na obra Dos delitos e das Penas, publicada em 1764, Beccaria (2006, p. 37) afirma que “é uma barbárie, consagrada pelo uso na maioria dos governos, aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, seja para que ele confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as contradições em que tenha caído, seja para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado .“(....)

A partir do pensamento de Beccaria e Verri, a tortura foi sendo gradativamente eliminada dos regimes estatais, como meio oficial da obtenção da “verdade”: da “Escócia em 1702, da Prússia em 1740 e 1754, da Rússia em 1768, da Suécia em 1772, da Áustria em 1776, da França em 1780 e da Suíça em 1798” (HADDAD, 2005, p. 104).

É dentro desse contexto, com o retorno e renovação do sistema acusatório, que o direito contra a auto-incriminação ganha grande repercussão nos países da civil law.

No entanto, o princípio contra a auto-incriminação tem seu nascedouro, segundo Ada Pelegrini Grinover, Carlos Henrique Borlido Haadad e Maria Elizabeth Queijo, na Inglaterra, pois, durante o tempo em que na Europa continental foi adotado o sistema inquisitório, ali foi adotado o sistema acusatório.

Haadad (2005, p. 107) esclarece que, enquanto no sistema inquisitório se fiava na confissão como elemento probatório, os tribunais ingleses atribuíam maior relevância a outras formas de provas, tal como o julgamento pelo júri.

Após um longo processo que iniciou em 1215 com a Carta Magna de João Sem Terra, no ano de 1641, o princípio foi albergado no Estatuto de Carlos I (GRINOVER, 1978, p. 103); contudo, Queijo (2003, p. 18) aponta que efetivamente o direito só foi consagrado no final do século XVIII.

De fato, “durante o século XVI, é de se ressaltar que o direito fundamental dos acusados não era de silenciar, mas de ter oportunidade de falar no processo criminal.” (QUEIJO, 2003, p. 16). Ou seja, era da sua responsabilidade a “própria defesa e a opção pelo silêncio comprometia-a integralmente” (HADDAD, 2003, p. 110), uma vez que era vedada a constituição de advogados.

O direito ao silêncio somente ganhou força quando se garantiu que o mesmo pudesse ser utilizado por outra pessoa em favor do acusado.

Com o fim dos tribunais eclesiásticos em 1641, a possibilidade de os acusados serem assistidos por advogados (1838), bem como a observância do princípio da presunção da inocência e do devido processo legal, é que

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estavam estruturadas as condições necessárias para o acusado efetivamente valer-se do direito ao silêncio (QUEIJO, 2003, p. 18).

Nos Estados Unidos, o princípio foi incorporado à Constituição (1787) pela V Emenda, nos seguintes termos:

Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.

Dois diplomas internacionais modernos também reconhecem o princípio contra a auto-incriminação:

1º) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em 22.11.1969, em São José da Costa Rica, no artigo 8º, §2º, g, verbis:

Artigo 8º. Garantias Judiciais2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.

2º) o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, de 16.12.1966, no artigo 14, n. 3, g, verbis:

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Mais recentemente, em 17.07.1998, pelo Estatuto de Roma, criou-se o Tribunal Penal Internacional com o objetivo de punir os crimes que afetem a comunidade internacional, colocando em risco a paz, a segurança e o bem estar da sociedade, o qual expressamente também adotou o princípio contra a autoincriminação, verbis:

Artigo 55 - Direitos das Pessoas no Decurso do Inquérito1. No decurso de um inquérito aberto nos termos do presente Estatuto:a) Nenhuma pessoa poderá ser obrigada a depor contra si própria ou a declarar-se culpada;

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Assim, o princípio que veda a auto-incriminação modernamente encontra-se consagrado nos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, afastando “as presunções e indícios desfavoráveis à defesa e acrescentou ao interrogatório maiores características defensivas, porque não há mais o ônus, nem o dever de o preso ou o acusado fornecerem elementos de prova que o prejudique” (HADDAD, 2005, p. 125).

3.    TRATAMENTO NORMATIVO DO PRINCÍPIO NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 preceitua, em seu art. 5º, LXIII, o qual está inserto no Título III, dedicado dos direitos e garantias fundamentais, que

“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurado a assistência da família e de advogado.”

No entanto, o Código de Processo Penal (CPP), em seu artigo 186, declarava que “antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”

Como se pode observar, em uma primeira análise, a parte final do artigo 186 do CPP retiraria o efeito pretendido pela Constituição Federal de 1988. Porém, em razão da supremacia das normas constitucionais sob todo o ordenamento jurídico (BASTOS, 1998, p. 47), essa segunda parte não foi recepcionada pela atual Constituição.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 80.949-9/RJ, tendo como Ministro Relator Sepúlveda Pertence, declarou a inconstitucionalidade da segunda parte do artigo 186 do CPP, verbis:

Gravação clandestina de “conversa informal” do indiciado com policiais. Ilicitude decorrente — quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental —, de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório” subreptício, o qual — além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) —, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. O privilégio contra a auto-incriminação — nemo tenetur se detegere —, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou não.

Moura e Moraes (1994, p. 135) declaram que o choque entre esses dois ordenamentos resultou das diferentes ideologias que os inspiraram, verbis:

Nosso ordenamento processual penal, datado de 1941, foi elaborado

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sob o influxo das idéias positivistas emergentes no final do século passado e início deste, que propugnaram pela prevalência dos interesses repressivos do Estado (ou, como denominavam, da “defesa social”) sobre os interesses individuais fundamentais.A Constituição Brasileira, em vigor, datada de 1988, inspirou-se em ideais democráticos, nos quais as liberdades públicas têm presença marcante e constituem limitações impostas ao próprio Poder Estatal.

A questão foi dissipada com a alteração promovida pela Lei nº 10.792/2003, no Código de Processo Penal, que modificou diversos dispositivos do capítulo dedicado ao interrogatório do acusado. A nova redação do artigo 186 é a seguinte:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Deve-se registrar ainda que, tanto pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), em São José da Costa Rica, em vigor no Brasil por meio do Decreto nº 678/1992, quanto pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da ONU, em vigor no Brasil por meio do Decreto nº 592/1992, o princípio contra a auto-incriminação já encontrava aplicação no ordenamento jurídico nacional, antes mesmo da referida alteração efetuada no Código de Processo Penal.

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QUEIJO, M. E. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003.RAMOS, J. G. G.  Audiência processual penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.TORNAGHI, H. Curso de processo penal.  9. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 1.ZAINAGHI, D. H. de C. G. M. O direito ao silêncio: evolução histórica: do Talmud aos pactos e declarações internacionais.  Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 48, jul./set. p. 133-157, 2004.

Daniel Januário

JANUÁRIO, D. A evolução histórica do princípio contra a auto-incriminação no cenário mundial e no direito brasileiro.  Rev. Ciên. Jur. e Soc. da Unipar. Umuarama. v. 11, n. 1, p. 45-52, jan./jun. 2008.

http://revistas.unipar.br/juridica/article/viewFile/2248/1849