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NOVELAS DE TERRORVolume II

L P Baçan

Copyright © 2015 L P BaçanTodos os direitos da tradução reservados. Este livro ou parte dele não pode

ser reproduzido ou usado de qualquer outra forma nem divulgado sem aexpressa autorização do autor, exceto o uso de partes para referência ou

comentários.

ISBN 9781329755901Lulu Press, Inc.3101 Hillsborough St, Raleigh, NC 27607

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ÍNDICE

TERROR EM SOMERVILLE

TERROR NO OUTONO

TESOURO MALDITO

L P BAÇAN

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TERROR EM SOMERVILLE

Atravessando a ponte do rio Charles, em Boston, e seguindo para

oeste, pela Highway O’Brien, em poucos minutos se chega a Somerville,um bairro aprazível, de ruas longas e arborizadas, com suas pequenasmansões seculares, feitas de tijolos vermelhos, muitas ostentando colunasbrancas na entrada, lembrando as velhas cidadezinhas inglesas do séculopassado.

As ruas calçadas com pedras, sempre impecavelmente limpas naprimavera e no verão, começavam agora, a serem cobertas por camadas defolhas amareladas e avermelhadas, caídas das nogueiras, dos carvalhos edas outras árvores.

Pequenos e rápidos esquilos aceleram sua faina, recolhendo alimentopara o perigo do inverno, armazenando-os em suas tocas, cavadas nostroncos das antigas árvores.

A tranquilidade da paisagem é apenas quebrada pela passagem de umou outro veículo, durante o dia. Apenas pela manhã e à tarde, no horário deentrada e saída do trabalho, a região lembra um pouco sua situação decosmopolita e de parte da vizinhança de Boston. Fora disso, sentado noalpendre de uma das casas, uma pessoa poderia ter a impressão de queestava no século passado, tamanha a paz reinante.

Eram duas horas da tarde e uma suave brisa apressa a queda das folhas,que choviam cores sobre o calçamento. As bandeiras americanas, hasteadasnas portas e jardim de todas as casas tremulavam, lembrando a glória deantigas batalhas, saudando os mortos em guerras heroicas.

No azul do céu, pequenas nuvens apostavam corrida com as aves quemigravam, fugindo ao inverno que se aproximava, saudados pelas pequenasaves que saltitavam nas árvores, cantando despreocupadamente.

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Nas casas, velhas matronas dormitavam. Crianças brincavam com seusvideogames. Adolescentes penduravam-se nos telefones, jogando conversafora, com a vivacidade e a displicência que lhes são peculiares.

Subitamente, porém, como se surgisse com a brisa e fosse crescendocomo o som de um furacão, um gemido rouco invadiu a Rua Medford,lembrando um animal acuado que visse no rugido a única salvação para aameaça iminente.

Aquele som indescritível e incomparável alongou-se, transformando-senum grito estridente e prolongado, vibrante, penetrante e arrepiador.

As matronas correram às janelas. As crianças ficaram estáticas diantedos televisores. Os adolescentes soltaram os telefones e correram para a rua.

— Você ouviu isso? — indagou a garota de sardas ao rapaz com oskate.

— Pensei que fosse um terremoto — exagerou ele.— Veio daquela casa — disse uma adolescente com aparelhos nos

dentes.Todos olharam naquela direção. Era a velha Mansão Grove, no alto de

uma pequena colina, cercada por um jardim exuberante, que naquela épocado ano desfolhava-se e perdia toda a beleza que, na primavera, o fazia omais bonito da região.

Uma cerca de ferro separava a propriedade da rua. Pontiagudas lançasarrematavam as grades, torcidas alternadamente para dentro e para fora dapropriedade, dificultando a ação de quem desejasse entrar ali passando porcima daquela proteção.

Os tijolos vermelhos da casa refletiam o sol. As janelas estavamfechadas, com as vidraças abaixadas. O silencio voltou a Somerville.

— Tem certeza? — indagaram à garota de aparelho.— Sim, eu até vi um rosto na janela...Os outros trocaram olhares zombeteiros.— Megg está vendo coisas de novo — ridicularizou um deles.— É mentira! Eu vi! Olhem lá, está lá de novo! — apontou ela e todos

os rostos se voltaram na direção da casa.A casa tinha três pavimentos, com telhado inclinado, onde, nas laterais,

destacavam-se pequenas janelas do sótão. Ali, numa delas, colado ao vidro,estava aquele rosto retorcido de uma mulher, como se todo o pavor domundo se refletisse nele.

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Os cabelos estavam desgrenhados. A camisola branca pendia num doslados do corpo, deixando nu um ombro e parte do seio. Com as duas mãosela empurrava o vidro, como se desejasse sair desesperadamente.

— Eu não falei? — disse Megg, recuando passo a passo na direção desua cama.

Aquele rosto apavorado e apavorante a intimidou, bem como aosoutros. Olhos fixos nele os adolescentes foram recuando, até se libertaremdaquele fascínio e correrem para casa.

O gemido se repetiu e um clima de medo instalou-se em Somervillenaquela tarde.

Uma tarde que ficou conhecida como a Tarde da Louca de Somerville.

David Paterson era um próspero agente de viagens, apesar de nãopassar da casa dos trinta. Alto, louro, forte e com um rosto expressivo,típico da juventude esportista americana, causava furos por onde passava edeixava as agentes de viagem de sua empresa trêmulas a sua passagem.

Ocupava todo o andar no Edifício do Congresso, na Rua Surtner, deonde se descortinava uma vista magnífica da baía de Boston. Em poucomais de cinco anos de profissão, conseguira subir vertiginosamente,dispensando as oportunidades que surgiram para ser empregado de outrasempresas e jogando todos os conhecimentos de seu curso universitário deadministração no seu empreendimento.

Aliando simpatia, eficiência e competência, rapidamente foi ampliandosua atuação e, hoje, já podia se dar ao luxo de estar analisando franquias desua empresa para outras partes do país. Tudo isso estava sendo feito commuito cuidado porque, além de extremamente lucrativo, todo o cuidadocom a imagem solidamente construída até então estava em jogo.

Naquela tarde de outono, David teria uma importante reunião com osmembros da empresa que iria comercializar suas franquias. Considerava,portanto, aquele dia como um marco histórico na evolução de sua empresa,pois consolidaria um prestígio construído durante anos com muito trabalhoe dedicação.

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Já podia se considerar um homem rico. Havia ganhado um bomdinheiro no último ano. Pudera se dar ao luxo de realizar um velho sonho.Comprar uma casa em um bairro tranquilo, longe da agitação da cidade. Alidesejava criar os filhos que ele e Hellen estavam planejando ter.

Tudo estaria perfeito, se não fosse um pequeno detalhe: no principioHellen adorara a ideia da casa. Após fechado o negócio, refeita a decoraçãoe realizada a mudança, ela começou a se tornar estranha, não se sentindobem na casa.

David achou que era apenas problema de adaptação. Afinal, Hellensempre morara no centro, cercada de barulho e agitação por todos os lados.A quietude de Somerville em breve a dominaria e ela acabaria seacostumando.

Valentine, sua secretária, entrou na sala, carregando algumas pastas edepositando-as sobre a mesa. Ela sorriu, satisfeita com o trabalho realizado.

— Pronto, está tudo aí — confirmou ela, sentando-se.Era morena, de rosto expressivo e lábios carnudos, cabelos longos e

vaporosos. Tinha um corpo escultural. David costumava brincar dizendoque Valentine era o protótipo do que não existe como secretária: era bonita,desejável, inteligente e competente.

— Você sempre me surpreende — disse ele, olhando-ademoradamente.

Valentine sustentou o olhar, como que penetrando na alma daquelehomem fascinante e triste.

— Tudo confirmado? — indagou ele.— Sim, falei com a secretária deles, às dezesseis horas vocês se

reúnem. Devem ter tudo concluído até às dezoito horas, quando terão tempopara um drinque no Happy Hour.

— Não sei se vou poder ficar... Estou preocupado... — comentou ele.— Ela de novo?— Não sei o que está havendo, Val. Às vezes penso que ela... Que ela

está ficando louca... Eu... Eu não devia estar falando sobre isso... —balbuciou ele, confuso, demonstrando o quanto aquilo o estava afetando.

— Tudo bem, David! — disse ela, inclinando-se para fazer uma levecarícia no rosto dele.

Por segundos o perfume suave e envolvente ficou em suas narinas,mexendo com seus sentidos. Ele levantou os olhos. Ela se recostava na

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poltrona, olhando-o piedosamente. Cruzou as pernas. Suas coxas torneadase morenas foram uma agulhada no ventre dele.

Reclinou-se também em sua poltrona, fechando os olhos ecomprimindo as têmporas com as mãos. A visão das coxas de Valentinecontinuou em suas retinas. Aquele perfume, o toque macio da mão dela, suabeleza desejável, tudo isso o lembrava de que havia meses não conseguiatocar sua esposa.

Valentine ficou olhando para ele, desejando poder pegá-lo no colo econsolá-lo, livrando-o de todos os aborrecimentos e preocupações.

Já não se preocupava mais em esconder o quanto o amava. Faziaquestão de transmiti-lo num toque, num roçar de corpos, numa palavra maismarcante, num olhar mais profundo e demorado. Não satisfeita, queriaprovocá-lo, chamar a atenção dele para o corpo dela, para as coxastorneadas, para os seios perfeitos, para a vida e a alegria que explodiam emsua pele e contagiavam seus gestos e atitudes.

— Tem certeza de que está bem, David? — indagou ela e seu tom devoz era extremamente protetor.

David abriu os olhos e mergulhou seu olhar na escuridão negra ereconfortante dos olhos dela, desejando poder dizer que tudo estava erradoe que ele estava mais só e carente do que jamais fora em toda a sua vida.

Ao invés disso preferiu voltar à realidade e retomar o fio da conversaoriginal.

— Acertou com os advogados?— Sim, terão a minuta do contrato pronta em meia hora, a tempo de

você revê-la e acertar algum detalhe que possa ter-lhes escapado.— Ótimo! Cuide para que tudo esteja a contento na sala de reuniões,

então.— Já providenciei tudo. A copeira está dando os últimos arranjos. Não

se preocupe!— Você é ótima! — elogiou ele e seus olhares se cruzaram novamente.Havia um mudo diálogo entre eles, que podiam dizer coisas que David

e Valentine jamais ousariam.— Se formos ao Happy Hour, você irá também?— É uma pergunta ou um convite?Ele pensou alguns instantes antes de responder, mas mantendo seu

olhar no dela.

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— É um pedido. Por mim, por favor! — quase suplicou ele.— Nada no mundo me impedirá de ir — murmurou ela, em resposta.— Ligue para minha casa. Diga que vou ter uma reunião importante e

que posso me atrasar... Melhor, diga que não voltarei para o jantar —corrigiu ele, percebendo, no rosto de Valentine, total aprovação.

Assim que ela saiu, David respirou fundo, tentando acalmar suaconsciência pesada.

— Nada fiz... São negócios... Simplesmente negócios — disse a simesmo, tentando se convencer.

O olhar de Valentine permanecia em suas retinas. Havia muito nãosentia aquele tipo de emoção.

Hellen desceu correndo a escada do sótão até o quarto mais próximopara atender ao telefone. A secretária de David falou a respeito de umaimportante reunião, depois do atraso. Significava que ele não viria jantarnaquela noite.

Não se importou. O pobre David trabalhava tanto. Havia conseguidotanto. Hellen entendia e respeitava isso, mas havia algumas coisas que elanão gostava, embora não pudesse falar. Uma era daquela secretária com vozde amante; outra era aquela casa.

Havia entre ela e a casa uma incompatibilidade de gênios, umaantipatia à primeira vista. Assim que entrara ali, sentira um arrepio. Umarrepio que persistia enquanto caminhava por aqueles aposentos cheios dehistórias, de tempo passado, apesar da decoração agradável.

Nada tirava o peso daqueles degraus de madeira, daqueles corrimõesantigos, onde centenas de mãos deixaram parte de suas energias. Nadatirava a sobriedade daqueles parapeitos de janelas, onde corpos de sedebruçaram ao longo do tempo, onde corações bateram tão próximos que amadeira pareceu guardar as vibrações daquelas batidas.

Hellen conseguia captar tudo aquilo. Sentia ressoar dentro de si todosaqueles sons antigos, misturados a lamentos, e lágrimas, a choro, anascimentos e mortes vividos entre aquelas paredes.

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A Mansão Grove a assustava e fascinava ao mesmo tempo. Era umamulher inteligente, que desistira da carreira para viver um casamentoperfeito.

Sentir-se, de repente, envolvida por coisas tão inexplicáveis a deixavaconfusa.

Viu-se, então, diante de um espelho. Mal podia se reconhecer naqueledia. A casa estava por demais exigente. A casa a impregnara. A casa afizera gemer e uivar como um monstro ferido.

Passou as mãos pelos cabelos em desalinho. Recompôs a camisola.Estava assim desde aquela manhã, embora isso também se tornara difícilultimamente. Sentia mil olhos espionando-a quando se desnudava. Fechavaas cortinas do banheiro, mas nem assim a sensação.

Apresou-se ao máximo para se desnudar e fechar a cortina. Abriu aducha, regulou a temperatura e deixou a água deslizar pelo seu corpo. Deolhos fechados, sentiu a sensação reconfortante de calor que invadia suapele, dominava seus músculos. Jogou a cabeça para trás. A água deslizoupelo seu rosto, caindo em seus seios, formando uma cascata que ia jorrarsobre o púbis, onde despencava em nova cachoeira.

Estremeceu. A sensação era deliciosa, como se mãos aveludadastocassem sua pele numa caricia suave e envolvente. Abriu os olhosassustada. Apenas a água tocava seu corpo. Lavou rapidamente os cabelos.Saiu já vestida com o roupão. Enrolou uma toalha nos cabelos. Correu parao quarto.

Apanhou o telefone e ligou para a Universidade de Harvard, não muitolonge dali.

— Quero falar com Alice, no departamento de Historia — pediu ela einstantes depois Alice a atendia.

Alice havia sido sua colega de Universidade. Cursavam as mesmasmatérias e, após a formatura, Alice se dedicara à pesquisa histórica,enquanto que Hellen resolvera seguir a carreira do casamento.

Alguns dias antes, Hellen havia se encontrado com Alice nosupermercado e a conversa recaiu sobre a casa. Alice mencionou que haviadiversos registros históricos feitos na Universidade sobre as mansõeshistóricas da região e que, entre elas, poderia haver uma sobre a MansãoGrove.

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O assunto fascinou Hellen, que desejou saber um pouco mais sobreaquela casa. Queria entender o motivo daquela antipatia que sentia edaquelas influencias que a casa parecia transferir para ela, contra a suavontade.

— Hellen, querida, estava justamente pensando em você. Acho queencontrei o que você queria.

— Sobre a mansão!— Sim, uma pequena brochura, muito bem detalhada, inclusive com

algumas ilustrações que você vai achar interessante.— Que ótimo! Alice! Quando posso apanhá-la?— Saio daqui a meia hora, pois tenho que ir até Medford apanhar

alguns livros raros que nos foram doados. Se quiser posso passar aí navolta, tomar um chá rápido com você e deixar o livro. O que me diz?

— Fantástico! Estarei esperando.

Entardecia. Hellen acabara de tomar chá com Alice, que lhe trouxera

uma cópia xerografada da brochura sobre a Mansão Grove. Tão logo aamiga se retirou, Hellen correu para seu quarto ler o livro.

Antes de qualquer coisa, deteve-se nas ilustrações. A primeira delas, nolivro, chamou-lhe a atenção. Era uma pintura do século passado, mostrandoBoston de antigamente, com navios e vela ancorados no porto. A regiãotoda era parcialmente habitada.

Uma ilustração posterior mostrava a colina onde se localizavaatualmente a mansão. A grade que cercava a propriedade parecia ser amesma da atualidade. Um arrepio percorreu o corpo dela ao perceber, nacolina, lápides dispostas em fileiras regulares, como as de um exércitomilitar.

Folheou rapidamente. Arthur Grove, o militar, surgiu em seguida, comseu uniforme sulista cheio de medalhas e comendas, a barba espessa

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escondendo o rosto, os olhos profundos e penetrantes olhando diretamenteem frente, como que encarando um desafio.

Retornou ao inicio do livro. Precisava ler com interesse tudo aquilo.Aquele conteúdo vinha diretamente ao encontro de sua curiosidade arespeito daquela casa e da maneira como ambas, ela e a casa, não seentendiam, numa aversão mútua.

Começou a leitura. Durante a Guerra da Secessão, o Major Grove foraencarregado de interrogar e manter sob sua guarda os prisioneirosconfederados capturados nas batalhas.

Um alojamento foi construído na colina, juntamente com um cemitério,onde os prisioneiros mortos eram sepultados. A habilidade de Grove nosinterrogatórios rendeu informações preciosas para o Sul, auxiliando nosucesso da luta contra o Norte.

Logicamente ninguém, naquela época, se importava com o número deprisioneiros mortos. O importante eram as informações e o sucesso nasbatalhas.

Poucos prisioneiros confederados sobraram para serem libertados apósa guerra. Os que sobreviveram estavam por demais traumatizados paranarrarem os horrores enfrentados naquele alojamento.

Mas isso não foi importante. Os derrotados normalmente ficam semargumentos para justificarem sua derrota, por isso usam toda sorte dedesculpas para isso.

O fato foi que, graças a sua importante atuação no período da guerra,Grove subiu de posto e, de uma forma não bem esclarecida, acabouproprietário da colina, onde iniciou a construção da sua mansão.

A construção da casa foi marcada por uma série de incidentes.Inicialmente, durante as fundações, foi necessário remover todos os ossosali sepultados, o que resultou numa série de escavações. Durante umatempestade, o alojamento antigo, usado como abrigo dos operários naconstrução da casa, simplesmente deslizou montanha abaixo, matandotodos os homens em seu interior.

Depois disso, uma série de outros fatos marcou a construção, desde aqueda de andaimes inteiros até a morte de um dos filhos do então CoronelGrove, numa queda estúpida de uma janela.

Isso, no entanto, não abalou Grove. A construção da casa era umaobsessão e nem os apelos de sua mulher o demoveram de sua ideia. Quando

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a casa, finalmente, ficou pronta e para lá se mudaram, fatos estranhoscomeçaram a acontecer com a esposa de Grove, que acabou enlouquecida,por motivos ainda não descobertos.

Grove ainda morou na casa até sua morte, alguns anos depois. Emseguida, a casa passou por diversos proprietários, até que, na SegundaGuerra Mundial, foi transformada num centro de treinamento de capelães.A partir daí, nenhum outro estranho foi relatado a respeito da casa,encerrando-se o livro.

O interessante, em tudo o que ali estava, era que sempre as mulheresrelatavam problemas com a casa, enquanto que os homens jamais notavamqualquer coisa de anormal.

Ao terminal a leitura, Hellen sentiu que ainda faltava alguma coisa. Ahistória da casa relatava fatos anormais a partir da esposa de Grove, masnão esclarecia exatamente o motivo de tudo aquilo.

Consultou o relógio. Passava das seis um pouquinho. Arriscou para verse ainda encontrava Alice na Universidade.

— Teve sorte, amiga. Eu já estava de saída. O que houve? Leu o livro?— Fascinante, Alice, mas me deixou ainda mais intrigada. Onde posso

obter maiores informações sobre a natureza das informações obtidas porGrove, quem eram os prisioneiros exatamente e...

— Calma, calma, não sei exatamente do que está falando. Confessoque não li o livro. O que quer saber exatamente, querida?

— Durante a Guerra da Secessão, Arthur Grove liberou um alojamentode prisioneiros, que eram interrogados. Com base nas informações obtidas,muitas ações foram programadas pelo Exército Sulista, rendendo operaçõescoroadas de sucesso. Onde posso obter maiores informações sobre essasoperações, sobre esse alojamento, sobre os prisioneiros e tudo o mais?

— No Museu da Guerra, aqui mesmo na Universidade. Você poderámanusear originais da época. Pena que não são livros que se possa tomaremprestados. Você terá que vir até aqui pesquisá-los.

— Então farei isso. Amanhã darei um pulo até aí...— Aproveite e venha me visitar. Terei o máximo prazer em indicar uns

dois ou três especialistas sobre a época para auxiliá-la em sua pesquisa.— Farei isso, querida!Quando desligou, Hellen ficou recostada na cabeceira da cama,

olhando a escuridão que avançava lentamente pelo céu, cobrindo o azul

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intenso com o manto da escuridão.Um arrepio percorreu seu corpo. Aquele era o pior momento da casa.

Quando a noite chegava, as vibrações se tornavam mais intensas,agonizando-a. Felizmente David logo chegaria. A presença deleinvariavelmente afastava todas aquelas influências. Era inexplicável issopara ela.

Repentinamente, no entanto, lembrou-se do recado. David viria maistarde. Tinha uma reunião e um jantar de negócios. Estava expandindo suaempresa, ficando cada vez mais rico. Era justo. Era a recompensa pelo seutrabalho.

Hellen, enquanto David não vinha, costumava concentrar-se aomáximo em tarefas mecânicas, quando podia pensar em coisas queafastassem seu espírito da casa. Era hora de preparar o jantar, mas Davidnão viria jantar, portanto não tinha sentido preparar uma refeição maior.

Precisava, no entanto, encontrar alguma coisa para fazer. Lembrou-se,então, das roupas para serem lavadas. Era uma boa hora. Era uma horacomo qualquer outra.

Ligou as luzes da casa a sua passagem. Desceu a escadaria, atravessoua ampla sala e, próximo da cozinha, avançou pelo corredor que levava aalgumas pequenas salas e à porta que conduzia ao pavimento inferior, ondeestava a lavanderia.

Acendeu a luz. Desceu cautelosamente a escada. Um cheiro deumidade, mofo e podridão invadiu suas narinas. Detestava-o, mas nada otirava dali. Já haviam pintado toda a lavanderia, cobrindo os tijolosvermelhos com massa e tinta branca, mas o cheiro continuava.

A umidade traçava desenhos estranhos na parede pintada. Começou aretirar as roupas do cesto e a classificá-las, antes de pô-las na lavadora.Pareceu sentir atrás de si uma respiração ofegante, agonizante.

Voltou-se rapidamente. A única coisa que viu foi a mancha na parede.Uma mancha estranha, como a de corpos retorcidos. Ficou ali, segurandonas mãos uma das camisas de David, olhando a mancha tentando decifrá-la.

Caminhou, então, lentamente na sua direção, fascinada, atraída,embora desejasse não estar ali, não estar naquela casa nem naquela colina.

Mais de perto, o desenho parecia mais claro. Era como corpos demulheres retorcidos uns sobre os outros. Podia ver seios e nádegas, maspodia ser também apenas sua imaginação, pregando-lhe mais uma peça.

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Recuou, então, na direção da lavadora. Deixou cair a camisa no chão.O ar tornou-se irrespirável, opressor. Uma presença intangível invadiu oambiente. Hellen sentia aquilo ao seu redor. Arrepios eriçaram sua pele.Seus joelhos bambearam. Ela gritou e correu escada acima.

Enroscou sua blusa no corrimão da escada. Teve a impressão de quealguém a segurava. Começou a gritar, a berrar horrorizada, debatendo-se,rasgando a blusa, disparando escada acima ensandecida.

Na sala não soube por onde correr. Ficou gritando, as mãos apertandoos cabelos, enquanto sentia claramente aquela presença estranha subir pelaescada, atravessar o corredor e vir na sua direção.

Seus gritos encontravam eco pela casa toda. Teve a impressão de quedezenas de mulheres gritavam, mandando-a correr, mandando-a se salvar doperigo iminente.

Sem conseguir pensar direito, ela disparou na direção da porta eganhou a rua, onde ficou gritando alucinadamente.

A reunião havia sido um sucesso. Todos os pontos que interessavam aDavid na negociação das franquias haviam sido aprovados e o contrato forafirmado sem maiores dificuldades.

Ele nunca estivera tão satisfeito com seus negócios e, na descontraçãoapós a reunião, revelou outra imagem aos olhos de Valentine. Aquelaaparente tristeza dos olhos dele havia sido substituída por um brilhointenso, que a contagiou inapelavelmente.

Foram juntos para o bar Happy Hour.— Acho que posso dizer que atingi o auge com meu trabalho,

Valentine — comentou ele.— Sente-se realizado?— Nos negócios? Sim, totalmente.Ela percebeu uma brecha para levar o assunto para o campo pessoal

que, naquele momento, a interessava mais.— E como homem? — indagou ela.

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David se voltou ligeiramente para olhá-la. Havia um brilho intenso eprovocador nos olhos dela e isso o intimidou momentaneamente. Depois,concluiu que não devia fugir àquilo. De alguma forma, Valentine lheacenava como um sentimento novo para ele que se sentia tão carente.

Amava Hellen. No fundo sabia que a amava, mas não conseguia aceitaraquela sua mudança.

— Tenho alguns problemas, você sabe disso.— Ainda ama sua mulher?Ele hesitou para responder e aquela hesitação foi observada por ela

como um bom sinal.— Você não respondeu minha pergunta — cobrou ela.— Vamos mudar de assunto — propôs ele, fragilizado.— Por que você foge dessa discussão?— O que posso fazer, Val? Sinto, às vezes, que é puro capricho dela.

Outras vezes acho que ela está com algum tipo de problema. Não sei o quefazer...

— Por que não procura ajuda profissional?— Um psiquiatra, você quer dizer? — interpretou ele, demonstrando

que já pensara no assunto.— Sim, por que não? Ele só irá ajudar, David.Ele ficou pensativo. Valentine ficou olhando para ele, desejando poder

dizer a ele tudo o que lhe ia no coração. Sabia, no entanto, que deveria irdevagar.

Queria ajudá-lo a se convencer que Hellen estava apenas fingindo, quenão gostara da casa e a única maneira de fazer isso era levando-a a umpsiquiatra.

Uma vez convencido disso, David ficaria mais acessível para discutir asituação, já que se livraria do sentimento de culpa, caso ela estivessemesmo doente.

— Já pensei nisso, mas Hellen diz que é a casa. Às vezes eu me arrepiocom o modo como ela se refere à mansão. Parece tratar-se de algo vivo,ameaçador, que a oprime e sufoca inexplicavelmente.

— Ora, David, é uma casa antiga, com personalidade e ficou ótimadepois da reforma. No dia da inauguração você me mostrou tudo e,confesso, jamais vi um ambiente tão agradável e tão acolhedor.

— É o que todos dizem, exceto Hellen.

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— Tudo se arranjará — disse ela, tocando o braço dele.Seu perfume o envolveu. Sua proximidade o perturbou. David pousou

a mão sobre a dela. Sentiu a maciez de sua pele, o calor de seu toque.Respirou fundo, desejando impregnara-se com o perfume dela.

Pouco depois chegavam ao bar.— Levo sua pasta? — indagou Valentine.— Não, traga apenas meu telefone celular. Hellen pode ligar e...— Hellen não vai ligar, David. Por que ligaria? Sabe que se trata de

uma reunião de negócios. Eu disse que você não tinha hora para voltar paracasa hoje, porque se tratava de algo muito importante em sua carreira. Elapareceu entender.

— Está bem, acho que você está certa — concluiu ele.Quando caminhavam para a entrada do bar, naturalmente David pôs a

mão no ombro da secretária. Valentine adorou o gesto, sentindo-se parte davida dele, não apenas sua empregada.

Os membros da empresa com quem David fizera negócios ainda nãohaviam chegado. Ocuparam a mesa tinha sido reservada por Valentine e,enquanto esperavam, pediram dois drinques.

O uísque gelado desceu redondo, aliviando as tensões do dia,refrescando e relaxando agradavelmente. David se sentiu ótimo, ali, sentadocom Valentine, longe do ambiente de trabalho.

Olhou-a demoradamente, percebendo detalhes de seu rosto, de suaboca, de seus cabelos... Sob a mesa, suas pernas se tocavam naturalmentepela primeira vez.

— Vejo uma mulher diferente aqui, neste lugar, desta forma —confessou ele.

— Verdade? E o que acha?— Gosto do que vejo.— Está me lisonjeando...— Mais do que isso... Acho que a estou paquerando...Ela sorriu, jogando os cabelos para trás, empinando o corpo numa

reação sutil de aprovação e vaidade.— É um jogo perigoso... — alertou ela.— Preciso jogar perigosamente às vezes...— Não poderá controlar o resultado depois...— Quem se importa com isso agora?

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— Fala sério?— Acho que nunca falei tão sério em minha vida.Ela manteve seu olhar no dele. Suas pernas se tocavam com força sob a

mesa. Suas respirações se apressavam incontrolavelmente.— Você sabe que eu posso aceitar tudo que vier de você...— Tudo mesmo?— Tudo! — confirmou ela, decidida.Naquele momento os convidados chegaram, interrompendo o idílio.

David se levantou para recepcioná-los e pô-los à vontade. A reuniãotomaria outro rumo agora. Ele e Valentine sabiam que teriam de continuaraquela conversa mais tarde.

Lá fora, no estacionamento, dentro da pasta, o telefone celular tocavarepetida e incansavelmente.

David se sentia terrivelmente mal. Havia sido localizado pela Policia,

que estivera no escritório e, de lá, encaminhada até o bar onde ele seencontrava.

— Sua esposa sofreu uma crise nervosa muito séria, está no HospitalMemorial — informou o policial.

David ficou aturdido. Valentine assumiu o controle da situação.Despediu-se dos convidados e arrastou David até o carro. Tomou o volantee rumou para o hospital.

— Não vou me perdoar se algo acontecer com ela — lamentou ele.— Você não tem culpa, David. Foi uma crise nervosa, quem pode dizer

qual foi a causa? Ela me parecia bem, quando falei com ela pelo telefone.— Ainda bem que você está comigo. Eu não teria sangue-frio para

tomar nenhuma decisão agora... Principalmente depois dos drinques quetomei...

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— Para isso você pode contar comigo — disse ela, de certa formadecepcionada com aquilo.

Estava preparando David para aquela noite. Deliberadamente o fizerabeber mais do que ela. Queria-o sem vontade, subjugado a sua mercê.

— Pensando bem, David, foi até bom que isso tivesse acontecido comela — observou Valentine.

— Por que diz isso? — surpreendeu-se ele.— Porque permitirá que você mande realizar um check-up completo

nela e passar a limpo toda essa historia. Se ela tiver algum problema,seguramente os exames vão indicar e, assim, você poderá ficar tranquilo. Senão for nada, saberá que é puro capricho. Não concorda?

— Vendo sob esse aspecto, acho que você está certa.Não comentaram mais o assunto. Logo chegavam ao hospital

memorial. Valentine se orientou e logo estavam na ala onde Hellen forainternada.

— Está dormindo, recebeu sedativos — informou a atendente, narecepção.

— Posso vê-la?— Não há inconvenientes nenhum, mas ela dorme profundamente.David foi até lá assim mesmo. Entrou no quarto. Hellen jazia no leito,

adormecida, conforme dissera a atendente. Um tubo estava ligado a suasnarinas. Soro estava sendo aplicado em sua veia. Seu rosto parecia calmo,apesar de contraído estranhamente, como se o medo nele se estampasse.

Entretanto, seria medo ou o sinal máximo da contrariedade, da nãoaceitação de uma situação? David ficou em dúvida.

— E então, David? — indagou Valentine, quando ele deixou o quarto.Caminharam junto pelo corredor, até o balcão de recepção.— Eu não sei, Val... Preciso falar com o médico que a atendeu...David se informou no balcão. Aguardou algum tempo, até que o

médico pudesse falar com ele.— O que houve com minha esposa? — indagou.— Chegou aqui com alto nível de estresse, crises de choro, início de

convulsões, apesar de ter sido previamente medicada na ambulância...— E o que isso quer dizer?— Pode parecer estranho, mas sua esposa estava aterrorizada ao

extremo... Apavorada... Algo a assustou, Sr. Paterson. Algo a assustou

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muito mesmo! — finalizou o médico, deixando David perplexo.— Talvez um ladrão — comentou, voltando-se para Valentine.— Vou ligar para nossa segurança e pedir que deem uma olhada na

casa, o que acha?— Acho uma ótima ideia. Mande que vasculhe por tudo. Estaremos

esperando na porta de entrada. Peça que se apressem ao máximo.Valentine foi cumprir a ordem. David foi até a máquina de café

apanhar um copo. Bebeu devagar, torcendo para que a bebida espantasselogo os efeitos do álcool. O susto que levara já havia, em parte, posto seussentindo mais próximos da lucidez.

A secretária retornou.— Vamos, eu o levo até sua casa — decidiu ela.— Seria mais fácil para você se... — ia dizendo ele.— Nada disso! Não vou deixá-lo dirigir nestas condições. De lá eu

tomarei um táxi, mas não discuta comigo agora. Se precisar de mais algumaprovidência quando chegar lá, eu tratarei de tudo. Agora seja um garotobonzinho e me acompanhe, Sr. Paterson — ordenou ela, segurando-o pelobraço.

David não teve alternativa senão concordar com ela. Valentine sabiaser firme no momento exato. Essa era uma de suas maiores qualidades.

Enquanto ela dirigia, David se lembrava do rosto de Hellen, daquelaexpressão nunca vista nela. Juntando agora com o que o médico haviafalado, podia compor o quadro de pavor que se retratava no rosto dela.

A questão, porém, era saber o que a assustara daquela forma. O que ateria levado àquele estado?

O hospital ficava próximo da mansão, por isso em poucos minutoshaviam chegado. Havia gente na rua, em frente à casa. Vizinhoscomentando o que acontecera. Quando David desceu, um deles caminhouaté ele.

Era Jones, da casa em frente, que todo sábado regava e aparava agrama de seu jardim, durante toda a manhã. O barulho do cortador de gramaacordava David logo cedo, deixando-o mal-humorado.

— Eu socorri sua esposa e chamei a ambulância — foi explicandoJones.

— E o que houve com ela? — quis saber David, ansioso.

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— Eu não sei, simplesmente saiu correndo da casa e se ajoelhou nomeio da rua, gritando desesperadamente...

— É, e teve aqueles uivos à tarde — comentou a garota de aparelhosnos dentes.

— Uivos? Que uivos? Não sei nada de uivos — disse Jones.— Você não estava aqui, papai. Ouvimos um gemido forte, depois um

uivo... E ela estava na janela do sótão, descabelada, parecendo umfantasma...

— Deixe de tolices, garota — repreendeu-a o pai.— Espere um pouco, quem estava na janela? — quis saber David.— Sua esposa.— Qual janela?— Aquela do sótão, à direita do telhado — apontou ela.— Não acredite nela, Sr. Paterson. Megg vê coisas, é uma exagerada

— explicou Jones.— Chegou a subir até lá? — indagou-lhe David.— Não, de forma alguma, mas a Policia esteve aqui. Dois oficiais

subiram até lá, deram uma olhada, depois fecharam a porta. Acho que nadaacharam de anormal. Quer que eu o acompanhe até lá para uma novavistoria?

— Não, agradeço sua atenção. Pedi a minha equipe de segurança queviesse dar uma olhada. Assim não corremos riscos e ficamos seguros de queestá tudo bem na casa.

Um veículo chegou trazendo quatro homens da segurança que prestavaserviços no prédio onde se localizava a agência de viagens.

Valentine explicou-lhes o que necessitavam fazer. Subiramrapidamente a colina. A garota pôs David de volta no carro e o levou até aporta da casa. Os seguranças já haviam entrado. Iriam fazer uma vistoria emtodos os cômodos, do porão ao sótão.

Os dois esperaram no carro. David estava aturdido ainda. O que Hellenfora fazer no sótão? Ela nunca entrava ali, estava cheio de coisas velhas,empilhadas lá durante a mudança. E o que significava o que dissera aquelagarota, a respeito de gemidos e uivos?

— Preocupado? — observou Valentine.— Pensando... O que você entendeu do que disse aquela garota sobre

uivos e gemidos...

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Valentine riu.— Ora, David, ela é uma criança, vive na fantasia. O próprio pai disse

que ela vive vendo coisas...— Gostaria de outro café...— Deixe os homens terminarem a vistoria. Eu farei um café para você

— propôs ela.— Estou lhe dando mais trabalho que o normal, não?— Não importa, cobrarei horas extras...— Tenho certeza que está fazendo valer cada centavo dessa despesa —

concordou ele.Os homens da segurança retornaram. O chefe deles se debruçou na

janela do carro para falar com Valentine.— Nada de anormal, senhorita. Nenhuma janela ou porta aberta ou

forçada, ninguém na casa, nenhum sinal de roubo ou vandalismo. Seriaimportante se o Sr. Paterson entrasse agora na casa e verificasse se está tudoem seus lugares, inclusive no cofre, se ele tiver um.

— Certo, Travis. Ele fará isso agora mesmo — disse ela, empurrandoDavid para fora do carro.

Caminharam juntos até a porta, seguidos pelos seguranças. Davidentrou primeiro, observando tudo ao seu redor. Quando Valentine entrou, noentanto, sentiu um arrepio estranho percorrer seu corpo e se voltou paraolhar os seguranças atrás dela.

Havia tido a nítida impressão que um deles havia acariciado seu corpo,mas deveria ter sido apenas da impressão, porque eles estavam a umadistancia respeitável para ter feito isso.

No centro da sala David olhava as estatuetas e quadros que haviamcomprado para a decoração. Tudo estava em seus lugares. Valentine ficouao lado dele. Uma sensação estranha, incômoda, perturbou-a. Tinha certezade estar sendo observada intensamente. Olhou ao seu redor. Os homens dasegurança estavam atentos nos detalhes da casa, não nela.

A fonte daquela sensação vinha de outra parte, aliás, parecia vir detoda parte. Creditou isso à tensão provocada pelo acontecimento. De certaforma se sentia intimidada pelo que acontecera à esposa de David, pelavinda da Policia, pela necessidade de chamar os seguranças.

Tinha certeza que logo aquela sensação passaria.— Onde fica seu cofre particular? — indagou ela.

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— Na biblioteca — respondeu ele, caminhando até lá.Os rapazes da segurança esperaram discretamente na sala. David abriu

o cofre, embutido atrás de um quadro. Ali estavam as joias de Hellen, suaspróprias joias, incluindo uma pequena coleção de relógios de ouro,documentos de imóveis, um maço de dólares para alguma emergência eoutros papeis.

— Está tudo aqui. Nada foi mexido na casa — concluiu ele.Valentine foi dispensar os seguranças. Assim que eles saíram, ela

trancou a porta e se voltou para olhar a ampla sala, com moveis sombrios,combinando com os degraus e corrimões de madeira de lei que levavam aospavimentos superiores.

Cruzou os braços diante do corpo, instintivamente, como se quisessedefender o corpo. Aquela sensação ainda era forte. Principalmente agoraque os seguranças haviam ido embora. Respirou fundo, repreendendo-se.Era uma mulher prática e realista. Nada havia ali que pudesse incomodá-la.

Foi até a cozinha preparar o café que David havia pedido. Ele foi tercom ela logo depois.

— O que pode ter acontecido com ela, afinal? — indagava-se.— Uma crise de nervos ou algo assim não precisa de um motivo

especifico. Simplesmente desencadeia-se. Acho que os exames irão revelarqual o verdadeiro problema dela — afirmou Valentine, passando-lhe umaxícara de café.

Olhou-o com piedade. David ostentava uma expressão de cansaço. Atensão daquele dia havia sido terrível para ele, para finalizar-se com aquelasituação criada pela esposa.

O que ele precisava naquele momento era de um bom banho e umarelaxante massagem.

A ideia lhe pareceu tentadora demais para ser afastada. Estavam ali asóis, sem ninguém para incomodá-los, inclusive a esposa dele. Tinha-o nasmãos, carente e frágil. Quando voltaria a ter outra chance como aquela?

Queria aquele homem. Desejava-o. Esses pensamentos fizeramfrêmitos percorrer seu corpo intensamente. Desconheceu-se. Jamais sentiratanto tesão por aquele homem. Talvez o fato de estar ali, a sós, com elefizesse isso.

O fato era que David se tornara irresistível. A situação fugia aocontrole de Valentine. Ela precisava tê-lo, de qualquer maneira, naquela

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noite, naquela casa.— Deixe-me lhe fazer uma última coisa esta noite — pediu ela e sua

voz era rouca e aveluda, traduzindo todo o desejo que ardia em seu corpo.— O que mais você poderia fazer por mim, querida Valentine? —

retrucou ele, abrindo naturalmente os braços.Ela se sentiu praticamente empurrada para ele. Quando se viu, estava

aninhada no peito dele, ouvido colado, captando as batidas do coração dele.Enlaçou-o pela cintura. David a abraçou pelos ombros e debruçou a

cabeça sobre os cabelos dela, deixando de uma vez por todas que aqueleperfume o contagiasse.

Valentine sentiu o coração dele bater mais rápido, apressando-se,traindo a emoção que ele sentia

Levantou a cabeça para ele, olhos nos olhos, lábios bem próximos.— O que você ainda pode fazer por mim esta noite? — perguntou ele,

com olhos suplicantes.— Vou lhe preparar um banho quente... Relaxante... Gostoso... —

murmurou ela, o hálito soprando sutilmente no rosto dele, embriagando-o.— Vou adorar isso. O quarto é lá encima. O banheiro fica ao lado —

afirmou ele.— Não demore a subir — pediu ela.Afastou-se vagarosamente, sempre olhando para ele. Uma vez na sala,

subiu agilmente a escadaria, até o quarto. A cama de casal era enorme, comenormes travesseiros. Vasculhou os armários. Encontrou roupões. Levou-ospara o banheiro. Ligou a água, regulando a temperatura, enchendo ahidromassagem.

Depois despiu-se e vestiu o roupão sobre o corpo. Repentinamente,teve a impressão de que estava sendo observada, da mesma forma queocorrera quando entrara na casa. Tinha certeza que sabia quem era.

— David! — disse ela, voltando-se rapidamente.Não havia ninguém no banheiro, exceto ela. Saiu, foi até o quarto.

David ainda não havia subido. Achou estranho, mas deu de ombros. O quetinha pela frente envolvia seus sentidos num delicioso torvelinho.

Voltou ao banheiro. A banheira estava cheia. Ligou-a e a águacomeçou a se agitar gostosamente, com um zumbido suave e relaxante.

David entrou naquele momento. Ao vê-la com o roupão fechou osolhos e tentou entender o que a empurrava para ela de forma tão

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irrecusável.Valentine se aproximou. Começou a soltar-lhe o nó da gravata. David

tocou o nó que lhe prendia o roupão. Soltou-o. Suas mãos penetraram numreino de maciez e calor.

Megg desligou o telefone pela décima vez naquela noite. Havia ligadopara todas as amigas e contado sobre o que ocorrera em Somerville naquelatarde e naquela noite.

Suas amigas fiéis conheciam seus dons, por isso ela sempreimpressionava quando contava suas histórias. Desta vez, porém, fora real eacontecera ali perto da casa dela, não precisando inventar nenhum detalhe amais.

Megg Jones via coisas. Coisas que ela não sabia interpretar nemidentificar. Aconteciam, a qualquer momento e em qualquer lugar. Derepente, a paisagem se transforma e Megg se via num outro lugar, numaoutra época.

Via coisas no espelho. Imagens atrás da sua, movimentosimperceptíveis de objetos, coisas que assustavam suas amigas e que lhedavam um prestigio entre elas.

Agora, parada diante da janela e olhando para a Mansão Grove comum binóculo, Megg tentava se certificar de que o que via na janela do sótãoera mesmo a imagem de um homem de uniforme e espessa barba ou apenaso reflexo da luz ou a sombra de uma árvore.

De qualquer forma, era mais uma boa história para ser contada a suasamigas.

Correu de volta ao telefone.

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Na semana que se seguiu, as coisas ficaram muito cômodas para

David, tão cômodas que ele não via necessidade nenhuma de fazeralterações. Hellen continuava no hospital, agora submetendo-se a umabateria infinita de testes de todos os tipos, como se David quisesse, dequalquer maneira, mantê-la afastada.

Valentine adorou a mudança. Agora tinha David só para si. Saíamjuntos do trabalho, iam jantar e invariavelmente acabavam no apartamentodela, no lado sul da cidade, não muito distante do escritório, o que tornavatudo mais fácil ainda.

Às vezes ele dormia lá. A garota evitava ir até a mansão, pois nãoconseguia se livrar daquela sensação estranha de estar sendo observada.Além disso, a casa lhe despertava emoções violentas, sem controle algum,despertando seu lado primitivo, aguçando seus instintos de fêmea.

Se por um lado fosse positivo porque encontrava a recíproca em David,por outro a assustava, pois a levava a extremos que jamais experimentaraantes.

Aquele cenário sóbrio, até certo ponto pesado para ela, contrastavaenormemente com sua impressão inicial sobre a casa, quando a visitara nainauguração.

— Vamos até a casa hoje — disse ele, no final do expediente daquelasexta-feira. — Preciso apanhar umas roupas e mandá-las para a lavanderia.Hellen vinha se descuidando disso ultimamente. Minhas roupas seacumularam na lavanderia...

— Não seja por isso. Vamos até lá pegá-las e trazê-las para cá. Eu aslavarei e passarei com a maior satisfação, querido — respondeu ela, fugindoao desejo de permanecer na casa mais do que o necessário.

— Está bem, vamos fazer isso já?— E por que não?Deixaram o escritório e pouco mais tarde estavam na mansão.

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— Vou pegar um pijama novo. Posso deixá-lo na sua casa? — indagouele, com malícia.

Ela sorriu, concordando com um aceno de cabeça, sentindo asinfluências da casa se abater sobre ela, provocando uma ligeira vertigem,uma dor no ventre, quase um desfalecimento de prazer, apenas de olhar apromessa nos olhos de David.

Por seu turno, ele se sentiu da mesma forma, cativado, fascinado porela, desejando-a ali mesmo, imediatamente.

Valentine, no entanto, resistiu, lutando contra aquele desejo inesperadoe incompreensível.

— Vá buscar o pijama. Vou até a lavanderia ver como estão suasroupas.

— Por aquele corredor — apontou ele.— Já estive aqui antes, lembra-se? — zombou ela, com um sorriso,

dirigindo-se para o corredor.Desceu a escada até o porão. As roupas estavam amontoadas nos

cestos, ainda por lavar. Havia uma camisa de David no chão. Abaixou-se eapanhou-a.

Sentiu uma presença atrás de si e imaginou que David já estivesse ali.Voltou-se para ver apenas a parede ao fundo, com manchas de umidadesemelhantes a corpos retorcidos.

Reparou, então, no cheiro estranho que havia ali. Um cheiro de coisapodre, de mofo e velharias. Mas, acima de tudo isso, pairava aquelasensação de presença, de algo ameaçador, algo que a queria, que adesvendava, que poderia destruí-la imediatamente.

Sentiu-se frágil, dominada, como se estivesse acorrentada ao chão esobre ela avançasse um perigo iminente, gerando uma angústia crescente,uma sensação de importância e submissão que a fazia estremecer.

Recuou lentamente, até apoiar as costas contra a lavadora de roupas.As imagens retorcidas na outra parede pareciam dançar, criando vida,gemendo, uivando desesperadamente. Um gemido que encontrava ecodentro dela, que arrancava de sua garganta um som jamais emitido antes,um som de vida se esvaindo, de morte se instalando.

— O que está havendo aí embaixo? — gritou David, surgindo no altoda escada.

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— David! — murmurou ela, roucamente. — David! — conseguiuafinal, chamar mais alto.

— Estou aqui — respondeu ele, descendo rapidamente a escada.Encontrou-a trêmula e a abraçou. Valentine se apertou contra ele,

tentando se sentir segura. Fechou os olhos com força. Sentiu o controleretornar e a sensação sumir repentinamente.

— O que foi, querida? — quis ele saber, segurando-lhe o queixo efazendo-a erguer a cabeça.

— Esta casa... Ela me assusta... — murmurou ela, lembrando muito amaneira como Hellen agia em relação à casa.

David se arrepiou instintivamente. Conhecia Valentine. Era umamulher racional e controlada. Ali, no entanto, naquele momento, estava aponto de perder o controle.

Valentine sentiu sua fraqueza, sentiu a influencia da casa, sentiu oquanto se enganara a respeito de Hellen. Havia algo naquela casa. Haviaalgo maléfico que a afetava da mesma forma como afetara Hellen.

— David, você nunca se sentiu observado nesta casa? — indagou ela,surpreendendo-o.

— Não, eu me sinto bem... Muito bem... Eu me sinto em casa entreestas paredes, como se este fosse meu castelo... Por que me perguntou isso?

— Não sei... Mas quero ir embora daqui o mais depressa possível...— Espere! — pediu ele. — Sabe com quem você está se parecendo?Ela pensou por instantes antes de responder.— Com Hellen? — retrucou, com absoluta convicção do que dizia.— Exatamente! Não se deixou influenciar pelas histórias que lhe

contei sobre ela, não?— Não sei, David... Tive uma impressão há pouco tão real... Acha que

me deixei sugestionar pelo que me contou nos últimos dias?— Com toda certeza! Veja, não há nada aqui. Ninguém. Pessoa alguma

— disse ele, enquanto caminhava pelo porão, olhando atrás dos móveis,debaixo das coisas, até parar diante da parede onde estavam as manchas. —Engraçado! Isto não estava aqui. Mandamos pintar... Acha que pode ser daumidade?

Olhando-o ali, junto daquela parede, tocando aquelas manchas,Valentine sentiu o pavor invadi-la, como se esperasse que, a qualquer

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momento, aquela parede se abrisse e algo inominável surgisse para levarDavid.

— David, saia daí, por favor! — pediu ela, num sopro de voz trêmulo eassustado.

— O que disse? — retrucou ele, voltando-se para ela.Os olhos dela se arregalaram. As manchas ganhavam vida. Garras

humanas se estendiam na direção dos ombros dele. Ou seria apenasimpressão?

— Saia daí, pelo amor de Deus! — berrou ela, fazendo-o correr paraampará-la, antes que ela caísse de joelhos no piso.

— Valentine, o que está havendo, afinal...— Leve-me daqui... Leve-me daqui, por favor! — suplicou ela com

tanta veemência que ele não teve como recusar.Amparou-a escada acima e, pouco depois, deixavam a casa para entrar

no carro.— Vamos embora, por favor! — pediu ela, trêmula, apavorada.— Val, que tolice. Minhas roupas...— Deixe essas malditas roupas para trás... Eu lhe compro roupas

novas... Mas vamos embora dessa casa — pediu ela, quase histérica.David achou melhor atendê-la, por via das dúvidas.

Alice ficara arrasada quando soubera do que acontecera com suaamiga. Havia estado com Hellen, conversaram sobre a casa. Ela estava bem,um tanto tensa, podia afirmar, mas nada que denotasse a proximidade deuma crise como aquela.

Agora, ali, ao lado do leito da amiga, esperando-a acordar, tentava uniros fragmentos das conversas com David, com o médico e com asenfermeiras para formar um quadro significativo do que realmente ocorreracom ela.

O diagnóstico era de uma forte crise nervosa, fruto de aparentemente,um estresse sem maiores explicações. Diversos exames estavam sendo

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feitos, nos momentos de lucidez de Hellen, quando ela acordava, sealimentava e conseguia se manter calma.

Sim, pois sem maiores explicações, todo o processo retornava e ela,repentinamente, entrava em crise, necessitando de fortes doses de sedativospara se acalmar e voltar a dormir.

Para Alice, aquela era uma situação que não conduzia com a imagemque ela cultivava da amiga. Hellen fora muito saudável, muito apegada àvida, cheia de energia, vitalidade e disposição. Uma pessoa não muda deuma hora para outra, sem que haja um motivo ou, em último, uma doençagrave.

Era essa possibilidade que mais afligia Alice. Certos tumores nocérebro provocavam aquele tipo de reação. As pessoas perdiam o controle,angustiando-se, desesperando-se por causas inexplicáveis. O médicocomentara a esse respeito, por isso os exames na cabeça e no crânio deHellen estavam sendo minuciosos ao extremo.

Até o momento, felizmente, nada havia sido encontrado.— Olá, minha amiga! — murmurou Hellen, abrindo os olhos e

percebendo-a junto ao leito.— Olá, dorminhoca! Quando vai sair dessa cama, folgada?Hellen esboçou um sorriso que não chegou a se desenhar. Seu rosto se

contraiu numa careta desconhecida para Alice. Aquela não era a Hellen queela conhecia.

A amiga estava trêmula, notava por suas mãos estendidas sobre olençol da cama. Estava um tanto pálida. Nos seus olhos havia medo, ummedo que era tão visível que chegava a assustar a própria Alice. Comointerpretar aquele estado?

— Como se sente? — indagou a Hellen.— Mais tranquila...— Isso é bom... Fico contente de ouvi-la falar assim.— Sabe, Alice... Foi aquela casa... Há algo lá... Uma presença...— Ora, querida! Impressão sua...— Não! — cortou-a Hellen, com firmeza, olhando-a nos olhos.Aprumou-se na cama, levantando os travesseiros para sentar-se.— Há algo naquela casa... No porão... Uma presença maligna... E

aquelas manchas na parede, que não saem... Já pintamos e... E elas

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continuam... Alice, lembra-se dos acampamentos de verão que fizemos,daquelas noites em volta das fogueiras, das histórias de fantasmas e loucos?

— E como poderia esquecer? — retrucou Alice, o semblante distante,voltando no tempo e no espaço.

-- Aquelas histórias que ouvíamos de presenças malignas e toda sortede malefícios que pode haver não surgiram do nada, da imaginação daspessoas. Creio firmemente que elas têm uma origem... Têm origens emsituações como essa que passei... Se eu ficasse um segundo a mais naquelacasa, teria sido tragada, destruída, consumida, sei lá!

Hellen falava com tanta convicção que não havia como não acreditarnela.

— O que descobriu naquele livro que lhe consegui? — indagou Alice.— Fala de acontecimentos misteriosos que envolveram a mansão,

desde sua construção até a Segunda Guerra Mundial. Você precisa lê-lo eajudar-me a entender o que há lá. Diga que vai fazer isso por mim. Você éuma pesquisadora, uma ótima pesquisadora, sempre soube disso. Ajude-me,por favor... Por favor! — suplicou Hellen, ao final, de forma tão sincera eveemente que não havia como não acreditar nela e lhe oferecer a ajuda quepedia.

— Está bem, você me convenceu. Vou tentar descobrir tudo que possaexistir sobre a Mansão Grove, a começar por aquele livro que lhe arrumei...Onde está aquela cópia?

— Eu a deixei na casa, no meu quarto e... Deixe para lá. Consiga outracópia. Não entre lá, pelo menos por enquanto, até sabermos o que existerealmente lá. Seja o que for, manteve-se a distancia de mim, importunando,influenciando, mas sem ameaçar. Agora sinto que a ameaça é real. Por issonão entre lá, Alice. Prometa-me isso — pediu Hellen.

— Está bem, eu prometo! Agora trate de comer toda a sua comida —disse, quando a enfermeira se aproximou com a bandeja.

— Sim, farei isso.— Eu voltarei em breve — afirmou Alice, apertando a mão da amiga e

fazendo menção de se afastar.Hellen apertou com força a sua mão, fazendo-a olhá-la.— Diga-me que acredita em mim — suplicou ela.— Sim, querida! Eu acredito em você — disse Alice, com toda

sinceridade.

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Havia lágrimas nos olhos de Hellen. Alice a abraçou, tranquilizando-a,depois deixou o hospital. Tencionava retornar à Universidade, mas, derepente, se surpreendeu pegando a Avenida O’Brien e indo parar emMedford.

Parou o carro diante da entrada da Mansão Grove. Ficou ali, olhando aconstrução de aparência austera, mas inofensiva naquela tarde bonita deoutono.

Folhas se acumulavam sobre o calçamento. Os esquilos se apressavamlevando nozes e avelãs para as tocas nos troncos das árvores.

Alice ficou olhando os detalhes da casa, da pintura, das colunas naentrada, da alameda que subia pelo jardim até à porta. Era um localagradável, com muito espaço e muito conforto. Como poderia haver alialguma coisa que assustasse um ser humano?

Era uma casa, apenas uma casa, feita de madeira, tijolos e cimento.Não tinha vida própria, não tinha a capacidade de armazenar energiaspositivas ou negativas. Acreditar nisso seria contrariar todo o seu espíritocientífico.

Seria a casa ou seria Hellen? Se não conhecesse a amiga tão bem nemdiscutiria o assunto. Uma doença qualquer justificaria aquele estado.Hellen, no entanto, nunca fora de fingir, de inventar, de se deixar envolverpor coisas do sobrenatural ou matérias inexplicáveis.

— Quem é você? — indagou Megg Jones, debruçando-se na janela docarro e assustando Alice.

— Meu nome é Alice...— Você é amiga da louca?— Louca? Como assim? — surpreendeu-se.— Da Louca de Somerville. A mulher que mora nessa casa e que ficou

louca...— Megg viu um fantasma na janela da casa — disse a outra garota que

acompanhava Megg.— Nancy, você prometeu não contar para ninguém! — repreendeu-a

Megg, sem muita convicção.Adorava quando se via no centro das atenções. E ver coisas a fazia

especial.— Você viu um fantasma? — indagou Alice, julgando tratar-se de uma

brincadeira.

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— Sim, naquela janela — falou Megg, sem se segurar por mais tempo,ansiosa para contar o que sabia. — Eu estava na janela da minha casa, ali dooutro lado — apontou.

— E o que viu exatamente? — quis saber Alice.— Lá no sótão, naquela janela — apontou de novo. — Ali estava ele.

Um homem de longas barbas, com roupa de militar...— Como o Rambo? — cortou-a a amiga.— Não, naqueles uniformes antigos, da Guerra da Secessão. Uniforme

escuro, com botões reluzentes e um quepe, igual aos daquele filme Dias deGlória, lembra-se? Ele estava lá, parado, olhando na minha direção. E ria.Ria como um louco.

— Quando foi isso? — quis saber Alice, sentindo que a garota nãomentia.

Mas como acreditar naquela bobagem.— Foi na tarde em que a Louca de Somerville correu para o meio da

rua. Foi a tarde dos gemidos e dos uivos...— Isso é verdade porque eu também ouvi — afirmou a amiga de Megg

e as duas encararam Alice.Uma sensação incômoda percorreu o corpo dela. Havia tanta

espontaneidade e tanta convicção no que elas falavam que não havia comonão acreditar.

Mas acreditar em quê, afinal? Fantasmas? Gemidos na tarde? Loucura!Histeria coletiva! Não podia ser outra coisa.

O Dr. Glen Gravenhurst reconhecia que em seus dez anos de profissão

jamais vira algo parecido. Hellen Paterson apresentava um quadrointeressante de perturbação que não se explicava a não ser no própriodepoimento dela.

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Eram sintomas claros e persistentes, cuja causa residia em um terrorabsoluto, um medo injustificado por alguma coisa que a ameaçava ou ahavia ameaçado de forma tão convincente que nada a demovia do contrário.

— Algum contato físico? — indagou o médico a ela.Hellen estava deitada na cama, com a cabeça voltada para a janela,

onde via a tarde de outono passando lentamente nas folhas coloridas quecaíam diante de seus olhos.

— Nenhum! — respondeu ela, distante.— Alguma coisa a tocou ou segurou?— Foi a sensação, doutor... A sensação do perigo iminente...

Chegando... Alcançando... Entende o que eu quero dizer?— Apenas uma sensação, Hellen. Você nada viu, você não foi tocada, o

que a ameaçava, então?Ela voltou o rosto para ele. Glen tinha perto de quarenta anos, alguns

cabelos brancos que lhe emprestavam um ar sério e maduro. Os óculos nãoescondiam seu olhar franco e calmo, que exercia um efeito tranquilizadorem Hellen.

Era um homem bonito, alto, de ombros largos e mãos gentis. Falavanum tom que parecia esmiuçar por dentro os seus pacientes. Um suave ediscreto perfume madeira o cercava e Hellen, ali, naquele momento, achoucomo deveria ser interessante vê-lo na praia, de sunga, correndo ao sol.

Foi uma imagem bela e passageira, como a de uma folha coloridacaindo diante da janela.

— Eu não sei o que me ameaçava. Eu só sei que estava lá, doutor.Tenho certeza.

Glen levantou-se, guardou o estetoscópio e o medidor de pressão.Fisicamente Hellen estava bem. Os exames nada indicaram. Mentalmenteera difícil chegar a um diagnóstico, pois ela apresentava ótimas reaçõesmotoras, mas insistia naquela tese absurda.

— Acredita em fantasmas? — perguntou ele, então, surpreendendo-a.Hellen o olhou com surpresa. Esboçou um sorriso.— Não, acho que não, doutor... Se está tentando ligar o que senti

naquela casa com fantasmas perde seu tempo. Aquilo era mais físico... Maispalpável...

— Embora você nada visse, Hellen. Não lhe fiz esta perguntagratuitamente. Estas velhas mansões de Boston têm historias demais, tempo

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demais de existência. Acredito pessoalmente que elas possam funcionarcomo uma espécie de bateria, acumulando as energias das pessoas que, aolongo do tempo, passaram por elas...

— Que absurdo, doutor!— Não, falo sério mesmo. Preocupa-me seu estado porque, baseado

nos exames e nos diagnósticos, tenho de mandá-la para casa e...A reação foi imediata. Hellen empalideceu e suas mãos começaram a

tremer. Seus olhos se encheram de lágrimas e sua expressão demonstroutanto medo que Glen se arrependeu de ter dito aquilo.

— Não... Por favor... Não me mande de volta... — suplicou ela, numfio trêmulo de voz.

Estava apavorada, realmente apavorada. Não era apenas uma reaçãonervosa, era mais do que isso. Tinha todos os sintomas de trauma revivido,de um medo tão grande que ultrapassava as raias da razão.

— Hellen, acalme-se — ordenou ele, com firmeza.Ela se encolheu no leito, revelando novo sintoma. Glen percebeu nova

crise chegando. Chamou uma enfermeira. Aplicou um tranquilizante.Esperou até que Hellen voltasse a relaxar. Dopada, ela ficava mais acessívele menos suscetível àquilo que a aterrorizava.

— Como se sente agora? — indagou ele, pondo a mão na testa dela,ensaiando uma leve caricia em seus cabelos.

Hellen se sentiu bem com o toque macio e ardente daquela mão em seucorpo. Desejou que ele continuasse, que o toque persistisse, mas elerecolheu a mão, cruzou-a sobre a outra encima de uma das pernas einclinou-se para olhá-la nos olhos.

— E então? Como se sente? — repetiu ele.— Melhor — murmurou ela, a voz um tanto pastosa, revelando o

efeito do tranquilizante.— Já foi hipnotizada antes, Hellen?— Uma vez... Na fraternidade... Lá na Universidade... Mas foi de

brincadeira e... — interrompeu-se ela, fechando os olhos.Glen sentiu-se tentado a fazer aquela experiência, mas hesitou.

Precisava saber um pouco mais sobre Hellen e sobre aquela casa.Foi para seu consultório levando a ficha dela. Ficou um tempo

examinando-a. Nada no histórico daquela mulher revelava qualquer

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problema com histeria ou sistema nervoso antes. Não podia ter surgido,então, o problema assim tão de repente.

Reclinou-se em sua poltrona, divagando um pouquinho. Pensou nacasa. Pensou nas histórias que já havia ouvido, nos artigos científicostambém. A parapsicologia havia avançado muito últimos tempos, comouma ciência que trazia algumas respostas a questões que haviam intrigadoas pessoas ao longo dos tempos, criando mitos, lendas e estimulando afantasia e a criatividade.

Apanhou o telefone. Tinha um amigo naquela área. John Hongermanpesquisava velhas construções na região de Boston, unido a pesquisahistórica de suas origens com seu estado atual. Havia descoberto coisasrealmente interessantes e fantásticas. Era um entusiasta de seu trabalho, masalguém pouco ligado ao marketing pessoal, à divulgação de resultadosobtidos.

Era, de certa forma, um tipo meio excêntrico, sempre usando uma capasobre o corpo, fizesse frio ou calor. Arrematava a figura exótica com umchapéu de abas largas e retas que lembrava muito a dos antigos moradoresda cidade.

— John, seu marmota! O que tem feito além de bisbilhotar sótãos eporões ultimamente? — brincou ele.

— Tenho pesquisado velhos solteirões e descobertos coisas beminteressantes sobre suas preferências sexuais —d evolveu o outro.

— Como molestar garotinhas?— Como bolinar enfermeiras nos plantões noturnos — arrematou o

outro e ambos riram divertidos.Aquela disposição para brincar e fazer piadas contrastava totalmente

com a figura diferente de John, mas o fazia uma pessoa de fácil convívio ede muitas amizades.

— Estou pensando em emprestar sua velha capa para fazer um show deexibicionismo com minhas enfermeiras — continuou Glen, ainda rindo. —Mas não foi por isso que liguei.

— É claro que não! Quer saber o quê sobre qual casa?— Como sabe?— Como sei o quê?— Que desejo saber alguma coisa sobre uma determinada casa.— Por que você me ligaria, seu estúpido?

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— Você sabe me confundir mesmo, seu marmota. O que sabe sobre aMansão Grove?

— Grove? Mansão Grove? — repetiu John, pensativo.— Fica em Somerville...— Sim, na Medford, numa colina, não é?— Creio que sim. Sei apenas que é na Medford, não visitei o local.— Já ouvi falar nela, mas não a pesquisei ainda. Há coisas não muito

bem esclarecidas sobre seu passado, mas nada foi reportado a respeito delanos últimos tempos. É uma casa neutra...

— O que é uma casa neutra?— Vejamos como posso lhe explicar melhor: Já lhe disse que certas

casas são como baterias, que acumulam energias?— Sim, já me falou a respeito.— Pois essa casa é como uma bateria que perdeu seu poder de carga.

Não acumula mais energia, nem tem mais energia em estoque.Simplesmente apagou.

— E como se mede isso?— Hoje já existem equipamentos apropriados, mas o parâmetro base é

a inexistência de relatos sobre eventuais manifestações nela.— Que tipo de manifestações?— Todo esse tipo de manifestações que o cinema popularizou.— E se eu lhe dissesse que uma de minhas pacientes está muito

abalada, aterrorizada é a melhor definição, e nem pode ouvir falar dessacasa.

— Tem de convir que não é o bastante. Ela pode estar assim por umaporção de coisas...

— Se lhe pedisse para investigar, faria isso por mim?— Estou tão ocupado ultimamente... Há uma mansão em Chelsea que

está me fascinando e...— É importante para mim, John.O cientista pensou por instantes.— Verei o que posso fazer. Pode conseguir uma autorização do

proprietário para examinar a casa?— Creio que sim.— Faça isso, depois ligue para mim, está bem?

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Alice estava em sua sala, terminando de ler aquela historia da MansãoGrove, quando John entrou.

— Que coincidência! — observou ele, vendo-a com o livro na mão. —Eu ia lhe falar justamente sobre esse livro. Parece-me que a Mansão Groveestá em evidência ultimamente — comentou ele.

— Por que diz isso? — intrigou-se ela, fechando o livro.— Acabo de falar com um amigo meu, um médico. Sua paciente

parece ter se influenciado com a casa e...— Fala de Hellen Paterson?— Não sei, não perguntei o nome... É aquela sua amiga?— Sim, ela mesma. Estive no hospital falando com ela. Afirma com

certeza de que há alguma coisa na casa.— E o que leu no livro?— Algumas coisas interessantes, mas o mais importante é que, após a

Segunda Guerra Mundial, nada mais foi reportado sobre a casa...— E por que a Segunda Guerra especificamente?— A casa serviu como local de treinamento de capelães do Exército.— Devem ter orado muito lá dentro. Isso pode ter limpado a casa pelos

próximos cem anos.— Fala sério?— Sim, a oração tem poderes que nós mal podemos imaginar ainda.— E o que houve com minha amiga?— Não sei, mas a casa pode não ter nada a ver com isso.— Você vai investigá-la?John ficou pensativo por instantes. A todo momento recebia convites

como aquele. Quando tudo falhava, chamavam-no para tentar encontrar emmadeira velha e tijolos explicações para o inexplicável. De cada cemconvites daqueles, um ou dois no máximo tinham algum interesse cientificorealmente.

— Dê-me um bom motivo — pediu ele, percebendo na expressão deAlice uma súplica.

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Ela pensou por instantes, depois abriu o livro. Mostrou a ilustração deCoronel Grove a John.

— É Arthur Grove, o homem que construiu a casa. E daí?— Importa-se de dar um passeio comigo?Ele estranhou o convite.— Para quê?— Não vou lhe dizer nada. Você descobrirá por si mesmo.John tinha tanto trabalho a fazer, mas novamente a expressão no rosto

de Alice o convenceu. Ninguém seria tão convincente se não estivesseabsolutamente convicto do que pretendia ou falava.

— Está bem, o que poderia ser mais agradável numa tarde de outonoque um passeio com você?

Alice apanhou o livro e foram juntos para o estacionamento. Elaapanhou o carro e ambos se dirigiram para Somerville, até a Rua Medford.

Alice parou o carro em frente da casa de Megg Jones. Tocou acampainha. Uma empregada atendeu. Identificou-se e pediu que chamasseMegg. John, ao lado, acompanhava tudo atentamente, sem entender o queela pretendia.

— Olá! — disse Megg, abrindo seu sorriso metálico ao ver Alice ereconhecê-la.

— Olá, Megg. Este é o Professor Hongerman, de Harvard. Tenho algopara lhe mostrar.

Megg olhou de soslaio para a figura anacrônica de John Hongerman,depois se concentrou no livro que Alice abria, folhando-o rapidamente até ailustração com o retrato de Arthur Grove.

Mostrou-a à garota.— Já viu este homem antes? — perguntou.Os olhos da garota se surpreenderam.— Sim, claro que sim!— E onde?— Lá, naquela janela do sótão — afirmou ela, apontando para a

Mansão Grove.Alice se voltou para John com um sorriso triunfante no rosto.— E então? — indagou ela.— Tem certeza, garota? — indagou ele à adolescente.

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— Claro que sim. Eu estava com um binóculo... Olhava a casa porcausa da louca...

— Que louca?— Ela está se referindo a Hellen, minha amiga. Teve uma crise lá

dentro da casa e saiu gritando até o meio da rua.— Sim, tudo isso no dia dos gemidos e dos uivos... — acrescentou

Megg.— Gemidos e uivos? — intrigou-se John.— Os amigos dizem que Megg vê coisas — explicou Alice.— Outras pessoas também ouviram os gemidos e os uivos. Mas apenas

eu vi esse homem lá na janela.— Que tipo de coisas você vê, Megg? — questionou-a John, olhando-a

com atenção.Era uma garota franzina, magra mesmo, metida num short que deixava

a mostra pernas sem encanto. Uma blusa colada ao corpo revelava os botõesdos seios, ainda adormecidos, à espera do chamado dos hormônios paradespertarem definitivamente.

Tinha um rosto inexpressivo, mas havia algo no olhar dela queperturbou John.

— Eu vejo, por exemplo, outro lado do espelho — disse ela, como seaquilo para ela fosse a coisa mais natural do mundo.

— E como é o outro lado do espelho?— Cheio de espelhos por onde eles olham a gente do lado de cá —

explicou ela.— Isso não foi muito elucidativo, mas pode nós dizer quem são eles?Ela o sondou com ar divertido.— Quer mesmo saber? — retrucou ela.Ele voltou a olhá-la nos olhos. Algo lhe dizia que a explicação iria

demorar muito.— Não, outra hora, Megg — respondeu ele, voltando-se para olhar a

Mansão Grove.A casa lhe parecia absolutamente tranquila, com árvores e jardim,

fachada de tijolos vermelhos como tantas outras.— Quer dar uma olhada mais de perto? — indagou ela.John concordou com um aceno de cabeça. Agradeceram Megg e se

despediram. Atravessaram a rua juntos, até o portão de ferro, com suas

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lanças dispostas alternadamente em sentido contrário.Ele segurou uma das barras por instantes, fechando os olhos, como se

tentasse sentir alguma coisa no metal marcado pela ação do tempo e porincontáveis mãos de tinta.

Nenhuma sensação, nenhuma energia, nada. Tudo era calma, a mesmacalma que se refletia no jardim coberto de folhas, cortado uma vez ou outrapor um esquilo apressado.

— O que sentiu? — indagou Alice, quando ele abriu os olhos.— Nada, Absolutamente nada, mas isso não significa que a casa esteja

isenta de qualquer influência. Normalmente, porém, a gente sente algumacoisa já na entrada do terreno, o que não é o caso. Você conhece oproprietário da casa?

— David? Sim, claro! Eu e Hellen somos amigas desde os tempos daUniversidade.

— Acha que ele permitirá que visitemos a casa?— Está me incluindo nessa visita? Já estive aí antes, não senti nada.— Não me referia a você. Quis dizer eu e alguém da minha equipe.— Acho que sim. Não vejo por que David não permitiria isso.John sondou todos os detalhes da casa, à distância. O que Megg dissera

o intrigava. Ela vira Arthur Grove realmente?

Tão logo havia falado com John, naquela tarde, o Dr. Gravenhurst

ligou para o escritório de David para falar-lhe sobre a autorização paravisitar a casa.

David se encontrava fora, mas Valentine anotou com bastante interesseo recado, prometendo dar um retorno, tão logo seu patrão retornasse.

Assim que desligou, ela ficou pensativa em sua mesa, olhando ao longeo mar e os aviões que desciam ou subiam do Aeroporto Internacional deBoston.

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Deixou-se levar pela fantasia por algum tempo, voando junto comaqueles aviões, indo para longe, na companhia de David, afastando-sedaquela situação criada entre eles, afastando-se da esposa doente,afastando-se daquela casa.

Este pensamento a fez voltar à realidade. O corpo encolheu-se numarrepio inesperado ao lembrar-se da casa novamente, ao reviver aquelesmomentos lá dentro, sendo observada, sendo ameaçada por algo intangível,mas terrível.

Cruzou os braços diante do peito, num gesto de defesa instintiva, masnão conseguiu afastar de si aquele medo incontrolável que a invadira, desdeque estivera naquele porão.

O médico queria uma autorização para que pesquisadores entrassem nacasa e a examinassem. Não sabia o que procurar lá, mas tinha diversospalpites, segundo ele. Podiam ser fungos, bactérias, coisas assim, capazesde afetar as pessoas sem maiores explicações.

Essa desculpa não convencera Valentine, mas o fato de ver aquela casaexaminada tinha a sua aprovação. Queria que outras pessoas entrassem lá esentissem o mesmo que ela, encontrando uma explicação plausível paraaquilo.

Por outro lado, isso era reconhecer que Hellen Paterson havia sido umavitima daquele mal estranho. Significava que poderia haver um tratamento eisso se refletiria na sua situação em relação a David.

Ele já não voltava para casa. Ficava no apartamento dela. A cada dia oconhecia melhor, na intimidade, amando-o mais ainda. Vê-lo voltar para aesposa era algo que já não mais lhe passava pela cabeça. Queria-o para si,para sempre, agora que se descobriam um para outro.

Mas havia algo naquela casa. Algo que a perseguia e a assustava. Algoque não lhe daria tranquilidade, enquanto não descobrisse o que era.

— David, o Dr. Gravenhurst ligou...— É a respeito de Hellen? — indagou ele, cortando-a.— Não, acalme-se! — pediu ela, fazendo-o se sentar.David acabara de chegar de uma reunião de negócios cheia de sucesso.

A cada dia seus negócios se ampliavam e melhoravam. Começava a acharque Valentine lhe dava sorte.

— O médico deseja sua autorização para examinar sua casa...

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— Examinar a casa? Não estou entendendo — estranhou ele,percebendo o tom de voz que ela usava.

Normalmente Valentine usava aquele tom calmo e pausado quandoqueria convencê-lo de alguma coisa. Achava isso importante. O fato depoder entendê-la em seus gestos, em suas atitudes muito o agradava.

Era diferente do que vinha acontecendo entre ele e Hellen. Já não seconheciam mais. Estavam se tornando estranhos um para o outro. Nãoconseguia definir o que a agradava, o que poderia alegrá-la ou fazê-la feliz.

— Veja bem, querido! O que ocorreu com Hellen pode ter sidoprovocado por um vírus, uma bactéria, sei lá, mas algo presente na casa...

— E por que não me afetou também?— Como saber isso? Talvez o organismo dela reaja diferente do seu...

Mas uma coisa é certa: aquela casa me assusta agora, tanto quanto assustavaHellen, acredito.

— Ora, Val, não diga bobagens!— Eu estive lá com você, David. Estive naquele porão. Senti uma

presença maligna me ameaçando...Quando Hellen começou a reclamar daquela influencia maléfica da

casa, David julgou que fosse apenas um problema de adaptação. OuvindoValentine dizer a mesma coisa agora o deixava em dúvida.

Se houvesse realmente alguma coisa lá, então a pobre Hellen poderiater sido levada à loucura por negligência dele.

— Val, se eu admitir isso, tenho que reconhecer também que falheicom Hellen, entende?

— Falhou por quê?— Por que eu deveria tê-la ouvido... Tê-la tirado de lá antes...— Naquele momento você não tinha elementos suficientes para um

julgamento completo...— Não afasta o fato de que fui insensível em relação a ela.Ela percebeu onde ele queria chegar e onde aquilo o levaria. Não podia

deixá-lo se levar pelo sentimento de culpa.— Entenda bem, querido: o casamento de vocês já estava desgastado.

Mesmo que o problema fosse mais sério e mais visível, isso em nadamudaria o relacionamento de vocês... Pense bem! — pediu ela, contornandoa escrivaninha e indo se sentar no braço da poltrona dele.

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Passou o braço pelo pescoço dele e o abraçou, apertando-o contra ocorpo morno e perfumado.

David se deixou ficar ali, naquele ninho de perfume e calor, sentindo-se protegido e longe de todos os problemas. Concluiu que seu problema deconsciência estava no fato de ter encontrado uma felicidade inesperada emValentine, enquanto Hellen jazia num hospital, tentando se curar de algoindefinido ainda.

— Quando eles pretendem examinar a casa?— Vão programar assim que você der a autorização.— isso irá ajudar Hellen a se curar?— Talvez... Não sei...— Vale a tentativa?— Acho que tudo é válido querido.— Sabe que tudo pode mudar entre nós se ela se curar?— Confio em você e em nosso amor. Eu lamento por Hellen, mas só

posso dizer que vou lutar com unhas e dentes por este amor. Não quero nemvou perdê-lo, querido.

— Está certo! Ligue para o médico e autorize a entrada. Diga-lhe paraapanhar as chaves aqui... Ou melhor ainda: mande um mensageiro levarpara ele ainda esta tarde.

— Quer estar presente?— Não, acho que não. Quero apenas que isso ajude Hellen a se curar.

Assim que ela estiver boa, eu lhe contarei a nosso respeito. Após o divorcioquero me casar com você.

— E eu aceito — respondeu ela, oferecendo seus lábios mornos edeliciosos aos lábios dele.

Megg Jones continuou imóvel, com o binóculo nos olhos, olhando ajanela do sótão da mansão Grove. Havia escurecido, mas ela podia vernitidamente aquela figura descabelada, debatendo-se atrás das grades.

— Grades? — surpreendeu-se ela, retirando o binóculo do rosto eolhando a casa a olho nu.

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Nunca vira grades lá, pensou, voltando a usar o binóculo. Lá estava ajanela com grades, diferentes daquela que via durante o dia na casa. Erauma janela estreita, com barras de ferro na vertical. A mulher se agarravaaos ferros, debatendo-se como se desejasse arrancá-las e fugir por ali.

Um arrepio percorreu o corpo da garota. Estava acostumada a vercoisas, mas agora começava a ver coisas demais e isso a assustou.

O medo aumentava, mas não havia como desviar o olhar. Havia umterror estampado nos olhos daquela mulher atrás das grades, um medoinsano que se refletia no grito mudo que parecia explodir de suas gargantasescancaradas.

Súbito, o corpo de Megg estremeceu ao perceber a entrada em cena deoutro personagem. A mulher se virou de costas para a janela e pareceuescorregar pela parede para o assoalho.

Megg pôde ver, então, aquele homem de espessa barba e uniformefechado até o pescoço. Só que ele usava algo diferente juntamente com ouniforme.

Megg tentou identificar aquele tipo de roupa e sua utilidade. Pareciaum avental médico, mas não era exatamente isso. Era mais como o aventalde um...

— Açougueiro! — exclamou ela.Um avental de açougueiro manchado de sangue. O homem ria e seus

olhos insanos estavam fixos na mulher caída a seus pés. Megg não pode versuas mãos, mas sabia que ele tinha alguma coisa nelas. Uma coisa que elelevantou acima da cabeça, depois baixou com força, violentamente.

Quando levantou, ela conseguiu definir o que era. O homem tinha nasmãos um machado e o machado gotejava sangue.

A princípio Alice teve a sensação de ter cometido um erro ao dar seutelefone para Megg Jones, pedindo que ela lhe contasse se visse algo denovo na casa.

Megg, pelo que Alice percebia, havia entendido aquilo como umamissão. Apanhara um binóculo e ficara vigiando a casa durante o resto da

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tarde e o principio da noite.Agora ligava para lhe contar uma história toda fragmentada, sem pé

nem cabeça, atropelando as palavras como se estivesse bêbada.Achou que a garota estava lhe pregando um trote e pensou em

repreendê-la e desligar. Quando ouviu os soluços, porém, e a voz de Meggse alterar para um tom choroso, percebeu que havia algo de erradorealmente.

— Então... Então ele bateu com o machado... Não vi onde acertounela... Mas havia sangue... Muito sangue no machado... E havia a grade...Mas lá não tem grade... Eu não quero mais ver essas coisas...

— Megg, querida, faça-me um favor! Espere aí, tente se acalmar... Jáestou indo... Dê-me alguns minutos e estarei aí... — pediu Alice,desligando.

Pediu à telefonista que localizasse John, torcendo para pegá-lo antesque ele fosse para casa. Felizmente ele ainda estava na sua sala.

— Foi bom você ter ligado. Acabo de falar com Gravenhurst, DavidPaterson deu autorização para examinarmos a casa...

— Depois você me conta isso. Megg me ligou agora. Aconteceu algo.Precisamos ir até lá...

— Eu a encontro no estacionamento — falou ele.Apesar do trânsito um tanto conturbado naquele começo de noite nas

imediações de Harvard, causado pelo jogo que aconteceria no Estádio, emmenos de meia hora estavam na casa de Megg.

A garota, no entanto, havia sido medicada, pois estava bastantenervosa. Sua mãe, visivelmente contrariada pelo aborrecimento, não queriapermitir que os dois pesquisadores a vissem.

— Não quero minha filha metida nessas coisas... Megg é uma boagarota, apenas tem muita imaginação... As pessoas não entendem isso... —dizia a mulher, nervosa, à porta da casa.

— Sra. Jones, sua filha tem um dom. Um dom que pode ser útil se bemutilizado. Não sei exatamente qual a natureza das habilidades dela. Só seique, no momento, ela pode nos ajudar a entender um mistério que acontecenaquela casa, do outro lado da rua — afirmou ele, apontando a mansão.

— A senhora deve ter visto o que aconteceu com Hellen Paterson. Suafilha pode ajudá-la, Sra. Jones. Entenda isso — pediu Alice.

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— Tolices... Tudo isso é loucura... Minha garotinha não pode seenvolver com isso... Não pode...

O dono da casa chegou naquele momento, vindo do interior. Afastoudelicadamente a esposa para o lado, depois abriu a porta para encarar Alicee John.

— Minha esposa sempre fica nervosa quando zombam de Megg. Nóssabemos dessa habilidade dela e isso nos assusta. Não sabemos, porém,como lidar com isso. Isso nos assusta tanto, quanto assusta Megg às vezes,quando ela não entende exatamente o que está vendo, e por que está vendo,nem quem.

— Entendo sua preocupação, Sr. Jones e faremos tudo que estiver aonosso alcance para ajudá-la. Somos da Universidade. Temos umDepartamento de Parapsicologia que ficaria extremamente honrado egratificado em conhecer sua filha. Deixe-nos vê-la e eu lhe prometo quefaremos tudo para ajudá-la — reiterou Alice, veemente.

O homem e a esposa trocaram um olhar cheio de esperança eexpectativa.

— Está bem! — concordaram, afinal.— Sou Alice, ele é John. Onde está Megg?— Lá encima, vou levá-los até lá. O médico esteve aqui e lhe deu um

sedativo. Deve estar dormindo agora — explicou a mãe da jovem.Alice e John torceram para que isso não acontecesse. Felizmente para

Alice, a garota ainda estava acordada, um tanto sonolenta, mas consciente.— Megg, querida, está tudo bem agora! Conte-nos o que viu, bem

devagar, sem se assustar... — Pediu Alice, sentando-se no lado da cama etomando uma das mãos da garota entre as suas.

Os olhos de Megg se encheram de lágrimas e refletiram um medo quecontagiou os dois pesquisadores.

— Não se preocupe... Nada vai lhe acontecer... Foi apenas mais umavisão... Quando você estiver boa, vou levá-la para conhecer uma porção degente interessante...

— Onde?— Em Harvard.Os olhos dela se encheram de um novo brilho. Ela aprumou o corpo,

cheio de vivacidade por instantes, antes de o sedativo fazê-la amolecernovamente.

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— Você me apresenta aos rapazes do time de futebol?Alice olhou para John sem saber o que responder.— Eu faço isso. Conheço todos eles — apressou-se ele em dizer.Ela sorriu satisfeita.— Agora conte-me o que viu — pediu ele. — Mas sem se assustar.Megg fechou os olhos, como se estivesse adormecida. Depois começou

a contar lentamente, com voz pausada e pastosa, o que vira, até o momentofinal, do sangue no machado.

— Você ouviu o que ela disse? — indagou John.— Sim, ela disse que ele tinha um machado nas mãos e que havia

sangue no machado... — explicou Alice, levantando os olhos para John.Os pais da garota também se entreolharam, sem entender o que tudo

aquilo significava.John foi até a janela do quarto da jovem. O binóculo estava caído no

assoalho. Apanhou-o e focalizou a casa, procurando pela janela do sótão.Lá estava ela, inofensiva, sem sombras ou imagens por trás dela.

Deixou o binóculo e voltou para junto de Alice. Agradeceram os paisde Megg e saíram. Diante da casa, seus olhos se fixaram na mansão,silenciosa e escura. Apenas um timer providenciava para que a luz daentrada se acendesse quando escurecia e se apagasse quando amanhecia.

— O que acha da história de Megg? — indagou Alice.— Não acredito que ela esteja mentindo. Haja o que houver naquela

casa, ela viu o que disse que viu — afirmou ele, sem desviar os olhos dacasa.

— Já tinha ouvido falar de coisas como essa antes?— Já, muitas vezes. Há sempre uma historia por trás de tudo isso. Às

vezes lendas apenas. Outras vezes coisas que não conseguimos explicar,mas que existem, estão aí, desafiando nosso conhecimento cientifico.

— Qual é o seu palpite.— Há uma historia trágica, onde a crueldade tenha sido, talvez, o que

marcou essa casa... Mas algo me intriga! Por que desde a Segunda GuerraMundial nada aconteceu ali e só agora, quase quarenta anos depois, issoacontece? — indagou ele, encarando Alice.

A expressão dela confirmava que ela não tinha a menor ideia a respeitodisso.

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Na manhã seguinte, antes de ir para a Universidade, Alice passou pelo

hospital para ver Hellen. A amiga estava sendo bem cuidada e todos osexames já estavam terminados, restando apenas aguardar alguns resultados.

Preocupava-se, no entanto, um fato novo naquela situação toda. Davidvinha evitando visitar Hellen, deixando-a deprimida. Alice sabia que issonão era bom para a amiga, mas nada havia que pudesse fazer.

Quando Hellen levantou os olhos vermelhos para ela, Alice malconseguiu segurar o pranto.

— Ele simplesmente não aparece mais — murmurou Hellen e seu tomde voz era choroso e triste.

— Deve estar com muito trabalho, querida!— Nem uma flor... Nada!— Ora, Hellen, não se preocupe com isso agora. Pense em melhorar e

nada mais...— Melhorar para quê? Fico com medo de ficar boa, Alice...— Não, não deve dizer isso — falou Alice, abraçando-a.Hellen a abraçou com força. Seu corpo se abalou e Alice sentiu as

lágrimas mornas molharem o ombro onde a amiga depositara a cabeça.— É sério, Alice. Não tenho para onde voltar... Para aquela casa jamais

voltarei... E David? Onde está ele? Ele não me quer mais... — soluçou.Alice acariciou os cabelos da amiga. Nada havia que pudesse mesmo

fazer, a não ser tentar conversar com David. Só que julgava isso umaintromissão no relacionamento deles.

Hellen estava tão fragilidade, no entanto, que precisava de alguém parafalar por ela.

— Querida, não lhe prometo, mas posso tentar falar com David e...— Fará isso por mim? Oh, Alice! Não é por nada que eu a considero a

minha melhor amiga — afirmou Hellen e um esboço de sorriso surgiu emseu rosto, onde ainda se refletia uma expressão de medo e insegurança.

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— Vou fazer o que estiver ao meu alcance, está bem assim?Quando deixou o hospital, pouco depois, Alice não estava bem certa da

decisão que tomara. Conhecia os dois muito bem. David era um bom rapaz,responsável, mas muito seguro de si e dono de seus atos.

Não sabia até que ponto ele receberia o fato de tê-la questionando suaatenção para com Hellen.

Quando chegou à Universidade, ligou para o escritório dele. Valentineatendeu.

— Por favor, sou amiga de Hellen e David e preciso falar com ele —pediu, após se identificar.

— Entendo, Alice, mas David está com a agenda cheia. É algo que eupoderia resolver?

— Não, é pessoal realmente...— Se me deixar seu telefone, eu ligarei tão logo consiga falar com ele

e...— Por favor, diga que é importante, muito importante mesmo.Deixou seu telefone com Valentine e desligou. Seu instinto feminino

havia se aguçado, enquanto conversava com a secretária de David. Haviaalgo no tom de voz da outra mulher muito significativo, como um desejoimenso de proteger David, de evitar-lhe problemas ou incômodos.

Ia além do simples trabalho de uma secretária. Ali estava o instinto deposse, natural das mulheres.

John surgiu na sala, trazendo alguns livros consigo. Depositou-os sobrea mesa de Alice.

— Quer me ajudar a consultar tudo isso? — indagou ele.— O que é? — quis ela saber, observando aqueles volumes antigos,

cheirando a papel velho, alguns encadernados precariamente, outros com aslombadas quase se desmanchando.

— Alguns livros que consegui reunir no Museu da Guerra, no setor dosnão catalogados ainda.

— Não catalogados? Preciosidades como estas?— Descobri algo interessante. Há coisas sobre as nossas guerras que os

responsáveis parecem esconder de nós, sabia?— Posso imaginar...— Pois vai se surpreender. Deu-me um pouco de trabalho localizar

isto, mas vai valer a pena. Fiquei até de madrugada em um depósito de

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velharias, examinando tudo que encontrava pela frente sobre a guerra daSecessão.

— Você leva a sério mesmo seu trabalho — surpreendeu-se ela.— Leia o que temos aqui, depois me conte o que encontrou. Ontem à

noite, antes de ir para o museu, passei no hospital e peguei as chaves dacasa com Glen. Hoje pela manhã, antes de vir para cá, passeia na mansão.Entrei e andei por todos os aposentos...

— E daí? — indagou ela, com ansiedade.— Nada... Absolutamente nada! Tenho certa sensibilidade... Quase...

Quase como uma intuição... Não sei explicar. Nada senti mesmo. Isso nãoquer dizer que vou desistir. Estou esperando o chefe do Departamento deParapsicologia chegar. Vou lhe pedir ajuda. Há um garoto na turma, umsensitivo sensacional, o melhor de todos. Quero levá-lo lá.

— Obrigado, John, por se envolver. Falo em nome de Hellen. Ela éuma pessoa sensacional e, com certeza, vai agradecê-lo pessoalmente peloque está fazendo.

— Esqueça, querida! Minha curiosidade cientifica está acima de tudo— descartou ele, piscando um olho e saindo.

Alice olhou os livros diante de si. Com cuidado da reverência e dorespeito, começou a manuseá-los.

David ficou pensativo, reclinando em sua poltrona. Sua testa vincou-se. Aquele sentimento de culpa o atormentava, pesando em sua consciência.Valentine percebeu que ele sofria e se sentiu igualmente culpada pormonopolizá-lo daquela forma, cobrindo-o de agrados, quase sufocando-o.

Imaginou se aquela não seria a maneira mais rápida e certa de perdê-lo.Foi abraçá-lo, sentindo um medo terrível de viver sem ele ao seu lado.— Quem é Alice? — indagou ela, acariciando os cabelos dele.— Uma amiga de Hellen...— Isso perturbou, não?— Muito... Sei do que ela quer falar comigo...— Sobre Hellen?

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— Sim. Não tenho ido lá... Não está certo isso, Val. Não está! —afirmou ele, com veemência.

Ela o deixou e foi se sentar numa poltrona diante da escrivaninha.Tinha de pensar numa forma de conciliar aquela situação. Reconhecia

que o que acontecera com Hellen não a agradava em nada, mas estavadisposta a lutar pelo amor de David.

— Quer que eu ligue para ela, então? — indagou.— Por favor! — pediu ele.Valentine foi consultar a anotação. Fez a ligação. David falou por

instantes com Alice, depois cobriu o fone com a mão, pensando algumtempo. Valentine o acompanhava com grande expectativa.

— Que tal conversarmos isso durante um almoço, hoje, às treze horas?— convidou ele, o que foi, aparentemente, aceito por Alice.

Quando desligou, David levantou os olhos para Valentine, que o olhavasuplicante.

— Ela quer falar sobre Hellen. Vamos almoçar juntos. Quero que vocêvá comigo. Talvez Alice possa nos ajudar. É uma pessoa culta, inteligente esensível. Com certeza vai entender a situação e nos ajudar a lidar comHellen da melhor maneira possível...

O rosto de Valentine se abriu num sorriso de satisfação. Nunca sentiraDavid tão perto dela como aquele momento.

Gravenhurst ficou olhando aquele rosto por um longo tempo. Umaréstia de sol penetrava pela cortina, iluminando o alto dos cabelos dela,jogando uma luz delicada no rosto adormecido. Somente no sono ela atingiaaquela paz e toda a sua beleza se mostrava, radiante e serena.

Sentou-se na cadeira do lado da cama e deixou seus olhos cansadosmergulharem na paz que Hellen irradiava naquele momento. Ficoupensando o que a teria assustado, o que a atormentava, o que havia por trásde tudo aquilo.

Pensou na casa, no que conversara com John, seu amigo, mas, acimade tudo, pensava em como o marido dela podia ser tão insensível.

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Glen era um homem solitário. Sua profissão afastara dele todas asmulheres importantes em sua vida. Agora, no auge de sua carreira,questionava-se se valera a pena dedicar-se daquela forma, com tantodesprendimento, a sua profissão que o fizera rico, mas solitário também.

Havia no rosto de Hellen uma promessa velada e desejável dereencontrar afetos perdidos, romances de adolescentes, momentos deintimidade, toques, perfumes, sensações numa tarde de primavera.

Percebeu que havia perdido muita coisa ao longo da vida. Conseguirarespeito, fama e sucesso, mas não encontrara a felicidade.

Sorriu levemente, ao perceber a testa dela se franzir, ela abriu os olhose girar a cabeça lentamente para olhá-lo. Por momentos ela ficou assim,tentando se situar após o sono forçado. Aqueles remédios todos a faziamperder a noção do tempo, mas não a da presença dele.

Glen estava ali de novo. Ele sempre estava ali, quando ela acordava,olhando-a de uma forma que Hellen sabia que havia muito não era olhada.

Uma forma que despertava nela velhos sentimentos, coisas tolas, deadolescentes, com gosto de pipoca e cinema, com a audácia de um bancotraseiro de carro, numa colina enluarada, numa noite de primavera.

— O que o Dr. Frankenstein tem para mim hoje? — brincou ela,espreguiçando-se, sem conseguir conter o sorriso que brotavaespontaneamente.

Ele sorriu em resposta.— Tenho uma boa noticia para você. A partir de hoje, todos os

remédios estão suspensos. Vamos começar a desintoxicação. Em poucosdias terá alta — disse ele, esperando animá-la com isso.

Ao invés disso, o rosto dela nublou-se, depois ficou inexpressivo,olhando-a naquele estado, Glen sentiu um desejo imenso de protegê-la dealgo que nem ele sabia o que era.

Ergueu-se instintivamente e se sentou ao lado dela. Hellen ergueu osbraços, enlaçou-o pelo pescoço, depois puxou-a para junto dela.

Ficou ali, trêmula, apertando-o contra si, desejando encontrar nele orumo a tomar, o caminho a seguir.

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John desceu do carro acompanhado de Steve Marvin, um quintanistade direito que vinha causando furor no departamento de Parapsicologiadesde que entrara para a Universidade.

Steve era um sensitivo em altíssimo grau, capaz de proezas quesurpreendiam os maiores cientistas da área. Era um rapaz simples, dointerior de Massachusetts, com uma inteligência acima da média e umahabilidade especial para lidar com fenômenos que espantavam as pessoascomuns.

— É está? — indagou Steve, olhando a casa.— Sim, o que acha?Steve se aproximou do portão, fechando os olhos e tocando as grades.

Ficou assim, imóvel, por instantes. John aguardou com expectativa. Steveabriu os olhos e se voltou para ele. Havia dúvida em seu olhar.

— Tem certeza de que é está a casa? — perguntou ele.— Sim, claro. Por quê?— Nada... Neutro... Só se estiver restrito no interior da casa! — falou o

rapaz, com hesitação.— Vamos lá, então? Eu quis trazê-lo primeiro para sentir o ambiente.

Se me disser que há algo, trarei toda a parafernália de equipamento que seudepartamento tem. Caso contrário...

— Você tem alguma dúvida?— Não tenho certeza!— Está bem, vamos então!Megg atravessou a rua e correu cumprimentar John, que sorriu

contente ao vê-la alegre e disposta.— Olá! — sorriu ela.— Olá, Megg! Que bom vê-la assim, tão bem.— Quem é ele? É do time de futebol? — brincou ela, referindo-se a

Steve.O rapaz sorriu e se aproximou dela. Quando se olharam nos olhos,

ambos ficaram sérios. Por momentos, ficaram imóveis, estáticos, sondando-

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se mutuamente.John jamais havia presenciado algo semelhante. Ficou surpreso e

maravilhado observando-os. Teve a nítida impressão de que os doisconversavam, embora não trocassem palavra nenhuma.

Megg começou a rir, acompanhada por Steve. John os olhosinterrogativamente.

— O que foi? — indagou ele.— Ele também vê através dos espelhos — explicou Megg, como se

aquilo fosse a coisa mais natural e compreensível do mundo.— Só que ela os vê — disse Steve.— Vê quem?Megg olhou para Steve e pôs o indicador diante dos lábios pedindo

segredo. Ele concordou e ambos riram, como duas crianças travessas,deixando o cientista confuso.

— Alguém quer me explicar o que está havendo? — pediu ele irritado.— Calma, John... — disse Steve. — Acabei de conhecer esta

garotinha, mas é como se a conhecesse há mil anos. O que estou tentandolhe dizer é que ela é um fenômeno. Para que você entenda, ela representauma geração de evolução àquilo que eu sou.

John sabia muito sobre o assunto, mas não conseguia captar adimensão do que Steve lhe dizia. Isso estampou-se em seu rosto e ficouvisível para o rapaz, que trocou olhares com Megg e ambos deram deombros.

— Vocês vão entrar na casa? — indagou ela.— Sim, e você vai ficar aqui fora, está bem? — ordenou John.— Por que não posso ir junto? Eu posso ver o barbudo.— Que barbudo? — quis saber Steve.John explicou-lhe em rápidas palavras o que Megg já havia visto na

casa. O rapaz ficou sério e pensativo.— Qual janela, Megg? — perguntou a ela.— Lá! — apontou a garota.Steve voltou seu olhar para o ponto indicado. Concentrou-se. Ficou

imóvel por instantes, o corpo ligeiramente tenso. Respirou fundo, soltou osombros, relaxando.

— Tem certeza? — indagou a Megg.— Absoluta.

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A expressão de Steve denotou admiração. Uma admiração que Johnnão conseguiu entender.

— Vou fazer o seguinte — disse Megg. — Enquanto vocês vão ládentro, eu vou até minha casa e preparo um chá para nós todos. Estácomeçando a esfriar. Acho que teremos uma tempestade — afirmou ela,olhando para um extremo do céu, justamente para onde Steve olhara nomesmo instante.

John sentiu uma inveja imensa daquelas habilidades.— Trato feito! — disse, empurrando Steve na direção do portão.— Até logo! — disse Megg, saltitando para o meio da rua, enquanto os

dois entraram pelo portão e começavam a subir a alameda até a casa.Repentinamente, Megg parou, no meio da rua, o coração aos saltos.

Virou-se a tempo de ver uma sombra na janela do sótão. Respirou fundo,tentando controlar o medo.

Então correu para o portão da mansão. Sem que John e Stevepercebessem, ela os seguiu até a entrada.

No restaurante, na hora do almoço, assim que entrou e viu David e

Valentine juntos, Alice não precisou de mais nada para entender o que haviaentre os dois. Estava evidente no modo como os dois se olhavam, como sedebruçavam um sobre o outro e como conversavam.

Jamais se arvorara de juiz para julgar quem quer que fosse, mas,naquele momento, sentiu pena de sua amiga, apenas isso. Fosse o que fosseque tivesse levado aquele casamento ao fim, o fato irrefutável era que nãohaveria volta.

David e Valentine ficaram um tanto constrangidos quando ela chegou,mas havia em suas faces a firme decisão de enfrentar a situação.

E Hellen? O que aconteceria com Hellen? Suportaria mais aqueletrauma, depois do que já passara?

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— E Hellen, David? Como fica? — indagou Alice, mas dirigindo-seaos dois.

O casal trocou um olhar de alivio por não precisar passar peloconstrangimento de contar tudo a Alice. Ela já havia tirado as suasconclusões.

— Quero que nos ajude com ela, Alice. Eu não pretendia que issoacontecesse dessa formar e neste momento especifico, mas sei que cedo outarde aconteceria. Meu casamento se desgastou. Não há culpados. Encontreiem Valentine o apoio necessário no momento certo de minha vida. Não foitraição nem desonestidade, Alice. Aconteceu simplesmente.

— Pobre Hellen! — murmurou Alice.Sabia que, materialmente, a amiga estaria amparada. Emocionalmente

conseguiria ela superar tudo aquilo?Não ficou para o almoço. Já descobrira tudo o que precisava descobrir.

Retornou à Universidade. Aqueles livros que John lhe levara eraminteressantes, muito interessantes.

Dedicou-se a folheá-los vagarosamente, página por página, comextremo cuidado. Eles revelavam outra face da historia de Arthur Grove eda mansão que ele construirá.

Essa versão terrível mostrava a outra face de uma pseudo-herói.

John e Steve haviam percorrido todos os aposentos da casa, inclusive osótão e o porão. O sensitivo se concentrava e tentava captar vibraçõesmínimas, mas nada havia ali que pudesse sentir.

— Nada? — indagou-lhe John de novo.— Nada! Absolutamente nada. Esta casa está limpa, estranhamente

limpa de toda e qualquer vibração.— E como se explica isso?— Isso não se explica. Mesmo que fosse uma casa nova, acaba de

construir, inúmeras vibrações já existiriam nela: das árvores, de quemcortou as árvores, de quem preparou a madeira, de quem construiu...Entendeu?

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Estavam agora na sala. Lá fora, escondida, Megg os observavaatentamente, com olhos esbugalhados, louvando a coragem daqueles dois.

Sem percebê-la, ambos deram uma última olhada ao redor.— Acho que perdemos a viagem, John.— Na Segunda guerra Mundial esta casa se tornou um centro de

treinamento de capelães ao Exército. Acha que isso pode ter alguma coisa aver com essa ausência total de vibrações?

— Capelães? Muitas orações... Talvez... Mas teriam que ser oraçõesespecíficas... Tipo exorcismo.

John olhou as paredes da casa, o teto e o piso. Respirou fundo.— Quem pode saber o que se passou aqui, então? E o que houve,

afinal, com a mulher que morava aqui? — indagou-se.— Por que não me deixa conservar com ela. Talvez eu possa sentir

alguma coisa...— Acha uma boa ideia?— O que temos a perder?Consultou o relógio. Haveria tempo para um lanche rápido, antes de

irem para o hospital.Desanimados, deixaram a casa. Do lado de fora, Megg, quase sem

fôlego, correu ao encontro deles.— Rapazes, que coragem a de vocês — elogiou ela.— Coragem? Por entrar numa casa vazia? Está gozando conosco,

Megg? — indagou John.— Como assim? E o barbudo, lá encima da escada, olhando-os o

tempo todo? — retrucou ela, para espanto dos dois, que se olharam,olharam para Megg e depois para a porta da casa que John acabara detrancar.

— Barbudo? Que barbudo, Megg? — quis saber Steve.Ela olhou nos olhos, espantada e surpresa.— Você não o viu? — insistiu ela, endireitando o corpo.Um arrepio desceu por sua espinha. Ela ficou olhando fixamente para

Steve, temendo desviar o olhar. Seu rosto ficou pálido, transparente.— O que houve, Megg? — indagou Steve, segurando uma das mãos da

garota.Imediatamente Steve também empalideceu e arrepios intensos

percorreram seu corpo. Ele voltou a cabeça. Ali, colado contra o vidro da

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janela, estava aquele rosto barbudo, de olhos insanos e brilhantes,compondo uma expressão demente e cruel.

Megg retirou a mão e correu colina abaixo, fugindo àquela visãoaterradora. No mesmo instante, Steve nada mais viu na janela, além doreflexo do céu.

— O que houve, Steve? — quis saber, percebendo que alguma coisaocorrera.

Grossas gotas de suor escorriam pelo rosto do rapaz, quegradativamente recuperava a cor. Ele levou as mãos ao rosto. Tremiam,assim como todo seu corpo.

— Eu o vi... Eu o vi através de Megg... Senti o medo que ele inspirounela... Senti sua demência... Sua crueldade... Um espírito de energias tãonegativas que... Jamais vi algo assim, John... Jamais... — confessou o rapaz,sentando-se nos degraus da escada.

— Todo o tempo ele estava lá dentro, não?— Sim, mas eu não o sentia. Megg sim... Ela o viu o tempo todo... Por

quê? Tenho um grau jamais pesquisado de sensibilidade, John. Por que nãoo senti lá dentro?

— Vamos comer alguma coisa...— Vamos falar com Megg primeiro — decidiu Steve.Foram até a garota. O céu, lentamente, se modificava, anunciando a

chegada de uma tormenta. O outono chegava ao fim. Em breve as primeirasneves começariam a cair, mudando toda aquela paisagem, cobrindo todo ocolorido com seu manto.

Megg estava muito assustada ainda. Jamais vira alguma coisa comoaquele rosto tão perto dela.

— Diga-me uma coisa, Megg! O que sentiu vendo aquele rosto? —quis saber Steve.

— Medo, muito medo.— Que tipo de medo?Ela fechou os olhos por instantes, pensando, concentrando-se.— Medo do machado!— Do machado ou da morte pelo machado?Ela continuou de olhos fechados.— Do machado... Só do machado...— O que isso quer dizer? — quis saber John.

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— Não sei... O que move essa influencia na casa não é o desejo dematar... É o prazer de provocar o medo... Um medo que pode levar àloucura e à morte... Sadismo, puro sadismo!

—Consegue chegar a alguma conclusão?— Não, nenhuma! Seria interessante falar com a mulher da casa.Agradeceram Megg e rumaram para o hospital. A garota ficou ali, na

porta de sua casa, olhando o céu e a casa, como se adivinhando osacontecimentos que ali teriam lugar.

Arrepios percorreram seu corpo. Desejou poder participar de tudoaquilo.

A leitura dos livros sobre Grove motivou Alice a reler o livro quecopiara para Hellen. Ao final da leitura, percebeu que toda aquela historiaoficial nada mais era que uma montagem para valorizar um feito a todocusto.

A participação de Arthur Grove na Guerra da Secessão fora decisiva,isso era inquestionável. A maneira como ele participou e contribuiu, noentanto, fedia.

Da mesma forma, a construção daquela casa, desde o principio, foramarcada por fatalidades, que culminaram com a morte de um filho domilitar e, depois, com a loucura de sua esposa. Essa loucura é que pareciaser a base de todos os acontecimentos que se seguiram.

Martha Grove era uma criatura sensível e dedicada à família e aomarido. A morte do filho a abalou profundamente. A construção da casafora, para ela, uma heresia, posto que erigida sobre um cemitério.

Como Arthur Grove a manteve ali, durante todo o tempo, até queenlouquecesse, era a pior parte na historia toda. Compunha, com aquelaatitude, um quadro negro e tenebroso da personalidade daquele homem.

Como Hellen, Alice notou que apenas as mulheres eram influenciadaspela casa. Da mesma maneira que Martha Grove fora atormentada duranteanos pelo marido enlouquecido.

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O telefone tocou, sobressaltando-a. A tarde ia pela metade. Tomara umlanche rápido, fascinada pela leitura daqueles documentos.

— Alice, sou eu, John. Estive na casa...— E daí? — apressou-se ela em indagar.— Aconteceu algo fantástico. Preciso lhe contar, mas terá de ser

pessoalmente...— Onde está?— No hospital, precisamos falar com Hellen, mas ela está dormindo e

não permitem que a acordemos.— Por que precisa falar com ela?— Steve, aquele sensitivo de que lhe falei, está comigo e quer ver

Hellen. Tem a ver com algo que aconteceu lá na casa, entre ele e Megg.— Estou indo. Tenho algumas coisas para lhe contar sobre a mansão e

sobre Grove — finalizou ela, desligando.Apanhou as anotações que fizeram sobre os livros que estava lendo e

foi para o estacionamento. Um vento frio soprava ainda brandamente, masas nuvens escuras que se formavam ao longe indicavam uma tempestadepara aquela noite.

Tratou de se apressar. Em pouco tempo estava no hospital. John lhecontou tudo que ocorrera na casa, deixando-a boquiaberta.

— Agora, já que estamos em ritmo de grandes emoções, prepara-separa ouvir a verdadeira história sobre nosso herói, Arthur Grove.

— Leu aqueles livros?— Sim, e os documentos que estavam juntos. Arthur Grove era,

também, na vida privada, veterinário. Com a guerra da Secessão deram-lheuma patente de major e o encarregaram de cuidar de uma espécie de campode prisioneiros.

— O alojamento?— Sim, o famoso alojamento. Ali soldados confederados foram

aprisionados e eram interrogados. Arthur era um veterinário. Imagine quemétodos utilizou para interrogar aqueles homens...

Steve se aproximara, atraído por um chamado de John, e acompanhavaatentamente o relato.

—... o certo é que seus métodos davam resultados. Ele obtinha asinformações que interessavam à União, permitindo que planos e açõesfossem desenvolvidos com sucesso, mudando os rumos daquela guerra.

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— E onde entram as grandes descobertas? — quis saber John,impaciente.

— Com o incremento das ações militares e o recuo dos confederados,começaram a faltar prisioneiros para serem interrogados. Uma redeespecializada foi montada, então, capturando-os na Carolina do Sul e naGeórgia, principalmente, trazendo-os de navio para cá. Ocorre que oshomens válidos, os soldados de verdade, começaram a escassear, já que atévelhos e rapazolas estavam empunhando armas. Os caçadores de Grove,para manterem seu papel e sua importância naquele contexto, começaram atrazer mulheres para serem interrogadas, não importava que tipo deinformação elas pudesse dar. Ele as torturava violentamente. Um de seusinstrumentos prediletos era um machado...

John e Steve se entreolharam, surpresos.—... que ele usava para abrir a cabeça de uma delas, para forças outra a

confessar...— Foi isso... O machado... O medo do machado... — falou Steve,

ligando as coisas que Megg dissera ao que Alice estava acabando de contar.— O pavor das mulheres impregnou a casa... O pavor de serem mortas

como aquelas que efetivamente eram assassinadas. A expectativa... Opavor... A espera... A visão... — balbuciou John, indignado com o quadroque se desenhara em sua mente.

— Temos de dar crédito àquela garotinha — disse Alice. — Elaantecipou a história do machado...

— E o que é pior: Ela viu e vê Arthur Grove. Seu espírito está presentenaquela casa, enchendo de medo as mulheres que entram lá.

— Isso nos deixa com apenas uma indagação sem resposta —comentou John. — Por que essa casa permaneceu sem manifestação durantepraticamente cinquenta anos?

Os três trocaram olhares sem resposta. Naquele momento, Glen, queestivera fora, chegou ao hospital. John o pôs a par da situação contandotudo que haviam descoberto.

— Acha que falar com ela vai ajudar? — indagou o médico.— Penso que sim. Preciso confirmar o que deduzi na visita à casa,

doutor — explicou Steve.— Não vai mexer com o estado emocional dela?— Talvez... Um pouco... — confessou Steve.

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— Suspendi toda a medicação dela. Quero-a desintoxicada e prontapara receber alta nos próximos dias — disse o médico.

— Vamos perguntar isso a ela — propôs Alice.Glen hesitou por instantes. Depois, percebeu que a intenção de todos

era ajudar a descobrir a verdade. Temia que algo pudesse ocorrer a Hellen,mas não pôde recusar ao apelo feito.

Quando caminhavam na direção do quarto, Alice aproveitou para pô-loa par do que descobrira em relação a David e Valentine. Notou, então, norosto do médico um ar de alivio, uma aparência de felicidade que, aprincípio, não entendeu.

— Eu cuidarei bem dela — disse ele, então, e Alice se tranquilizou,percebendo o que acabara acontecendo entre ele e Hellen.

Só não sabia até que ponto Hellen era simpática àquela ideia, mas osimples fato de saber que ele estaria por perto para cuidar dela era obastante para Alice.

Entraram no quarto. Hellen ainda dormia. Glen sentou-se na cama etomou a mão dela entre as suas. O gesto foi tão carinhoso e tão gentil queAlice ficou emocionada com tamanha demonstração de cuidado.

Hellen abriu os olhos. Sorriu para Glen, depois para Alice.— Nossa, quanta visita! — brincou ela.— Como se sente, querida? — indagou-lhe Alice, inclinando-se para

abraçá-la.— Muito bem... A que devo a honra?— Querida, John, Steve e eu estamos pesquisando aquela casa. Já

descobrimos algumas coisas e precisamos, agora de um pouco de sua ajuda— pediu-lhes Alice.

— O que querem que eu faça?Steve se adiantou.— Quero apenas que segure a minha mão e se lembre do que sentiu

naquele dia, lá na casa. Pode ser?— Sente-se forte bastante para tentar isso? — preocupou-se Glen.— O que acha que pode acontecer? — indagou ela a Steve.— Você, com toda certeza, vai reviver por alguns segundos o que

passou naquele dia. Vai ser por breves momentos, apenas para que possatirar minhas conclusões. Quer tentar?

— Sim, quero! — exclamou ela, com firmeza.

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A expectativa pesou no quarto, enquanto Steve estendia a mão para

Hellen, que a segurou.— Concentre-se — pediu ele.— Sim...— Agora relaxe o corpo e a mente... Volte um pouco no tempo... Volte

até aquele momento de pavor... Não tenha receio... Enfrente seu medo...O corpo de Hellen começou a estremecer. Olhos fechados, ela retornou

até aquele começo de noite de alguns dias antes, imaginando-se na casa.Sentiu medo. Muito medo. Um medo incontrolável a fez empalidecer etremer cada vez mais.

Steve sentiu as mesmas emoções que ela, o mesmo medo, o pavor quecrescia, o terror que lhe era incutido por uma lâmina de metal querebrilhava no ar, pairando sobre sua cabeça.

— A janela... O sótão... O menino... Não... Não foi minha culpa... —murmurou Steve.

— A lâmina... Matar... Ele vai me matar... Por favor... Por que ninguémpode me ajudar? Alguém tem que me ajudar... — disse Hellen.

— Interrompa isso, John — pediu Glen, percebendo que algo poderiaacontecer a Hellen, cujo semblante havia se alterado.

— Eu vejo... — murmurou Steve. — Eu vejo a cena... Enfrente-o,Hellen... Não tenha medo... Exorcize-o... Não tenha medo... — incentivouSteve, sem que os outros entendessem o motivo daquilo.

— Eu... Eu posso enfrentá-lo... Eu vou... Eu vou enfrentá-lo... Eu vouafastá-lo de mim... Eu não tenho medo dele... Eu não tenho mais medodele... — afirmou ela, a voz entrecortada e embargada.

O suor escorria de seus corpos, que tremiam na mesma vibraçãointensa e incontrolável.

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Um sorriso desenhou-se no rosto de Steve. Ele soltou a mão de Hellen,que caiu para trás, na cama, extenuada. Glen apressou-se em debruçar-sesobre ela, assustando-a, enquanto prendia ao seu braço o medidor depressão.

O bater descompassado do coração da mulher retornou rapidamente aonormal, para alivio do médico.

Steve e Hellen se olharam, conhecedores das respostas.— O que houve, afinal? — quis saber John.— Hellen conseguiu captar o terror que há na casa. Através dela

encontrei a razão. A esposa de Arthur Grove foi quem transmitiu tantopavor na casa. Durante a construção, o filho deles caiu da janela do sótão.Arthur ficou possesso, acusando a mulher. Vivia ameaçando-a com ummachado, o mesmo que usava para matar as prisioneiras. A pobre mulherenlouqueceu de medo. O espírito dela ficou na casa, culpando todas asmulheres pela morte do filho, atormentando-as em troca disso, incutindonelas o mesmo medo que levou sua mulher à loucura.

— E o que significou o fato de Hellen enfrentá-lo... — quis saberAlice.

— Quase como um ato de exorcismo. Se Hellen não enfrentasse essemedo, ele o perseguiria pelo resto da sua vida, atormentando-a.

— Sente-se bem agora? — indagou Glen, prendendo as mãos delaentre as suas.

Um sorriso calmo brilhou no rosto dela, realçando uma beleza quevinha sendo obscurecido por uma expressão de medo constante.

— Estou ótima! — respondeu ela, olhando-o nos olhos.Havia algo naquele olhar que a animava. Algo que a fazia disposta a

enfrentar todas as adversidades, a solidão e a ausência de David, a doença eo que quer que fosse.

— Está quase tudo claro agora — falou John. — Só não conseguimosexplicar ainda a aparente calma que reinou naquela casa durante os últimoscinquenta anos.

— Deve haver uma resposta. A casa foi habitada. Mulheres viveram lá.Por que só agora essa influencia negativa voltou a suas atividades? —continuou Steve.

— Hellen, quando vocês reformaram a casa, o que foi feito deextraordinário? Isto é, alguma coisa foi alterada ou foi mexida, como abrir

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uma parede ou fechar um cômodo — questionou-a Alice.— Nada que eu me lembre... David tomou para si todas as decisões

sobre a casa... A única coisa que fiz foi exigir que o porão fosse reaberto eque se montasse lá a lavanderia...

— Espere um pouco! Por que reabrir o porão? — indagou Steve.— Sim, reabrir por quê? — ajuntou John.— Descobrimos que havia um porão por causa das vidraças que eram

vistas do lado de fora. Só que não havia uma entrada. David mandou oarquiteto até a prefeitura, verificar as plantas antigas. Foi aí quedescobrimos a entrada do porão, no fim do corredor, onde antes havia umaparede...

— O que acha disso, Steve? — indagou-lhe John.— Os capelães devem ter descoberto alguma coisa ou feito alguma

coisa...— Alice, acha que podemos descobrir alguma coisa sobre os homens

que passaram por lá? Será que encontraríamos algum deles vivos?— Não é impossível! Acho que encontraremos uma resposta no Museu

da Guerra.— Vamos para lá! Juntos teremos mais facilidade e agilizaremos a

pesquisa — decidiu John.Despediram-se de Hellen e de Glen e saíram. O médico continuou

olhando Hellen nos olhos, num mudo diálogo de adoração.— Soube alguma coisa de meu marido? — indagou ela.— Ele não bem mais, Hellen — começou ele, contando-lhe o que

Alice lhe havia dito.Quando terminou, ela estava cabisbaixa e ele apertava a mão dela com

força, transmitindo-lhe apoio e carinho.— Consegue superar isso? — quis ele saber.— Consegui exorcizar um demônio, por que não conseguiria isso? —

brincou ela.— Eu estarei aqui para ajudá-la — murmurou ele, a cabeça pendendo

instintivamente na direção dela, como que atraída por um imã poderoso,além de suas forças.

Hesitou por um breve instante, depois se deixou levar até se verenvolvido por aquele momento sem volta, quase ultrapassando o limite dasfronteiras e se invade inexoravelmente o território da mulher amada.

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Glen sabia que não havia volta para esse ato de audácia e heroísmoextremos.

Beijou-a longamente.Hellen cedeu à mais suave das loucuras.

A noite se aproximava, juntamente com a tempestade. Ventava maisforte, arrastando pelas ruas as folhas que o outono fizera cair das árvores.Nuvens espessas e escuras avançavam pelo céu, fazendo anoitecer maisrápido.

Na sala abafada, cercados de velhos alfarrábios, documentos antigos,jornais e revistas velhas, os três procuravam febrilmente por alguma pista.

— Veja isto — disse Alice, mostrando um livro de registro de nomes.— É um livro de registro de embarque... Especifico de capelães... Quemeram, para onde foram mandados...

— É isso! — exultou John. — Achamos, Steve. Vamos ver sereconhecemos alguns dos nomes.

Alice foi lendo em voz alta todos os nomes que estavam ali.— Não vai adiantar... Já sei! — afirmou Steve. — Tenho um amigo na

administração do exército, em Washington. Falo com ele e consigo umarelação dos capelães atuais e...

— São cinquenta anos, Steve! Se ficaram no Exército, estãoaposentados agora... — lembrou John.

— Tem razão. Precisamos da ajuda de algum religioso, alguém ligadoao clero e... — ia dizendo Alice, interrompendo-se para olharsignificativamente para John.

— Padre Fernback! — disse John, com um sorriso.— Sim, como não nos lembramos dele antes. Padre Fernback já é

patrimônio histórico de Harvard. Deve estar com uns noventa anos e comaquela mente lúcida e privilegiada, com certeza irá nos ajudar. Poderemoslevar este livro, John? — quis saber Alice.

— Eu cuido disso. Esperem-me no estacionamento. Irei em seguida.

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Alice e Steve fizeram conforme ele determinara. Quando estavamaguardando por ele, uma ideia veia à mente da garota.

— Steve, como lidamos com algo semelhante a isso? Quero dizer,como expulsar aquele espírito da casa?

Ele pensou por instantes.— Tenho uma teoria de que as paredes têm memória, como se fosse

uma fita de vídeo. Só o que temos a fazer é apagar essa memória e ainfluencia negativa desaparecerá.

— Então é só apertar o botão "Apagar" e estará tudo resolvido? —brincou ela.

— Em tese, sim. A questão é saber onde encontrar esse botão.— O que quer dizer com isso?— Que não é fácil descobrir onde está escondido o problema, onde está

sua origem, Megg consegue vê-lo, mas não pode afirmar onde exatamenteele está, compreende?

— Ficou confuso...— Lembra-se da historia do Drácula?— Sim, claro...— O Drácula aterroriza uma cidade inteira, mas, na hora de se

esconder, tinha uma masmorra e um caixão onde ficava. Essa influêncianegativa também tem o seu local de descanso, por assim dizer. Temos quedescobrir onde é.

— Agora entendi. Mas se você não o vê, como poderá enfrentá-lo?— É outro problema. Só poderemos senti-lo através de uma mulher...

Só que o risco que ele correria é inimaginável.— Não quero nem pensar nisso — arrepiou-se Alice, olhando para o

céu.John retornou logo em seguida, trazendo o livro. Rumaram, então, para

a Universidade de Harvard. Trovões e relâmpagos convulsionavam o céu,aproximando-se agora rapidamente. O tráfego começava a se tornarconfuso. A pressa e a proximidade da chuva tornava todos impacientes edescuidados.

Quando chegaram, as primeiras gotas começaram a cair,transformando-se, em seguida, num lençol torrencial e pesado.

Foram até a capela da Universidade. Padre Fernback era o capelão e,àquela hora, seria encontrado rezando. À hora do Ângelus, ele cumpria o

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ritual antigo.Os três entraram respeitosamente na capela. Ao fundo, diante do altar,

o velho padre rezava, desfiando contas de um rosário. Velas bruxuleavam,iluminando uma estátua do Cristo Crucificado.

Sentaram-se e aguardaram, até que ele terminasse suas orações. Achuva persistia forte, batendo contra os vitrais. Clarões repentinos dosrelâmpagos produziam curiosas sombras no interior sagrado.

O padre caminhou pelo corredor. Ao vê-los, sorriu.— Terei, finalmente, conseguido trazer para o meu rebanho três

ovelhas desgarradas? — brincou ele.— Padre, confesso que esta tarefa está se tornando cada vez mais fácil

— riu John. — Só que precisamos de sua ajuda.— Em que posso ajudá-los, afinal?Deixaram a capela e caminharam por um longo corredor, até os

aposentos do padre. Ali, numa sala cujas paredes estavam forradas deestantes e livros, ele terminou de ouvir o que John vinha lhe contando.

— Este é o livro — falou John, passando-o para o padre.— É muito tempo... Eu me lembro desse centro de treinamento.

Estavam convocando jovens padres... Eu havia passado dos quarenta, quisir, mas não me aceitaram...

— Conheceu alguns dos aceitos?— Muitos jovens padres, que foram alunos meus aqui em Harvard,

foram aceitos, fizeram o curso e embarcaram... Alguns não voltaram, éclaro... Ser capelão na linha de frente é o mesmo que lutar na linda defrente. As balas inimigas não discriminam... — comentou ele, olhando osnomes.

— Poderemos encontrar alguns deles aqui em Boston? — quis saberAlice.

— Eu me lembro do padre Chandler, do Colégio Radcliffe, mas elemorreu no ano passado. O padre Jefferson, do Hospital Sulfolk sofreu umderrame e se encontra mudo e paralisado numa cama. Vejamos se melembro de mais algum... Mas afinal, o que vocês querem saber exatamente?

— O que foi feito de especial na mansão, durante a permanência doscapelães lá. Isto porque, nos cinquenta anos que se seguiram, nenhumamanifestação foi relatada. Agora, após uma reforma que reabriu o porão,

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temos uma mulher que enfrentou o mesmo que inúmeras outras enfrentaramantes dela — explicou John.

— Eu me lembro de algumas coisas... Isso foi em quarenta ou quarentae dois... O enviado do papa esteve aqui... Foi uma viagem rápida ediscreta... Os bispos se reuniram... Exorcismo! — finalizou ele, esforçando-se para lembrar-se dos detalhes todos.

— Exorcismo na casa? — perguntou Steve.— Há uma ata... Sim, há uma ata... Está catalogada no setor da Cúria

Metropolitana... Temos até em microfilme — lembrou-se ele e todo o seucorpo se encheu de nova energia. — Venham comigo.

Os três o seguiram pelos corredores da Universidade, até a BibliotecaCentral. O padre passou pelo balcão, fez o pedido, depois aguardoujuntamente com os outros.

— Está querendo nos dizer que existe uma ata de exorcismo, padre? —observou John.

— Desse exorcismo eu sei que existe.Pouco mais tarde entregaram ao padre um rolo de microfilmes. Ele foi

até uma das mesas, instalou-o no aparelho de leitura e foi direto ao índice.— Está aqui, vejam! — falou ele, quando finalmente localizou o

documento.Na tela do visor estava lá, cuidadosamente escrita com letras

manuscritas e iniciais trabalhadas, uma ata de uma sessão de exorcismo,realizada na Mansão Grove, havia cinquenta anos.

— Por isso convocaram os Bispos — observou o padre. —Exorcizaram aposento por aposento, até encurralar o demônio no porão. Porisso lacraram a entrada. Muitas orações foram feitas. Muita água benta foiusada. Ele ficou lá, fechando por todo esse tempo...

— Quando abriram a entrada durante as reformas, ele ganhou de novoa liberdade. E como podemos fechá-lo de novo? — quis saber John.

— Tranque a casa e jogue a chave fora — explicou o velho padre.John, Steve e Alice trocaram olhares inconformados. A curiosidade

cientifica falava mais alto que qualquer alerta, que qualquer outra soluçãoque não oferecesse a oportunidade do confronto direto com aquilo quehabitava a Mansão Grove.

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Passada a violência inicial, a chuva caía agora mansamente sobre acidade, embora relâmpagos e trovões ainda convulsionassem o céu,prometendo uma nova frente.

Sentados no carro, parados diante do porão da Mansão Grove, os trêsolhavam com reverência a figura imponente da construção, recortando-secontra o céu iluminado pelos relâmpagos. Era uma visão aterradora, tãoaterradora com a expectativa de entrar lá e encarar o mais primitivos dosmedos.

— Como vamos atraí-lo para o porão? — indagou Alice.Quando se despediram do Padre Fernback, este fora o seu conselho:

atrair, de alguma forma, aquele demônio até o porão.— Tenho meus receios — comentou Steve. — O porão é seu habitat,

vamos enfrentá-lo em seu território. Isso não é bom.— Só que deve haver um motivo para aquele local ser especial —

lembrou John.— Eu li, naquele livro sobre a história da Mansão Grove, que os

cadáveres foram exumados da colina para que as fundações da casa fossemfeitas. Para onde foram eles levados? — lembrou Alice.

— Uma boa pergunta! — comentou Steve.— E então, o que decidimos? — quis saber John.— Só há uma forma de entrarmos lá e tentarmos resolver esta parada

— disse Steve. — Alice terá de entrar conosco. Ficarei todo o tempo juntodela, segurando sua mão. É a única maneira de conseguirmos localizar oespírito ou seja lá que nome dar a ele.

— Isto é novo para você, não? — comentou John.— Primeira vez nesse tipo de experiência de confronto direto.— Pense positivo: imagine o quanto isso vai enriquecer seu currículo!

— brincou John.— Se Megg pudesse vir conosco... Ela o vê — lembrou Alice.

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— Não, jamais! Não podemos nem pensar em arriscar a vida dagarotinha — afirmou John. — Vamos lá?

Os outros concordaram com acenos de cabeça. John desceu do carro efoi abrir o portão. Retornou. Subiram lentamente a alameda, os faróisiluminando os filetes de água que escorriam pelo calçamento, carregandofolhas coloridas.

O timer ligara, como sempre, a luz da entrada da casa. O carro paroudiretamente em frente da porta.

— Eu vou à frente — disse Steve, descendo e subindo rapidamente osdegraus até o alpendre.

A chuva começou a aumentar novamente. Os relâmpagos eram maisintensos. Os trovões se abatiam como estalos ensurdecedores e próximos.

O rapaz abriu a porta e entrou. Pouco depois a sala se iluminou. Elesurgiu de novo na porta, fazendo um sinal para que os outros o seguissem.

John entrou em seguida. Alice parou na entrada. Steve segurou a mãodela, olhando-a nos olhos.

— Quer desistir? — indagou ele.— Jamais! — afirmou ela, entrando.John fechou a porta atrás deles. Ficaram imóveis. Alice sentiu coração

disparar, naquele momento de tensão e de espera.— E então? — quis saber John.— Nada! — respondeu Steve.— Nada mesmo — confirmou Alice.— Temos duas alternativas. Podemos subir ao sótão inicialmente ou ir

direto ao porão. O que me dizem? — ponderou John.Steve e Alice se entreolharam. Depois fitaram a escadaria diante deles,

convidando-os.— Para cima! — decidiu Steve, seguindo apenas um palpite.Lentamente foram subindo, degrau a degrau, atento a algum ruído, a

alguma coisa inesperada, a qualquer coisa anormal. A casa estava emsilencio, porém. Apenas o barulho da chuva e os clarões dos relâmpagosentrando pelas vidraças quebravam a calma daquele ambiente sóbrio.

Chegaram ao corredor dos quartos. Foram até o final, onde havia aporta que conduzia ao pavimento superior, o sótão. John a abriu. Subiu nafrente, até uma nova porta. Empurrou-a. O sótão se iluminava

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continuamente com os relâmpagos. Uma luz foi acesa. Apenas velhariasempilhadas.

— A janela! — apontou John.Foram até lá. Podiam ver a casa de Megg Jones, do outro lado da rua,

as árvores, parte do bairro que se estendia além das outras casas.Alice se sentiu mais relaxada. A tensão inicial havia passado. Começou

a duvidar de tudo aquilo. Sentiu-se, de certa forma, numa situação ridícula,caminhando por uma casa vazia, procurando fantasmas.

— Nada aqui — afirmou Steve.Deixaram o sótão e retornaram à sala de entrada.— E agora? — quis saber Alice, respirando fundo, aliviando as

tensões.— O porão? — retrucou Steve, olhando para John.— O porão! — confirmou ele.— Vamos acabar logo com isso — falou Alice, decidida.Adiantou-se, soltando a mão de Steve.— Alice, não! — pediu ele.— Não se preocupe, Steve — tranquilizou ela, avançando na frente

pelo corredor, até a entrada do porão.Abriu a porta. Acendeu as luzes. Desceu a escadaria. Parou no centro

do aposento, olhando ao redor. Nada mais do que uma prosaica e comumárea de serviço, com máquina de lavar, secadora, uma caldeira e algunsoutros utensílios.

Steve e John a alcançaram. Ficaram ali, ouvindo o barulho da chuva,sem que nada perturbasse a tranquilidade daquele local.

— Nada — comentou Steve.— Não entendo — disse John, caminhando de um lado para outro.Alice tinha sua atenção atraída pela parede manchada a sua frente. A

umidade e o bolor haviam traçado curiosos desenhos. A chuva aumentou láfora. O ar no porão estava abafado. Um cheiro de coisa podre se tornoumais nítido para ela.

Caminhou na direção da parede. Relâmpagos jogavam flashes noporão, alterando os desenhos na parede, dando-lhes movimentos. Alicesorriu curiosa. Pareciam mulheres retorcidas. Pareciam homensdesmembrados.

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Subitamente, um relâmpago mais forte. A luz ofuscou-a por instantes,confundindo-a. Fechou os olhos e, ao abri-los novamente, sentiu sobre si obrilho de uma lâmina.

— Não! — gritou, recuando inesperadamente.Trombou em Steve que a amparou, não a deixando cair. Ao segurá-la,

ele estremeceu, erguendo os olhos para a parede. Empalideceu. Arrepioscontínuos eriçaram sua pele. Conhecia aqueles sintomas, só não sabia seeram dele ou de Alice.

— John, aquela parede! — disse ele.John desviou o olhar para lá. Viu os desenhos, o bolor e as alterações

que as luzes dos relâmpagos produziam.Alice escondeu-se atrás de Steve, que continuou segurando as mãos

dela. Uma sensação de estar encurralada e ameaçada, uma reação de animalacuado, algo indescritível, se apossou dela. Steve captava tudo isso. Queriaver o que era, mas não podia.

— Há algo ali — afirmou Steve, apontando para a parede.John viu uma picareta. Apanhou-a como um inútil instrumento de

defesa. O corpo de Alice se retesou todo, num arrepio de pavor.— Não, por favor! — suplicou ela, tentando se libertar da mão de

Steve.— Alice, mantenha-se calma — exigiu ele.— Não... Quero ir... Eu sei... Eu sinto... Está aqui... Deixe-me ir...

Deixe-me ir... — pedia ela, esforçando-se para se livrar.— John, ajude-me. Ele está aqui... Está vindo...— Onde? — desesperou-se John.— Creio que está por ali, na parede...— Não! — gritou a voz esganiçada de Megg. — Ele está atrás de John.John se voltou rapidamente, erguendo a picareta, mas nada viu.— Megg, venha cá! — pediu Steve.Ela desceu aos saltos os degraus da escada. Agarrou a mãos de Steve.

Ele se eriçou todo, ao vê-lo claramente, rindo, a expressão demoníaca norosto crispado, atrás de John, brincando e zombando.

Ao perceber a chegada de Megg, deixou John e se fixou nos três,unidos pelas mãos firmemente seguras.

Megg começou a tremer. Arthur Grove se concentrou nela, os olhosesbugalhados e insanos penetrando os da garota. Steve sentiu o quanto ela

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era forte e resistente, mas não podia avaliar o quanto ela suportaria aquelapressão.

John ficou imóvel, olhando os três juntos, tremendo continuamente,olhando fixamente na mesma direção.

— Megg, por que aqui no porão? — indagou Steve. — Pense Megg.Concentre-se! Fuja desse olhar! Por que aqui? O que há aqui? — insistiuSteve, apertando a mão dela, balançando, tentando tirá-la daquele transe.

Ela estremeceu mais forte, os olhos lutando para fugir àquela imagematerradora que os prendiam. Olhou a parede. Viu as manchas de umidade ebolor. Entendeu-as.

— A parede! — gritou Steve, que tivera a mesma visão através deMegg.

— O que tem ela? — confundi-a John.— Quebre-a!John não entendeu a ordem. Ficou indeciso. Megg tremia mais forte.

Steve tentava passar-lhe força e não permitir que ela cedesse. Alice estavaresistindo bem, mas até quando poderiam suportar aquilo?

John se voltou para a parede. Apertou firme o cabo da picareta, depoiscaminhou decidido na sua direção. Ergueu a ferramenta, Steve ofegou, masse sentiu recompensado a ver aquele demônio se voltava para olhar John.

A picareta bateu firme contra os tijolos. Lama começou a escorrer pelafenda. John golpeou seguidamente, abrindo um buraco, por onde a lamajorrou. Junto com ela, pedaços de esqueletos e o medo concentrado de milhomens mortos ou mutilados naquele local de maldade.

Megg ficou estática, os olhos incrédulos acompanhando o que sepassava diante dela. Através dela, Steve também viu e o espetáculo erainenarrável.

Centenas de corpos destroçados foram surgindo da abertura, cobertosde sangue, podridão e lama, juntando-se num exército esfarrapado quecresceu mais e mais, encurralando em um canto do porão a figurademoníaca de Arthur Grove.

Gritos, uivos, gemidos, ruídos além da imaginação se ouviram,semelhantes ao triturar de ossos, ao moer de dentes, ao cortar dearticulações, ao deslizar uma lâmina sobre a pele.

Steve abraçou Megg, fazendo-a desviar os olhos. Empurrou-as escadaacima, agarrando John e fazendo-o segui-lo. A porta foi fechada atrás dele.

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Correram pela sala e só pararam lá fora, sobre a chuva torrencial e fria quecaía sobre seus corpos como um bálsamo refrescantes.

Ficaram algum tempo ali, imóveis, olhando a casa, recuperando ofôlego, a razão, a noção das coisas. Haviam acabado de sair de umpesadelo.

— As vítimas... Ele continuava próximo das vitimas, atormentando-ascom sua presença... Na construção da casa, exumaram todos os esqueletos.Grove mandou pô-los todos ali, no porão, onde pudesse tê-los próximo desi. Quando morreu, continuou ali, infernizando-os. Ao quebrar a parede,você os libertou. Eles tiveram a chance de vingança que vinhamaguardando há muito tempo. Acho que foi isso — concluiu Steve.

— O que vocês viram lá, afinal? — quis saber John.— Sim, eu podia sentir o medo de vocês — acrescentou Alice.— Não perguntem, por favor! — pediu Steve. — É algo que desejo

esquecer para sempre.— Vamos sair desta chuva... Estou ficando com frio — pediu Megg e

todos correram para o alpendre.A garota se encolheu toda, cruzando os braços sobre as roupas

molhadas. Só então percebeu que os outros a olhavam, repreendendo-a como olhar.

— Esperem aí, o que foi que eu fiz? — indagou ela.— Você não devia ter feito o que fez. Arriscou-se vindo aqui — disse

Alice.— Calma aí, gente! Eu os vi chegando e entrando na casa. Fiquei

olhando com o binóculo. Vi quando entraram no sótão. Andaram de umlado para outro com aquele louco barbudo atrás de vocês. Não o viam. Eunão podia deixá-los enfrentá-lo sozinho. Vocês não tinham chance. Nãopodiam vê-lo.

Os três adultos trocaram olhares significativos. Depois se voltarampara ela. Havia gratidão em seus olhares.

— Bem, acho que está terminado, gente — decretou John. — O quemais podemos fazer aqui?

— Tem razão. Se o que vimos lá embaixo se confirmar, acho queArthur Grove está pagando por todos os seus crimes pela eternidade. Estacasa terá, afinal, paz! — afirmou Steve.

— E quem pode garantir isso? — preocupou-se Alice.

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— Deixem comigo, gente. Moro do outro lado da rua e tenho umexcelente binóculo. Vigiarei diuturnamente esta casa. Se perceber qualqueranormalidade nela, aviso vocês, pode estar certo disto — falou Megg.

— Mas o que será da casa? David e Hellen jamais voltarão a moraraqui. Duvido que alguém volte a morar aqui um dia — afirmou Alice.

— É uma pena — lamentou John. — É uma bela casa, sem sombra dedúvidas.

— Megg, cuide de tudo para nós — pediu Alice.— Deixem comigo — respondeu a garota, sorrindo e disparando pela

alameda, sob a chuva, descendo a colina na direção de sua casa.— Quem entra lá e apaga as luzes? — desafiou John.— Eu faço isso — afirmou Steve, entrando em seguida.John e Alice foram para o carro esperá-lo. Viram as luzes se apagando

uma a uma. Primeiro no sótão, depois no pavimento inferior, nas vidraçasdo porão e, finalmente, da sala. Steve saiu e fechou a porta, após apagar asluzes da sala. Correu para o carro.

— Estou com fome. Há anos que não como direito! — disse ele, a vozligeiramente enrouquecida.

— Está ficando resfriado — comentou Alice, enquanto o carro sepunha em movimento e descia a colina lentamente.

Do outro lado da rua, Megg havia recebido uma bronca de sua mãe porter saído na chuva e corrido para o quarto tirar a roupa molhada.

Vestiu um roupão. Percebeu que ainda tremia, depois daquelaexperiência fantástica. Apanhou distraidamente o binóculo. Olhou nadireção da casa.

Começou a rir. Estava vendo coisas demais. O que Steve estariafazendo no sótão agora, debatendo-se contra o vidro?

Só podia ser imaginação sua ou efeito dos relâmpagos.

FIM

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TERROR NO OUTONO

Threemount, no extremo sul da Inglaterra, à beira do Canal da Mancha,

era uma agradável e movimentada praia durante o verão e um refúgio todoespecial no inverno para aqueles cujo fascínio pelo antigo animava a umaviagem mais longa.

A baía abrigava recantos maravilhosos. Seus restaurantes e casas deantiguidades à beira do mar, na avenida principal, conservavam um toquede originalidade na decoração, toda ela voltada para temas marinhos,valendo-se de todo tipo de despojos que a corrente jogava na praia.

Naquele outono, Threemount vivia uma meia estação normal, quandoos veranistas retardatários deixavam suas praias, recolhendo as pranchas desurfe e de windsurfe e as velas coloridas de suas embarcações, prometendovoltar no ano seguinte.

Ao mesmo tempo, aqueles que preferiam uma temporada maistranquila começavam a chegar, circulando animadamente pelos pubs, barestípicos da Inglaterra, ou passeando pelas ruas calçadas com pedrasassimétricas de uma antiga pedreira nos arredores.

De todos os estabelecimentos, o mais visitado sempre era o BlindPirate Inn. Era um velho prédio, em estilo vitoriano, todo decorado em seuinterior como se fosse uma antiga escuna.

Os visitantes subiam por uma rampa até o convés e dali podiamescolher a direção mais adequada ao seu temperamento. Havia um pub noporão, com toda sorte de bebidas preferidas dos velhos marinheiros, alémdos indefectíveis alvos para lançamento de dardos.

Ali toda a decoração lembrava um porão de navio, enfeitado com peçasinteressantíssimas e os marujos aposentados ou candidatos a marujo viviam

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um autêntico clima marítimo e experimentavam a legítima sensação deserem lobos do mar, só que na segurança da terra firme.

Outros podiam preferir o salão principal, que lembrava o convés de umnavio e onde estava instalada a danceteria. Um toque de mistério estavapresente com as ossadas de peixes presas às paredes em curiosos arranjos,dando origem a monstros indefinidos, mas aterrorizantes.

A música era sofisticada e moderna. Garotas com trajes antigoscirculavam por entre as mesas, oferecendo cigarros, fotografias erecordações.

Na ampla pista, com trajes realçando sempre as formas de seus corpos,garotas dançavam sozinhas ou acompanhadas, circulando, às vezes, emalegres bandos à caça de algum acompanhante masculino.

Naquela noite de outono, quando o céu se mostrava ameaçador,prometendo uma forte tormenta, e as ondas batiam com rigor nos rochedose na areia da praia, era grande a frequência no Blind Pirate Inn.

Garotas desacompanhadas e ansiosas por um programa de fim de fériasensaiavam seus melhores e mais provocantes passos de dança, procurandochamar a atenção. As mesas estavam tomadas e as poucas ainda vaziasexibiam plaquetas de reserva especial. Turistas de verão retardatários semisturavam aos recém-chegados.

Numa das mesas mais estratégicas, pois ficava próxima da porta, deonde se poderia observar a pista de dança e todos que entrassem. SusanPortland, uma garota de Londres em final de férias, conversava com suaamiga, Mary Reading.

— E que tipo de sensação foi essa? — perguntou Mary, impressionadacom a expressão de Susan, que estava pálida e com os lábios descorados,além de tremer como se tivesse levado um grande susto.

— Não sei se poderei escrevê-la corretamente... Era algo além daquelasensação que se tem de estar sendo observada. Já sentiu isso?

— Uma espécie de sexto sentido? — ajudou Mary.— Sim, isso mesmo. A noção exata que tive durante aquele trajeto foi

a de estar sendo seguida...— Não viu alguém ou ouviu passos?— Não, não foi isso, daí porque me assustei tanto. Era qualquer coisa

pairando... Flutuando, talvez... Ou invisível e silencioso... Quase tocando-

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me... Não sei como não entrei em pânico — finalizou Susan, aindatremendo.

A cor voltava aos poucos ao seu rosto, à medida que o uísque aqueciaseu corpo e suavizava aquela tremedeira. Por momentos Mary ficou emsilêncio, olhando a amiga, tentando entender o que havia acontecido.Depois deu de ombros. Fora apenas uma impressão, nada mais, mas nãoconseguia pensar em nada convincente para tranquilizá-la.

— Esqueça isso agora. Passou e nada aconteceu. Temos coisas maisimportantes com que nos preocupar. Acha que ele virá esta noite? —indagou Mary.

— Com certeza. Ele tem vindo todas as noites. Senta-se ali, perto daporta e não tira os olhos de mim — disse Susan.

Mary sorriu disfarçadamente. Aquele homem bonito, elegante echarmoso que vinha ali todas as noites não olhava para Susan. Seus olharesardentes eram para Mary e nem todo o convencimento de Susan poderiamconvencê-la do contrário.

Outra garota entrou. Parou por instantes junto à porta, olhando nadireção delas. Susan a viu e acenou. Ela foi se juntar às amigas na mesa.

— Está vindo uma tempestade lá fora — disse ela, toda excitada,sentando-se, arrumando os cabelos, recompondo o vestido, ao mesmotempo em que o olhar fazia uma rápida avaliação do salão e de seusfrequentadores.

— É outono, elas são comuns por aqui agora — lembrou Mary. - Achoque isso pode explicar sua sensação, Susan.

— Como assim?— O barômetro baixou. Isso sempre provoca uma sensação estranha,

pelo menos em mim.— Será? Pode ser, não é?— Do que estão falando? — quis saber Dora O'Hara, a recém-chegada.Mary contou-lhe a respeito da estranha sensação que havia sentido, a

caminho do Blind Pirate Inn, quando cruzava uma das ruas entre o hotel e olocal. Doa ficou séria e seu rosto demonstrou que ela ficara impressionada,como se alguma coisa no que Susan contara a tivesse assustado.

— Onde foi exatamente isso? — indagou, quando Mary terminou decontar.

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— Na rua atrás da igreja velha, próximo do cemitério... — informouSusan.

— Pois acreditariam se lhes dissesse que tive a mesma impressãoontem, quando vinha para cá?

— Ora, ora, garotas! O que temos aqui, afinal? Sensações ou ansiedadee expectativa. Todas vimos para cá ansiosas para encontrar nosso príncipeencantado e aproveitar o que nos resta das férias. Nada mais — comentouMary, descrente.

— Não acho que seja isso, Mary. É como se alguém ou alguma coisaperseguisse você... Alguém silencioso como o vento, mas ali, atrás devocê... — contestou Susan.

— Essa é a impressão que tive também — ajuntou Dora.— Nesse caso é melhor vocês duas conversarem a respeito de suas

sensações. Eu prefiro encontrar minhas sensações ali, na pista de dança —zombou Mary, levantando-se e deixando-as.

Foi dançar sozinha no centro da pista de dança. Ainda era cedo para ohomem misterioso chegar. Naquela noite, tinha de dar um jeito de seaproximar dele, sem deixar Susan magoada. Sentia aqueles olhares ecorrespondia a eles. Tinha certeza absoluta que o príncipe da danceteria nãoestava interessado em Susan. Isso ninguém lhe tirava da cabeça.

Na pequena Chefatura de Polícia de Threemount, o inspetor-chefeCharles Derby se preparava para mais uma noite tranquila. Agora que overão se fora, as ocorrências eram mínimas, pois o pessoal que chegava eramais maduro, pessoas de meia-idade, que não davam trabalho nenhum, anão serem casos de embriaguez que eram resolvidos com uma carona até ohotel onde estava hospedado o infrator, que no dia seguinte receberia umamulta por perturbar o sossego público e mais nada.

Todo o esquema policial reforçado, preparado para o verão, já foradesarmado e muitos dos policiais estavam tendo, agora, suas merecidasférias anuais. Os plantões noturnos agora não precisavam mais ser integrais.

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Significava que as boas noites de sono completo voltavam. Em breve o friochegaria e então o sossego seria total.

— Aceita um chá, inspetor? — ofereceu o Sargento Lester Sheffield.— Sim, claro — aceitou o inspetor-chefe, deixando de lado o

cachimbo e esfregando animadamente as mãos.Lester foi para a minúscula cozinha, onde havia uma pia e um

fogareiro a gás, pôr a chaleira no fogo e preparar as xícaras. O telefonetocou. Ao olhar para ele, um repentino pressentimento se apossou doinspetor.

Após tanto tempo naquele trabalho, Charles Derby era capaz de farejara encrenca chegando.

— Chefatura de Polícia de Threemount. Aqui é o inspetor-chefe Derbyfalando — disse, ao atender.

— É muita sorte falar direto com você, inspetor-chefe. Meu nome éWilliam Aberdeen, de Salisbury...

— Realmente? Em que posso ajudá-lo, Aberdeen?— Trata-se de minha filha, inspetor-chefe. Ela foi passar o verão em

Threemount e deveria ter voltado há três dias...— Teve algum contato anterior com ela?— Sim, há quatro dias, quando nos informou que estaria retornando no

dia seguinte.— Tem o endereço de onde ela ficava aqui?— Não, mas tenho o número do telefone. Tentamos entrar em contato

todos esses dias, mas ninguém atende aquele telefone.— Tranquilize-se, Aberdeen! — falou o policial.— Sei que não deve ser nada. Esses jovens de hoje em dia são muito

impetuosos. Minha filha é assim. Eu não me preocuparia tanto, mas minhaesposa está muito preocupada.

— Certo, eu entendo. Dê-me o número do telefone dela aqui e o seutambém. Vamos tentar localizá-la e pedir-lhe que ligue imediatamente paracasa. Qual é o nome dela?

Momentos depois, quando desligou, Derby ficou em pé, cofiando osbigodes. Havia um cheiro de encrenca no ar. Não encrenca simples, comum,corriqueira e facilmente controlável. Havia um cheiro de encrenca dagrossa, daquelas capazes de virar a chefatura de pernas para o ar.

Lester olhava-o interrogativamente.

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— Uma garota, como sempre acontece, deve estar gostando demais desuas férias e isso preocupa seus pais. Vamos ver isso logo mais, Lester. Masprimeiro vamos àquele chá — decidiu o inspetor-chefe, olhandopensativamente pela janela.

Via as árvores se movendo lá fora, agitadas pelo vento. Relâmpagosiluminavam o céu. Uma tormenta logo se abateria sobre Threemount.

O vento agitava as árvores da estrada, assobiando nos galhos,derrubando folhas que o outono começara a secar. No mar, as ondas setornavam mais furiosas e martelavam a praia e os rochedos em meio anuvens de espuma e respingos.

Havia muitas colinas ao redor de Threemount, principalmente naestrada municipal que seguia em direção ao Condado de Truro.

Ali a estrada se encontrava com a rodovia que levava na direção deLondres, deixando para trás aquele cheiro de maresia que pairava na região.

Naquelas colinas próximas de Threemount havia muitas casas que, noverão, transbordavam alegria, com seus proprietários ou turistas povoando-as. Com a chegada do outono, elas estavam fechadas agora. Apenas em umaou outra notava-se uma luz acesa naquela noite tempestuosa, indicando apresença tardia de seus proprietários.

Poucas delas eram alugadas durante o outono e o inverno. Com asfortes chuvas que caíam no outono e as nevascas no inverno, corria-se orisco de ficar isolado da cidade e ninguém queria enfrentar isso.

Numa dessas casas, solidamente encravada no alto de uma dessascolinas, à beira do oceano, com uma vista magnífica da cidade e do mar,havia luzes acesas em profusão. Pelas janelas abertas o vento penetravacom força, agitando as cortinas.

A ampla sala mobiliada com luxo estava vazia. Tudo estava emsilêncio e apenas a presença do vento era notada, entrando pelas janelas,subindo a escadaria e indo varrer os aposentos superiores.

Subitamente uma porta se abriu e a sombra de um homem desenhou-sepor instantes contra uma parede. Ele caminhava com o corpo ereto e

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arrastava pelos cabelos o corpo de uma jovem. Ele desceu com ela pelaescadaria e parou no centro da sala, soltando os cabelos da garota, cujacabeça bateu pesadamente no assoalho de madeira maciça.

Seu corpo estava nu. Havia marcas de chupões em sua pele,principalmente ao redor dos seios e no pescoço. Ela gemeu debilmente. Ohomem ficou algum tempo olhando o corpo dela.

— Eu sou assim, percebe? Não posso ficar com você para sempre...Preciso estar sempre mudando... Tenho de encontrar outra... Por isso precisome despedir de você... Preciso me despedir de você para sempre — disseele e sua voz era impessoal, monocórdia, sem emoção alguma. — Vocêentende, não?

O vento agitava seus cabelos e suas roupas. Ele apertou as mãos contraos ouvidos, como se tentasse fugir ao som de mil vozes que gritavam porele. Começou a rir desesperadamente, cada vez mais alto, tentando abafarcom sua voz o som do próprio vento.

Passou do riso ao choro de um momento para o outro. Levantou asmãos para o céu e caiu de joelhos ao lado da garota, que estava fracademais para reagir ou protestar quando ele estendeu as mãos e tocou ocorpo dela, acariciando-lhe o ventre e os seios.

— Você é linda... Muito linda... Mas eu não posso ser só seu... Eutenho que ter todas... Quero todas... Preciso de todas... Você entende o queeu estou falando?

Em resposta ela abriu tremulamente os olhos, encarando-o com pavor.Ele se inclinou ainda mais e beijou ao redor dos bicos dos seios dela.

Um vento mais forte e mais frio soprava agora. Ele enfiou seus braçossob o corpo dela e levantou-se, trazendo-a no colo. Caminhou comfacilidade, levando o delicado fardo, para os fundos da casa, por onde saiu.

Relâmpagos cortavam o céu, iluminando os dois, enquanto elecaminhava na direção do mar, abaixo deles, após o enorme paredãorochoso. Ele apressou o passo. O corpo em seus braços, apertado contra oseu peito, tinha ainda o perfume excitante que, por três dias, ele haviagozado intensamente. Agora ele se cansara. Precisava de um novo perfume.

Sabia exatamente o que fazer com ela. Desceu parte da encosta. Suacarga era leve. Ele se sentia bem, excitado ao saber que iria começar tudonovamente. Estava quase fazendo sua nova escolha. Possivelmente naquelanoite o faria. Isso dava-lhe um novo ânimo.

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Folhas rolavam a seus pés. Galhos oscilavam tetricamente em árvoresdescarnadas, iluminadas pelos relâmpagos cada vez mais próximos efrequentes. Os trovões no céu pareciam disputar com o mar em ruído eameaça.

Ele ergueu a cabeça e aspirou aquele cheiro de natureza bravia eindomável. Aprovou, com uma expressão de prazer em seu rosto másculo,parando para observar aquele espetáculo de luzes e sons inimitáveis.

Voltou a caminhar, descendo agora por um caminho que o levaria aoparedão rochoso. Era o local ideal para esconder os despojos de suasconquistas. Aquela velha pedreira desativada ofereciam o esconderijoperfeito.

Suas muralhas desiguais erguiam-se desafiadoramente, como ummonumento à devastação da natureza, promovida pelo homem. Ao pédaquelas paredes, quando era maré baixa, podiam-se ver os blocos maciçosarrancados a dinamite da rocha, formando uma inesperada armadilha. Tudoque fosse atraído ou levado pelo mar para ali seria estraçalhado pela forçadas ondas, jogando-se sobre arestas pontiagudas.

Ele depositou o corpo nu da garota sobre uma rocha. Um relâmpagomais próximo iluminou os dois. As primeiras gotas da chuva começaram acair. Ele se inclinou sobre o corpo da jovem, acariciando-o como numadespedida.

— Você entende, não entende? — indagou ele, junto ao ouvido dela,mas os trovões e o mar não a deixaram ouvir.

As mãos dele entraram pelos cabelos dela, erguendo-lhe a cabeça. Elea manteve semissentada, os braços caídos ao lado do corpo, a água da chuvaescorrendo sobre sua pele nua.

— Obrigado, querida! Obrigado pelos momentos inesquecíveis deamor que me proporcionou — disse ele, num sussurro que ela jamaisouviria.

Aproximou seus lábios dos dela lentamente. A garota mal respirava.Tomado de um súbito impulso carinhoso, ele a apertou nos braços comforça, como se desejasse fundir seu corpo ao dela.

Sua boca pousou sobre a da jovem, aberta como as mandíbulas de umanimal faminto. Ele sugou com força os lábios carnudos e frescos, trazendo-os para sua boca, para seus dentes. Acariciou-os com a língua, lembrando-se de quanto prazer eles lhe haviam proporcionado.

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Depois, inesperadamente, ele mordeu, decepando-os. Ergueu a garotanos braços e jogou-a paredão abaixo, depois cuspiu os pedaços dos lábiosdela que haviam ficado em sua boca.

Ergueu o rosto para o céu. A chuva lavava o sangue que escorria peloseu queixo. Ele pensava na próxima caçada, no próximo corpo, no próximoperfume e na próxima vítima.

Seu corpo vibrava de tanto prazer que isso lhe proporcionava.

O inspetor-chefe havia insistido mais uma vez, mas o telefone não era

atendido. Devolveu o fone ao gancho, depois ficou tamborilando a canetacontra o tampo da mesa, gesto característico de quando estava preocupado.

Do outro lado da sala, Lester Sheffield o observava, percebendo quealguma coisa incomodava seu chefe. Conhecia-o muito bem para saberinterpretar seus gestos de desapontamento, de irritação ou de preocupação.Aquele era de pura preocupação.

A chuva chegara com força, empurrada pelo vento. Era uma péssimanoite para se iniciar uma investigação, mas Lester conhecia seu chefe. Sabiaque, quando uma coisa o preocupava, ele ia em frente a qualquer custo.Nada o faria desistir de resolver logo o que o afligia.

— O que houve, inspetor? — indagou ao seu chefe.— Estou preocupado, apenas isso — respondeu o inspetor, levantando-

se e indo até um armário.Abriu-o e retirou uma pasta. Levou-a para a mesa. Começou a

examinar as fichas que havia nela, separando-as. Ao final, havia doismontes, um com a maioria das fichas e outro com três fichas. Lester haviase aproximado, quando o viu começar a fazer aquilo.

— O que tem aí, inspetor? — perguntou.— De todos os casos de desaparecimento, sobraram estes três aqui.

Três garotas que não foram localizadas ainda, mas essa cujo telefone nãoatende. Quatro, no total.

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— Isso acontece todos os verões, inspetor. Muita gente resolve nãovoltar direto para casa. Arrumam um namorado ou uma namorada e queremesticar um pouco mais...

— E são sempre mulheres. Ninguém comunica o desaparecimento deum homem... Já reparou nisso?

— Geralmente as mulheres preocupam mais quando se demoram,inspetor — comentou Lester, com um sorriso.

— Geralmente são mais frágeis... São as vítimas, Lester. Pegue estasfichas. Ligue para as residências delas. Veja se já têm alguma notícia dasgarotas.

Lester tratou de cumprir logo a ordem. Percebeu que a preocupação deseu chefe era muito maior do que imaginara anteriormente. Apanhou asfichas e ligou. De sua mesa o inspetor-chefe acompanhou o resultado decada uma delas.

— Nenhuma voltou para casa ainda nem deu notícias, inspetor —informou o sargento, ao final das ligações.

O próprio inspetor apanhou o telefone. Ligou para o posto de serviçosda telefônica.

Identificou-se e pediu que lhe dessem o endereço do telefone da garota.A informação veio logo em seguida. Ele anotou, agradeceu e desligou. Opressentimento tornava-se mais forte dentro dele.

— Pegue seu casaco e o guarda-chuva, Lester, depois vá ligar o carro.Vamos sair — disse o inspetor.

O sargento obedeceu. Momentos depois rumavam para uma vila nosarredores da cidade. Ambos conheciam muito bem o local.

Ali, dezenas de chalés eram alugados para os veranistas, quedispunham de todas as facilidades, como restaurante e loja de conveniência,além da proximidade com o mar e com o centro da cidade.

— Acha que temos mais do que simples desaparecimentos, inspetor?— indagou o sargento,

— Não acho nada por enquanto, sargento. As pessoas muitas vezes sepreocupam por nada, mas é nossa obrigação investigar, não concordacomigo?

— Sim, menos numa noite como esta. Ninguém deveria fazer nadanuma noite como esta, exceto ir ao Blind Pirate Inn e dançar com aquelas

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gatinhas de vestidos colados — opinou o sargento, com um sorriso marotonos lábios.

O inspetor ficou em silêncio. Não havia noite ou dia, quando se tratavade acontecer um crime.

Chegaram lá em poucos instantes. O percurso poderia ter sido feito apé, se a chuva não caísse torrencialmente, prenunciando uma estação muitochuvosa e um inverno muito rigoroso.

Pararam diante do chalé onde ficava o gerente daquele complexoturístico. Foram atendidos por ele, um homem de olhos miúdos eobservadores, conhecido dos policiais.

— E então, inspetor-chefe, em que posso ajudá-lo? — indagou ele,após os cumprimentos e os comentários sobre a chuva.

— Procuro por uma garota... Seu nome é Joan Aberdeen — disse oinspetor-chefe.

— Aquela bandida! — exclamou o gerente, vasculhando seus registrose retirando uma ficha.

— Por que diz isso? — quis saber o policial.— Eu pensei que conhecesse as pessoas. Aquela garota me parecia

muito honesta, apesar de ser meio tarada...— Tarada? — surpreendeu-se o inspetor.— É liberal demais, sabe como é... Às vezes voltava com um rapaz,

passavam a noite juntos. Depois daquele vinha outro...— Entendo... Mas o que houve com ela, afinal? — insistiu Charles

Derby.— Ela pagou a taxa de reserva inicial, fez gastos na loja de

conveniência e quando deveria pagar suas contas e ir embora, simplesmentesumiu sem deixar vestígios.

Charles e Lester trocaram olhares surpresos.— Por que não nos avisou antes? — cobrou Lester.— Porque achei que ela voltaria. Afinal, deixou todas as suas coisas no

chalé. Eu as reuni e guardei nas malas. Se não tiver mais notícias dela,vendo-as para recuperar o prejuízo.

Uma chaleira assobiou no fogareiro, em alguma parte lá no fundo.— Venha, inspetor, venha tomar um chá comigo — convidou o

homem, levando-os para a cozinha do chalé.

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Enquanto o gerente preparava o chá, o inspetor e Lester sentaram-se àmesa.

— Você estava dizendo que ela foi embora sem pagar a conta,deixando todas as roupas e demais objetos? — lembrou-o o policial.

— Sim, inclusive algumas joias que, espero, possam me ajudar arecuperar o que perdi.

— Não lhe parece estranho isso? Teve casos assim antes?— Não são frequentes, mas também não são raros. Normalmente

quando alguém faz isso, leva os objetos de valor. Não mandei examinar, asjoias podem muito bem ser bijuterias...

— Vou lhe dar o telefone da família dela. Entre em contato com eles.Talvez queiram recuperar os objetos da filha.

— Por mim, inspetor, se quiser e se for útil em alguma coisa, deixo asmalas a sua disposição. Há inclusive algum dinheiro dentro delas. Não osuficiente para pagar as despesas. Há um cartão de crédito também... Nãotoquei em nada.

— É, isso pode nos ser útil. Dê-me uma nota de seu prejuízo. Quandoeu falar de novo com a família, informarei sobre isso.

— Vou buscar as malas, inspetor. Enquanto isso aproveitem o chá —disse ele, servindo as xícaras dos policiais.

O inspetor ficou pensativo e preocupado. A garota não deixara apenasseus pertences. Deixara joias, dinheiro e documentos. Isso era estranho eincomum.

Aquele pressentimento mais se acentuava dentro dele.

Ele estava nu, com a mangueira de água ligada, lavando todo oaposento, onde a garota ficara trancada durante todos aqueles dias. Haviaretirado os lençóis da grande cama de ferro e virado o colchão. A janelaestava aberta e o vento entrava uivando, trazendo chuva com ele.

Parou o olhou o resultado. Estava limpo, cheirando ao perfume queespalhara pelo assoalho. Foi fechar a janela, então. Depois,cuidadosamente, trouxe nova guarnição para a cama. Perfumou também os

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lençóis, derramando um pouco do perfume que estava no criado-mudo aolado da cama.

Foi olhar o guarda-roupa. Havia vestidos finos ali, roupas íntimas derendas e tecidos delicados, sapatos e tudo o mais para vestirmaravilhosamente bem uma mulher.

Deixou tudo pronto no quarto, depois saiu e levou todo o materialusado para o porão. Quando voltou, parou à porta daquele quarto e sorriu,olhando o interior perfumado. Estava tudo perfeito de novo, confirmou ele,checando a fechadura de tranca quádrupla e as grades de ferro na janela.

Foi para o quarto ao lado. Sentou-se sem pressa na confortávelpoltrona de couro diante da lareira acesa. Pensou em quem escolheria agora.As garotas naquela danceteria eram todas lindas, mas havia duas emespecial que chamavam a sua atenção. Havia estado lá todas as noites, porpouco tempo, examinando e escolhendo.

Estava satisfeito por estar ali. A casa lhe parecia adequada e muito bemlocalizada. A cidade era um local tranquilo e apropriado. Os turistasconstituíam uma população flutuante que lhe oferecia sempre umsuprimento infindável de novos amores, de novas paixões.

Ele se levantou, afinal, e foi até o banheiro. Parou diante do espelho.Estava com os cabelos despenteados e a barba por fazer, mas, mesmo assim,era um belo homem, com um rosto digno de figurar em qualquer revistaespecializada de moda ou cinema.

— E então, gostosão? Vamos sair à caça hoje? — perguntou ele,olhando para a própria imagem, iniciando um diálogo onde ele representavaos dois interlocutores.

— Claro que sim... O que vamos ter esta noite?— Estou em dúvida quanto àquelas duas que estivemos observando.— Eu prefiro a loura.— E eu a morena.— Vamos jogar no par ou ímpar?— Claro!Ele fez os movimentos do par ou ímpar, jogando a mão direita contra a

esquerda.— Ganhei — sorriu ele. — Eu escolho. Você vai gostar, pode ficar

sossegado.— Está bem, então surpreenda-me agradavelmente.

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— Não se preocupe. Eu farei isso.Ficou sorrindo e olhando para si mesmo no espelho. Apalpou o rosto,

examinou os olhos, abriu a boca e pôs a língua para fora. Estava em perfeitasaúde e no auge de sua forma física.

— Que acha de dançarmos um pouco hoje à noite, apenas paraprovocá-las?

— Você é um diabinho safado e matreiro — respondeu para si mesmo.— Que posso fazer? Elas caem sobre nós como moscas — afirmou ele,

pensando numa profusão de corpos e peles macias e perfumadas.Ligou a ducha. Tomou um banho rápido, depois barbeou-se e secou os

cabelos. Foi até o guarda-roupa. Escolheu o que iria vestir naquela noite.Olhou o relógio. Naquela hora, todas as noites, ele ia ao Blind Pirate

Inn, olhar as garotas, fazer as suas próximas escolhas, excitar-se, antes devoltar e desfrutar o corpo daquela que mantinha prisioneira.

A noite de uma nova caçada, no entanto, era sempre especial. Era anoite em que conheceria um novo corpo, nova boca, um novo perfume.

Seus dedos experimentariam detalhes novos, novos toques sutis, novasformas e novos formatos. Isso era fantástico para ele e o excitava e atraibrutalmente. Uma atração que poderia durar uma noite, uma semana, quemsaberia dizer ao certo?

Quando passasse, ele já teria novas opções de escolha para fazer. Comaquelas turistas, tudo ficaria mais fácil e ele teria menos problemas que daúltima vez. E se surgissem problemas, ele se mudaria. Não tinha raízes emparte alguma. Sua vida era vagar à procura de prazer e de novas mulheres,sem maiores preocupações. Afinal, alguém com a herança que ele receberanão precisava ter outro tipo de preocupação.

Olhou-se no espelho.— Estamos lindos, não? — comentou.— Perfeitos!— Acho que maravilhosos seria o termo apropriado, não?— Por que não ousamos dizer divinos?Riu, satisfeito. Apanhou a carteira. Abriu-a. Tinha muito dinheiro ali

dentro. Dinheiro e cartões de crédito. O tipo de coisa que impressionava asgarotas.

Guardou-a no bolso interno do paletó e saiu do quarto. Desceu aescadaria até a ampla sala, foi até a cozinha e, dali, para a garagem. Olhou

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seu carro. Passara a tarde polindo-o, limpando-o e perfumando-o. Era umAston Martin novinho em folha, muito mais bonito que o anterior. Um carroque chamava a atenção mais do que qualquer outro importado.

Entrou e ligou-o. Acionou o botão do controle remoto que abriria aporta da garagem. Começou a cantarolar um sucesso dos Beatles e saiu parasua caçada. O carro avançou para a chuva, que caía torrencialmente. Eleligou o limpador e os faróis, depois acelerou forte, descendo pela estradasinuosa e estreita, feita de pedras escorregadias com a chuva. O perigo e orisco era uma bebida que o embriagava totalmente.

Os dois policiais haviam examinado atentamente o conteúdo daquelasmalas. Não restava a menor dúvida que Joan Aberdeen desaparecera poralgum motivo muito misterioso. Suas melhores roupas, suas joias, odinheiro e o cartão de crédito estavam ali, indicando que ela espertavarealmente voltar.

Ninguém deixaria aquelas coisas para trás.— Encontrou a identidade dela, carteira de motorista ou algum outro

documento de identificação, Lester? — indagou ao sargento.— Não. Estranho isso, não acha?— Há uma bolsa de mão aqui, mas está vazia. Significa que ela pode

ter saído para alguma coisa, quando, então, algo lhe aconteceu — deduziu oinspetor.

O seu subordinado levantou os olhos assustados para o chefe. Pelaprimeira vez o inspetor estava trabalhando com a hipótese de que algo sérioacontecera com a garota. Tanto poderia ter sido um trágico acidente, quantoum crime.

— Qual é a sua teoria, inspetor? — perguntou.— Estou pensando, Lester. E você, tem alguma ideia?Lester acendeu mais um de seus cigarros sem filtro, depois foi até a

janela. A chuva continuava torrencialmente. A madrugada seria opressiva eassustadora com todo aquele temporal.

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— As coisas que ela deixou... Não sei, inspetor... Acho, antes dequalquer coisa, que ela não fugiu ao pagamento de sua dívida com aquelelugar. Por algum motivo ela saiu de la e não voltou, talvez nem por vontadeprópria, mas por algum imprevisto... — Sim, como um acidente?

— Exatamente. Já tivemos casos de alguns malucos velejando à noite ese deixando apanhar pela corrente, indo direto para algum dos paredões.

— Tivemos algum comunicado disso ultimamente?— Não, mas em alguns pontos um barco pode ser reduzido a pedaços

tão pequenos que...— Seríamos comunicados se algum barco não retornasse ao seu lugar

na marina.O inspetor-chefe abriu a gaveta e começou a encher seu cachimbo num

saco de fumo. Eram gestos automáticos, enquanto ele pensava.Uma investigação como aquela era complicada, principalmente se

houvesse uma ligação com os outros casos. Threemount sempre fora umrecanto turístico tranquilo. Ele sabia o que uma notícia como aquela poderiaprovocar. Tinha que ter muita cautela ao investigar aquilo.

— Lester, anote aí as tarefas que vamos deixar para a equipe da manhã.Quero que procurem toda e qualquer pessoa que possa ter visto JoanAberdeen nos últimos dias. Quero que perguntem inclusive nas lojas,restaurantes e casas de diversão. Mande verificar também na companhia deônibus e nos hospitais.

— Vamos nos concentrar nela ou vai tentar ligar o desaparecimentodela aos das outras três garotas?

— Vamos nos concentrar nela, é o caso mais recente e alguém poderáse lembrar com mais facilidade. O que acha de fazermos uma ronda pelascasas noturnas agora, apenas para sondar o ambiente e ver que tipo de coisaestá acontecendo? propôs ele, deixando o cachimbo de lado.

— Boa ideia, inspetor-chefe!— Avise a telefonista onde estaremos e vá tirar o carro.Pouco depois estavam no carro. A chuva começava a amainar.— Por onde começaremos?— Pelo principal, o Blind Pirate Inn.— Certo, vamos lá — disse Lester, manobrando o carro para a rua e

dirigindo com cuidado nas pedras escorregadias.

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O inspetor continuava pensativo, como aquele pressentimentooprimindo o peito.

— Você se lembra do último crime de morte cometido aqui emThreemount, Lester? — indagou ao sargento.

— Acho que eu não tinha entrado para a Polícia ainda, inspetor —respondeu o outro. — Acha que temos um caso de crime de morte destavez?

— Estou com um estranho pressentimento aqui, desde o momento queo pai da garota ligou. Não sei explicar o que é, mas sei que isso me assustamuito.

— Ora, inspetor, se for apenas um crime de morte...— Apenas um crime de morte, Lester? Uma pessoa morre, pode

entender exatamente o que significa isso?Lester bem que tentou, mas quando outra pessoa morria, ele nada

sentia. Era a outra que perdia a vida, não ele. Não via como pôr-se no lugardela.

O volume alto em que era tocada a música provocava reações nos

corpos dos dançarinos, levando-os a uma espécie de histeria, onde osmovimentos tentavam acompanhar o ritmo rápido e alucinante.

Ele tinha um jeito todo especial de dançar e Susan não resistiu,aproximando-se dele e oferecendo-se como parceira. Ele sorriu e passarama dançar juntos. Ela procurou ser o mais sensual e provocante possível,principalmente quando viu, na mesa, os olhares cheios de inveja de Mary ede Dora.

Ele a tomava nos braços, roçavam seus corpos lubricamente, depois elea soltava e fazia rodopiar. Susan sentiu-se em um delicioso e excitantecarrossel, vibrando intensamente aquela presença máscula que despertava aatenção e provocava inveja nos homens e nas mulheres ao redor.

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O casal tornou-se o centro das atenções e Susan entregou-se à volúpiadaquele momento com um prazer jamais experimentado antes. Havia algode selvagemente sedutor naquele homem. Talvez a maneira como ele aolhava, como a segurava e apertava ou como roçava seus lábios na peledele, quando se abraçavam, sempre no ritmo e no compasso da dança.

Quando aquela seleção terminou, para decepção de Susan, ele asegurou pela mão, levando-a para a mesa dele. Uma mesa que permaneciacom uma plaqueta de reserva, mesmo quando ele se atrasava para chegar.

Apenas uma pessoa muito especial poderia ter um tratamento tãoespecial.

— Você dança muito bem — falou ele e ela apenas entendeu porqueleu nos lábios dele.

A música alta impedia qualquer conversa. Ela desejou que ele aconvidasse logo para saírem dali.

Ele sorria e, agora, estava todo concentrado nela, olhando só para ela,segurando a mão dela de um modo todo especial e carinhoso que a fazia sesentir a mulher mais importante do salão.

Ela não cabia em si de contente. Vencera as suas amigas na disputa poraquele bonitão e gostosão.

Ele, por seu turno, não cessava de admirar sua nova conquista. Erajovem, como todas as outras, entre dezenove e vinte e um anos, como elegostava, novinhas, tenras, prontas para o abate.

Elas julgavam saber tudo sobre sexo e paixão, mas nada sabiam. Eletinha de ensiná-las o tempo todo como agir na cama com um homem.

Aquela não fugiria à regra. Tinha um corpo rijo, coxas sedutoras,ventre liso, seios que não oscilavam como geleia quando ela dançava. Tinhao corpo ideal e nisso ele era exigente. Nada de celulite ou sobrasindesejáveis. A pele tinha de ser perfeita também. O bom gosto na escolhada roupa e do perfume também era outro detalhe importante.

Por isso cada seleção era demorada. Tinha de ter paciência. Sabia quemuitas eram as candidatas, mas poucas seriam as eleitas em sua exigentepreferência.

Ele fez um sinal para ela, dando a entender que a convidava parasaírem. Ela sorriu, concordando. Aquilo era o que ela mais desejava. Eledeixou uma nota de cem na mesa, após acenar para o garçom. Tomou-a pela

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mão e levou-a na direção da porta. Susan seguiu-o mansamente, todaorgulhosa. De passagem olhou com ar superior na direção das amigas.

Quando saíram pela porta, trombaram nos dois policiais que haviamcorrido do carro estacionado na frente para a entrada. Ele recuou, encarandoo inspetor-chefe.

— Mil perdões! — disse o inspetor, olhando-o fixamente, depois agarota com ele. — Devíamos ter usado o guarda-chuva, mas preferimoscorrer...

— Não foi nada, policial — respondeu ele, ficando todo atrapalhado.Não gostava de policiais. Não gostava de gente de uniforme, como

aqueles dois que olhavam para ele e para a garota agora. Eles estavamgravando o rosto dele. Sabia disso. Aquela conquista estava perdida. Nãopodia sair com aquela garota. Não podia sumir com ela, não naquela noite.Se houvesse alguma coisa, eles se lembrariam do rosto dele. Eram policiais.Tinham treinamento para isso.

Era um homem cuidadoso. Estava impune até então justamente porisso. Nunca facilitava. Nunca deixava nada ao acaso. Sempre jogava nacerteza.

Os policiais haviam entrado. Ele precisava adiar a conquista daquelanoite.

— Acabei de me lembrar... Não vou conseguir chegar a minha casahoje — disse ele. — Caiu uma barreira lá perto, com a chuva, assim que eupassei. Tenho de ir avisar... A gente se vê depois — falou ele, deixando-aali, parada, enquanto se afastava.

A garota tentou detê-lo, mas ele já havia se afastado na chuva,correndo na direção do estacionamento.

Ela ficou ali, parada, pensando em como fazer para voltar para juntodas amigas e explicar o fora que havia levado. Acendeu um cigarro,fumando-o até o fim. Os dois policiais saíram do clube pouco depois.

— Perdeu a companhia? — indagou Lester.— Sim, houve algo e ele teve que ir resolver — informou ela.— Melhor sorte na próxima vez — falou o sargento, pensando em

como havia gente de sorte no mundo, com dinheiro e presença para dormircom garotas tão interessantes como aquela.

A chuva havia amainado e apenas chuviscava agora. Susan continuouali, parada, esperando, apenas dando um tempo.

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A chuva parou definitivamente. Ela percebeu que, para os lados domar, as nuvens escuras já deixavam passar raios de lua. Em breve o tempoestaria limpo, o que era incrível naquela região.

Ficou olhando naquela direção, olhando os reflexos prateados quedavam um aspecto poético à cena.

Consultou o relógio. Ainda era cedo para ir embora. Poderia surgiralguma coisa naquela noite ainda. Decidiu retornar.

A pista de dança estava cheia. A música era lenta e em surdina agora.Ela fez um ar de cansaço e satisfação, quando se sentou à mesa, entre Dorae Mary, que a olhavam surpresas.

— Já? — indagou Mary.— Foi apenas uma rapidinha, no carro dele, para sentir o material —

mentiu Susan, com um ar de convencimento.— Sério? E como é ele?— Fantástico! Vamos nos encontrar amanhã para alguma coisa mais

demorada — continuou ela, com ar de superioridade.— Ele é mesmo tão gostoso quanto parece? — insistiu Dora.— Melhor... Que lábios, gente! Que lábios! E o resto, então! —

exclamou, revirando os olhos e estalando a língua, deixando as duas mortasde inveja.

— Se eu fosse você, juro como ia para casa e não fazia mais nada a nãoser pensar nele — falou Dora.

— Não é tão importante assim. Ele foi embora, mas eu tenho o resto danoite. Alguma coisa nova?

— Sim — disse Mary. — Tem três rapazes que estão ansiosos paravelejar logo pela manhã. Estamos pensando em sair direto daqui para obarco deles. O que me diz de um passeio de barco no fim da madrugada?Segundo eles, o tempo logo estará limpo e o mar estará maravilhoso.

— Como são eles? — indagou Susan, interessada.— Muito bonitos e bem apessoados. Uns gatos! Você vai adorá-los. O

que me diz?— Parece-me tentador...— Estamos pensando em ir apanhar os biquínis e logo mais e encontrá-

los no cais às seis da manhã. Se estiver interessada, estaremos lá —explicou Mary, saindo para dançar.

— Vamos nessa, vai ser sensacional — ajuntou Dora.

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— É claro que vou nessa. Acho que vou já para casa trocar de roupa epôr o biquíni. Vou precisar me depilar um pouco lá embaixo, entendeu?Relaxei, com o fim do verão.

A outra riu. Susan apanhou sua bolsa e saiu. Havia paradodefinitivamente de chover. O luar vinha avançando pelo mar, na medida emque as nuvens escuras passavam. Seria um ótimo programa aquele. Adoravavelejar.

Só quando estava se aproximando daquele local foi que se lembrou dasensação de que alguém a observava. Parou, hesitando.

— Diabos, Susan! Foi só uma impressão — murmurou ela, consigomesma.

Se voltasse e fosse por outro caminho, teria de andar bem mais.Cortando pela rua entre a igreja e o cemitério em pouco tempo estaria nobloco de chalés onde morava.

Começou a caminhar. A noite estava fresca, quase fria, mas o luar queavançava pelo mar tornava tudo mais tranquilo e menos assustador. Asárvores estavam bem desfolhadas após o vendaval, mas seu aspecto nãoassustava ainda.

Começou a cantarolar, pensando no misterioso homem daquela noite.Era um gato mesmo, lindo de morrer. Só não conseguia entender o que oassustara. Teriam sido os dois policiais? Haveria algo de misterioso em suavida?

Achou delicioso pensar dessa forma. Reforçava aquela aura de mistérioque havia ao redor dele.

Passava entre os fundos da igreja e o portão do cemitério. Talvez sedeixasse levar pela impressão anterior, mas algo incomodou-a, como sealguém a observasse.

Olhou ao seu redor. Havia apenas um carro novo, reluzente,estacionado do outro lado da rua, com alguém dentro. Incomodou-se comisso. A pessoa estava imóvel e não olhava para ela. Mesmo assim ficouperturbada. Apressou o passo, escorregando nas pedras lisas.

Foi deixando aquele veículo para trás e se aproximando dos chalés. Sóentão olhou para trás. Viu que os faróis do carro se acendiam e elecomeçava a avançar lentamente na direção dela. Apressou ainda mais opasso. O carro vinha sem pressa, mas ela estava assustada.

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Sentiu vontade e gritar. Viu os primeiros chalés. O carro ainda estavalonge. Daria tempo. Correu. Chegou esbaforida.

Entrou e trancou a porta, ficando encostada nela, atento ao ruído dequalquer veículo lá fora. Tudo estava em silêncio e ela respirou aliviada,sentindo-se em segurança.

Estava com o coração aos pulos. Pensou no convite feito por Mary.Teria de trocar de roupas e sair à rua de novo. Acho que já tivera emoçõesdemais para uma só noite. Mary e Dora que a perdoassem, mas com certezaela seria péssima companhia naquela manhã.

Ele havia parado o carro e desligado. Ficou ali, olhando na direção dochalé, onde a vira entrar.

— Então é ali que ela mora — comentou consigo mesmo. — Por quenão vamos até lá agora mesmo e a levamos para casa?

O desejo latejava em seu corpo. Quando se afastara dela, assustadocom os policiais, ficara no carro, olhando-a, observando-a. Havia feito suaescolha. Havia feito os preparativos. Não podia adiar. Precisava delanaquela noite mesmo.

Viu-a por um longo tempo lá fora. Esperou que ela resolvesse irembora para segui-la. O tempo não fora desperdiçado. Pensou que ela oreconheceria, quando passasse por ele na rua, mas isso não aconteceu.

Não quis tentar nada ali. Ao lado da igreja havia outro carroestacionado e um casal fazendo amor lá dentro. Poderia chamar a atençãodeles, por isso esperou que a garota passasse, depois seguiu-a para ver ondeela morava.

Agora estava tudo perfeito. Podia ir até lá e pegá-la, dandocontinuidade a seus planos.

Estava se preparando para descer do carro, quando as luzes seacenderam num chalé próximo do dela. Alguém abriu uma janela e olhou océu. Depois uma porta foi aberta e um rapaz pôs uma prancha de surfe parafora.

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Outras luzes foram se acendendo em outros chalés. Era uma turma desurfistas, que não queriam desperdiçar nem um minuto do precioso tempo.

— Maldição! — murmurou ele, sentindo a frustração provocarcomichões em seu corpo.

Precisava daquela garota. Queria aquela garota, mas nada poderia fazeragora. Os chalés acordavam um após outro. Gente começava a circularentre eles, mas o sol ainda demoraria a sair.

Tinha apenas de consolar sua impaciência e esperar que os surfistassaíssem. Depois era só ir até lá.

No chalé, Susan certificou-se de que as portas e janelas estavam bemtrancadas, depois apanhou uma garrafa de gim e serviu uma boa dose.

Estava assustada ainda com o que acontecera. Mary podia ter razão,fora apenas uma sensação ou uma impressão, mas não conseguia deixar dese sentir assustada.

Suas mãos tremiam ao levantar o copo até os lábios. Batidas na portafizeram-na estremecer e derrubar parte do gim no assoalho.

— Que susto! Quem poderá ser? — exclamou, estremecendo, enquantoas batidas se repetiam.

Olhou ao redor, procurando uma arma. Lembrou-se de uma faca decozinha na pia. Foi apanhá-la. Aproximou-se da porta, segurando firme ocabo da arma.

— Quem é? — indagou ela, tremendo.— Meu nome é Victor Master, nós nos conhecemos hoje no Blind

Pirate Inn.Ela ficou surpresa, escondendo a faca às costas.— Como me achou?— Perguntei a uma daquelas suas amigas onde você morava... Tentei

voltar para casa, mas não consegui. Não pode me arrumar um lugar paradormir até limparem a estrada?

Ela sorriu envaidecida com aquilo. Num gesto de pura vaidade, correuaté o espelho e olhou-se. Levou a faca de volta à cozinha. Estava muito

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excitada com a presença dele ali. Aquela noite iria terminar melhor do queela esperava.

Foi abrir a porta, finalmente. Ali estava ele, belo, másculo e sedutor,vestido com elegância, certo ar desprotegido e tenso no rosto de uma belezaindescritível.

Ele sorriu e seus olhos fixaram-se nos dela. Susan sorriu em resposta.Ele mediu o corpo dela com um olhar que era atrevido e excitante aomesmo tempo, dominador e possessivo, provocando nela um arrepio detesão.

— Posso entrar? — indagou ele.— Como não? — respondeu ela, certa de que não teria forças para

negar nenhum dos pedidos dele.Afastou o corpo e ele passou por ela. Usava um perfume másculo e

perturbador que ficou nas narinas dela após aquela passagem. Ela fechou aporta e apoiou as costas nela. Ficou olhando aquele homem fascinantedentro de seu chalé. Era bom demais para ser verdade.

— Belisque-me! — disse ela.— Por quê? — indagou ele, com um sorriso sedutor nos lábios

carnudos e sensuais.— Para que acreditar que não estou sonhando...— Que tal isto? — falou ele, aproximando-se e inclinando a cabeça

para beijá-la suave e sensualmente.Ela sentiu todo o seu corpo se arrepiar. Respirou fundo, num suspiro,

quando ele se afastou e ficou olhando para ela, com um sorriso atrevido noslábios tentadores.

Ela passeou pela sala, examinando o ambiente, depois foi se sentar nosofá. Por instantes Susan ficou parada, olhando aquele homem de maneiraselegantes e educadas.

— Quer beber alguma coisa? Eu ia tomar um pouco de gim.— Não, não quero beber, mas fique à vontade se quiser...— Bem, agora não sei... — atrapalhou-se ela, ainda parada no mesmo

lugar.— Por que não vem se sentar aqui? — indagou ele, apontando o lugar

ao lado dele, no sofá.Ela sorriu. Não conseguia fugir ao fascínio daquele rosto, daqueles

olhos e daqueles lábios. Ficava olhando para ele e examinando-o, enquanto

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ele sorria convidativamente.— Venha! — insistiu ele.Ela se aproximou e se sentou ao lado dele. Ele passou o braço pelos

ombros dela. Susan aninhou-se instantaneamente no peito dele, com o rostoerguido, olhando-o de perto agora.

— Você é muito bonita! — disse ele, acariciando o rosto e o pescoçodela de um modo carinhoso, mas possessivo e excitante.

Sua mão não se deteve. Continuou descendo, penetrando pelo decoteda blusa, buscando um dos seios. Susan ofegou, sentindo o toque gentil ecarinho daquela mão ardente.

Sua pele arrepiou-se inteiramente. Ele sorriu, sentindo isso em suasmãos. Puxou-as para mais junto de si. Ela fechou os olhos e ofereceu oslábios.

— Você é tão gostoso! — murmurou ela, num sopro excitado de voz.— E você é tão macia... Tão tenra... — respondeu ele, tentando conter

aquele desejo violento dentro dele.Ter o seio dela em sua mão dava-lhe vontade de apertá-lo, até que ela

gemesse de dor e protestasse. Queria ver lágrimas nos olhos dela, quandomordiscasse seu pescoço e ao redor dos mamilos, deixando ali as marcas deseus dentes.

O prazer de ter um novo corpo junto de si o deixava trêmulo eemocionado. Foi aproximando seus lábios dos dela, lambendo-ossensualmente, esfregando sutilmente seus lábios nos dela.

A garota derretia-se toda junto dele. Sua mão apertou com um poucomais de força o seio dela.

— Ai, assim você me machuca! — disse ela, toda dengosa.— Mas é para machucar mesmo — respondeu ele, esfregando seus

lábios nos dela.Susan abriu os olhos, encarando-o. Tentou se afastar, mas ele a segurou

pelos cabelos, mantendo-a imóvel.— O que está havendo? — indagou ela, assustada.Ele a golpeou curta e secamente no pescoço, quase junto à nuca e ela

desfaleceu.

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Os primeiros raios de sol começaram a entrar pela janela, iluminando o

quarto. A garota estava deitada na cama, nua, desacordada. Ele tambémestava nu, só que encolhido num canto, segurando os joelhos com osbraços, cabeça baixa, prestando atenção nas vozes que gritavam em seuouvido. Ele tentava entendê-las, mas não conseguia. Elas falavam aomesmo tempo.

— Parem! — gritou ele, tampando os ouvidos com as mãos.Levantou-se num salto e caminhou de um lado para outro do quarto,

sem olhar para o corpo da garota sobre a cama. Começou a cantar algumacoisa, de modo ininteligível. Foi elevando a voz, até terminar gritando.

As vozes, porém, soavam mais alto. Ele apertava os ouvidos com asmãos. Seu rosto refletia desespero. Ele saltou para cama da cama e aninhouseu corpo junto ao da jovem, puxando o braço dela para cima de si.

Ficou quieto, bem quieto, sentindo-se protegido com o braço delasobre seu corpo. As vozes foram se aquietando. O perfume da garotacomeçou a penetrar suas narinas, afastando as vozes e o desespero,despertando o desejo. Ele sentiu o calor dela, suas formas insinuantes ejovens junto ao seu corpo.

Sua mão percorreu o corpo dela. Ele se ajoelhou ao lado dela.Respirava pesado quando se inclinou sobre ela e foi cheirando todo o corpodela, como um animal, farejando, sentindo, excitando-se.

Estava no auge de sua ereção, quando acomodou melhor o corpo dela,afastado as pernas torneadas para os lados. Deitou-se sobre a jovem.Procurou a melhor posição.

Nesse momento ela acordou, sem entender o que estava acontecendo.Debateu-se, empurrando-o para fora dela e para longe. Girou o corpo sobrea cama. Saltou e correu para a janela. Ele ficou no leito, olhando-a comdesejo.

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— Eu sei como é... É sempre assim... Você vai reagir... Gosto disso...Depois vai ceder... Vai me amar...

Susan começava a se conscientizar do que estava acontecendo.Lembrava-se dele, em seu chalé, mas como viera parar ali? E por que ele aestava forçando daquela forma, machucando-a.

Notou que estava nua. Procurou por suas roupas. Cobriu-seprecariamente com as mãos e com os braços. Ele começou a rir, sentando-sena cama, exibindo sua masculinidade sem qualquer pudor. Ela evitou olhá-lo.

— O que está fazendo comigo? Por que estou aqui?— Está aqui para me amar — respondeu ele, com naturalidade.— Como vim parar aqui... Você me bateu? — continuou, sentindo uma

dor enorme no pescoço.— Foi só um carinho — disse ele, deitando-se de costas e olhando para

o teto.Susan olhou a janela. Podia ver a cidade não muito longe. Depois

olhou a porta. Ele parecia distraído, olhando o forro do quarto. Ela correupara a porta. Tentou abri-la, mas foi inútil. Ela estava trancada.

Esmurrou e chutou a porta, começando a soluçar. Ele riu atrás dela.— Eu não disse que você iria reagir no início? — falou ele, saltando da

cama e caminhando na direção dela.Ela correu para o outro lado do quarto. Ele continuava rindo e aquele

jogo o excitava brutalmente. Ele via o corpo dela se movimentando.Adorava aqueles movimentos. Adorava ver aqueles seios firmes apenastremerem quando ela corria. As coxas e as nádegas não balançavam comobolsas de banha. Eram firmes e elásticas, enchendo seus olhos com a belezaplástica e artística de seus passos em fuga.

Os olhos dele brilhavam de contentamento.— Quer que lhe diga o que vou ter que fazer? — indagou ele, voltado a

se sentar na cama.— Quero que me deixe ir embora, por favor!— Você queria ficar comigo, não queria? Por que mudou de ideia...— Não pensei que seria assim...— E como pensou que seria?Ela não conseguiu responder. Soluçou mais alto. Sua voz embargou-se.

Ela se apoio contra um móvel, encolhendo-se e sentando-se. Sentiu o corpo

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todo abalar-se por uma vertigem.— Volto a perguntar: quer que lhe diga o que vou ter que fazer?— Não! — falou ela, num soluço. — Só quero que me deixe ir embora.Ele saltou da cama e correu até onde ela estava. Foi tão ágil e

inesperado que ela nem teve tempo de se erguer. Ele se ajoelhou diante delae segurou-a pelo queixo, olhando-a nos olhos, bem de perto.

— Eu vou ter que bater em você... Bater muito, sabia? Bater até vocêse convencer que desejo apenas amá-la, sabia? Não quero mais nada...

Ela ficou olhando pateticamente para ele. Poderia acreditar nele se amão dele não apertasse com tanta força, fazendo doer seu queixo.

Ele a soltou. Recuou até a cama. Sentou-se e ficou olhando para ela.— Preciso ir ao banheiro — pediu ela, sentindo-se mal.— Há uma vasilha sob a cama.— Não... Assim, não...— Terá que se acostumar...Ela continuou onde estava. Ele ficou olhando para ela, fixando seu

olhar nos seios que ela mal conseguia cobrir, depois nas coxas, em parte dasnádegas, na sombra escura que conseguia vir abaixo do ventre dela.

O desejo se manifestava em seu corpo. Já havia esperado demais.Precisava tê-la.

Levantou-se. Aquele seu olhar dizia tudo. Avançou na direção dela.— Não, por favor! — suplicou ela, encolhendo-se ainda mais.— Como eu disse, querida! Vou ter que bater em você — falou ele.— Não... Não precisa bater... Eu prometo ser boazinha... Mas não me

machuque...Ele sorriu sadicamente.— Você não entendeu a brincadeira... Eu preciso bater em você,

entendeu? Eu gosto... Me dá prazer... A sua dor me alegra e me excita,percebe? Eu gozo com isso — disse ele, estendendo as mãos e segurando-apelos cabelos.

Quando ia levantá-la, as vozes explodiram em seus ouvidos como se osom de mil alto-falantes fosse ligado em potência máxima. Ele recuou,levando as mãos aos ouvidos e apertando-os.

— Não! — urrou ele e a garota jamais vira um som tão animalesco eaterrorizante como aquele.

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Viu, então, algo rebrilhando no pescoço dele. Era uma chave. A chavedo quarto, presa numa corrente.

Ele girava pelo quarto, como se estivesse tentando fugir a um enxamede abelhas ou a um ataque qualquer. Começou a agitar os braços e a baternas orelhas insanamente. Ela se ergueu lentamente. Esperou o momentocerto, depois correu. Bateu a mão na chave e puxou-a. Correu para a porta etentou abri-la.

Ele chegou por trás, puxou-a com força pelos cabelos e bateu o punhofechado na garganta dela. Ela caiu pesadamente, tentando respirar, gemerou pedir ajuda.

Ficou se debatendo no chão, com uma das mãos na garganta e a outrana boca, tentando aliviar a pressão da traqueia bloqueada. A cartilagemhavia sido amassada pela força do golpe. Ela morreu em desespero,enquanto ele lutava com as vozes.

De repente, tudo ficou em silêncio. Ele parou no meio do quarto,olhando para o corpo imóvel da garota, percebendo o que havia acontecido.

— Oh, não! — murmurou ele. — Oh, não! — repetiu, indo se ajoelharao lado dela e tomar a cabeça dela, pondo-a sobre suas coxas.

Olhou penalizado para os lábios azulados da garota, para seus olhosarregalados e assustados e soluçou. Começou a chorar.

— Toda esta beleza desperdiçada... Como pôde fazer isso comigo? Eua teria amado tanto... Há muito amor em meu coração e tudo isso euprecisava dar a você...

Continuou chorando. As lágrimas caíam de seus olhos e pingavamsobre o corpo dela. Abraçou-a. Beijou desesperadamente os lábios dela,enquanto acomodava o corpo da garota no assoalho. Lentamente foi sedeitando sobre ela.

O carro percorria velozmente as ruas ainda molhadas, após a chuvadaquela madrugada. Passaram entre os fundos da igreja e a entrada docemitério. Mary se lembrou, por instantes, do que Susan lhe dissera na noiteanterior, sobre a sensação que tivera naquele local.

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Nada havia ali de anormal, agora, à luz do dia. ã noite, com aquelasárvores descarnadas e a construção antiga, tudo podia ser diferente eimpressionar realmente.

Deixou isso tudo de lado, no entanto. A preocupação dela agora era sedivertir. Haviam esperado por Susan no cais, mas ela não aparecera. Comoeram três rapazes e apenas ela e Dora, convenceu-os a irem ao encontro deSusan.

— É ali — apontou ela.O rapaz manobrou o carro, estacionando diante do chalé apontado pela

garota.— Ela deve ter adormecido. É só um minutinho e eu vou acordá-la e

convencê-la a ir conosco — falou Mary, alegremente, saindo do carro.Foi até a porta do chalé. Quando ia bater, percebeu que a porta estava

entreaberta. Empurrou-a, chamando pela amiga. Como não obteve resposta,escancarou a porta e foi até o quarto.

Voltou no instante seguinte. Chamou de novo. Olhou a cozinha e apequena área de serviço. Depois foi conferir no banheiro. Dora fora sejuntar a ela.

— E então, onde está aquela preguiçosa?— Não está. Sumiu.— Como assim? — quis saber Dora, deixando que o sorriso se

apagasse em seus lábios.— Não está. Deve ter ido para o cais por outro caminho. Saiu com

tanta pressa que deixou até a porta aberta. Venha, vamos achá-la.Voltaram para o carro.— Ela já foi. Vamos pelo outro lado agora. Vamos achá-la no

caminhou ou, então, ela deve estar nos esperando. Ontem, ela sentiu umassensações quando passou por esta rua. Deve tê-la evitado hoje...

— É foi isso mesmo — lembrou-se Dora. — Vou fazer a maiorgozação com ela.

Seguiram pela outra rua agora, na direção do cais. Mary pediu quefossem devagar, pois esperava encontrar a amiga ainda a caminho.

Aproximaram-se do cais novamente, sem tê-la encontrado. O rapazestacionou o carro, olhando para Mary.

— E agora? — indagou.— Pode ter parado para alguma coisa... — ponderou a garota.

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— Vamos esperar mais alguns minutos — propôs Dora.— Certo. Enquanto isso, vamos ver se está tudo preparado no barco —

falou o rapaz que dirigia o carro.Desceram todos eles. Os rapazes foram para o barco. Mary e Dora

ficaram na rua, esperando pela amiga. Os minutos se passaram.Mesmo se Susan tivesse vindo a pé pelo caminho mais longo, já

deveria ter chegado. As duas se olhavam nervosamente a todo momento.— O que acha que pode ter acontecido? — indagou Dora, incomodada

e nervosa.— Como vou saber? Já era para ela estar aqui... Não entendo... E

aquela porta aberta daquele jeito... Susan deveria tê-la trancado, quandosaiu. Ninguém tem tanta pressa assim...

— Você está me deixando cada vez mais nervosa, Mary. Acho quedevíamos fazer alguma coisa.

— Que tal irmos à Polícia?— Eu acho melhor.— Vou falar com os rapazes e pedir uma carona. Seja como for, eu

prefiro perder o passeio a abandonar uma amiga — afirmou Mary.

O inspetor-chefe havia acabado de tomar um banho. Sua esposa haviapreparado um delicioso e reforçado café da manhã. Ele iria comer e depoiscair na cama e dormir até a tarde. Já estava de pijama e sentado à mesa,quando o telefone tocou.

Olhou para a esposa. Aquele pressentimento era mais certo e presentedo que nunca.

— Digo que já está dormindo?— Não, eu atendo — decidiu ele, indo até o telefone.Era Lester, igualmente pego de surpresa antes de chegar em casa por

alguém da equipe da manhã.— O que houve, Lester? Devia estar dormindo numa hora dessas... —

comentou, estranhando.

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Lester o trouxera para casa e deveria ter ido dormir também, a menosque alguma coisa tivesse acontecido.

— Acho que já dormimos o suficiente, inspetor. Alguma coisaaconteceu ainda há pouco. Uma garota desapareceu.

— Como pode ter certeza disso?— As amigas dela estão aqui e afirmam que a conhecem o suficiente

para dizer isso.— Mande alguém com o carro me buscar — disse ele, olhando para

sua esposa.Imediatamente ela começou a preparar um sanduíche reforçado,

embrulhando-o em papel alumínio. Pôs chá com leite numa pequena vasilhatérmica. Quando o inspetor-chefe desceu, já uniformizado, ela estendeu olanche acomodado dentro de um saco de papel.

Pela expressão do rosto dele ela percebeu que alguma coisa muito sériaestava acontecendo.

— Há guardanapos de papel aí dentro. Promete que vai comer nocaminho?

— Sim, claro, querida. Obrigado! — agradeceu ele, beijando-a.Foi para frente da casa esperar sua condução. Começou a comer o

sanduíche. O carro passou logo depois. Ele foi levado para a Chefatura comaquele pressentimento tornando-se cada vez mais opressivo em seu peito.

Não era uma sensação nova para ele. Já a experimentara muitas vezesquando trabalhava em Londres, na Scotland Yard, e se envolvia em casos deassassinato. Em nenhuma das vezes sua intuição lhe falhara. Cansara-se depassar por aquilo, por isso saíra de Londres e procurara um local tranquilo.

Sabia, no entanto, que era apenas uma questão de tempo, até queThreemount começasse a ser vítima dos mesmos problemas que assolavamas cidades grandes.

A violência era como uma erva daninha que se espalhava lenta econstantemente em todas as direções. Threemount não seria exceção. Nãohavia exceções para esse tipo de coisa.

Pouco depois estava em sua mesa, olhando aquelas duas jovens quetorciam nervosamente suas mãos e olhavam-no com ar aflito, como se ele, opolicial, o inspetor-chefe tivesse um poder mágico capaz de responderimediatamente suas perguntas e aplacar seus temores.

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Não sabia que um policial era apenas um ser humano com armas etreinamento, mas cheio de falhas, por ser humano, e tão vulnerável àangústia e à dor como um cidadão comum.

— Antes de qualquer coisa, garotas, quero que sejam muito minuciosasno que vão me dizer — disse ele, fazendo um gesto para Lester, queimediatamente ligou um gravador sobre a mesa. — Tenham em mente quealguma coisa está acontecendo nesta cidade. Não vou enganá-las dando-lhes esperanças, mas peço que sejam prudentes e comedidas em seuscomentários lá fora. Não queremos espalhar o pânico.

As duas garotas se olharam e havia preocupação em seus olhos. Osrapazes atrás delas compartilhavam do mesmo sentimento.

— Contem-me o que houve — pediu o inspetor-chefe.Mary tomou a palavra e contou sobre o programa que haviam

planejado, ainda do Blind Pirate Inn, informando que Susan dissera que irialogo para casa depilar-se. Na hora marcada ela não apareceu. Esperaram porela, depois saíram a sua procura. O chalé estava aberto e não encontraramnenhum sinal dela. Susan jamais fizera isso antes.

— Perceberam alguma coisa anormal no comportamento dela?— Não, estava normal.— Ela já havia alguma vez deixado de comparecer a um programa

como esse que haviam planejado?— Susan? De jeito nenhum — respondeu Dora, enfaticamente. —

Nunca vi alguém com tanta sede de viver, de se divertir, de aproveitar avida.

— Têm uma foto dela aí com vocês?— Não, mas podemos ir até o chalé buscar.— Acho melhor mandar uma equipe especializada — falou o inspetor,

olhando para Lester.— Eu cuido disso — afirmou o sargento.— Alguém pode acompanhá-los até o local?— Eu vou com ele — prontificou-se um dos rapazes.— Ótimo! Alguma de vocês sabe de onde ela era? Tem o telefone da

casa dela, sabe de algum parente?— Não, não sabemos, mas acho que encontrará isso no chalé onde ela

estava.

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— Pensando bem, acho que todos nós devíamos ir até o tal chalé —decidiu o inspetor-chefe.

Chamou logo a atenção dos policiais que nada no chalé havia sido

revirado ou tirado do lugar. Tudo estava em ordem, inclusive a bolsa deSusan estava sobre um móvel, na sala. O quarto estava em perfeita ordem enão tinha sido vasculhado.

— Isso lembra alguma coisa? —indagou o inspetor-chefe ao SargentoLester.

— Lembra o mesmo caso da outra moça, Joan Aberdeen. Nada foilevado. Ela simplesmente sumiu.

Enquanto falava, o sargento examinava a bolsa da garota. Encontrou acarteira de identidade dela. Olhou-a, intrigado.

— Inspetor, não conhecemos esta garota? — indagou ele.— O rosto não me é estranho...— Nós falamos com ela na saída do Blind Pirate Inn, esta madrugada,

lembra-se?— Sim... Estava sozinha. O namorado havia ido embora...— Como foi? — indagaram Mary e Dora, ao mesmo tempo.— Quando chegamos, ela estava com um rapaz muito distinto, mas,

quando saímos, ela permanecia na porta e estava sozinha. Disse que onamorado tivera que ir resolver um problema — explicou Lester.

— Então ela mentiu para nós... — comentou Dora.— Por quê? — quis saber o inspetor.— Porque nos disse que havia saído com esse tal rapaz, mas acho que

estava mentindo, tentando esconder que levara o fora dele. Susan era muitovaidosa.

— E esse rapaz, vocês o conhecem? Talvez tenha visto alguma coisa...— lembrou Lester.

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— Não sabemos o nome dele, mas está toda noite no Blind Pirate Inn.Só que, se ele foi embora, não deve ter visto nada. Agora, inspetor, o queestá havendo na verdade? Pelo que percebi, Susan não foi a primeira moçaa desaparecer, foi?

— Já é o quinto caso relatado — confessou o inspetor. — Só que peçoo máximo sigilo a respeito disso. Estou lhes contando para que sintam como problema é sério. Tudo que se lembrarem pode ser útil, principalmenteporque vocês foram as últimas a vê-la com vida, pelo menos até agora.Vamos interrogar os vizinhos e as pessoas nas proximidades. Alguém podeter visto alguma coisa.

Dora e Mary se olharam, apreensivas.— Ele esteve com mais alguém ontem à noite? — indagou o inspetor.— Não, apenas dançou, depois ficou conversando um pouco com

aquele rapaz e saíram. Ela voltou algum tempo depois. Combinamos de irvelejar. Ela disse que ia para casa mais cedo para se depilar... Como eudisse, ela era muito vaidosa... — contou Dora, soluçando.

— Está bem, fique calma agora. Acho melhor vocês todos iremdescansar. Deixem o endereço de vocês com o Sargento Lester. Eu osmandarei chamar, quando for necessário. Enquanto isso, não saiam dacidade sem me comunicar, está bem? Vamos tentar resolver isso o maisdepressa possível.

Enquanto o Sargento Lester anotava os nomes e endereços das garotase dos rapazes, o inspetor-chefe foi conversar com um dos homens da PolíciaTécnica.

— Alguma coisa, Nigel?— Impressões normais, de diferentes pessoas. Estes chalés são de

aluguel, não vai ser fácil identificar todos os que deixaram suas digitaisaqui. No mais, não há sinal algum de violência. Está tudo em ordem.

O sol brilhava generosamente lá fora. O inspetor sentiu o sono e ocansaço invadirem seu corpo. O policial que havia batido nas casas ao ladoretornava.

— Ninguém viu nada, inspetor — avisou ele. — Parece que ela sumiuno ar sem deixar vestígios.

— Ninguém some assim, tenho certeza — afirmou o policial,caminhando até o carro.

O Sargento foi ter com ele.

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— Peça ao pessoal que feche o chalé e lacre-o, por enquanto, quandoterminarem. Lembre-os das investigações que deixamos anotadas paraserem feitas. Precisamos agilizar os trabalhos. Pressinto algo sério, Lester, enão gosto disso. Depois vamos para casa descansar um pouco. Eu lhetelefone, assim que acordar.

— Está bem, inspetor. Vou cuidar de tudo agora mesmo — falou oSargento.

O inspetor entrou no carro e ficou pensando. Cinco desaparecimentosinexplicáveis e nenhum corpo. Pelo menos os dois últimos tinhasemelhança, indicando certo padrão. O que estaria, afinal, acontecendo?Seriam acidentes, desaparecimentos simples ou algo mais sério?

Para todos os lados que olhava e sob todos os pontos de vista, inclusiveo de sua intuição, acreditava que era algo sério.

Muito sério.

Os policiais de plantão haviam recebido as instruções e um resumo doque estava acontecendo. Dividiram as tarefas entre eles, pois a maior partedo efetivo havia entrado em férias.

— Eu vou verificar no Blind Pirate Inn — disse Florence Dumhome.— Talvez eles conheçam o tal rapaz que saiu com ela.

— Certo. Nós faremos o restante. Vamos nos apressar. Pelo que Lesterme disse, o inspetor-chefe está muito preocupado com o caso. Vamos tentarreunir o máximo de informações possíveis.

Florence apanhou seu bloco de notas e as chaves da sua viatura. Erauma policial acostumada ao trabalho burocrático e a pequenasinvestigações, o que era normal entre eles. Nunca houvera em Threemountnenhum crime mais sério, que demandasse investigações mais acuradas.

Beirava os trinta anos, tinha um corpo um pouco cheio, mas aindaatraente, principalmente pelo rosto bem esculpido, onde se destacavam umpar de olhos azuis e os cabelos ruivos, que emolduravam o conjunto.

Conhecia o pessoal que trabalhava no Blind Pirate Inn e talvez pudesseconseguir alguma boa informação.

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Não demorou a chegar lá. Estavam fazendo a limpeza e Dimpley, oencarregado do bar, estava recebendo um carregamento de bebidas.

— Olá, Policial Florence! A que devemos a honra de sua visita?— Estamos investigando um caso de desaparecimento esta madrugada.

A garota esteve aqui. Segundo dizem, esteve acompanhada de umcavalheiro muito simpático e atraente, por sinal um ótimo dançarino,segundo as amigas dela.

O rapaz riu.— Acho que sei de quem está falando. O nome dele é Victor Master,

tem uma mesa reservada permanentemente conosco. É um milionário boa-vida que está passando as férias aqui.

— Sabe onde encontrá-lo?— Ele alugou a Mansão de Black Hill, sabe qual é, não?— Sim, claro. A que horas começa a chegar o pessoal que trabalha à

noite?— A partir das oito da noite.— Ótimo! — agradeceu ela.Foi para o carro. Já era um bom começo. Identificara a pessoa com

quem a garota estivera na noite anterior. Talvez valesse a pena ir falar comele. Além disso, estava realmente curiosa para conhecer alguém tãosimpático. O trabalho como policial limitava suas atividades sociais. Talvez,naquele caso, pudesse unir o útil ao agradável.

Rumou para Black Hill, uma colina próxima do mar, com uma dasvistas mais interessantes da região, pois ficava à beira da antiga pedreira.Via-se, também, de lá, toda a cidade e a região, enfim. Era uma casa de doispavimentos, num estilo antigo e sólido. Pelo preço que cobravam pelo seualuguel só mesmo um milionário poderia estar morando ali.

E disso não havia dúvidas. Manter uma mesa permanentementereservada no Blind Pirate Inn também não era para qualquer um.

Quando chegou à casa, tudo estava em silêncio. As janelas estavamabertas, mas não viu ninguém. A garagem estava fechada.

Insistiu, batendo na porta, após olhar, por uma fresta na porta dagaragem e ver um carro lá dentro, indicando que o morador deveria estarem casa. Imaginou até que, de repente, a própria garota poderia estar ali,com ele, divertindo-se. Seria interessante descobrir isso. Se ele era tão

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atraente como haviam dito, poderia ter voltado ao baile e trazido a garotapara a casa dele.

Apesar de insistir, ninguém atendia. Já estava desistindo, quando ouviuruídos lá dentro. Bateu de novo.

— Que diabos... — ia praguejando o morador, ao abrir a porta.Quando percebeu que se tratava de uma policial, conteve-se e esboçou

um sorriso sedutor e surpreso.— Desculpe-me! — disse ele. — É que fui dormir tarde e não acordei

muito bem — falou ele, pondo as mãos nos ouvidos e tentando não ouvir asvozes que o haviam acordado, juntamente com o eco das batidas queecoaram pela casa.

— Eu sinto muito incomodá-lo, sou a Policial Florence. Por acaso nãoestá aqui uma garota chamada Susan? — indagou, resolvendo arriscar seupalpite.

Victor empalideceu.— E por que estaria? — retrucou ele, sentindo que as vozes zombavam

dele com seus gritos e lamentações.Apertou com mais força os ouvidos.— Preciso tomar uma aspirina — disse ele, recuando para o interior da

sala.Florence entrou, olhando tudo ao seu redor com atenção, procurando

algum detalhe que pudesse ser significativo. Estava tudo em ordem. O donoda casa, num elegante robe de chambre foi até a cozinha, de onde retornoucom um copo de água e um vidro.

Retirou duas pílulas e tomou-as. Depois guardou o vidro no bolso doroupão. Voltou a apertar os ouvidos. Sentou-se no sofá. Apontou umapoltrona para a policial. Ela agradeceu e se sentou.

— Está sozinha? — indagou ele.— Sim...— Vou preparar um chá... Aceita uma xícara?— Oh, não, não se incomode — respondeu ela. — Não pretendo

demorar.— Por favor, vai ser um prazer para mim! — afirmou ele, sorrindo

sedutoramente.O remédio era infalível. Em poucos segundos conseguia calar aquelas

vozes dentro dele. Já podia respirar melhor e recuperar a confiança.

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Levou a policial até a cozinha. Enquanto enchia a chaleira e a levavaao fogo, quis saber o motivo da visita.

— Esteve com Susan no Fisherman esta madrugada?— Sim, realmente estive. Conversamos um pouco. Eu já não estava me

sentindo bem, por isso disse que iria embora. Ela me acompanhougentilmente até a porta. Estava chovendo muito. Eu fui para o carro e nãomais a vi. Você disse que ela desapareceu?

— Sim, sumiu de seu chalé.— Estranho! Assim, sem nenhuma pista, sem mais nada?— Exatamente. Não se lembra de ter visto alguma coisa quando saiu

do Fisherman?Ele pensou por instantes. Florence reparou como a testa dele vincava-

se, indicando a preocupação dele, dando um charme todo especial àquelerosto másculo.

Era um homem bonito realmente, com um ar maduro e compenetrado,mas uma jovialidade no olhar e no sorriso que a haviam encantado deimediato.

— Agora que mencionou... Havia um carro... Desses importados, tipoesportivo... Havia dois rapazes dentro dele e o carro estava realmente cheiode fumaça... Muita fumaça — inventou ele, imaginando que aquela seriauma boa pista para a policial.

— Pode descrever os dois rapazes?— Bem, os vidros estavam embaçados, mas tinham cabelos curtos,

pelo que percebi...— E o carro, sabe qual era a marca?— Como eu disse, chovia muito naquela hora. Não reparei no carro.

Apenas me chamou a atenção a fumaça em seu interior... Era um carrovermelho. Disso tenho certeza.

Florence estava exultante. Aquela poderia ser uma pista importante.Ultimamente tinham constatado um aumento na utilização de drogas pelosveranistas. Tinha sentido aquela observação dele.

A chaleira apitou. Ele preparou as xícaras. Serviu o chá. Florence atépoderia jurar que ele flertava com ela, o que muito a envaideceu, pois eleera realmente um homem muito interessante.

— Posso fazer uma observação de caráter pessoal? — indagou ele.— Sim, por que não? — concordou ela.

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— Estou aqui em Threemount há mais de um mês e nunca a vi por aí,policial. Estranho que uma mulher tão bonita se esconda tanto — disse ele eela se sentiu arrepiar toda de emoção.

Sorriu, lisonjeada, sem conseguir continuar a conversa. Um galanteiodireto como aquilo sempre a deixava encabulada, principalmente vindo deum homem como ele.

— Costumo ir ao Fisherman — falou ele. — Se aparecer por lá umanoite dessas, poderia me dar o prazer de uma dança?

— Eu danço muito mal...— Não acredito, policial. Vai ter que me provar isso qualquer noite.Ela não sabia o que fazer, de tão emocionada que ficou. Guardou seu

bloco de notas. Tomou o chá, correspondendo aos olhares que ele lhelançava. Se não fosse uma policial e não estivesse a serviço, certamenteesqueceria todos os seus princípios e faria uma loucura.

— Preciso ir. Temos que investigar esse desaparecimento. Foi uma boapista essa que me deu. Poderá ser muito útil...

— Estarei às ordens, se puder ajudar. Se me lembrar de mais algumacoisa eu ligarei, Policial Florence. Por acaso, este é o primeiro caso dedesaparecimento que aconteceu por aqui?

— Por que pergunta?— Porque aconteceu esta madrugada e vocês já estão investigando.

Acho isso incomum...— Na verdade, não é o primeiro caso. Estamos investigando outros e

parece haver certo padrão nesses desaparecimentos.— Realmente? Suspeitam de alguém ou de alguma coisa?— É difícil dizer. Nunca enfrentamos nada assim. Tanto pode ser um

maníaco assassino como uma série de acidentes, o que não seria incomumpor aqui, principalmente porque o oceano tem se comportadoestranhamente nos últimos tempos. Mas não deve ser esse o caso, pois sórecebemos notificação do desaparecimento de garotas desacompanhadas.

— Que trágico, não? Mas... O que se há de fazer. Se surgir algumacoisa, será a primeira a saber — afirmou ele, com um sorriso cativante.

Ela agradeceu. Ele a levou até o carro. Abriu a porta para ela. Acenouquando ela se afastou toda cheia de si depois de toda aquela atenção eaqueles elogios.

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Uma careta de desprezo estampou-se no rosto dele, assim que o carrosumiu de suas vistas.

— Mulher idiota! — murmurou ele, olhando a natureza ao seu redor.O dia estava radiante. Ele voltou para a casa, de onde saiu, pouco

depois, trazendo o corpo nu de Susan em seus braços.Desceu a trilha da pedreira e, sem hesitação, jogou o cadáver lá

embaixo, onde as ondas batiam com violência nas pedras.O mar estava deserto naquele ponto. Havia embarcações, mas todas ao

longe, evitando aquele ponto perigoso da costa, onde arrecifes e ondaspodiam simplesmente ralar uma embarcação de porte, reduzindo-a a palitos.

Ficou lamentando sua má sorte. Aquilo não devia ter acontecido. Susandeveria ter-lhe dado muito prazer e amor, antes de ser descartada. Isso odeixava com sede de amor novamente. Aquela ansiedade para conhecer eexperimentar um novo corpo era intensa e logo tomaria seu corpo deassalto, atordoando-o, juntando-se àquelas vozes que, cada vez com maisfrequência, vinham perturbá-lo.

Susan teria que ser substituída. Só que isso poderia dar na vista agora.Dois desaparecimentos seguidos reforçariam as suspeitas da Polícia.

As vozes começaram a voltar, acusando-o, insultando-o. No inícioeram apenas sons isolados. Depois iam se juntando, muitas delas, em todosos timbres e tons cada vez mais alto, até o deixarem à beira da loucura.

Tratou de voltar rapidamente para casa. Teria de se controlar. Teria deevitar novo rapto. Tinha de resistir àquela fome e àquele desejo. A Políciainvestigava. O melhor a fazer era ir embora.

Parou, a meio caminho entre a trilha e a casa.— Sim, ir embora! — murmurou consigo mesmo.— Tolo! Se for embora agora a Polícia vai suspeitar. Você alugou a

casa por três meses. Como explicaria isso?— Não tenho que explicar nada...— Você foi visto com ela!— Eu a deixei lá. E há os dois rapazes no carro...A partir daí as vozes foram se embaralhando. Todas o alertavam e lhe

diziam o que fazer, mas eram sugestões desencontradas. Ele não conseguiaentender. Apertava os ouvidos, enquanto corria para a casa, abrindo o vidrode pílulas, enfiando logo uma porção na boca, mastigando-as e engolindo-as.

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A cada vez o efeito era menor. A cada vez durava menos. Nãoadiantava aumentar a quantidade. As vozes vinham inexoravelmente gritarem seus ouvidos, enlouquecendo-o, chegando a um ponto em que nãosuportava mais.

Então vinha um silêncio total, impressionante, que o deprimia, que ofazia sentir-se a caminho da morte. Tanto uma quanto outra situação eramdesesperadoras. Por isso gostava de ir dançar. A música alta, muito alta,abafava as vozes.

Mas isso também não durava muito. Precisava de alguém para cuidardele, para tapar seus ouvidos, para embalá-lo e fazê-lo adormecer.

O inspetor-chefe havia passado o fim de tarde lendo todas as anotações

e relatórios preparados pelos policiais que haviam trabalho naquele plantão.Nada de positivo fora acrescentado, exceto aquela indicação do homem queestava com Susan.

Dois elementos em um carro estavam do lado de fora do Fisherman,possivelmente fumando alguma droga. Podem ter visto a garota, nomomento em que ela saia. Era uma presa fácil, principalmente se já haviamfeito aquilo antes.

Não conseguia entender isso. O que levava alguém a se permitir fazeralgo como aquilo? Raptar uma garota, forçá-la talvez e depois sumir comela. Que prazer mórbido haveria nisso? Qual a natureza de uma pessoaassim?

O Sargento Lester, em sua mesa, lia os mesmos documentos, que iaapanhando na mesa do inspetor, à medida que terminava os anteriores.Estava tão confuso quanto seu chefe, que apanhou seu cachimbo, acendeu-oe foi até a janela, olhar a noite que se aproximava.

O céu estava limpo e não havia mais nenhum sinal de tempestade.Apenas seus rastros haviam ficado na terra, marcando a passagem do

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temporal.Árvores desfolhadas erguiam seus galhos para o alto como braços

pedindo ajuda ou garras esperando a vítima. Uma lua enorme começava asurgir no horizonte.

— Eu gostaria de morrer numa noite como esta — comentou ele,baforando seu cachimbo.

O sargento ergueu para ele seus olhos surpresos.— Desejo interessante, inspetor. Por quê?— Não lhe parece uma noite calma e bonita esta que vem chegando?— Poderíamos aproveitá-la mais se não tivéssemos este problema nas

mãos — falou Lester, limpando os olhos cansados com o lenço, depoisacendendo um cigarro. — O pessoal fez um belo trabalho, mas nada designificativo nestes relatórios — afirmou ele.

Levantou-se e foi até a janela, olhar na mesma direção de seu chefe.— Vamos checar todos os carros vermelhos que estiverem na cidade?

— comentou o sargento.— Que remédio! É nossa melhor pista até agora.O sargento ficou em silêncio por alguns instantes, depois tragou

demoradamente seu cigarro.— Acha que elas estão mortas, inspetor? — indagou e, enquanto

falava, ia soltando a fumaça do cigarro.— Não sei... Não temos prova nenhuma, mas sinto aqui, nos meus

ossos e nas minhas cicatrizes... Não vamos encontrar essas garotas comvida — afirmou ele, indo até a mesa.

Espalhou sobre ela as fotos das garotas desaparecidas.— Acho que podemos juntar tudo isto aqui num só caso, sargento.

Garotas jovens e bonitas estão desaparecendo em Threemount. E tudoparece ter começado há umas cinco semanas.

O sargento se aproximou da mesa e observou as fotos. Era realmenteuma pena que mulheres tão jovens e tão bonitas pudessem estar mortas.Não conseguia entender também o motivo que levaria alguém a fazeraquilo.

— Tem que ser muito louco mesmo — comentou ele.— Como disse? — quis saber o inspetor, retirando o cachimbo da boca

e batendo-o no peitoril da janela, jogando as cinzas para o lado de fora.

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— Tem que ser mesmo muito louco para fazer mal a garotas tão lindase tão frágeis — explicou ele.

— E nós sabemos como eles podem ser loucos, não? Lembra-sedaquele treinamento de que participou?

— E como, inspetor. Fiquei estarrecido.— Pois podemos estar às voltas com um tipo neurótico como aqueles.— Então vamos ter que trabalhar duro, inspetor. Não é gente fácil de

ser apanhada.— Concordo, Lester. Vamos começar tirando cópias dessas fotos,

Lester. Distribua-as ao nosso pessoal. Acho que devemos organizar umanova escala de trabalho. Veja se localiza os que estão em férias. Peca-lhesque colaborem e se apresentem. Depois compensaremos isso. Quero quefiquem de olho num carro vermelho com dois ocupantes, principalmentenas proximidades do Fisherman.

— Está bem, inspetor. Vou cuidar disso.— E ligue para aquelas duas garotas... Mary e Dora... Pergunte-lhes se

conhecem alguém que tenha um carro importado vermelho.Enquanto o sargento obedecia à ordem, o inspetor debruçou-se

novamente sobre os relatórios e anotações, tentando ver ali algo que poderiater deixado passar.

Começou a procurar um padrão naquilo tudo, além do sumiço sempistas, deixando tudo para trás.

Nada havia de substancial, exceto o fato de todas frequentarem o BlindPirate Inn. Mas quem não o frequentava? Era a casa mais importante deThreemount.

Estava relutante em relação a uma ideia, mas chegaria o momento emque teria de aceitá-la. Não tinha preparo algum para tratar de um casodaquele porte.

Possivelmente fosse preferível que a Scotland Yard assumisse asinvestigações, mas isso envolveria uma decisão política. Teria de falar como prefeito e expor a situação. Se isso acontecesse, a repercussão negativasimplesmente tiraria Threemount do mapa. Ou a colocaria definitivamente,já que o gosto pelo grotesco e pelo mórbido não era tão raro assim.

— Já cuidei de tudo, inspetor. A telefonista vai ligar para o pessoal,convocando-os. Falei com as garotas. Não se lembram de ninguém quetenha um carro vermelho importado, mas prometeram ficar de olho.

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— Já é alguma coisa... — falou o inspetor e sua expressão erasignificativa para seu companheiro.

— O que há, inspetor? O que o incomoda?— Acha que temos competência para um caso como este, sargento?O policial pensou por instantes, antes de responder.— Recebemos treinamento, inspetor. Talvez fosse o caso de revermos

nossos conhecimentos. Tenho aqui em minhas gavetas algum material...— Sim, pode ser uma boa ideia, sargento. Pelo que vejo aqui, o único

detalhe comum entre as garotas desaparecidas é que frequentavam o BlindPirate Inn.

— O que podemos fazer a respeito?— Acho bom mantermos aquele local sob vigilância. Cuide disso

também — pediu ele.

Dora O'Hara torceu para que suas amigas chegassem logo e a vissemali.

O fora que ele dera, na noite anterior, na pobre Susan, demonstrava queele estava interessado em outra garota e tudo a fazia crer que ela fora aescolhida por ele, principalmente porque ele nunca vinha tão cedo.

Naquela noite, quando ela chegara ele já estava em sua mesa. Mal a viupassar, levantou-se e foi chamá-la. Dora não teve como recusar. Ficoumaravilhada. Se contasse depois, ninguém acreditaria, por isso disfarçou,dizendo que ia ao banheiro, e foi pedir à garota que tirava as fotos no salãopara que fotografasse os dois, mas de uma forma que ele não percebesse.

— Faço de contas que estou tirando de alguém por perto, está bemassim?

— Perfeito! — concordara a garota.Apresentaram-se. Ficou sabendo o nome dele, afinal.Tivera um pressentimento o dia todo, mandando-a ir ao Fisherman. O

desaparecimento de Susan a havia abalado, mas o que podia fazer? A vidatinha de continuar. Na certa ela se enturmara com alguém e estava curtindouma nova paixão. Mary se precipitara indo à Polícia.

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— Bebe alguma coisa? — indagou ele, pondo um copo para ela.Sobre a mesa havia uma garrafa de uísque e um balde de gelo. Ela

sorriu, aceitando. Ele serviu o copo para ela. O dele estava servido, mas elenão tomara nenhum gole até então.

— E você, não bebe? — indagou ela.Ele hesitou. Quando bebia, as vozes vinham com mais força,

perturbando-o, ameaçando estourar sua cabeça.A garota levantara o copo e o mantinha no ar agora, esperando pelo

brinde. Ele apanhou seu copo e tocou o dela. Apenas molhou a língua nouísque.

Olhou-a, sentindo-a sua e à mercê de sua vontade. Aquela presa erafácil, muito fácil. Na verdade, todas eram fáceis, subjugadas por aquelemagnetismo animal, por aquela vontade poderosa que parecia saltar dosolhos dele e capturar a presa submissa.

O uísque tivera um sabor novo para ele. Arriscou um gole agora. Acabeça girou. Lembrou-se das pílulas. Tomara cinco, depois que entrara ali.Nunca foram uma boa combinação.

Sentiu pontadas na nuca, subindo para o interior do cérebro, como selhe enfiassem um estilete ali. As vozes começaram a provocá-lo, acusá-lo.Ele ficou olhando para a garota, imaginando que ela poderia ouvir aquelasvozes.

A pista de dança estava vazia. Pouca gente havia chegado. A músicaera suave, quase um aquecimento para o que viria depois. Ele torceu paraque o som forte viesse logo e encobrisse aquelas vozes.

Ela o olhou. Ele tentou se manter natural, mas as vozes gritavam muitoalto. Ele pôs as mãos nos ouvidos, apertando com força.

— Algo errado? — indagou ela, olhando-o com curiosidade.Ele apanhou mais algumas pílulas e mastigou-as, engolindo-as

rapidamente.Manteve os ouvidos apertados até que as vozes começassem a se calar.— Foi só uma dor de cabeça... Desculpe-me! — explicou ele,

mortalmente pálido ainda. — Obrigado por perguntar. Estarei bem numsegundo.

— Tem certeza que não precisa de nada? — insistiu ela, pondo a mãono braço dele.

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Ele sorriu, agradecido, pondo sua mão sobre a dela. Dora tinha dedosfinos, pele macia, acetinada e morna. Ele ofegou, sentindo o desejo crescerem seu corpo. Precisava tê-la. Precisava dela. Não podia exigir muito. Já aobservara nas outras noites. Tinha um corpo bonito, mas não era a maisbonita de todas agora. De qualquer maneira, serviria.

— Já estou melhor, obrigado! — sorriu ele, olhando-a nos olhos,fascinando-a, excitando-a com aquele olhar devorador e possessivo queparecia desvendar os mistérios ocultos naquele coração feminino e frágil.

Ele olhou para o decote na blusa dela. Os seios insinuavam-se. Nãoeram grandes, mas eram firmes. Deveriam ter alguma beleza. Imaginou-avestida apenas de um colar. Um colar de esmeraldas, contrastando com suapele morena. Seria excitante. Ela ficaria deslumbrante.

— Gosta de joias, Dora? — indagou ele.— Adoro joias — afirmou ela.— Estive observando sua pele... Você ficaria linda, vestindo apenas um

colar de esmeraldas — disse ele, bem próximo dela.Sua voz rouca e sensual penetrou os ouvidos da garota como uma

alucinante carícia, fazendo-a arrepiar-se inteiramente. Ela sorriu,envaidecida.

— Você disse vestindo apenas com o colar?— Sim, eu adoraria vê-la assim.Ela sabia que aquela era uma cantada. Um tanto original e charmosa.

Possivelmente milionária. Olhou-o com atenção. Era um homemincrivelmente bonito, com um físico bem cuidado, olhos penetrantes, umperfume sedutor emanando de seu corpo.

Nenhuma garota em sã consciência olharia para um homem comoaquele e não desejaria ir para a cama com ele. Ainda mais vestindo umcolar de esmeraldas.

— Fala sério? — indagou ela.— Sim.— Tem um colar assim?Ele pensou por instantes. Tinha de ser cuidadoso.— Não, mas sei onde conseguir.— Uma amostra?— Não, um presente mesmo.Ela o olhou desconfiada.

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— Vai me dar um colar de esmeraldas de presente?— E por que não? Continuo afirmando que você ficará linda vestindo-

o.Ela o olhava ainda na defensiva, tentando adivinhar se ele falava sério

ou não.— Por que me olha assim? — indagou ele.— Queria saber se está falando a verdade...— Falo a verdade. Se duvida, vou sair agora mesmo e ir buscar o tal

colar.— Então vá.Ele olhou ao redor.— Não me parece um local apropriado para você usá-lo como

combinamos.Ela sorriu, concordando.— O que sugere?— Por que não vai para sua casa? Você me dá o endereço e eu passo lá

para levar o colar.Ela sorriu, agora excitada e provocada. O desafio e o convite eram

irresistíveis. Não podia deixar de tentar descobrir até onde ele iria comaquilo. De qualquer forma, estar com ele já seria um grande prêmio.

— Está bem, vou anotar meu endereço. Quando tempo você vaidemorar para ir até lá?

— Pode marcar em seu relógio. Em meia hora estarei lá.— Estou pagando para ver — desafiou ele.O desejo latejava no corpo dele. Aquela era uma garota apetitosa e iria

lhe dar muito, mas muito prazer. Calaria as vozes. Não deixaria que elasinterferissem desta vez. Seduziria a garota, levando-a para a casa na colina.Uma vez lá, teria dela tudo o que desejava naquela noite. No dia seguinteele continuaria cativando-a de alguma forma.

Tentaria não usar a violência e mantê-la por sua vontade. Quando secansasse dela, aí, sim, daria vazão aos seus instintos mais negros. Era assimque tinha que ser.

Tinha o endereço dela. Sabia que ela ia para casa. Só precisava irbuscar o colar para servir como chamariz. Depois a pegaria e saciariaaquele desejo que transtornava seus sentidos e dava forças àquelas vozesmalditas.

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Depois que ele saiu, Dora correu à procura da fotógrafa, pedindo-lheque revelasse a foto de imediato.

— Preciso de um pouco mais de tempo — disse a outra.— Está bem! — concordou ela, tendo uma ideia marota. — Vou deixar

pago. Pedirei a minha amiga Mary que pegue com você, está bem?A garota concordou. Ela pagou pela foto. Estava exultante. Mary teria

uma surpresa quando a visse na foto com aquele homem adorável. Era umtriunfo que ela gostaria de saborear ao vivo, mas tinha um compromisso. Dequalquer forma, seria um choque para Mary.

Antes de sair, foi ao telefone e ligou para ela.— Como se sente, querida? — indagou.— Estou bem, mas pensando em ir embora amanhã mesmo. Não me

sinto tranquila mais aqui, Dora. E você deveria fazer o mesmo.— Não, agora não posso. Tenho coisas importantes para fazer. Você

não vem ao Fisherman esta noite?— Não, quero ir dormir mais cedo hoje. E você, o que tem de tão

importante para fazer?— Tenho um encontro em minha casa, daqui a pouco, adivinhe com

quem!— Bom, não consigo imaginar quem possa ser. Algum dos garotos do

barco?— Não, nem se comparam com o homem com quem vou me encontrar.

Ele estava de olho em mim há muito tempo. Por isso ele não ficou com apobre Susan ontem... — sugeriu ela.

— Está querendo me dizer que...— Sim, ele mesmo — afirmou Dora, excitadíssima. — Não é

maravilhoso!— Parabéns! É um homem divino. Como conseguiu isso?— Deve ser alguma coisa em meu charme que o cativou.— Convencida!

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— Não fique com ciúmes, querida. Se vier ao Fisherman hoje, faça umfavor para mim. Tirei uma foto com ele. Vai ficar pronta só mais tarde, masele não pode ficar esperando, não é? Se vier, você a pega, por favor? Jádeixei pago.

— Fez isso de propósito, não foi? — repreendeu-a Mary.— Não pude resistir, querida! Ele é o máximo e eu vou para a cama

com ele daqui a pouco. Depois eu lhe conto como foi...— Não quero saber! — protestou Mary, desligando.Dora ficou rindo, enquanto deixava o Fisherman e tomava a direção de

sua casa.A noite estava belíssima. Apesar do temporal da noite anterior, o clima

estava agradável, ligeiramente frio, tornando mais interessante as atividadessob as cobertas.

Um sorriso maroto e atrevido brincava em seus lábios. A excitaçãodeixara-a alegre e ela não via a hora de conhecer de perto, de bem perto,aquele homem que, havia muitas noites, vinha povoando a sua fantasia e ade suas amigas.

Possivelmente a de todas as mulheres que frequentavam o Blind PirateInn.

O inspetor-chefe estava mergulhado novamente no exame daqueles

relatórios todos, mas tinha de reconhecer que o que tinha ali era muitopouco ainda. Em sua mesa, o Sargento Lester estava compenetrando, lendoum livro que recebera em um dos seus treinamentos.

O telefone tocou. Lester deixou de lado a leitura para atender. Era umdos policiais que recebera, naquela manhã, a missão de investigar os carrosimportados vermelhos na cidade.

— Arthur, eu estava quase acreditando que você também tinhadesaparecido, como as garotas — brincou Lester.

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— É o que tenho vontade de fazer agora, depois desse dia todo detrabalho, sargento.

— E então, o que descobriu?— Absolutamente nada. Não há, hoje, em Threemount, nenhum carro

vermelho importado. Pode parecer absurdo? Não, não é. É a pura verdade.Só há carros nacionais. Estive nos postos de gasolina, em todos osestacionamentos de restaurantes e oficinas, abertos durante o dia. Agora ànoite, percorri todas as casas noturnas e falei com todos os manobristas oufiscais de estacionamentos. Ninguém viu um carro importado vermelho.

— Foi um belo trabalho, Arthur, mas não nos ajuda em nada. Pelocontrário, isso nos devolve à estaca zero.

— Eu sinto muito, sargento, mas fiz o que me foi pedido.— Está bem, Arthur, vá descansar agora. Se puder nos ajudar de novo

amanhã, o inspetor-chefe em pessoa lhe agradecerá.— Verei o que posso fazer — disse o outro, desligando.O inspetor olhava ansioso para o sargento, que fez uma careta de

desolação.— Acho que a chuva deve ter confundido o rapaz ontem, inspetor.

Arthur andou por toda a cidade. Não há um carro importado vermelho emFallmouth.

— Maldição! — praguejou o inspetor, reclinando-se desanimado emsua cadeira. — Era nossa melhor pista. Como aquele sujeito poderia ter-seenganado assim?

— Pode ser que esteve aqui só ontem à noite, inspetor. Com a chuva,muito pouca gente notaria...

— Não, não pode ser, sargento. Temos mais de um desaparecimentonessas cinco semanas. Alguém teria de ver esse carro, se é que ele existemesmo.

Ficaram os dois em silêncio, olhando-se por instantes. O sargentoapanhou o livro que lia e abriu na página que deixara marcada com umlápis, quando atendera ao telefone.

— Ouça isto, inspetor! Um psicótico pode sofrer perturbaçõescognitivas e emocionais gravíssimas, tendo alucinações e delírios comfrequência. Pode ouvir vozes ou ver coisas que os outros não percebem.Vive totalmente à margem da realidade, em um mundo próprio e, nesse

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mundo, ele manipula as situações. Disso pode gerar ações perigosas oumortais para as outras pessoas.

— Se me lembro bem, Lester, você está falando sobre o caso clássicode sociopata, não?

— Eu sempre confundo esses termos, inspetor, mas isso não éimportante. O que me chamou a atenção é esta classificação de psicopata,em agressivo-predadores e passivo-parasitários. Das duas, a maisinteressante e perigosa é a primeira. Ouça: os psicopatas agressivo-predadores buscam a satisfação de suas conveniências a qualquer custo,inclusive com agressividade, sendo absolutamente frios e insensíveis.Simplesmente se apossam do que querem. Frequentemente estão envolvidosem série de crimes contra mulheres.

— Sabemos como ele é por dentro, sargento. E como ele seria porfora?

— Inteligente, acima de qualquer suspeita, simpático, agradável,normalmente chama a atenção para seus aspectos positivos, usando-oscomo isca... — interrompeu-se o sargento e ficou pensando, olhando para oinspetor. — Lembra-se do homem que vimos saindo do Fisherman na noitepassada com a garota?

— Sim, o mesmo que viu o carro vermelho que não existe?— Exato! Por que deixaria aquela garota? Para onde foi depois disso?

Será que não marcaram um encontro para depois e ele foi encontrá-la emsua casa, raptando-a?

— Espere um pouco, sargento! Por que está dizendo isso?— Veja o relatório de Florence. Olhe os termos que ela usou:

agradável, prestativo, simpático, cidadão exemplar, disposto a ajudar,receptivo. Ele a encheu de charme.

O inspetor começou a rir.— Pare, sargento! Não tem sentido nenhum isso que está dizendo.— Inspetor, eu acho que ele mentiu.— E com base em que está afirmando isso?— Não sei! Faro, talvez.O inspetor gargalhou sonoramente. Vira aquele homem na noite

anterior. Não tinha absolutamente nenhuma aparência de um psicopata.— Eu jamais suspeitaria de uma pessoa como aquele rapaz —

confessou ele.

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O rosto do sargento ficou sério.— Acima de qualquer suspeita, inspetor-chefe. Acima de qualquer

suspeita — frisou e o rosto de seu chefe ficou sério.— Daqui a pouco vamos fazer nossa ronda, sargento. E vamos

começar pelo Fisherman — decidiu ele.

Dora voltara para casa, tomara um banho discreto de perfume e trocarade vestido, escolhendo um modelo mais ousado e excitante, com umgeneroso decote que deixava à mostra o vale tentador de seus seios jovens erijos.

Olhou-se no espelho. Seus olhos pousaram no colo provocante,imaginando a sensação de ter ali um colar de esmeraldas. Sorriu. Aquelemaluco deveria estar brincando, mas se tentara jogar com ela, iria se darmal.

A expectativa de estar com ele logo mais lhe parecia fantástica. Sabiaque ele era um milionário. Assim, um colar de esmeraldas talvez nem delonge abalasse sua conta bancária ou seu patrimônio.

Sorriu cheia de satisfação, envaidecida ao extremo. Sentia todo o seucorpo tremer de emoção, diante daquele encontro que prometia sermemorável. E rentável.

Isso nem era tão importante. Afinal, não era a primeira vez que umhomem apaixonado a presenteava regiamente. Tinha atributos para isso.

Girou o corpo diante do espelho, observando os seios eretos e rijos, oquadril afunilado e as nádegas arrebitadas. Era jovem, bonita e provocante.Victor lhe parecera um homem refinado, capaz de apreciar e valorizardignamente as virtudes de uma bela mulher.

O telefone tocou, sobressaltando-a. Torceu para que não fosse ele,cancelando o encontro. Felizmente era Mary.

— Pensei que já tivesse saído — disse Mary e havia certa preocupaçãoem sua voz.

— Não, eu o estou esperando. Por quê?

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— Não me leve a mal, querida, mas estive pensando... — começouMary, como se o assunto que tivesse de abordar fosse delicado edesagradável.

— Fale logo, Mary. Ele pode chegar a qualquer momento.— Ficaria zangada se lhe pedisse que não saísse com ele?— Como?— Sim, pelo menos por esta noite, até que tenhamos maiores

explicações sobre o desaparecimento de Susan e...— Mary Reading! — cortou-a Dora, com a voz destilando fúria. — Eu

sabia que você era recalcada, mas não a este ponto...— Por favor, querida, você não entendeu...— Não me chame de querida, está bem? Está com inveja porque não é

você. Vamos confesse! E não quero mais falar com você. Jamais imagineique pudesse chegar a tanto! — arrematou Dora, desligando.

O som de um carro parando lá fora chamou-lhe a atenção e a fez correraté a janela e esquecer a inveja de Mary.

Passou pelo espelho, retocou os cabelos, depois foi abrir a porta eesperá-lo. Ele desceu do carro e foi ao encontro dela.

Por momentos ele admirou aquela beleza atrevida e oferecida, que sepunha a sua disposição para seu prazer.

— Não vejo o colar — disse ela.— Pensei em fazer uma surpresa completa. Por que não vamos até

minha casa? Tenho uma hidromassagem paradisíaca.— Está mentindo para mim.Ele sorriu e se aproximou, tomando as mãos dela entre as suas.— Esta é apenas uma amostra do conjunto — disse ele, pondo no dedo

dela um magnífico anel de ouro, com uma esmeralda lindíssima engastada.Dora ficou fascinada. Ele beijou a mão dele e olhou-a com aquele olhar

sedutor.— Não vale a pena arriscar? — desafiou ele.Ela sorriu, subjugada pelo charme. Ele sabia como convencer uma

mulher.— Vou apanhar a minha bolsa e fechar o chalé — disse ela.— Eu ajudo — prontificou-se ele.Momentos mais tarde, ele a ajudava a entrar em seu impressionante

carro e rodavam na direção de Black Hill. Ele era todo charme e ela estava

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fascinada, sentindo-se a mais feliz das mulheres.O anel era lindíssimo. Ela mal podia esperar para ver o restando do

conjunto.Não demoraram a chegar lá. Cheio de charme e cavalheirismo, ele a

ajudou a descer do carro.— Você fica linda ao luar — murmurou ele. — Fico imaginando-a nua,

com aquele colar... Será como uma deusa — continuou.Sua voz morna e sensual penetrou os ouvidos da garota, hipnotizando-

a. Ele tomou uma das mãos dela, beijou-a com sensualidade, depoisconduziu-a para a entrada da casa.

Ele a fez entrar na sala iluminada. Fechou a porta atrás de si,trancando-a e guardando a chave sem que ela percebesse. Depois ficouolhando para ela, admirando a sua feminilidade, sentindo-se terrivelmenteatraído por aquela silhueta provocante a sua frente.

— É lindo! — disse ela, olhando o anel.Ele quis se mover, mas o olhar fixo nela fez as vozes explodirem em

seus ouvidos. Ele apertou os ouvidos e cambaleou, tentando se segurar nummóvel ali perto.

— O que foi? — quis ela saber, indo em socorro dele.— Não... Afaste-se... — pediu ele, apertando os ouvidos, sentindo seu

corpo amolecer-se e calafrios inesperados percorrerem seu corpo.— Victor, por favor! O que está havendo? — insistiu ela, tentando

ampará-lo.— Afaste-se, vagabunda! — berrou ele e sua voz ecoou pela casa,

assustando-a.Ela recuou, intimidada com aquela expressão no rosto dele e com o

modo como ela a havia tratado. Ele ficou irreconhecível, com o rostocrispado horrivelmente, tentando se manter em pé, agarrado ao móvel.

— O vidro! — apontou ele.Ela viu o vidro de pílulas sobre a mesa, diante do sofá. Apanhou-o.

Não tinha rótulo. Levou para ele. Victor abriu-o e despejou uma porçãodelas em sua boca, mastigando-a. Começava a babar. Caiu de joelhos,engolindo com dificuldade as pílulas. Ficou ali, tremendo, olhando parabaixo como se estivesse vendo o inferno.

Pouco a pouco seu corpo foi se acalmando. As vozes foramsilenciando. Ele respirou fundo. Tirou o lenço e limpou a gosma que

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escorria de seu queixo.— Eu sinto muito! — murmurou ele. — Eu sinto muito! — repetiu,

sem coragem de olhá-la.Ela continuava parada, ainda tremendo, com as duas mãos cobrindo o

rosto, olhando-o pelos vãos dos dedos.— O que você tem? — indagou ela, num fio de voz.Jamais sentira tanto medo em sua vida. Naqueles breves momentos,

vira um animal diante de si, não um homem. Isso a deixara terrivelmentepreocupada.

— Foi o uísque que tomei... Ele provoca uma reação violenta com oremédio que tomo para minha enxaqueca... — mentiu ele.

— Oh, Deus! E fui eu quem o fez beber...— Não, não se culpe, por favor! Eu sei dos meus limites. Devia ter lhe

contado, mas fiquei com medo que me julgasse mal... Eu estava interessadoem você... Todo o tempo, mas não tinha coragem de me aproximar econfessar... Perdoe-me, por favor!

Ela sentiu seu coração derreter de ternura por ele. Aquele homemdesejável confessava sua fragilidade e lhe pedia perdão por isso.

Correu ajoelhar-se ao lado dele e ajudá-lo a se levantar. Quando ela oamparou, ele a abraçou. Sentiu suas curvas, o formato de seios, seuperfume. O desejo ardeu entro dele, deixando-o febril agora.

Poderia tê-la naquele momento. Poderia subjugá-la pela dor esatisfazer seus instintos, mas naquela noite sentia-se pródigo emrefinamento. Ela não lhe negaria nada, depois que ele a seduzisse, conformehavia planejado desde o princípio. Aquela seria uma noite especial, umapresa especial.

Ele desviou o olhar, então, para um pequeno estojo de veludo sobre ummóvel da sala. Livrou-se gentilmente dos braços dela e caminhou até lá.

Apanhou-o e se voltou para ela, sorrindo sedutoramente. Era de novo ohomem irresistível que ela conhecia. Caminhou na direção dela, mostrandoo estojo. Ela cravou o olhar naquele objeto, tremendo de emoção.

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Mary não se conformava com o que havia acontecido. Dora nãoentendera sua preocupação e isso a aborrecia muito. Não queria que a amigaentendesse mal sua preocupação. Ao mesmo tempo, preocupava-se com ela.

Andou de um lado para outro de seu quarto, pensando no que poderiafazer. Não conseguiria dormir sem esclarecer aquela situação. Sabia queDora estaria ocupada com aquele homem maravilhoso, mas não conseguiase conter.

Apanhou o telefone e ligou para a amiga. O telefone chamou até cair.Preocupou-se, principalmente porque se lembrava bem de que Dora haviaafirmado que ele iria a sua casa. Lembrou-se, então, que Susan haviasumido de casa sem resistência, como se tivesse sido levadaespontaneamente.

Ficou confusa e desesperada, tentando se manter calma, mas nãoconseguia. Seu peito foi se angustiando e aquele sentimento foi fugindo deseu controle, oprimindo seu peito como um terrível pressentimento.

Talvez fosse pelas palavras duras de Dora, magoando-a, quando queriaapenas ajudar a amiga. Só que aquele sentimento era forte demais e ela nãoconseguiu se conter.

Consultou rapidamente a lista telefônica e ligou para a Chefatura dePolícia. Pediu para falar com o inspetor-chefe que, naquele momento,estava de saída para a sua ronda.

— Graças a Deus eu o encontrei, inspetor. É Mary Reading, a amiga deSusan, a que desapareceu.

— Oh, sim, eu me lembro de você. O que houve? Parece aflita?— E minha amiga, inspetor. Dora estava em casa esperando para se

encontrar com alguém, só que ninguém atende ao telefone agora...— Acalme-se! Com quem ela ia se encontrar?— Com aquele homem que vocês viram na companhia de Susan, na

porta do Fisherman.O inspetor parou um pouco para pensar. De repente, aquele homem

estava se pondo demais em evidência. Poderia ser pura coincidência, maspoderia haver alguma coisa por trás de tudo aquilo. Não sabia exatamente oque era, mas seus ossos e suas cicatrizes falaram mais alto naquelemomento.

— Só um momento, Mary. Pode repetir, só que pausada edetalhadamente? — pediu ele, fazendo um sinal para que o sargento ouvisse

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na extensão.— Eu liguei para minha amiga e ela disse que iria se encontrar com

aquele homem. Fiquei preocupado e liguei de novo para ela, pedindo quenão se encontrasse com ele...

— E por que fez isso?— Porque me lembrei de que Susan foi tirada de seu chalé sem

nenhuma resistência. Pode ser o caso. Um homem bonito a convida parasair e ela vai, sem hesitar.

— Faz sentido! — afirmou o inspetor, olhando para o sargento, queconcordou com um movimento de cabeça. — Por outro lado, ela pode termotivos para não atender ao telefone agora — lembrou ele, deixando agarota mais confusa.

— Não... Eu não acho, inspetor... Não pode fazer nada?— Podemos ir até lá e ver o que está acontecendo, mesmo correndo o

risco de parecermos ridículos.— Por favor, faça isso.— Está bem, dê-nos o endereço.Mary informou.— Vou esperá-los no Blind Pirate. Lá pelo menos terei companhia e

poderei suportar esta angústia que estou sentindo, inspetor — confessou ela,desligando.

— O que acha disso, sargento? — indagou o inspetor.— Acho que eu estava certo em minhas suspeitas. Aquele sujeito tem

características que podem se enquadrar na de um psicopata...— Não exageremos, sargento. O melhor a fazer é ir até a casa da

garota. Com certeza vamos interromper um belo programa, mas o que se háde fazer? Tudo pela justiça.

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Tudo o que acontecera quando chegaram à casa e que poderia servir dealerta para a garota já estava esquecido. Dora O'Hara fitou deslumbradaaquelas esmeraldas que pendiam agora da mão dele. Era uma joia digna deuma rainha e ela acreditou que fosse mesmo para ela.

Victor Master se aproximou lentamente, com um sorriso cativante noslábios finos e aquele olhar penetrante, que a subjugava e encantava.

— É magnífico! — exclamou ela.— Perfeitas para você... para a cor de sua pele... para o seu corpo —

disse ele, num tom sensual e voluptuoso, postando-se às costas dela paraprender-lhe o colar no pescoço.

Dora suspirou de emoção, quando o metal tocou sua pele. O homeminclinou a cabeça e beijou-lhe o ombro. Depois, sensualmente, sua língua eseus lábios deslizaram até o pescoço dela, junto ao colar.

Ela se arrepiou toda, ofegando. As mãos dele a enlaçaram pela cintura,apertando-a contra ele. A garota se deixou levar, seduzida pela joia queenfeitava seu colo agora. As mãos dele subiram até os seios dela,dominando-os. Ele a beijou junto à nuca.

— Você ficou linda! — rouquejou ele, junto ao ouvido dela, fazendo-aestremecer.

Ela encolheu os ombros instintivamente, arrepiada e excitada,acariciando as pedras verdades que repousavam sobre sua pele bronzeada.

— Deixe-me ver como ficou — pediu ela, livrando-se gentilmente dasmãos que se apossavam de seu corpo.

Caminhou até um espelho junto à porta de entrada, num aparador.Olhou-se. Mal podia acreditar naquilo. Sentia o peso do ouro em seu corpoe o brilho das pedras era real e autêntico.

Ele sorriu da satisfação dela e se aproximou por trás, prendendo-anovamente em seus braços. Pôs o queixo no ombro dela e, como rosto juntoao dela, ficou olhando para ela no espelho.

— Vocês se merecem — afirmou ele. — É difícil dizer quem é maisbonita, você ou a joia — murmurou ele, assanhado pelo perfume e pelocalor do corpo dela.

Seus lábios voltaram a percorrer o pescoço e a nuca de Dora, quefechou os olhos e ficou apenas sentindo o toque possessivo daqueles lábiose daquelas mãos. A joia em seu pescoço agora a excitava mais do que ascarícias dele. Era como se a joia, mais do que qualquer outra coisa que ele

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fizesse, brindava seu corpo com a sensação mais legítima e forte que jamaisexperimentara.

Ainda assim, esfregou-se nele, contagia e fascinada por uma paixãoque se traduzia em algo de valor inestimável. Sentiu-se cheia de gratidãopor ele e no dever de recompensá-lo por um gesto tão desprendido elisonjeiro.

Virou-se e olhou-o de frente, acariciando seu rosto e seus cabelos.Depois colou sua boca morna e sensual no pescoço dele, subindolentamente, até encontrar seus lábios. Beijou-o demorada eprovocantemente.

Ele sentiu todo o seu corpo pulsar de excitação e desejo, apertando-aem seus braços, sentindo os contornos de seu corpo e ansiando por ela.

— Venha! — convidou ele, tomando-a pela mão e levando-a para opavimento superior.

Abriu a porta do quarto. Ela olhou a enorme cama, coberta com lençóisperfumados. Ele manteve a luz desligada. Uma penumbra deliciosa tomavaconta do ambiente. Ele puxou-a até junto da cama. Ela não percebia osolhos injetados dele nem o fogo intenso que ardia em sua pele,entontecendo-o.

Também não podia ouvir as vozes que começavam a sussurrar insultose repreensões para ele, fazendo-o se contorcer espasmodicamente,alternando crispasses em seu rosto com momentos de prazer.

Começou a despi-la. O contato daquela pele macia mais o entontecia emais provocava as vozes. Estavam se tornando insuportável. Ele pensou naspílulas, mas havia acabado de engolir uma porção delas.

A garota suspirava e gemia debilmente, esfregando-se nele comvolúpia. As roupas dela foram se amontoando no assoalho, junto às dele.Ela o tocava agora com frenesi, com um desejo que se contagiava no dele.

— Quero você! — rouquejou ele e os dois tombaram sobre a cama.Ele sentiu que junto vieram todas as vozes, acusando-o, machucando

seus ouvidos. Ficou confuso, entre cobrir os ouvidos ou extravasar seudesejo naquele corpo delicioso e tentador. Quis fazer as duas coisas.Confundiu-se.

— Não! — gemeu ele, contorcendo-se na cama. — Não! — repetiu eela julgou que fosse apenas uma manifestação de prazer.

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— Deixe-me lhe mostrar como gostei do presente — falou ela, indo noencalço dele sobre o leito.

— Não! Afaste-se de mim... Vão embora... Não as quero aqui...Calem-se! Calem-se, pelo amor de Deus! — berrou ele, encolhendo-se nacama, com as mãos apertando os ouvidos.

Ela parou, lembrando-se do que acontecera na chegada à casa. Ficouimóvel, tremendo, olhando-o encolhido na cama, trêmulo também,balbuciando coisas.

Recuou. Aquilo não era normal. Aquilo começava a assustá-la.— Acho melhor eu ir... — disse ela, saindo da cama e começando a

apanhar suas roupas.— Não! — grunhiu ele e sua voz tinha um tom animalesco e doentio.— Você não está bem... Vou telefonar e pedir um médico — avisou ela,

recuando para a porta.— Não! Fique aqui! — ordenou ele, lutando contra aquele tormento

que infernizava sua cabeça, enlouquecendo-o.— Não vou ficar... Eu vou chamar alguém — falou ela, continuando a

recuar para a porta.Ele se arrastou sobre a cama, caindo dela no assoalho. Dora já estava

no corredor, aflita, sem saber que rumo tomar. Viu erguer-se. Viu o rostodele, quando caminhava na direção da luz do corredor. Estava retorcido,crispado. Babava como animal com raiva. Não era nem sombra do homemcharmoso que a seduzira.

— Por favor! — soluçou ela, encostando-se á parede, segurando asroupas diante do corpo. — Deixe-me ir embora.

— Eu a quero... Malditas, calem-se! Venha... Venha para mim... —falou ele, estendendo a mão, crispada também como uma garra.

— Não! — gritou ela e tentou correr para a escadaria.Ele foi mais rápido, alcançando-a e segurando-a pelos cabelos. Puxou-

a para trás, prendendo-a em seus braços. Beijou-a e Dora ficou enojada,sentindo aquela baba gosmenta grudar-se ao seu rosto.

Debateu-se, tentando fugir. Ele mordeu o ombro dela, depois o pescoçoe o rosto. Eram mordidas doloridas, que a fizeram chorar de verdade,enquanto se debatia nos braços dele.

Isso parecia excitá-lo ainda mais. As vozes gritavam e protestavam emseus ouvidos, mas o desejo era mais forte. Ele começou a rir, gargalhar de

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satisfação ao perceber que isso acontecia.Mais desejava dela, apertando, beliscando, machucando de todas as

formas. Foi empurrando-a de volta ao quarto. Dora chorava alto e iaperdendo as forças. Não conseguia acreditar nem aceitar que aquilo estavaacontecendo com ela.

Numa desesperada tentativa, ela cravou suas unhas no rosto dele,arranhando profundamente. Ele gemeu, mas a dor se transformou numprazer inesperado para ele. Continuou rindo, beijando, lambendo emordendo o rosto dela, agora com uma sanha incontrolável.

Ela gemia e suplicava. Ele a empurrou na direção da cama. Ao se verlivre dos braços dele Dora tentou fugir. Ele a esbofeteou, jogando-a sobre oleito. Estava no auge de sua excitação. Ela estava indefesa, a sua mercê.

— Por favor! — pediu ela. — Não me machuque!Seu pedido era um ingrediente a mais no prazer que ele sentia. Estava

fora de si, em transe, satisfeito por perceber que podia controlar as vozescomo seu desejo. Debruçou-se sobre ela, na cama.

Dora, em desespero, chutou-o em seu ponto mais sensível.— Oh, céus! — gemeu ele, dobrando-se e encolhendo-se, sentindo o

desejo desaparecer e só restar uma grande dor e um grande vazio.Ela percebeu sua chance e saltou da cama. Estava com o rosto inchado

pelas mordidas. A pele ardia, mas estava inteira ainda. Correu para a porta.Apanhou rapidamente suas roupas e desceu para a sala.

Apenas pôs o vestido sobre o corpo nu e tentou abrir a porta para fugirdaquele pesadelo.

— Oh, não! — gemeu ela, percebendo que a porta estava trancada.Olhou as janelas. Estavam abertas, mas havia grades no lado de fora.

Podia ouvir os gemidos dele lá encima. A qualquer momento ele viria atrásdela.

— A cozinha! — exclamou ela, correndo para lá. aA porta que dava para a garagem estava fechada também, sem a chave

na fechadura. Ele vinha pelo corredor, gritando palavrões agora,ameaçando-a.

Viu outra porta. Foi até ela e abriu-a. Levava ao porão. Ela entrou efechou a porta atrás de si. Desceu atropeladamente os degraus. Ficouperdida quando chegou lá embaixo.

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Esperou um pouco. O luar entrava por uma janela de ventilação. Poucoa pouco os olhos dela foram se acostumando à escuridão. Ela procurou umcanto para se esconder. A porta se abriu. A luz foi acesa. Ela correu paratrás de umas caixas de papelão.

Por momentos ele ficou parado lá no alto, apertando os ouvidos. A dorpassava pouco a pouco, mas as vozes haviam se aproveitado daquelemomento para voltar com mais força. Ele precisava de Dora, de seu corpo,da volúpia que estimulava o desejo e o fazia insensível àquele coro infernalque o atormentava.

— Venha! — chamou ele, sentindo o corpo abalar-se novamente, comaquelas vozes ferindo seus tímpanos.

Sentou-se no patamar, procurando forças. Começou a chorar,percebendo que as vozes venciam.

— Preciso de você! — gemeu ele. — Ajude-me! Só você pode meajudar — insistiu e sentiu que o piso lá embaixo o chamava.

Seu corpo pendeu e ele caiu para frente, rolando para baixo. Ficouestatelado no porão, imóvel. Um fio de sangue escorria de sua testa.

Dora foi se levantando devagarinho. Estava trêmula e apavorada, masaquela súplica, aquele pedido de ajuda desesperado ecoava em seusouvidos.

Hesitou. Não sabia o que fazer, mas de uma coisa estava certa: não iriase aproximar dele novamente.

Passou rapidamente. Precisava pedir a ajuda de alguém. Lembrou-se deMary. Subiu a escada. Precisava ligar para ela.

Achou o telefone. Esperou que Mary atendesse, olhando aflitamentepara a porta que vinha da cozinha, imaginando que a qualquer momento elepoderia surgir por ali, vindo ao encalço dela.

— Vamos, Mary! Por favor, atenda! — suplicou, com lágrimas nosolhos.

Ouviu um ruído e se voltou. Ele estava parado lá na porta da cozinha,olhando para ela com a expressão distante. O filete de sangue descia de suatesta, percorria seu corpo e chegava ao assoalho por uma das pernas dele,deixando pegadas na madeira.

Ela soltou o telefone e ficou imóvel, com as mãos diante do peito,recuando até se encostar à parede.

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— Não me machuque! — suplicou ela, vendo-o estender uma dasmãos na direção dela, pedindo ajuda.

— Me ajude! — murmurou ele.— Não! Eu não posso! — falou ela, em desespero, sentindo-se

encurralada, sem ter para onde fugir.Ele começou a caminhar na direção dela, com aquela mão estendida,

mais como uma garra ameaçadora do que como uma súplica.— Deixe-me ir embora... Por favor! — insistiu ela, olhando ao redor,

procurando um meio de fuga ou uma arma de defesa.Viu o atiçador junto à lareira.— Não! — disse a ele, em desespero, mas ele não se detinha.Aproximava-se mais e mais, com o rosto crispado e aquela garra

voltada para ela, como uma ameaça. Ela correu, então, na direção da lareirae apanhou o atiçador.

— Não se aproxime — ordenou ela.Ele nem a ouviu. Aquele silêncio reinava dentro dele. Nenhum som,

como se toda a paz do universo estivesse em seu cérebro naquele momento.Ele só queria tocá-la, abraçá-la e senti-la abraçando-o, deixando que

aquela paz contagiasse os dois.De repente, como se um sino tocasse em sua cabeça e as vozes

acordassem todas ao mesmo tempo, ele sentiu a pancada da cabeça ecambaleou para o lado, enquanto Dora, com o atiçador na mão, corria nadireção da escada.

Um filete maior de sangue escorreu por sua cabeça, descendo por suascostas. Ele rodopiou no meio da sala, com as mãos nos ouvidos, urrando,tentando abafar com seu grito de dor o barulho daquelas vozes.

Viu Dora no alto da escada e ela era sua única chance de consolo e defuga contra aquela maldição que o perseguia. Atordoado e oscilante, elecorreu até a escada. Começou a subir os degraus, apoiando-se no corrimão.

Lá encima, Dora entrou naquele quarto e bloqueou a porta, enfiando aponta do atiçador sob ela. Achou o interruptor e acendeu a luz. Depoisempurrou um móvel, bloqueando a entrada. Ouviu os passos dele.Soluçando, foi se encolher assustada num canto do quarto.

Nada mais havia que pudesse fazer, por isso começou a rezardesesperadamente.

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Mary havia procurado a fotógrafa e apanhado a foto de Dora comaquele homem. Por mais que a examinasse, não conseguia ver nada de ruimno rosto dele. Era um homem bonito, intrigante e másculo, como um dessesmodelos saídos de uma revista especializada. O tipo de homem quepovoava os sonhos das mulheres e preenchia suas fantasias.

Mesmo assim estava aflita. Não conseguia controlar aquelepressentimento que oprimia seu coração. Torcia para que o inspetor voltasselogo e dissesse que tudo fora um mal entendido.

Foi para frente do clube e esperou. Naquele momento, o inspetor-chefee o sargento estavam no chalé onde Dora estava hospedada.

Haviam batido insistentemente na porta, sem resultado. Tudo estava àsescuras e em silêncio, incomodando-o, fazendo-o mudar de ideia quanto aoque estava acontecendo.

Talvez Mary tivesse razão, afinal.— O que acha, sargento?— Não há ninguém aí dentro, inspetor.— Pelo sim, pelo não... — foi dizendo o policial, enquanto fazia um

sinal para o ajudante.Os dois meteram os ombros na porta, abrindo-a. Acenderam as luzes e

vasculharam rapidamente o local. Estava tudo em ordem, sem sinais deviolência.

— Não estou gostando disso, inspetor. Parece-se com aquele outrocaso...

— Podemos ter descoberto nosso homem, sargento, mas ainda assimnada é conclusivo. Podem ter saído...

— Não sei, inspetor, mas acho que não devíamos esperar mais.— Vamos até o Fisherman falar com Mary, a amiga dela.Os dois foram para o carro e pouco depois estavam com Mary.— E então? — indagou ela, aflita.— Não estão lá — informou o policial.— Oh, Deus! De novo não! — soluçou a garota.

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— Não se desespere. Há alguma possibilidade de terem saído paraalgum outro lugar?

— Acho que não... É minha intuição quem diz... Vamos atrás dele,inspetor. Tenho certeza que ela está com ele — insistiu ela, mostrando afoto dos dois.

O inspetor hesitou por instantes.— Onde ele está morando mesmo? — indagou ao auxiliar.— Na casa em Black Hill. Vamos até lá, inspetor. Pelo menos por

desencargo de consciência.— Certo, vamos até lá — concordou, afinal.— Eu vou junto — disse Mary, seguindo-os.— Não acho que seja prudente...— Por favor, inspetor! Prometo não atrapalhar. Eu não suportaria ficar

aqui, aflita, esperando por notícias.— Está bem, mas fique de fora, enquanto estivermos lá!— Eu prometo.Os três foram para o carro e, pouco depois, estavam a meio caminho da

cidade e de Black Hill.— Há luzes acesas na casa — apontou o sargento.Vista dali, a casa se recortava contra o céu estrelado. Seu telhado

refletia a luz da lua e compunha uma aparência de calma e paz com o corpoda casa. Além dela, como uma moldura líquida, o mar espelhado estendia-se até se perder no horizonte.

— Ele está em casa. Veja o carro — disse o sargento.— Ótimo! Vamos resolver isso agora mesmo.Os dois desceram. Apesar das luzes estarem acesas, não perceberam

movimento na casa. O sargento bateu na aldrava da porta. Insistiu. Marydesceu do carro e se aproximou de uma das janelas, olhando no interior dacasa. Depois foi examinar o carro estacionado ao lado.

— Ele tem de estar aí — afirmou o sargento, voltando a bater, destavez com mais força.

— Eu já vou atender — gritou uma voz masculina lá dentro.Os dois homens se olharam. Por via das dúvidas, o inspetor sacou sua

arma e examinou-a. O sargento fez o mesmo. Após um minuto ou dois,ouviram passos.

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Victor abriu a porta, vestindo um roupão de seda. Olhou os dois

homens.— Em que posso ajudá-los, policiais?— Procuramos por Dora O'Hara.O dono da casa demonstrou surpresa. Levou a mão à cabeça, onde

aplicara curativos nos cortes. Só então os dois policiais perceberam que oscabelos dele estavam empapados de sangue.

— O que houve? — indagou o inspetor.Victor simulou uma vertigem.— Eu tinha um encontro com Dora. Ela deveria estar em sua casa, me

esperando... Sofri um acidente doméstico e bati a cabeça. Tentei ligar paraela para justificar meu atraso, mas ela não atende.

— Como se machucou? — quis saber o inspetor.— Caí na escada do porão — disse ele, apontando na direção da

cozinha.Os policiais podiam ver rastros de sangue vindos de lá, depois subindo

a escada para o pavimento superior.— Deixe-me ver isso — falou o sargento, adiantando-se para examinar

a cabeça dele.— Não... Por favor, não toque! Está muito dolorido... — pediu ele.— Acho que você precisa ir para o hospital — afirmou o sargento.— Podem me ajudar, por favor? Fiquei totalmente desorientado —

explicou ele.Os dois policiais se olharam. A história parecia verídica, mas

novamente jogava por terra a única pista que tinham, decepcionando-os.— Importa-se que entremos? — indagou o inspetor. — O sargento vai

ligar, pedindo uma ambulância. Enquanto isso, sugiro que fique emrepouso. Vamos até o sofá — falou, acompanhando o dono da casa.

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Victor fez o que ele disse e foi se sentar. O sargento foi apanhar otelefone.

— Tentou pedir ajuda? — indagou a Victor.— Sim, quando me machuquei, mas não consegui encontrar o número.

Estava atordoado... Confuso...O sargento ligou para o hospital, enquanto o inspetor ia até a cozinha.

Viu a porta aberta, de onde vinha a trilha de sangue. Foi até lá. A luz estavaacesa. Pôde ver, lá embaixo, no pé da escada, uma poça de sangue,confirmando a história.

Retornou. O sargento examinava a sala, enquanto esperava seratendido. Estava tudo em ordem.

O inspetor levantou os olhos para a escadaria. Não tinha motivonenhum para suspeitar, mas já que estava ali, não custava nada examinar olocal.

— O que há lá em cima? — indagou.— Os quartos — respondeu Victor, ficando tenso.— Importa-se se eu der uma olhada?— Não, à vontade.O inspetor-chefe caminhou até a escada e começou a subir os degraus.

O sargento continuava no telefone. A telefonista simplesmente o deixaraesperando na linha. Victor observava os dois ao mesmo tempo. O sargentoestava de costas para ele e falava com alguém do hospital. O inspetor haviaacabado de sumir lá em cima.

— A bolsa de Dora está no carro dele! — gritou Mary, chegandocorrendo à porta.

Victor pôs-se em pé num salto. O sargento ficou sem saber o que fazer.Mary parou na porta, olhando aquele homem com o rosto crispado que aencarava com um misto de ódio e ferocidade no rosto.

— O que está havendo... — ia dizendo o sargento, largando o telefone,após ter pedido ajuda.

O dono da casa apanhou um pesado cinzeiro e vibrou uma violentapancada na cabeça do policial, jogando-o por sobre uma poltrona. Marygritou. O inspetor surgiu no alto da escada, tentando tomar pé da situação.

Victor se debruçara sobre o sargento, revistando-o. Encontrou a armadele. Sacou-a. O inspetor percebeu tarde demais o que estava acontecendo.O disparo atingiu-o no estômago, jogando-o contra a parede atrás dele.

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Ele escorreu lentamente, atônito, com uma expressão de surpresa nosolhos, tentando segurar com as mãos o sangue que escorria de seu ventre.

Por momentos Mary ficou atônica, depois recuou e correu, só que nãohavia para onde correr. Victor foi no encalço dela e disparou uma vez.

— Pare! Não errarei o próximo tiro! — gritou ele e a garotaimobilizou-se, sem se voltar.

A sua frente estava o mar. Atrás dela o terror.— Venha cá! — ordenou ele, com calma, esperando por ela.A cabeça latejava, após o esforço repentino. As feridas voltaram a

sangrar, mas nada disso o incomodava. O importante era que as vozesficassem caladas.

Mary virou-se e ficou olhando para aquele vulto, recortado contra a luzque vinha da casa. Ele mantinha o revólver erguido, apontado na direçãodela.

Começou a caminhar lentamente na direção dele. Em dado momento,com alívio, viu o sargento erguendo-se lá dentro da sala, apoiando-se nummóvel. Tinha o rosto coberto de sangue, mas estava vivo e podia ser achance de salvação dela.

— Venha cá, querida! Quero conhecê-la melhor — ordenou ele, numtom de voz zombeteiro que a deixou apavorada e enojada ao mesmo tempo.

Lá atrás o sargento limpava o sangue do rosto e tentava tomar pé dasituação. Viu Victor parado na porta, esperando por Mary. Procurou suaarma, sem encontrá-la. Olhou ao redor, procurando um instrumento dedefesa. A única coisa que encontrou com o cinzeiro com o qual havia sidoagredido. Apanhou-o e caminhou na direção de seu agressor, tentando nãofazer nenhum ruído. Victor, no entanto, percebeu-o e se virou. Pormomentos seus olhares se cruzaram. Sem qualquer aviso o maníaco sevoltou e atirou. A bala atingiu o peito do policial, jogando-o grotescamentecontra o sofá. Mary gritou, horrorizada, querendo fugir daquele pesadelo,mas sentindo-se grudada ao chão.

Victor se voltou para ela novamente.— Estou esperando. Por que não se apressa um pouco mais? —

ordenou.— Onde está Dora? — conseguiu ela indagar.— Quem?— Você sabe quem é Dora. Esteve com ela hoje à noite...

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— Não, não estive.— Mentira! Está aqui a prova. Se ela morrer, você será pego por isso

— falou ela, mostrando a foto que havia sido tirada no Blind Pirate Inn.— Maldição! — murmurou ele, confundindo-se.O braço com a arma se abaixou. Ele recuou alguns passos para dentro

da sala. Parou. Voltou e se apoiou no batente.— Não... Isso era algo que não podia acontecer... Tudo tem que ser

sempre perfeito ou vão descobrir meus amores... Tenho que ser cuidadoso...Como tiraram essa foto? Eu nem percebi... — ficou falando ele, consigomesmo.

Mary parou, apavorada, olhando aquele homem mentalmente confuso,com o rosto crispado e os cabelos empapados de sangue, formando umaimpressionante figura.

— Estou começando a ficar distraído... São as vozes. As vozes meperturbam demais. As vozes me acusam e tramam contra mim... Precisoencontrar uma forma de acabar com as vozes... — continuou ele, entrandona sala e indo se sentar numa das poltronas, com a arma repousada no colo.

Mary ficou parada, sem saber o que fazer ou como agir. O sargento semoveu no sofá. Estava ferido, mas não estava morto. No alto da escada oinspetor rastejava, tentando chegar aos degraus e descer. Uma mulhergritava em algum ponto ali perto. Ela reconheceu a voz.

— Dora! Onde está você, Dora! — indagou, dando a volta na casa.No alto de uma janela com grades ela viu a amiga.— Mary! Mary, pelo amor de Deus, me tire daqui! Ele é louco... Ele é

completamente louco...— Você está bem? Ele não a feriu?— Estou bem... Estou bem... Onde está ele?— Na sala, com uma arma. Atirou nos inspetor e no sargento...— Oh, Deus! Ele não vai me deixar sair daqui...Mary se lembrou, então, de ter visto uma espingarda no carro policial,

quando vinham.— Espere... Há uma arma no carro... — disse para Dora.Correu até lá. Era uma espingarda, de grosso calibre, que ela

empunhou com esforço. Foi até a porta da sala, apontando-a para Victor.Ele ergueu os olhos atônitos para ela. Sorriu estupidamente.

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— Venha para mim, querida! — convidou ele, erguendo a mão comogarra.

— Fique longe de mim ou estouro seus miolos — ameaçou ela. —Agora jogue essa arma fora.

Ele continuou olhando para ela, sorrindo daquela forma. Depois,inclinou-se e depositou a arma sobre a mesinha a sua frente. Voltou a sereclinar na poltrona.

Ela se aproximou. Apanhou o revólver sobre a mesa e jogou-o pelaporta.

— Não se mexa, bastardo! — ordenou, começando a subir a escadaria.O inspetor levantou os olhos cheios de dor para ela. Havia deixado

uma trilha de sangue atrás de si, rastejando no assoalho daquela forma.— Ajude-me! — suplicou ele.— Num instante, inspetor... — disse ela, apavorada.Todo aquele sangue e aquele sofrimento punham-na à beira do pânico.— Dora! — gritou ela. — Onde está você?— Aqui, Mary! Onde está ele?— Está lá embaixo. Tomei-lhe a arma e estou com uma espingarda.

Pode sair. Precisa me ajudar a pedir ajuda.Dora afastou o móvel e tirou o atiçador que travava a porta. Aquilo

fora a sua salvação, impedindo a entrada de Victor.— Oh, graças a Deus! — afirmou Dora, ao ver a amiga. — Você estava

certa... Eu sinto muito... Obrigado por me salvar! — acrescentou, abraçandoMary.

— Vamos deixar os agradecimentos para depois. Ele feriu o inspetor eo sargento. Temos que pedir ajuda — falou Mary, pegando a amiga pelamão e levando-a consigo. — Telefone pedindo uma ambulância.

O inspetor estava imóvel agora, mas respirava.— Oh, não! — exclamou Dora, apavorada, ao ver todo aquele sangue

e, principalmente, ao olhar lá embaixo e ver o sargento sangrando no sofá eVictor, ereto e imóvel naquela poltrona.

Sentiu um ódio enorme e um desejo de matá-lo por tudo que a fizerapassar, mas, ao mesmo tempo, teve muito medo dele. Escondeu-se atrás deMary.

— Vamos até lá, eu o vigio enquanto você telefone. Se ele fizer ummovimento, eu juro como o mato — garantiu Mary.

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As duas desceram até lá. Ele continuava sentado daquela forma,acompanhando os movimentos delas com os olhos. Elas foram se postar aolado do telefone. Dora apanhou o telefone e levou-o ao ouvido, esperando osinal de discagem. O telefone estava mudo.

— Não está funcionando, Mary! — disse ela, num fio de voz.— Mas... O sargento estava falando nele... Tente, tem que funcionar.— Mary, você sabe usar uma arma? — indagou Victor, sentindo aquela

paz interior que só experimentava quando as vozes estavam caladas.— Sei o bastante para apertar este gatilho e mandá-lo para o inferno,

seu maldito! O que fez com Susan?Dora batia desesperadamente na tecla do telefone. Victor se levantou e

as duas garotas se encolheram.— Nem mais um movimento — ameaçou Mary.— Sabia que essa arma aí, para ser disparada, precisa ser destravada?

— continuou ele, começando a caminhar na direção delas.Mary olhou para Dora, que estava pálida e tremia.— Atire nele! Atire no bastardo! — gritou Dora.A amiga apontou a arma para o agressor. Hesitou. Jamais havia feito

um disparo antes. Teve medo de apertar o gatilho e nada acontecer.— Pode tentar, querida... Não vai funcionar se não engatilhar...— Como engatilha isso? — indagou ela a Dora.— Aperte o gatilho, Mary. É só apertar o gatilho! — desesperou-se

Dora.Mary fechou os olhos e puxou com força. Nada aconteceu.— Oh, Deus! Não funciona... Não funciona, Dora. Não funciona —

disse Mary, largando a arma.As duas amigas se abraçaram e foram recuando na direção da parede

dos fundos, enquanto ele caminhava na direção delas.— Ah, vocês duas me colocaram num dilema muito grande agora —

falou ele, com a voz bem lenta e pausada, sem pressa alguma.As duas garotas colaram-se à parede, cheias de terror, olhando-o

caminhar para elas.— Vejam só o meu dilema! Qual das duas eu matarei primeiro? Por

que não fazemos um jogo. Vamos lá para cima, no quarto, na cama. A quemais me agradar, ficará viva. A outra será morta imediatamente. O que medizem?

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— Você é doente... Nojento... — gritou-lhe Mary.Ele riu, zombeteiramente, divertindo-se com tudo aquilo.— Bastardo! — gritou o inspetor, lá no alto, disparando sua arma.A bala assobiou próximo de Victor, sem atingi-lo. Ele se voltou,

olhando para o alto da escada. O inspetor-chefe tentava manter o revólverfixo em sua mão, enquanto o engatilhava. Estava fraco e à beira dainconsciência.

Uma expressão de ódio estampou-se na cara do psicopata. Elecaminhou na direção da escada. O inspetor disparou de novo, sem atingi-lo.

— Ele vai matá-lo agora — previu Dora.O sargento, num esforço sobre-humano, levantou-se e caiu sobre a

espingarda que Mary soltara. Apanhou-a. Destravou-a. Victor já estava nomeio da escada. O inspetor atirou mais uma vez, errado. Desmaiou emseguida. O revólver escorregou de suas mãos e caiu lá de cima, no assoalhoda sala.

— Maldito! — gritou o sargento, engatilhando a espingarda.Victor saltou por sobre o corrimão e caiu junto da arma do inspetor.

Apanhou-a e ergueu-a, apontando-a sem piedade para o policial.Apertou o gatilho, antes que o sargento pudesse mirar a espingarda. A

bala pegou o ombro dele, jogando-o desequilibrado na direção das duasgarotas.

A espingarda escapou de suas mãos e escorregou no assoalho, até ospés de Mary. Ela ficou olhando para a arma e para Victor, que as olhavacom aquele olhar insano.

Ele estava muito confiante. As vozes estavam caladas. Ele jogou orevólver para o lado. Soltou o laço do roupão e tirou-o. Ficou nu diante dasduas.

Começou a andar na direção delas novamente.— E então, minhas garotas! Temos um assunto para resolver. Qual das

duas ficará comigo?Dora agarrou-se a Mary, em desespero.— Mary, faça alguma coisa, por favor! — suplicou.Mary abaixou-se e apanhou a arma. Vira o sargento mexer nela. Torceu

para que estivesse pronta para atirar.Levantou-a e apontou-a para a cabeça de Victor.

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— Já conversamos sobre armas, meu bem — disse ele, avançandolentamente, exibindo o corpo nu e obscenamente excitado naquelemomento, deixando-a fora de si, de tanto medo e asco ao mesmo tempo.

Apertou o gatilho. Por momentos Victor sentiu que todas as vozesgritavam ao mesmo tempo. Depois sua cabeça ficou em paz, desfeita pordezenas de esferas de chumbo.O som de uma ambulância se aproximandofoi a melodia que ficou ecoando na casa, depois do estampido.

FIM

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TESOURO MALDITO

Os grandes bancos de areia e coral que circulavam as ilhas das

Bahamas exibem um gracioso efeito, com a água limpa e quase transparentepermitindo a visão de peixes e plantas marinhas, num exuberante arranjonatural.

À medida que se avança pelo Oceano Atlântico, no entanto, as águasclaras e transparentes vão ganhando uma tonalidade mais escura, traindo asgrandes e inesperadas profundidades.

Rota antiga dos navios que avançavam na direção do golfo do Méxicoe da América Central, aquela região exigia muito de pilotos e comandantes.Um erro e a tragédia era inexorável. O mar ali não permitia desafiosimpunes.

A prova disso estava no cemitério de carcaças que repousava no fundoescuro e silencioso, principalmente ao largo da Ilha de San Juan, últimopedaço de terra antes da imensidão do oceano. Era a ilha quemrecepcionava os que chegavam e dava o último adeus aos que partiam.

Em alguma parte da minúscula cidade de Rosas, a única da Ilha de SanJuan, uma família reunia-se ao redor de uma mesa. Velas iluminavam oambiente, a despeito de, sobre a mesa, pender uma lâmpada elétricaapagada.

O clima criado era místico e mágico, com a fumaça das velasperfumando estranhamente o ar.

As pessoas ali presentes se vestiam de modo inusitado, com roupasmulticoloridas e brilhantes, de seda pura. As mulheres traziam lençóis nacabeça e brincos de argola, enfeitando as orelhas. Pulseiras e colarestilintavam a cada movimento. Anéis rebrilhavam, com as pedras refletindo

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as chamas das velas. Os homens, todos barbados, traziam lenços enroladosna cabeça, à moda espanhola, mas não usavam joias.

— Miguel, feche a porta! — ordenou a mulher que se sentara àcabeceira da mesa.

O rapaz fez o que ela pedia. As janelas também estavam fechadas. Oambiente tornou-se quente e sufocante, sem a entrada da brisa agradávelque refrescava o calor intenso que fazia ali, naquela época do ano.

Todos ficaram em silencio, quebrado apenas pelas ondas que searrebentavam nos rochedos ao longe.

Os olhos deles passeavam sobre os objetos que estavam sobre a mesa.Ali, além das velas colocadas sobre pequenos castiçais de prata,enegrecidos pela ação do tempo e carentes de uma boa limpeza, haviatambém um pires de porcelana com estranhos desenhos, lembrandoalgumas figuras cabalísticas. Dentro dele reluzia uma moeda de ouro.

Era um velho dobrão espanhol, com quase quinhentos anos de idade,muito polido e limpo, como se um cuidado especial houvesse preservadoaquela peça intacta através dos anos. O mesmo polimento que o mantinhabrilhante fora gastando, ao longo do tempo, os relevos, deixando-o quaseliso.

— Meus filhos — tornou a mulher, em espanhol, rompendo de novo osilencio com sua voz áspera, onde se percebia um sotaque incomum para osmoradores da Ilha de San Juan. — O dia aproxima-se novamente. Esta énossa última peça de ouro. Se não conseguirmos desta vez, tudo se perderáe o destino terá determinado sua última jogada. Aquilo que buscamos eporque lutamos toda a nossa vida terá sido apenas um sonho, uma procuratola e sem sentido. Da mesma forma terá sido nossas vidas: tolas e semsentido algum, meus filhos — falou ela, num tom amargurado.

— Não fale assim, mamãe — repreendeu-a carinhosamente o filhomais velho. — Sempre fizemos o que nos foi determinado. Se não era paraser, o que poderíamos nós fazer?

— Miguel tem razão — concordou a única jovem do grupo ali reunido.— Não podemos guardar nem cultivar nenhum sentimento de culpa. Eranossa missão desde o principio e nós a aceitamos — ponderou a garota.

Chamava-se Lupe. Tinha os olhos negros e profundos, como se omistério latino e o do novo mundo houvessem criado, juntos, uma

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interessante mescla de beleza, que pulsava em toda a sua plenitude,vibrando constantemente naquele brilho intenso e perturbador.

Tinha vinte anos. Sob o tecido fino e liso, percebiam-se seus seiosfirmes e bem torneados. Os cabelos, presos no alto da cabeça e envoltospelo lenço de seda colorido, eram também negros como seus olhos e suassobrancelhas, o que mais acentuava aquele ar atraente e misterioso.

As formas perfeitas de seu corpo ocultavam-se sobre a seda da saiarodada e comprida, chegando-lhe aos pés.

— Vocês são jovens, mas conhecem toda a história, meus filhos —continuou a velha senhora. — Seu pai e eu, juntos, durante ano após ano,tentamos chegar ao nosso objetivo. Quis a sorte que ele não vivesse paraver esse dia, assim como eu, se desta vez não conseguirmos, não tereivivido nem jamais verei.

— Conte-nos a historia, mãe. É somente nesta época do ano que nósnos lembramos dela, mas é sempre importante e bom rememorarmos ascoisas de nossos antepassados.

— Sim, Chucho. Sempre é bom lembrarmos e peço que vocês jamaisdeixem de transmitir isso aos seus filhos e eles aos filhos deles.

— Assim será, mãe — prometeu o rapaz e os outros prometeram damesma forma.

— Somos nós, talvez, os últimos remanescentes de uma garbosa tribode ciganos espanhóis. Era uma tribo muito alegre. Todos gostavam demúsica e viviam do comércio com outras tribos e com as pessoas dascidades por onde passavam. Um dia, porém, há mais de quatrocentos anos,sabedores das descobertas de terras ricas e pródigas, todas conquistadaspelos navios do Rei Carlos V, resolveram aventurar-se numa arriscadaempreitada que só o espírito cigano e a alma espanhola poderiam imaginar:Acompanhar Fernando Cortês.

— Foi quando os homens viajaram para o México, para conquistá-lo— comentou Lupe, olhos perdidos na chama da vela a sua frente.

— Sim, Lupe. Foi isso mesmo. Eles vieram à caça dos tesourosfantásticos que todos diziam haver ali. Tiveram sorte, muita sorte mesmo.Apesar de toda a devastação causada pelos soldados espanhóis, muita coisamisteriosa e inexplorada se escondia no meio das selvas, no alto dasmontanhas, nos planaltos inexplorados.

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— O chefe da tribo, quem comandava os ciganos, era Pepe, ancestralde papai, não? — indagou Miguel.

— Sim, o ancestral de vocês. Até que descobrissem aquele templo eaquele tesouro fabuloso, Pepe dirigia os destinos dos homens da tribo. Eraum rapaz alto e forte, hábil na dança, no comercio e nas artes da guerra. Foio primeiro a entrar naquela magnífica sala de tesouros...

— E foi o único que não saiu de lá, não foi mesmo? — indagou o rapazque, até então, estivera em silencio, acompanhando atentamente o que osoutros diziam.

— Sim, Pepe. Ele foi o único a não sair dali. Só mais tarde, muito maistarde, souberam traduzir o que estava escrito nos sinais ao pé do ídolo deouro maciço encontrado naquela sala maldita.

— Era a Maldição de Tezcatlipoca — lembrou Lupe, sentindo umarrepio percorrer seu corpo, ao falar aquele nome.

— Sim, a terrível maldição que, pouco a pouco, foi dizimando oshomens fortes e sadios da tribo, até que restassem poucos na expedição deCortês. Sancho Perez foi a salvação e a perdição de tudo, porém.

— Sancho Perez era o pirata espanhol, o renegado, não? — lembrouChucho.

— Sim, era. Sancho descobriu que os homens da tribo escondiamaquele tesouro dos outros e, mediante artimanhas próprias de umamaldiçoado como ele, apoderou-se de tudo o que os homens da tribohaviam guardado.

— Só que a maldição também o atingiu, não? — indagou Miguel,lembrando-se.

— Sim, ele também sucumbiu à maldição. Quando fugia para aEuropa, satisfeito com o butim inesperado que havia conseguido, seu navionaufragou em algum ponto ali à frente — falou ela, apontando com oqueixo um ponto qualquer na direção da praia e do mar. — Todos seushomens morreram, inclusive ele. O navio foi ao fundo levando toda apreciosa carga.

— E desde então, a missão dos homens da tribo tem sido a deencontrar e resgatar o tesouro, juntamente com o ídolo maldito, não é? —completou Miguel.

— Exatamente — confirmou a mulher.

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— E para que recuperá-lo, se sua maldição atinge a quem o possui? —questionou Lupe.

— É necessário encontrá-lo para destruí-lo, livrando-nos para sempreda maldição. Nossa tribo sempre foi orgulhosa e honesta e sua preocupaçãosempre foi a de ter descoberto para o mundo algo tão terrível. É a partemais incômoda da maldição. Não viveremos em paz com nossasconsciências, sabendo que algo monstruoso e aterrorizador está lá fora epoderá ser encontrado, no futuro, por alguém que desconheça seu podermaléfico.

O barulho das ondas, lá fora, tornava-se mais alto. Um vento soprouinesperadamente, assobiando nas frestas da casa e arrastando as folhas secascaídas dos coqueiros.

— O livro! — pediu a mulher à cabeceira da mesa.Miguel, o filho mais velho, caminhou até um armário atrás dele. Abriu

uma das portas e retirou dali um pesado baú de metal, todo coberto detachas de prata, com um pesado e forte cadeado fechando-o.

Assim que o depositou sobre a mesa, sua mãe apanhou uma chave quependia presa ao seu pescoço por uma corrente de ouro. Com gestos lentos esempre olhando o semblante de cada um dos filhos, ela abriu o cadeado,sem olhá-lo, como se cada um de seus gestos tivesse sido ensaiado desde hámuito, sem falhas, sem possibilidades de erro.

Levantou a tampa, que rangeu levemente. Algumas crostas deferrugem, presa às dobradiças de ferro, estalaram e saltaram, salpicando amesa limpa.

— O manuscrito de Santoro! O único e precioso livro mágico deSantoro, mago de tribo, senhor dos elementos e afilhado da natureza! —pronunciou ela, levantando em suas mãos o pesado volume, num gesto derespeito e reverência.

A capa do livro era toda de couro, com detalhes em ouro e pedrasengastadas, num trabalho artesanal primoroso. Quando foi depositado sobrea mesa e aberto cuidadosamente, revelou páginas escrita em papel grosso edesigual.

As letras eram em tinta preta, com as iniciais dos parágrafos floreadase em ouro, revelando um extremo cuidado na sua elaboração. Era, comcerteza, o único manuscrito daquele gênero na face da terra.

O que se passava ali, naquela sala abafada, era um ritual solene e tenso.

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— A magia dos ciganos uniu-se à magia dos homens da floresta e dotemplo. Santoro escreveu o livro enquanto morria, deixando para aposteridade sua sabedoria, o mais perfeito tratado de magia jamais escrito.É isso que temos aqui, filhos — disse a mulher, pondo, as mãos sobre aspáginas do livro aberto.

Concentrou-se serenamente, fechando os olhos. Sua fisionomia foi,então, transformando-se completamente, até se retorcer totalmente.

Um sorriso maligno brotou no canto de seus lábios e, quando falou, suavoz não era a mesma. Tornou-se esganiçada, estridente, incomoda.

Os filhos, cabisbaixos, repetiam tudo o que ela pronunciava comaquela voz estranha e quase ininteligível, e que lia naquele estranho livro.

Ao final da leitura, suas mãos levantaram-se para cima três vezesseguidas, como se atirassem alguma coisa invisível no ar e depois a aparavacom as mãos abertas.

Com o mesmo sorriso estranho nos lábios contorcidos, a mulherpousou as mãos sobre a moeda no pires de porcelana, mantendo-a ali poralgum tempo.

— Chalchiualt! — disse ela e seus filhos repetiam a mesma coisa.O rosto dela retornou a serenidade inicial. Ela manteve as mãos sobre o

pires.— O barco está pronto? — indagou ela.— Sim, mãe — respondeu o filho mais velho.— E os aparelhos de mergulho?— Todos revisados.— Tem o mapa?O rapaz desdobrou um papel, onde estava o mapa daquela região do

Oceano Atlântico.— Temos cinco possibilidades ainda, mãe. Cinco lugares que ainda

não foram verificados entre os prováveis — disse o rapaz, apontando-os nomapa.

— Falta apenas um, meu filho, na realidade. Este é nosso últimodobrão mágico de Santoro. Depois dele, nada mais nos restará para guiar-nos.

— Há meios modernos...— Quantos caçadores de tesouro já vasculharam essas águas, sem

sucesso? — lembrou ela.

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— E eu, o que farei desta vez, mãe? — indagou a jovem. — Ficarei napraia de novo?

Ela refletiu por instantes, antes de responder. Os rapazes olhavam paraLupe em expectativa.

— Não, acho que poderá ir desta vez. Vai nos dar sorte, com certeza.Virá no barco. Agora acendam as luzes e apaguem as velas, meus filhos. Játemos a força de Santoro para nos levar ao ídolo. — falou ela, retornando olivro para o interior do baú e trancando-o de novo.

— Por que não poderei mergulhar também? Faço isso melhor quequalquer um deles, mãe. Você sabe muito bem disso.

— Não, filha, não vamos alterar nossos planos. Você ficará no barco,comigo, ajudando-me com as redes. Se alguém passar por perto, julgará queestamos pescando apenas. Não queremos curiosos nem uma corrida aosdestroços, se os acharmos.

— Vamos achá-los, mãe, com certeza — disse Pepe, o mais novo.— Assim seja! — disse a mulher e os outros filhos repetiram a mesma

expressão.— Vão dormir agora, meus filhos. Amanhã eu os acordarei antes da

hora mágica do nascer do sol para realizarmos nosso último ritual.Lupe foi abrir a janela. A brisa fresca agitou os cabelos, quando ela

soltou o lenço e os libertou. ela olhou inquietamente na direção da praia.— Não, posso sair um pouco? — indagou ela, sem se voltar, como se

soubesse que aquilo desagradaria profundamente a todos.— Vai ver aquele americano de novo? — indagou Pepe, furioso,

olhando-a.Lupe continuou de costas para eles, apertando os olhos, numa

expressão de ansiedade e prece.— Ela sabe que isso nunca dará certo. Estamos amaldiçoados, nós

todos. Em breve estaremos extintos, como o resto da tribo — comentouChucho, com desalento.

— Mas por que tem que ser assim, mãe? — indagou a garota,voltando-se e encarando todos eles, demonstrando, naquele momento quepor trás de toda aquela aparência fria e misteriosa escondia-se um coraçãofeminino ardente e ansioso.

— Por que só podemos nos unir entre os membros da nossa própriatribo. É a Lei!

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— Mas somos os únicos que restaram.— Ninguém sabe ao certo. Quando descobrirmos o tesouro, voltaremos

à Espanha e procuraremos por toda parte, por toda a Europa, se preciso for.Acharemos alguns dos nossos. Então vocês estarão livres de mim e poderãoter seus próprios destinos. Até lá, todos têm que se subordinar a mim. É aLei e cada um de vocês jurou obedecê-la.

Os irmãos olharam, em silêncio, as marcas em seus pulsos, umapequena cicatriz que indicava o corte feito durante o juramento, nacerimônia de fidelidade à Lei da tribo. Era o elo que os unia, muito maisforte que os próprios elos familiares.

— Ele está lá esperando por mim — comentou Lupe, voltando-se paraa janela.

— Miguel irá avisá-lo que você não pode ir.— Não faça mal a ele, Miguel, por favor — implorou a garota, com os

olhos tristes e marejados.— Não sou nenhum monstro, irmãzinha — murmurou ele, acariciando

levemente o rosto dela.Miguel saiu para o frescor da noite. A lua cheia banhava o oceano

generosamente, num efeito belíssimo que tornava de prata as espumas dasondas.

Pensou em tudo aquilo como uma espécie de prisão a que todos,resignadamente, submetiam-se. Teve pena da irmã, como tinha pena de simesmo.

Viu o americano caminhando na praia, rente às ondas que morriampróximo dele. Olharam-se. Miguel abriu os braços, num gesto de desalento.O outro compreendeu e começou a caminhar na direção oposta.

O horizonte, acima da linha do mar, gradativamente perdia sua

tonalidade escuro-avermelhada para dar lugar a um azul esbranquiçado, àmedida que a noite chegava ao fim.

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Loreta Garcia já estava vestida, desde a madrugada. Estivera na praiapor um longo tempo, olhando o céu e o mar. Anos e anos de espera haviampassado por sua mente. Eram memórias infindáveis, que se repetiamanualmente nas noites dedicadas a Chalchiualt, quando o ritual erarealizado.

Perdera a conta de quantas vezes fizera aquilo. No início, os dobrõesde ouro, usados no ritual, eram muitos. Loreta duvidava até que um dia elesacabariam.

Os anos, no entanto, haviam provado o contrário. Chegara a San Juanainda muito jovem e recém-casada. Acreditava que logo ela e o maridoencontrariam o navio e tudo acabaria. Voltariam à Espanha, onde viveria avida que sempre sonhara.

Ano após ano, no entanto, os fracassos se sucederam. Os dobrõesforam reduzindo-se, até restar apenas um, o último, que seria utilizadoquando o dia chegasse.

Não queria pensar o que aconteceria depois, se tudo desse errado maisuma vez. Não podia pensar nisso. Toda sua vida fora dedicada a preparar-separa quando encontrasse o tesouro.

Simplesmente recusava-se a aceitar a ideia do fracasso. Não depois deter perdido o marido e ter criado os filhos com aquela ideia fixa.

A hora aproximava-se. Ela voltou para casa e começou a acordar osfilhos, tocando o ombro de um por um, murmurando:

— Acorde, já está na hora!Depois dirigiu-se ao quarto da filha e fez o mesmo. Logo todos

estavam reunidos ao redor da mesa, repleta de frutas frescas, sucos e caféquente.

— Estamos na hora, mãe? — indagou Lupe.— Sim, filha. Podem comer tranquilos. Quanto tempo vai levar para

chegar ao local, filho? — indagou ela a Miguel.— Quinze minutos, mãe. Como está o mar?— Calmo.— Talvez possamos ir mais rápido até.— Não, está tudo bem. Estamos dentro do horário. Vamos chegar lá a

tempo de presenciar a hora mágica, quando Tezcatlipoca, o espírito dastrevas, perde sua eterna batalha contra Quetzalcoat, o espírito da luz. Énesse momento de transição, quando as forças se neutralizam, que a mágica

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deve ser feita, segundo descreveu Santoro e da forma como ele aprendeucom os nativos daquela terra estranha e selvagem.

Para aquela família, o insólito e a magia eram parte de suas tradições.Haviam sido educados segundo aqueles princípios. Jamais contestavam,pois aquilo já havia sido sedimentado em seus espíritos.

— Estamos prontos, mãe — avisou Miguel à mãe, que estava najanela, olhando o mar.

Tinha um pressentimento dentro dela. Um pressentimento forte que afazia acreditar que, naquele dia, finalmente cumpririam a missão que lhesfora destinada. Ou talvez fosse apenas o temos de ter de enfrentar o vazioem suas vidas, caso falhassem. Que sentimento haveria para eles depoisdisso?

— Vamos, filhos — ordenou ela, respirando fundo e fazendo umaprece mentalmente.

Saíram, levando os aparelhos de mergulho. A praia estava silenciosaainda, mas em breve os turistas começariam a percorrê-la com seus jet-skisbarulhentos.

As areias logo seriam invadidas por gente de pele branca eavermelhada que se exporiam ao sol até o exagero.

Alguns barcos já saíam para a pesca, desfraldando velas. A pequenalancha os aguardava no ancoradouro. Miguel a havia revisado no diaanterior. Combustível estava estocado em galões, para alguma emergência.

Loreta e Lupe levavam uma cesta com água e comida. Acomodaram-se. Miguel assumiu o comando da embarcação. O motor roncou. Emminutos eles rasgavam as águas transparentes, na direção das águasprofundas e escuras.

Apenas para Lupe aquilo era novidade. Loreta e os rapazes haviamfeito aquele mesmo ritual diversas vezes, ano após ano, sem sucesso.

Chucho começou a vestir a roupa de mergulho, da mesma forma comoum dia vira seu pai fazendo.

— É aqui, mãe — informou Miguel, de olho no mapa e na bússola.— Pare o barco — ordenou Loreta. — O sol não surgiu. Vamos esperar

mais um pouco.Estavam todos tensos, aguardando o momento final, confiantes na

mágica de Santoro. Uma mágica que superaria a força da natureza que,incansavelmente, agitava o fundo rochoso do oceano.

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As correntes marítimas, ao longo dos anos, poderiam ter destruído onavio que eles procuravam e espalhado seu conteúdo de forma irreparável.

— Está na hora — comentou Loreta, olhando para o nascente — Dê-me a moeda e o pires, Lupe — pediu à filha.

A garota apanhou, na cesta, o pires e a moeda, embrulhados num lençode seda. Loreta desembrulhou-os. O mar estava calmo ali. O barco maloscilava.

Loreta Garcia olhou mais uma vez a claridade que vinha do nascer dosol, depois inclinou-se sobre a borda do barco, depositando o pires sobre aágua.

Reteve-o por instantes. Ano após ano, naquele momento, a cena haviasido a mesma. Mal punham o pires na água e ele afundava, levando odobrão e as esperanças de um ano para o fundo do mar.

Em suspense, todos ficaram olhando Loreta manter o pires sobre aágua escura. Era o último dobrão e a última esperança daquela família quevivera toda a sua existência em função de uma lenda.

— É agora! — disse Loreta, imprimindo um suave movimentogiratório ao pires.

Ele oscilou sobre a água e todos imaginaram que ele se afundaria. Aoinvés disso, para surpresa e espanto de todos, ele foi balançando, sendolevado por alguma força misteriosa e constante.

A mesma corrente marítima que empurrava o pires levava o barcoconsigo. Loreta e seus filhos, incrédulos, viam a mágica acontecer diante deseus olhos.

— Está indo na direção de San Juan — observou Pepe.— Não, está indo na direção da rota das caravelas, a que passava ao

norte de San Juan! — comentou Miguel.— Aquela rota foi abandonada logo no inicio, com todos aqueles

naufrágios que aconteceram... — observou Lupe.— Sancho Perez podia estar com pressa de fugir do novo continente,

com o produto de seu roubou. Usou a rota mais curta e mais perigosa.— É possível — concordou Lupe.Magicamente o pires flutuava, seguindo a corrente. Após algum tempo,

a silhueta da Ilha de San Juan começou a se desenhar ao longe.— Estamos voltando à ilha — comentou Chucho.

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— Isso não é bom. Quanto mais perto da ilha, mais nosso trabalho vaichamar a atenção — observou Lupe.

— Vejam, ele parou — apontou Lupe.Apesar do movimento das ondas, o pires havia parado, como se detido

por uma mão misteriosa.— O que acontece agora, mãe? — indagou Lupe.— Vamos esperar. Diz a mágica que o dobrão não se afundará no local

que procuramos.— Por isso os outros afundaram?— Sim, Lupe. Tenho certeza que este, porém, não vai se afundar —

frisou a mulher, convicta.O pires continuou ali, diante deles, oscilando no mesmo lugar,

confirmando o que Loreta havia dito.— É aqui! — afirmou a mulher.— Veja as coordenadas, Miguel. Marque o local no mapa — ordenou

Chucho, verificando o funcionamento da válvula de ar do aparelho demergulho.

— É com você agora, filho! — disse-lhe Loreta, inclinando-se sobre aborda do barco e apanhando o pires com o dobrão.

Chucho encaixou o bocal de ar entre os lábios. Sentou-se na borda dobarco e deixou o corpo pender para trás. As bolhas marcaram o local ondeele havia mergulhado.

Todos ficaram tensos, na expectativa do retorno dele. Os momentos deespera foram angustiantes. Constantemente seus olhos se cruzaram comaflição, voltando, logo em seguida, a concentrar-se nas bolhas de ar quesubiam regularmente.

— Acredita que vamos encontrar mesmo o barco, mãe? — indagouLupe.

— Tenho certeza que ele está lá embaixo, Lupe.— Se o encontrarmos mesmo, como vamos resgatar o que há nele. E

como encontrar esse ídolo? O navio pode ter-se desmanchado após tantotempo.

— A mágica de Santoro não nos traria aqui por nada. Acredite nisso.A expectativa tornava-se cada vez mais forte, angustiando-os. As

bolhas indicavam que Chucho, lá embaixo, nadava em círculos cada vez

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maiores, realizando a busca. Quando subiu finalmente à superfície, estava auns quinze metros longe do barco.

— Você afastou-se do ponto — observou Miguel.— Estou nadando em círculos para ver se encontro alguma coisa —

disse ele, após nadar até o barco.— Algum sinal?— A água está muito escura. Quando o sol subir mais, terei maior

visibilidade — comentou ele, trocando os tanques de oxigênio por outroscheios.

À medida que subia, o sol ia tornando mais claras as águas profundasdaquele ponto. Chucho mergulhou de novo, deixando o rastro de bolhasindicando sua passagem.

Desta feita ele mergulhou em linha reta, direto para o fundo, tendo obarco como referencia. Sua família acompanhava seu mergulho pelasbolhas de ar que subiam até a superfície.

De repente, as bolhas se alteraram, aumentando mais e mais, até que afigura de Chucho assomasse à superfície. Seus olhos estavam arregaladospor trás dos óculos de mergulho. Seus gestos eram febris. Ele se agarroudesesperadamente à borda do barco.

— Está lá, eu vi... É enorme... É gigantesco! Está intacto,milagrosamente intacto... É... É a coisa mais linda que já vi na vida... Estáadernado... Como um grande animal adormecido... — tentava ele descrever.

— Era ele mesmo? Tem certeza que era o Santa Rosa, de SanchoPerez? — indagou Loreta, agarrando o braço do filho desesperadamente.

— Só pode ser, mãe... Só pode ser... O leito é de pedra... Não há lodo...Posso entrar nele, se quiser...

— Cuidado! Não se precipite. Vamos fazer como tínhamoscombinados — lembrou Miguel. — Desça e amarre as boias nele paramarcar sua localização.

— Certo... Certo... Mas é maravilhoso, mãe! É maravilhoso —exclamou o rapaz, emocionado com a descoberta.

Miguel passou-lhe algumas boias com cordas. Chucho voltou amergulhar. Os membros da família voltaram a se entreolhar. Havia alívio eesperança em seus olhos, mas as perguntas mais angustiantes ainda nãohaviam sido respondidas.

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Seria aquele o Santa Rosa? O ídolo estaria lá? conseguiriam encontrá-lo?

Loreta uniu as mãos numa oração silenciosa. Pensou no marido, quenão vivera para ver aquela descoberta. Sem que houvessem combinadonada, seus filhos também faziam o mesmo.

Steve Morgan acordara cedo como sempre fazia e saíra pescar. Eraassim que abastecia de peixes frescos seu restaurante próximo da praia,frequentado por turistas.

Beirava os trinta anos e havia chegado a San Juan havia uns cincoanos. Fugira do tráfego e da rotina enervante das grandes cidades.

Escolhera San Juan porque, quando fora da marinha, passara por lácerta vez e encantara-se com aquela vida simples, cercada de paz enatureza.

Comprara o restaurante e não podia se queixar. Tinha sempre bommovimento e não fazia outra coisa a não ser economizar dinheiro, já quenão precisava gastar. Tinha tudo ao seu alcance, ofertado de graça pelanatureza.

Naquela manhã, após deixar a rede escorregar para fora de sua lanchapesqueira, ele teve sua atenção atraída para aquela embarcação ao longe.

Apanhou sua luneta. Era a família de Lupe. Não entendeu o que faziamali, porque não era região de pesca. Teria estranhado se fosse outra família,mas a de Lupe era realmente muito estranha. Viviam todos sempre muitofechados, como se carregassem um grande segredo nas costas.

Conhecera-os quando chegara à ilha. Lupe, naquela época, era umalinda adolescente, que amadurecera para se transformar numa exuberantemulher.

Uma forte atração os uniu, mas seus encontros eram sempre furtivos,rápidos. A garota temia que sua família os apanhasse juntos. Steve queriaentender aquela situação, mas estava além de qualquer coisa lógica quepudesse existir.

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Eles se isolavam. Apesar de estarem na ilha havia muito tempo, tinhampouco ou quase nenhum relacionamento com os demais moradores.

Viviam da pesca, entregando o que pescavam no entreposto local.Tinham algumas economias, segundo comentavam os poucos empregadosdo banco local, que funcionava numa das alas do hotel principal de SanJuan.

Começou a recolher a rede, apanhando alguns bons exemplares, osuficiente para alguns dias de funcionamento do seu restaurante. O homemque o ajudava naquela tarefa era um nativo da ilha, de poucas palavras, massabedor do seu trabalho.

— Robledo, há peixes naquela região! — indagou ao ajudante,apontando na direção onde estava o barco da família de Lupe.

— Não, lá não. Há pouca corrente, pouca vida marinha. Isso não atraios peixes.

— Mas o que há lá em particular?— Diziam que, antigamente, era uma rota de caravelas que queria

encurtar caminho. Os antigos diziam que há uma passagem, que dá acessoao Golfo do México e que permitia, no passado, a passagem de caravelas.Após alguns naufrágios, no entanto, abandonaram aquela rota.

— Estranho! — murmurou Steve, para si mesmo.Terminaram de recolher as redes. Ele percebeu, então, que o barco da

família Garcia se deslocava na direção da Ilha. Resolveu retornar também.Quando chegou ao ancoradouro, o barco deles há havia atracado e eles

haviam desembarcado. Percebeu, no entanto, que Lupe retornava.Na realidade, a jovem vira, quando se aproximavam da praia, a lancha

pesqueira de Steve. Dera uma desculpa qualquer para sua família eretornara para encontrar-se com ele.

Enquanto os empregados do restaurante descarregavam o peixepescado, ele foi ao encontro dela. Caminharam na direção da praia.

— Pensei que fosse aparecer ontem à noite — disse ele, andando aolado dela. — O que houve?

— Não deixaram...— Vi seu irmão. Gosto dele. É o Miguel, não? Entendi logo que você

não iria, quando ele apareceu.— Eu gostaria de poder explicar, Steve, mas é tão complicado que, às

vezes, até eu mesma não entendo — falou ela, demonstrando sua

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inquietação interior.Ele parou e a deteve, segurando-a pelo braço. Ela abaixou os olhos.

Steve tocou-lhe o queixo com o dedo indicador, obrigando-a a olhá-lo.— Por que é tão complicado assim? — insistiu ele.— Um dia eu lhe explicarei.— E até lá?— Por favor, não pergunte — pediu ela, encostando-se no peito dele.Steve abraçou-a e sentiu o corpo dela tremer junto ao seu.— Eu espero, então! — disse ele.— Sério?— Claro.Ela ergueu o rosto e, pondo-se nas pontas dos pés, beijou-o

rapidamente. Steve enlaçou-a pela cintura e não permitiu que ela seafastasse.

Apertou-a contra o corpo e beijou-a demoradamente.

Reinava um clima febril na casa da família Garcia. Os filhos

realizavam preparativos para a árdua tarefa que tinham pela frente.Ninguém admitia que o barco encontrado não fosse o Santa Rosa.

Todo o ritual realizado, a localização conduzida pelo dobrão de ouro nopires e mais a convicção de Chucho reforçavam essa tese. As buscashaviam chagado ao fim.

Enquanto Pepe reabastecia os tanques de oxigênio e Miguel cuidava dorestaurante do equipamento, Chucho sentara-se a mesa e esboçara umdesenho do Santa Rosa, sua localização e posição no fundo do mar.

Quando terminou, todos reuniram-se ao redor da mesa. Lupe, queatrasara-se propositadamente para conversar com Steve, chegou naquelemomento. Seu coração ainda palpitava, lembrando-se dos momentos nosbraços dele.

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Todos reuniram-se, agora, ao redor da mesma mesa onde, na noiteanterior, haviam realizado a sessão mágica. Havia, porém, outro climapairando na sala naquele momento. Ao invés de tensão e expectativa, haviacerta euforia.

— O local está marcado com as boias — começou Chucho. — Nãopodemos, no entanto, nos demorar em iniciar o trabalho. Mesmo assim nãoera fácil, pois estaremos muito próximos da ilha e, com certeza,despertaremos curiosidade, principalmente porque teremos de nosmovimentarmos entre o local e a ilha constantemente. Como se isso nãobastasse, teremos o problema de descarregar o que encontrarmos. Todossabem que aquele ponto era a rota antiga das caravelas e que há destroçospor lá. Fatalmente chegarão à conclusão que encontramos alguma coisa.

— Você tem toda razão, filho. Vamos ter muito trabalho, não apenaspara retirar o tesouro que vamos encontrar, tenho certeza e fé na mágica deSantoro, como também para escondê-lo na hora do desembarque. Quandoviermos para o mar, alguém terá de ficar vigiando. Curiosos aparecerão...

— O ideal seria se tivéssemos um barco maior — sugeriu Miguel. —Poderíamos ancorá-lo no local, realizar os mergulhos e o resgate, guardandotudo nos porões. O desembarque poderia ser feito de madrugada, quandotodos dormissem.

— O velho Andrés aposentou-se da pescaria e pôs seu barco a venda— lembrou Pepe. — Não está pedindo muito caro. Talvez até possamosalugá-lo...

— É uma boa ideia! — concordou Miguel.— Você conhece bem o velho, meu filho. Vá e tente falar com ele. Se

alugarmos o barco, teremos resolvido esta parte dos nossos problemas.— Farei isso agora mesmo, mãe — afirmou o rapaz, saindo em

seguida.Sabia como tudo era importante naquele momento. Estava tão ansioso

quanto os outros e queria o fim de tufo aquilo o mais depressa possível.Todos aqueles anos de espera não podiam ter sido em vão. O resultado

de tantos anos repetindo o mesmo ritual estava, agora, ao alcance das mãosdeles. Precisavam vencer esta última etapa rapidamente.

Procurou o velho Andrés na colônia dos pescadores. Apesar de nãomais pescar, o velho mantinha o hábito antigo de acordar cedo. Ficava,

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agora, ajudando a consertar as redes e conversando com outros velhospescadores.

Miguel foi falar com ele. Infelizmente o barco já havia sido vendido.Voltou desolado para casa, inconformado por ter de dar aquela noticia àfamília.

Seria, realmente, um grande transtorno dar viagens seguidas da praiaao galeão naufragado para conseguirem transportar tudo que esperavamencontrar de valioso nele.

O pior era que as viagens seguidas acabariam por despertar a atençãodo pessoal da ilha. Não haveria como disfarçar isso. Em breve todossaberiam, inclusive as autoridades. Aí, então, começariam as implicaçõesmaiores.

Necessitavam de um barco maior, como sugerira. Um barco que ficasseancorado ali, todo o tempo. Lotariam os porões, depois encontrariam umaforma de descarregá-lo sem chamar a atenção, de madrugada.

Vinha tão absorto e preocupado que não deu pela garota estendidanuma toalha, na areia da praia, tomando sol. Praticamente tropeçou nela.

— Ei, maluco! Não olha por onde anda? — indagou ela, surpresa,sentando-se.

Ao ver de quem se tratava, ela abrandou a fisionomia irritada, olhandocom admiração o rapaz.

— Desculpe-me, Rondha. Eu não a vi... — gaguejou ele, olhando-a.Rondha era uma estudante americana em férias na ilha. Viera com seus

pais, num elegante e luxuoso iate, ancorado ao largo.— Parece preocupado — observou ela.— Sim, um pouco — respondeu ele, enquanto seus olhos admirados

percorriam os contornos bem feitos daquele corpo jovem e cheio de vidadiante dele.

— Não quer se sentar comigo um pouco e me contar o que estáhavendo? Talvez eu possa ajudá-lo — convidou ela, oferecendo uma pontada toalha.

Miguel hesitou. Todas aquelas promessas feitas a sua mãe, em nome daLei, incomodavam-no. Só que havia algo de especial em Rondha. A garotao cativara, desde o primeiro momento em que a vira.

Uma atração mútua nascera entre eles. Ela era toda cheia de atenção,carinhosa ao extremo e inspirava confiança com seus olhos lindos e claros.

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— Preciso de um barco, sabia? Um barco grande...— Igual ao nosso? — indagou ela, apontando para o iate ancorado

além da arrebentação.Miguel ficou olhando para aquela maravilha de modernidade. Sim,

aquele seria o barco ideal. Com um iate, poderia ficar ancorado, semdespertar suspeitas. Seus porões eram amplos e poderiam alojar tudo queencontrassem no fundo do mar.

— Mais ou menos como aquele — concordou ele.— Quer que eu o peça emprestado ao meu pai?— Está brincando! Ninguém empresta um barco como aquele para

ninguém.— Tem razão. Meu pai tem um ciúme danado do iate dele. Jamais o

emprestaria. Mas para que precisa de um barco grande?— Eu preciso... — interrompeu-se ele.Aquilo era algo que jamais poderia contar a alguém.— Preciso trabalhar... Há muitos caranguejos e lagostas por aí,

esperando para serem apanhados...Ela riu, divertida e alegre, mas sem zombaria.— Você não teria coragem de usar um iate para isso, teria?— Claro que não — respondeu Miguel, mas seu olhar tomava um

outro rumo.Desviara-se do luxuoso iate e estava agora fixo na lancha pesqueira de

Steve Morgan, o dono do restaurante e apaixonado por Lupe.A ideia era até irônica. Todos desejavam mantê-lo afastado da família,

mas ele poderia ser, a partir da descoberta do Santa Rosa, uma pessoaimportante para eles.

O problema era que sua mãe jamais aceitaria ajuda de Steve. Pelo casodele com Lupe a velha senhora nutria forte e irremovível antipatia por ele.

— Por que ficou quieto? — indagou Rondha.— Nada, apenas pensando. Preciso ir — disse ele, levantando-se.Ela o reteve, segurando-lhe a mão.— Por que tanta pressa?— Tenho um trabalho a fazer — disse ele, desejando ficar.Ela deixou a mão dele escorregar da sua. Miguel sorriu, em despedida

e caminhou pela praia. Seus olhos estavam fixos no ancoradouro, ondeestava a lancha de Steve.

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Hesitou, por instantes, depois tomou o rumo do restaurante dele.— Que surpresa! — disse Steve, ao vê-lo entrar.O americano conferia seu estoque de bebida. Parou, quando Miguel

entrou e foi se sentar numa das banquetas do balcão.— Quer tomar alguma coisa?— Não, muito cedo ainda.— Algum problema?— Muitos — riu Miguel.Steve serviu dois copos de cerveja. Estendeu um para o rapaz.

Beberam em silêncio.— Por que Lupe não foi se encontrar comigo ontem à noite? —

indagou Steve.— Minha mãe não permitiu.— Eu não entendo vocês. Lupe já é quase uma mulher. Por que tanto

controle sobre ela?— Você está falando de minha mãe. Por mim, Lupe já teria escolhido

sua vida há muito tempo... Acho, porém, que, de agora em diante, as coisasmudarão um pouco — afirmou o rapaz, num tom misterioso.

— Por que diz isso?— Por nada... Espere e verá.Miguel caminhou até a janela, levando o copo de cerveja na mão.

Ficou olhando a lancha de Steve.— Quando vai usar a lancha de novo? — perguntou, sem demonstrar

curiosidade.— Pesquei muito bem hoje. Meus congelados estão abastecidos por

uma semana. Por que pergunta?Hesitou. Não sabia qual seria a reação de sua mãe, quando soubesse

que ele pedira ajuda a Steve.— Eu e meus irmãos estávamos pensando em mergulhar para colher

coral. Dão ótimas lembrancinhas e os turistas apreciam muito. Precisamosganhar mais dinheiro...

— Quer a minha lancha emprestada para isso? — indagou Steve,curioso, percebendo que havia mais alguma coisa por trás daquilo tudo.

Ninguém usaria uma lancha para colher corais, a menos que fosse umaquantidade enorme.

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Lembrou-se do que vira naquela manhã. A família toda estava no mar,fazendo não se sabia o quê.

— Quer a lancha por uma semana? — indagou ao rapaz.— Você a emprestaria? — retrucou Miguel.— Para você, sim.— Fala mesmo sério?— Ora, Miguel, você é o único que parece compreender o que Lupe e

eu sentimos um pelo outro. Se eu não correspondesse a isso agora, que tipode homem seria eu?

Aquele era o tipo de argumento em que Miguel acreditava. Confiavaem Steve e tinha-o como um amigo, a despeito de tudo que sua mãe podiater contra o americano.

— Aceita a oferta? — insistiu Steve.— Claro que sim — confirmou Miguel.Foi para casa, logo depois, tentando encontrar argumentos para

convencer sua mãe a aceitar também a ajuda oferecida pelo americano.Os outros até poderiam entender. Lupe ficaria felicíssima, mas Loreta,

com certeza, negar-se-ia a aceitar.— Foi isso, mãe — terminou ele de explicar à mãe, diante dos irmãos.

— Não podíamos mais contar com o barco do velho Andrés. Já foi vendido.O único disponível era o do americano.

— E como conseguiu convencê-lo a emprestá-lo?— Ele não vai precisar da lancha por uma semana...— Não foi isso o que eu quis saber!— Ele é meu amigo, mãe. E não me olhe assim. Nada fiz de errado. A

Lei não nos obriga a não sermos amigos de pessoas que não pertençam anossa tribo. Steve se mostrou compreensivo.

— Só espero que não tenha deixado escapar nada sobre o tesouro —comentou a mãe.

— É claro que não. Não sou nenhuma criança.A velha senhora refletiu por instantes, enquanto os outros aguardavam

com expectativa. Lupe era a mais ansiosa de todos. Uma coisa comoaquelas poderia significar uma aproximação de sua família com Steve,facilitando as coisas para os dois.

— O que vocês acham, filhos — indagou a mulher.

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— Por mim, tudo bem — comentou Chucho, pensando naspossibilidades que a lancha oferecia.

— Não me oponho, mãe — afirmou Pepe.Loreta olhou na direção de Lupe. Nem precisava perguntar a opinião

da filha. Estava estampada em seus olhos brilhantes e me suspense.— Está certo! Neste momento acho que poderemos deixar um pouco

de orgulho de lado para cumprirmos nossa missão. Entendam, no entanto,que isso nada muda em relação a nossos objetivos e a nossos costumes.

— Claro, mãe — concordou Lupe, sabendo que ocorreria o contrário.Após tantos anos de rígido isolamento, a família Garcia estava

aceitando a ajuda de um estranho aos seus costumes. Isso já era umimportante precedente.

Os fins justificavam os meios naquele caso, mas, para Lupe, era maisdo que isso. Seu irmão Miguel era amigo de Steve. Em breve os outrostambém o seriam. Bastavam que uma aproximação fosse feita. MesmoLoreta, quando conhecesse melhor o americano, acabaria por mudar deideia.

— Podemos iniciar todos os preparativos agora. Lupe, você irá aoarmazém pedir esta lista de compras. Mande que entreguem aqui. É o queprecisaremos durante nosso trabalho. Vocês, filhos, vão conversar com oamericano e acertem todos os detalhes do empréstimo da lancha.Combinem um pagamento. Não poderemos aceitar de graça essa oferta...

— A lancha precisa de uma pintura, mãe. Se ele não quiser aceitar umpagamento, poderemos fazer-lhe isso em troca.

— Façam como quiserem desde que tudo fique acertado e nãofiquemos devendo favores a ninguém, está bem?

— Sim, mãe — concordaram eles em uníssono.

Lupe esperou até que seus irmãos retornassem da conversa com Steve,para então, ir até o armazém. Ao passar diante do restaurante, Steve a viu efoi até a rua falar com ela.

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— Soube o que aconteceu? — indagou ele, entre intrigado eligeiramente eufórico.

Afinal, era primeira vez que conseguira conversar com os três irmãosdela juntos, sem que nenhuma ameaça velada pairasse entre eles.

Os três eram muito ciumentos em relação à irmã e haviam recebido damãe a atribuição de defendê-la.

— Sim, eu sei o que vai dizer — adiantou-se ela.— Jamais esperei poder conversar com os três, um dia, tranquilamente

como foi. Os três sempre me olharam como se eu fosse o pior dos inimigos.Apenas Miguel era o mais camarada, mas isso só de algum tempo para cá.Por que a mudança? Porque precisavam de um favor meu?

— Não, não os julgue tão interesseiros, nem se entusiasme muito como acordo feito. A ideia era que você emprestasse ou alugasse a lancha...

— Mas já foi um começo. Só não entendi porque precisam dela?— Não lhe disseram? — desconversou a garota.— Eu insisti, mas nada deixaram transparecer. Para que a desejam,

afinal?— Sei tanto quanto você — afirmou ela.— Bem, isso não é tão importante agora. Quero saber sobre você.— O que há sobre mim que já não saiba?— Tudo. Você é muito misteriosa.— Sou? — indagou ela, olhando-o com seus negros olhos, brilhando

de sedução e mistério.A beleza daquela garota fazia ferver o sangue do americano. Não sabia,

porém, como fazê-la ser menos misteriosa.— Eu não disse? — observou ele.— O que você disse? — insistiu ela, desafiando-o com o olhar

provocador.— Eu disse que você é misteriosa. Eu nunca sei o que você está

pensando nem o que vai fazer em seguida.Ela parou e voltou-se para ele, olhando-o nos olhos.— Sabe sim — murmurou ela, aproximando-se e beijando-o.Separou-se dele, em seguida, e correu adiante dele, rindo alegremente.Steve ficou sentindo aquele sabor delicioso de carne, sol e sal que

encontrava nos lábios dela.

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Naquela noite, ao jantar, a família Becker demonstrava seu tédio peloritmo lento de San Juan. John Becker, o pai, era um capitão de indústrias,com negócios diversificados e um luxuoso escritório no Rockfeller Center,no centro de Nova Iorque.

Para ele, as coisas só se tornavam interessantes a partir do momentoem que um tempero essencial era acrescentado: o desafio, aliado àpossibilidade de lucro.

Estava ali, de passagem, com a esposa e a filha e uma tripulação decinco homens, num iate que fazia inveja à maioria de seus amigos.

Mas estava entediado porque nada acontecia. Não que não conseguissedivertir-se, mas o lazer poderia ser desafiador também. Ou incluir algumtipo de ação capaz de despertá-lo daquele marasmo interior.

Férias eram o pior período de sua vida justamente por isso. Só que nãopodia provar a filha e a esposa de pelo menos duas semanas juntos no anotodo. Fora desse período, passava semanas e semanas sem vê-las, envolvidoem seus negócios.

— O que há de novo, querida? — indagou ele, impaciente,demonstrando sua inquietação na fala de apetite.

— Estou lendo um bom livro... — respondeu-lhe a esposa, sem desviaros olhos do prato.

Ele desviou os olhos para a filha, que olhava para ele.— E você, meu bem? Não tem nada que possa acrescentar um pouco

de movimento a estes dias tão calmos? — perguntou a Rondha, que sorriuda maneira como ele havia falado.

— Ora, papai! Por que não aprende a relaxar?— Impossível, querida — disse-lhe a mãe sem olhá-los. — É da

natureza das aves de rapina.— Não fale assim dele, mamãe — repreendeu-a brandamente a garota.

— Papai é o último dos conquistadores, apenas isso. Só que lhe faltam

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terras para conquistar, por isso ele fica tão inquieto assim...— Ora, viva! Afinal alguém me entende! — brindou ele, piscando um

olho para a filha.Rondha pensou por instantes. Ruguinhas deliciosas formaram-se em

sua testa. O pai conhecia aquela expressão.— Vamos, lá, o que tem para seu velho, pai? — indagou ele,

visivelmente interessado.— Não sei, foi algo que aconteceu hoje. Sabe aquele rapaz, o Miguel,

aquele que se parece com um cigano? — indagou a garota.— Sim, já o vi conversando com você algumas vezes. O que tem ele?— Falei com ele hoje. Ele e a família estão à procura de um barco. Até

surgiu a ideia de falar com você para ver se emprestava o iate...— Nunca! Sobre meu cadáver apenas! — murmurou ele, com os olhos

faiscando.— Eu sei, sei, pai. O motivo é que foi interessante. A ideia deles é a de

pescar caranguejos.John Becker ficou olhando para a filha sem entender o que tudo aquilo

queria dizer.— Ele é maluco ou o quê? — perguntou John.— Não sei, mas ele estava estranho, com uma expressão que não

entendi. Ouvi alguns pescadores comentando que a família tinha ido para omar de madrugada, fazer ninguém sabia o quê.

John ficou pensativo. Seu faro dizia-lhe que havia alguma coisainteressante ali. Conhecia as pessoas, conhecia a natureza humana. Asmotivações não variavam muito de uma para outra. Todos tinham umcomponente comum: o desejo de mudar para melhor.

Se uma família ia para o mar por algum motivo e, depois disso passavaa precisar de um barco enorme, havia algo por detrás disso.

— Vou até o iate — disse ele, levantando-se apressadamente.— O que vai fazer lá agora? — indagou a mulher.— Ver se curo meu tédio! — respondeu ele, saindo e deixando as duas

sem entender nada.

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Na sede da Perez Y Diez, apesar do adiantado da hora, um homemdebruçava-se sobre relatório, num magnífico escritório com vista para abaía, em La Coruña, na Espanha.

Passava dos cinquenta anos, mas seu corpo demonstrava um vigorelogiável, fruto de um cuidado extremo com exercícios diários e uma dietacontrolada.

Sancho Perez y Diez era um dos mais importantes homens de seu país,dedicado à construção naval. Sua fortuna, diziam, era incalculável, cominvestimentos em todas as partes do mundo, graças a herança sólidas,originadas num passado de glorias discutíveis, que empana o brilho de todaaquela conquista.

Para Sancho, aquilo não tinha a menor importância. Sabia as origensdaquela fortuna e tinha orgulho de seus antepassados piratas, mercenários eoportunistas.

Fazia parte da tradição da família aquela gana por aproveitar aschances que surgiam. Costumavam dizer que herdara todo o sangueaventureiro da família e que, para sua sorte, nada mais era que areencarnação do antepassado pirata, cujo nome ostentava com indisfarçávelorgulho.

Era uma ave rapina nos negócios. Não gostava de perder, por issojamais perdia. Fora isso, era um homem caseiro, com uma enormepreocupação com o futuro dos filhos.

Quando terminou de ler os relatórios, fazendo anotações à margem,chamou sua secretária, uma senhora idosa que já o acompanhava haviamuitos anos.

— Chega por hoje, Carmem — disse ele. — Deixei anotado nosrelatórios o que desejo que seja mudado. Providencie isto para mim logopela manhã pode ser?

— Farei isso, Sancho — prometeu ela, a única a tratá-lo pelo primeironome em todo o imponente edifício.

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Ao invés de retirar-se, como fazia normalmente, Carmem aproximou-se da mesa, provocando a curiosidade dele, que levantou os olhos para ela.

— Mais alguma coisa, Carmem?— Sim, Sancho! Lembra-se daquela família de ciganos, que há uns

vinte anos atrás você pediu aos detetives que localizassem?Os olhos dele brilharam imediatamente.— Sim, o que têm eles?— Bem, ligaram da mesma firma de detetives, informando que tinham

alguma coisa nova sobre os ciganos.— Foi o Detetive Pedro Valejo?— Não, o filho dele. Pedro Valejo morreu há alguns anos, mas o filho

tinha conhecimento do trabalho que estava sendo feito. Pediu que lhemarcasse uma hora amanhã. Combinei que você o receberia às dez damanhã, de acordo?

— Sim, claro — concordou ele. — Não adiantou o que tinha de novo?— Não, disse que falaria apenas com você.— Foi a recomendação inicial. Tudo bem, Carmem. Obrigado e boa

noite!Enquanto Carmem retirava-se, Sancho foi até o cofre particular, oculto

atrás de um impressionante painel de Picasso. Abriu-o e retirou de lá umavelha caixa de madeira forrada de couro. Levou-a para a sua mesa.

Abriu-a e ficou olhando o conteúdo. Eram pedaços de mapas antigos,anotações numa linguagem indecifrável, partes de uma corrente de ouro,algumas moedas antiquíssimas e outros objetos estranhos, mas feitos commetais preciosos.

— O tesouro... — murmurou ele, deixando seu pensamento fluíremnaturalmente.

Aquela era a mais intrigante das lendas que cercavam a casa dos PerezY Diez. Falava de um valioso tesouro que enchia todo o porão de um navioque naufragara em algum ponto do Caribe, levando para o fundo o parentemais festejado da família: o próprio Sancho Perez.

Falava dos ciganos, de quem o tesouro havia sido roubado e dotrabalho insano que desenvolviam para localizá-lo e retomá-lo. Conseguiradescobri-lo, estabelecidos numa ilhota das Bahamas. Por que estava lá? Ali,nas proximidades do local onde o tesouro havia se perdido?

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Os detetives tiveram, então, a missão de mantê-lo sob vigília. Sanchohavia até se esquecido disso. Pelo menos até aquela noite. Deveria seralguma coisa muito importante para que o detetive fosse procurá-lo.

Isso o deixou curioso. Muito curioso mesmo. Afinal, seu sangue pirataparecia dizer-lhe que aquele tesouro não estava de todo perdido.

Chucho e Pepe se aproximaram curiosos do irmão que, calmamente,terminava de escanhoar o rosto. Nada disseram, mas Miguel sabia o queeles gostariam de perguntar.

Assobiou displicente uma velha melodia cigana, lançando, de vez emquando, olhadelas furtivas para os irmãos. Quando acabou o trabalho debarbear-se, o rapaz apanhou um vidro de loção após barba Linsky e aplicouo perfumado líquido em seu rosto.

— É mulher! — comentou Chucho.— Com certeza — confirmou Pepe.— Quem é ela, Miguel?— Apenas uma amiga.— É a garota daquele barco, não é?— Sim, por isso posso estar interessado nela por causa do iate. Já

pensou se o pai dela nos emprestasse? O tesouro...— Se houve mesmo um tesouro, não? — interrompeu-o o irmão

demonstrando não estar convicto disso.— O tesouro está lá, não tenha dúvidas quanto a isso, meu irmão —

disse Miguel, olhando-o duramente.— Não tem medo da Lei? — lembrou-o Chucho que apenas observara

o diálogo dos dois irmãos.— Às vezes gostaria que essa Lei não existisse — falou Pepe, com

certo rancor.— Cale-se, Pepe! Já imaginou o que mamãe diria se o ouvisse falando

assim? — repreendeu-o Miguel.— Vocês, no fundo, concordam comigo. Sabem que tenho razão.

Vivemos praticamente prisioneiros de uma busca. Nada fazemos senão

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esperar ano após ano para repetir toda aquela loucura. Quem nos vê achaque somos loucos!

— O resultado está próximo. O tesouro foi encontrado. Tudo vai semodificar depois disso — consolou-o Chucho.

— Espero que tenha razão, mano. Espero mesmo. E quanto a você,Miguel? O que responderemos se mamãe perguntar por você?

— Digam apenas que saí como sempre faço quando tenho vontade. Oque há de errado nisso?

Os dois irmãos calaram-se. Miguel olhou-se pelo espelho, depois saiu.Foi direto para a praia. Naquela noite, inesperadamente, um garoto vieraavisá-lo que Rondha o esperava lá. Por isso, ansioso, ele foi ao encontrodela.

Viu-a caminhando displicentemente ao luar, com as ondas lambendoseus pés descalços e delicados.

— Pensei que não viesse mais — comentou ela.—Enganou-se. Aqui estou. O que quer de mim?— Conversar. Estou me sentindo tão entediada. Podemos caminhar um

pouco? Ou quer ir até o restaurante tomar uma cerveja?— Não, prefiro caminhar. Vou mergulhar amanhã e não gosto de beber

antes disso.— Mergulho profundo, então? — observou ela.Ele desconversou, olhando a lua, depois o mar. Ao longe, em algum

ponto, estavam as boias marcando o local onde estava adormecido o SantaRosa.

— Para isso queria o barco? — insistiu ela.— Esqueça, foi uma tolice. Já resolvi o caso. Steve emprestou-nos sua

lancha pesqueira, mais adequada aos nossos propósitos.— Para apanhar caranguejos e lagostas, não? — continuou ela,

tentando arrancar dele a verdade.Isso a levará até ele. Não entendia o quanto aquela situação pusera

curioso o pai dela. Por todos os meios ele a fez ir ao encontro de Miguelpara tentar descobrir mais sobre a necessidade de usar um barco maior.

— Digamos que sim — afirmou ele, evasivo.Ela sorriu. Estava começando a gostar daquela missão, pelo mistério

que a envolvia. Quando estivera, momentos antes, no restaurante de Steve,

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pedindo-lhe que mandasse o garoto avisar Miguel, ouvira dele o comentáriosobre o empréstimo da lancha pesqueira à família de Miguel.

Só que, segundo Steve, eles a usariam para retirar corais do oceano. Oque Miguel lhe dizia agora contradizia o que haviam dito a Steve.

— Eu não acredito em você, dizendo que vai usar a lancha paraapanhar caranguejos e lagostas, sabia?

— E por que não?— Não sei. Posso dizer que está mentindo para mim. Não confia em

mim também. Nem sei por que sou sua amiga, depois de tudo isso — falouela, aborrecida.

— Mulheres! — murmurou ele, em voz baixa.Rondha estava parada, braços cruzados, olhando para o céu. Miguel

hesitou. Não podia contar aquilo para ela. Por outro lado, Rondha era suaúnica ligação com o mundo, naquele momento. O resto era a obsessão dafamília, a lenda e o sonho, a missão e a Lei, separando-o de tudo queagradasse seu espírito jovem e inquieto.

Aproximou-se ela. Abraçou-a. Ela manteve a frieza e não se moveu.Estava distante, olhando o céu, imóvel, emburrada.

— Não vai acreditar se eu lhe disser, Rondha — falou ele, hesitante.— Por que não experimenta? Não sou tão idiota assim, já pensou nesta

possibilidade.— Não fale assim — murmurou ele, apertando-a contra si e beijando-a

nas faces e nos lábios.O perfume másculo envolveu-a delicadamente, brincando com seus

sentidos. Ela se deixou dominar por ele, retribuindo, finalmente, os beijosardentes que puderam ambos ofegantes.

— Vamos procurar um tesouro — disse ele, quando se separaram.Ela ficou ofegante, com o luar refletindo-se em seu olhar, olhando para

ele com uma expressão divertida no rosto.— Tesouro? Ora, Miguel! Está zombando de minha inteligência de

novo — riu ela.— O tesouro de um navio pirata que naufragou aqui em mil,

quinhentos e alguma coisa.— Um navio pirata, aqui, nas proximidades de San Juan, onde dezenas

de caçadores de tesouro já sondaram o fundo do mar com os equipamentosmais modernos e sofisticados da atualidade, sem sucesso?

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— Não acredita em mim, não é?— Prefiro acreditar que vai mesmo capturar caranguejos, lagostas e

corais, tudo ao mesmo tempo.— Pois era nisso que eu queria que você acreditasse desde o principio,

não percebeu?— Está bem, não se fala mais nisso — desistiu ela, dando de ombros.Miguel estendeu de novo os braços para ela. Por momentos ela hesitou.

Depois, mansamente, foi aninhar-se entre eles. De qualquer forma, aqueleassunto não a interessava. Queria estar com Miguel porque sentia-se atraídapor ele. Isso e nada mais.

Quando voltou para casa, mais tarde, seu pai a esperava na varanda dochalé que haviam alugado para aqueles dias em San Juan.

— E então, descobriu alguma coisa?Intrigada, a garota foi sentar-se ao lado dele. Não entendia aquele tom

impaciente na voz dele. Conhecia seu pai. Sabia que ele ficava daquelaforma quando envolvia-se num grande negócio ou num projeto grandioso.

Não compreendia o que poderia interessá-lo em relação a Miguel e aoque a família dele fazia.

— Ele disse que vão procurar caranguejos e lagostas... Coraistambém...

— Não pode ser só isso. Não pode ser tão simples. Andei perguntandopor aí. Eles vivem aqui há mais de vinte anos. Não têm uma fonte de rendafixa, mas nunca tiveram problemas com dinheiro. Por que teriam agora?

— Como vou saber? — retrucou ela, pensando no que Miguel haviadito, a respeito de um tesouro.

Não seria isso o que aguçava a curiosidade de John Becker? Pensou emdizer-lhe, mas acabou calando-se. Não tinha certeza se Miguel falara averdade ou não.

Além disso, fosse o que fosse, sabia que seu pai acabaria descobrindode qualquer forma.

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A casa da família Garcia amanheceu em alvoroço. Miguel já havia

levado, juntamente com os irmãos, diversos equipamentos para a lanchapesqueira.

Loreta Garcia e Lupe prepararam comida para o dia de trabalho, queprometia ser cansativo. Todos estavam agitados, cada qual fazendo suaparte.

— Como estão as coisas, filhos? — indagou a dona da casa aosrapazes.

— Está quase tudo pronto, mãe. Só falta levar o compressor de ar paraa lancha. O resto já está todo acomodado e em pouco tempo estaremosprontos para a partida.

— Revisaram todo o equipamento?— Cuidadosamente, mãe. Não temos feito outra coisa durante esses

anos todos a não ser revisar e trocar nosso equipamento, esperando a chancede usá-lo. Ela chegou agora — afirmou Miguel, com convicção.

— Ótimo! Em breve nossa missão estará cumprida.— Posso mergulhar também, mãe? — pediu Lupe.— Não, você será imprescindível no compressor e no recolhimento das

peças que encontrarmos, Lupe — informou o rapaz. — Será mais útil nasuperfície, mana.

Lupe aceitou o argumento do irmão sem protestar. Sabia que cada umtinha seu papel a desempenhar. Terminaram os preparativos e, pouco, poucomais tarde, tomavam o barco cedido por Steve e rumavam para o pontoonde haviam marcado o local da descoberta.

As boias continuavam ali, à flor da água, como as tinham deixado, nodia anterior. A manhã chegava. O sol surgia lentamente, jogando claridadenas águas profundas.

Antes de qualquer coisa, novamente revisaram todo o equipamento.

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— Está tudo pronto, manos. Vamos mergulhar — informou Chucho,finalmente.

— Não vejo a hora de chegar ao navio — comentou Pepe, começandoa vestir o traje de mergulho, seguido pelos outros.

— Não se esqueçam de que vamos mergulhar a quase cinquentametros. — explicou Chucho. — Quando retornarem, não se esqueçam defazer as paradas necessárias para a descompressão. E não esperem o ar dostanques chegar ao ponto crítico.

— Certo, Chucho! Como vamos fazer o trabalho! — indagou Miguel.— Vamos fazer um primeiro mergulho para avaliarmos as condições

do navio, sua posição e tudo o mais. Subiremos em seguida paradiscutirmos e montarmos um plano para sugar as peças menores para cima.As peças maiores e pesadas serão resgatadas com o guindaste lateral. Lupeoperará o compressor e o guindaste, ao nosso sinal.

— Lembrem-se, filhos! O ídolo é nossa missão — lembrou Loreta.— Certo, mãe, mas não vamos desprezar o que encontrarmos pela

frente. De uma forma ou de outra, aquele tesouro nos pertence — afirmouChucho.

Terminaram de vestir os trajes e firmar os tanques de oxigênio àscostas. Fizeram uma última checagem, depois foram até a plataforma napopa, por onde os peixes eram embarcados. Sentaram-se na beirada e um aum foram mergulhando.

— Lupe, ligue o rádio. Precisamos estar atentas ao tempo. Não queroque uma tempestade nos surpreenda — ordenou Loreta.

A garota apressou-se em atendê-la, sintonizando a estaçãometeorológica. A preocupação não se justificava. O sol surgia, iluminandoum céu sem nuvens.

Enquanto isso, no fundo do mar, os irmãos aproximavam-se da grandesombra projetada no fundo do oceano. O navio naufragado estava a unscinquenta metros de profundidade, onde a claridade já era prejudicada. Elesacenderam suas lanternas.

Perceberam logo que teriam de agir com extrema prudência. O barcoestava ali há séculos. Qualquer passo em falso poderia levar a um acidentegrave.

O Santa Rosa jazia de lado. Seu casco não apresentava nenhum rombo,o que levava a crer que havia adernado durante a tempestade. Os mastros

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estavam aparentemente intactos, assim como todo o madeirame do convés.Miguel fez sinais aos irmãos, apontando a porta que deveria levar à

cabine do capitão. Haviam estudado todos os tipos de caravelas da época.Não teriam dificuldades para orientarem-se no Santa Rosa, pois até umesquema do navio eles haviam conseguido.

Através de gestos, discutiram entre si se deveriam ou não tentar entrarno navio. Miguel insistiu para que o fizessem. Seus irmãos acabaramconcordando.

Com gestos lentos e prudentes, Miguel conseguiu abrir a porta semmaiores dificuldades. Mergulharam num corredor estreito que conduzia auma cabine ampla, onde velhos objetos, parcialmente destruídos pelasalinidade e pelo tempo, espalhavam-se numa desordem tétrica.

A um canto havia um grande cofre de metal, o maior que os irmãos jáhaviam visto em suas vidas.

Aproximaram-se surpresos. A porta estava trancada e emperrada. Seriadifícil abri-la, a menos que usassem recursos apropriados.

Através de sinais, decidiram voltar à superfície, tomando todas asprecauções com a descompressão. Se subissem rápido demais, seuspulmões simplesmente poderiam explodir.

— Encontraram? — indagou Lupe, ansiosa, quando eles subiram naplataforma e tiraram as máscaras.

— Sim, está lá — informou Chucho. — Mas vamos ter problemas.Entramos na cabine do capitão. Encontramos um cofre lá, um cofre enorme.

— Conseguiram abri-lo? — quis saber Loreta.— Não, está tudo enferrujado e comido pelo sal. Além disso, é

arriscado mexer com ele. O madeirame está ali há muito tempo. É difícilfazer um prognóstico de sua resistência. Pode ceder se forçamos. Se issoacontecesse, com o peso, o cofre desceria destruindo tudo a sua passagempara ir enterrar-se no lodo, onde teríamos muito trabalho para localizá-lo eresgatá-lo.

— E o que pode ser feito, então? — indagou ela, impaciente e nervosa.— Acalme-se, mãe. Temos de pensar bem no assunto. Não temos

condições nem de avaliar o peso daquele cofre. Poderíamos prendê-lo aoguindaste lateral, mas se ele for mais pesado do que supomos, poderá viraresta lancha.

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— Mas tem que haver um meio — falou Lupe, igualmente impaciente,ajudando-os a tirarem os tanques de oxigênio.

— Se não houvesse risco, poderíamos usar um maçarico. Demoraria,mas cortaríamos toda a porta, sem maiores problema. O difícil seriaremover essa tampa, sem provocar um acidente — comentou Chucho.

— É uma alternativa que podemos utilizar, mas precisamos nosgarantir quanto àquele cofre.

— Poderíamos prendê-lo a algumas boias para ajudar na sustentação e,para o caso de algum imprevisto, prender um cabo de aço. Se ele for aofundo, só precisaremos de um guindaste maior — sugeriu Miguel.

— Miguel tem razão. É isso que devemos fazer — decidiu Loreta. —Temos boias suficientes para isso?

— Vou dar uma olhada no porão. Acredito que Steve tenha o seuprecisamos. Ao trabalho pessoal — falou Chucho.

Como previra, Chucho encontrou diversas boias de grande porte eautoinfláveis no porão, o suficiente para estabilizar o cofre e até para trazê-lo à superfície.

Enquanto isso, os seus irmãos haviam preparado o cabo de aço paraprender ao cofre.

— Pronto, acho que dará certo — falou ele. — Ainda temos muito arnos tanques. Vamos descer, prender as boias e o cabo de aço e subir paranos prepararmos para a etapa seguinte. Para facilitar, vamos abrir umburaco no madeirame do navio para chegarmos direto ao cofre, sempassarmos por aquele corredor estreito.

— Ótima ideia! — elogiou Miguel, apanhando um pé de cabra.— Mas faça isso com calma, Miguel. Não quero pôr tudo a perder

agora — recomendou ele.Mergulharam novamente. Miguel abriu passagem com facilidade,

desmontando uma das janelas traseiras da cabine. Por ali entraram,prenderam as boias e o cabo de aço ao cofre, depois examinaram toda asituação do local.

Quando terminaram o trabalho, retornaram à superfície, ondeestudaram a melhor maneira de cortar o cofre com um maçarico apropriado.

— A melhor opção é cortar toda a porta, prendê-la a uma das boias eremovê-la. Acham que será possível? — sugeriu Chucho.

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— Não vejo alternativa — comentou Miguel. — Vamos levar o cestodo guindaste. Se encontrarmos algo lá dentro, começaremos a recolher.

— Certo! — concordaram os outros.— Agora é para valer, filhos — disse Loreta.— Como está o tempo? — quis saber Chucho.— Sem problemas até agora.— Então vamos lá, pessoal.

Longe dali, na praia, com um binóculo, Steve não tirava os olhos desua lancha pesqueira. Não podia ver o que se passava no tombadilho nemconseguia imaginar o que eles estavam fazendo lá.

Sabia, no entanto, que não pediram a lancha emprestada para apanharcorais, não naquele lugar de águas profundas. Compenetrado em suaobservação, não percebeu a aproximação de Rondha.

— O que acha que estão fazendo? — indagou ela, surpreendendo-o.— Olá, Rondha! O que perguntou mesmo?— Falo deles, dos Garcia. O que fazem lá?— É o que gostaria de saber também. Garanto que não estão colhendo

corais.— Nem caranguejos e lagostas, não?— Certo. Não com todo o equipamento que levaram para a lancha.Ficaram olhando apenas. Um jet-sky passou velozmente à frente deles,

além da arrebentação. Logo depois, uma lancha, puxando um esquiador.— Acho que vou aproveitar a manhã e esquiar um pouco — decidiu a

garota.— Espere! — pediu ele, pensando por instantes.Ela percebeu que ele tramava alguma coisa.

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O trabalho era penoso e demorado. Miguel e os irmãos revezaram-seno trabalho de cortar a parte da frente do cofre. Quando terminaram, tinhamum trabalho novo a enfrentar: removê-la sem provocar acidentes ou danosmaiores.

Uma das boias estava presa a um puxador da porta. A ideia dos rapazesera inflar a boia e fazê-la levar a porta para fora da cabine.

Com cuidado trataram de fazer isso. A boia foi acionada e o dispositivoauto inflante foi disparado. Rapidamente a boia foi se enchendo.

O cabo que a prendia à porta retesou-se. Miguel auxiliou com aalavanca, enquanto Chucho e Pepe guiavam-na para a abertura na cabine.

Por momentos pareceu que a boia não suportaria o peso, obrigando-osa tentarem sustentá-la, mas isso não foi preciso. Após um momento deexpectativa, a porta foi sendo empurrada para fora lenta, mas firmemente.

Os irmãos exultaram. Assim que a porta saiu, Chucho soltou o caboque a prendia. Ela desceu rapidamente para o fundo, levantando uma nuvemescura de lodo.

Voltou à cabine. Pepe e Miguel iluminavam deslumbrado o interior docofre. Chucho aproximou-se. Seus olhos se arregalaram, fascinados, diantede tanta beleza.

Havia ali joias de todos os tipos, pedras faiscantes, muito ouro e prata,numa quantidade acima da imaginação, mais do que suficiente para oresgate de um rei.

Inesperadamente, no entanto, o grande navio balançou levemente,fazendo toda a estrutura ranger tetricamente. Miguel fez sinal de perigo.Chucho respondeu que não era nada. Estavam por demais extasiados com oespetáculo para pensar em risco naquele momento.

Miguel insistiu, indagando do ídolo. Não estava a vista. Precisavamretirar o conteúdo do cofre até localizá-lo. O rapaz insistiu com os irmãos,tirando-os do deslumbramento diante de tanta riqueza.

O cesto do guindaste foi trazido para a cabine. Começaram atransportar o conteúdo do cofre para o cesto, mas este era muito pequenopara tanta coisa.

Miguel fez sinal a Pepe que subisse, acompanhando o cesto e queretornasse com outro maior. Ele entendeu. Puxou o cabo do guindastealgumas vezes, sinalizando para que ele fosse puxado. Na lancha, Lupeentendeu o sinal e começou a acionar o guindaste.

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Quando o cesto já saía da cabine, Pepe esbarrou na madeira. Algorangeu dele e, inesperadamente, uma estrutura de canhão arrebentou omadeiramento e caiu atrás dele, bloqueando a passagem.

Pepe ficou em pânico. Tentou empurrar o pesado canhão, mas Miguel eChucho, do outro lado da abertura, fizeram sinais para que ele não o fizesse,indicando que ele poderia deslizar e cair sobre o cofre, levando tudo para ofundo.

Ao mesmo tempo, não havia como os dois saírem dali. O movimentodo navio, acentuado pela queda do canhão, fizera erguer-se uma nuvem delodo que cobriu-lhes a visão. Miguel não soube onde deixara a alavanca,com o qual poderia tentar abrir outra passagem.

Miguel apontou, então, o relógio onde marcava o tempo restante de ar,fazendo sinais a Pepe para que subisse e retornasse com novos tanques.

O rapaz compreendeu e nadou para a superfície, indo no limite doperigo, pois um pouco mais rápido poderia significar perigo mortal.

Quando chegou à lancha, Loreta e Lupe deslumbravam-se com as joiasque haviam sido recolhidas. Era tudo valioso, incalculavelmente valioso.

Tudo que fora recolhido estava depositado numa vasilha com umasolução apropriada para promover a limpeza e evitar problemas com aexposição ao sal da água do mar.

— Pepe, que maravilha, filho! — exultou Loreta, quando o rapaz subiudesesperadamente a bordo.

— Mãe, Miguel e Chucho estão presos no navio — gritou ele,apavorado.

— Santa Mãe! Como aconteceu isso?— Quando retirava o cesto, esbarrei no madeiramento. Ele cedeu e um

canhão caiu, cobrindo a abertura. É arriscado tentar removê-lo. Ele podecair sobre o cofre e sobre Miguel e Chucho.

— Não há algum modo deles saíram de lá?— Não sei ainda. O navio moveu-se. O lodo escureceu tudo por lá.

Eles estão com pouco ar. Vou descer e levar alguns tanques, Lupe,mantenha os tanques carregados — pediu ele.

Os tanques reserva foram acomodados no cesto do guindaste.Mergulhou e desceu até o navio. O lodo começava a assentar-se. Pepelembrou-se da entrada da cabine, por onde passaram na primeira vez queestiveram ali.

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Levou os tanques de ar aos irmãos e recolheu os outros, pondo-os nocesto e sinalizando para que Lupe os recolhesse. Apontou a outra entrada dacabine para Miguel, que fez um sinal de negativo, depois pediu a Pepe quefosse verificar o que ocorre.

O rapaz nadou até o convés adernado do navio. Quando o madeiramecedera, fazendo passar o cachão, provocara uma reação em cadeia noconvés do navio.

Toda a parte do convés até o corredor da cabine estava destruídos, poisos canhões que se encontravam precariamente equilibrados ao longo daamurada cederam junto.

Retornou à estreita abertura deixada pelo canhão e sinalizou para osirmãos o que vira.

Miguel se mantinha frio, apesar do risco. Sinalizou para que Pepetrouxesse o cesto do guindaste. A ideia era irem retirando o conteúdo docofre. Sempre que precisassem, novos tanques de ar seriam trazidos.

Quando terminassem o trabalho, pensariam no que fazer. Poderiam atédeixar que o canhão arrastasse o cofre para o fundo lodoso do oceano.

Pepe concordou, com um sinal, avisando que iria subir para avisar amãe e a irmã e trazer o cesto.

Quando afastava-se, porém, inesperadamente toda a estrutura do naviorangeu como um monstro ferido e novamente uma nuvem de lodo ergueu-seameaçadoramente.

Ele nadou rapidamente para a superfície. Rápido demais, porém.

O corpo de Pepe boiou estranhamente, assustando Loreta e sua filha.

Ficou imóvel ao sabor das ondas. As duas se olharam, apavoradas.— O que houve? — indagou Loreta.— A descompressão... Ele subiu rápido demais...— Meu Deus! — exclamou a mãe, sem saber o que fazer.

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Sem que percebessem de imediato o que acontecia, a lancha passava aolado de Pepe e Steve lançava-se ao mar, resgatando-o e levando-o para alancha pesqueira.

Pepe continuava imóvel, a pele azulando-se, um filete de sangueescorrendo de seu nariz. Sua respiração era fraca, quase imperceptível.

— Precisamos fazer alguma coisa... Meu filho está morrendo —suplicou Loreta.

— Steve levantou os olhos para Lupe, pensando rápido. Viu os outrosequipamentos de mergulho que estavam de reserva.

— Ajude-me aqui, Lupe — pediu ele, tirando a camisa e correndoapanhar um tanque de oxigênio e uma máscara.

Lupe ajudou-o a firmá-la às costas.— O que pretende fazer? — indagou ela.— Não há outra forma. Vou descer com ele e subir de novo, bem

lentamente. É a única chance — explicou ele, indo apanhar o corpo dePepe.

Ajustou-lhe a máscara e o respiradouro de oxigênio. Mergulharamjuntos. Lupe e a mãe torciam nervosamente as mãos. Pepe estava à beira damorte. Chucho e Miguel corriam perigo lá embaixo, presos ao navionaufragado.

Era a maldição do ídolo manifestando-se de novo, mas ambas temiamcomentar ou pensar nisso.

Tentavam encontrar uma chance de resgatar os dois irmãos no navio e,ao mesmo tempo, garantir a recuperação de Pepe. O único auxílio quepoderiam ter agora era o de Steve.

Apenas ele poderia continuar o trabalho de Pepe, mas, para tanto, seriapreciso revelar a ele todo o segredo que a família guardara durante anos.

Esperaram e esperaram, com a expectativa e a apreensão vincando seusrostos. Rezaram, enquanto observavam as bolhas de ar que subiam do fundodo mar e explodiam na superfície.

Mergulhado no oceano, segurando Pepe, Steve cuidava para que orapaz respirasse constantemente, enquanto subiam lentamente, dando tempopara que seu corpo se recuperasse dos efeitos da pressão na medida certa.

Com alívio, finalmente, percebeu que ele abria os olhos. Debateu-sepor instantes, mas Steve manteve-o imobilizado, impedindo que ele voltassea subir da forma errada.

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Passou-se algum tempo, até que retornassem à superfície. Lupe e suamãe suspiraram de alívio ao vê-lo. Ajudaram Steve a levar Pepe para bordo.

O rapaz abraçou a mãe e a irmã com força, mas ainda não estava detodo bem. Precisaria de tempo para recuperar-se e o melhor a fazer era levá-lo para cama imediatamente.

Steve levantou-se. Olhou ao redor. Percebeu alguma coisa errada.— Onde estão Miguel e Chucho? — perguntou ele, notando que a

apreensão das duas não diminuíra com o resgate de Pepe.Parecia haver mais algum perigo rondando aquela família misteriosa.— Estão lá embaixo — respondeu Loreta, com certa hesitação na voz.— Deve haver uma forma de avisá-los. É melhor subirem e levarem

Pepe para o hospital da vila. Haverá alguma coisa que possam fazer,embora o ideal fosse que o levassem à Câmara de Descompressão daMarinha...

— Não podemos — falou Lupe e o desespero estava claro em sua voz.— Por que não?Lupe olhou para a mãe. A angústia das duas era visível. Loreta, no

entanto, mantinha seus olhos fixos no horizonte, atrás de Steve, como sevisse os portões do inferno abrindo-se.

Naquele ponto, a massa negra de nuvens avançava inexoravelmente.Loreta conhecia-as muito bem. Eram nuvens de chuva forte e violenta.Nuvens de tempestade.

Acostumara-se, durante todo o tempo em que vivera ali, em San Juan,a interpretar os sinais do céu. Sabia o perigo que corriam.

— O que foi, mãe? — quis saber Lupe, olhando na direção que a mãeolhava.

Steve fez o mesmo.— Demônios! — praguejou ele.— E agora, mãe? — indagou a garota, traduzindo toda a sua apreensão

nas mãos torcidas diante do peito.— Mas o que está havendo aqui afinal de contas? — explodiu Steve,

sem entender ainda o mistério que rondava aquele cenário. — Vocês duasquerem começar a raciocinar claramente? Pepe não está bem, precisa deatendimento médico urgente. O que há com as duas?

— Não podemos lhe contar nada, tem que entender isso — suplicouLoreta, enigmaticamente.

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— Certo, não precisam me contar. Só deixem-me levar Pepe até ohospital...

— E Miguel e Chucho, quem vai ajudá-los? — questionou Loreta,pateticamente.

— Ajudá-los por quê? — quis saber Steve.Loreta hesitou. Lupe olhou a mãe nos olhos, enchendo-se de coragem.— Eles estão presos lá embaixo, Steve — falou ela, não vendo outra

saída.Afinal de contas, tudo agora estava nas mãos dele, em sua presença de

espírito, na sua perícia de mergulhador. Só ele poderia mergulhar até lá eresolver o problema que aprisionava os dois irmãos no madeirameapodrecido de um velho navio naufragado.

E tudo isso precisava ser feito com rapidez. Aquelas nuvens indicavamque logo o mar ficaria furioso, tornando imprevisível a situação do velhonavio naufragado.

— Presos como? em quê? — quis saber Steve, sem entender ao certo oque se passava.

— Não, Lupe, não diga mais nada — exigiu Loreta. — Fomos unstolos, realmente uns tolos. Esquecemo-nos do ídolo e da maldição que ocerca. Nada podemos fazer, filha. Nada. Tezcatlipoca está cobrando seupreço por ter sido perturbado, após tanto tempo de silêncio no fundo domar.

Steve acompanhava tudo aquilo sem entender. As mulheres falavam dealgo que ele desconhecia. Enquanto isso, as nuvens perigosas eameaçadoras avançavam e Pepe gemia no tombadilho da lancha pesqueira.

— Lupe, explique-se direito e com calma o que está havendo aqui.Onde estão seus irmãos? O que fazem lá no fundo? O que os prende láembaixo? — questionou ele, segurando-a pelos ombros e fazendo-a olhá-lode frente.

Lia nos olhos dela e no da mãe algo cheio de desespero e mistério,como se alguma coisa desconhecida as dominasse, enchendo-as de pavor.

Precisava saber o que era para poder ajudar. Aquela relutância que vianas duas poderia provocar a morte de Pepe e dos outros dois, quando aquelatempestade chegasse.

Se não se apresse, a própria lancha pesqueira poderia ir ao fundonaquela tempestade ameaçadora que vinha na direção deles.

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Lupe olhava para a mãe, suplicando uma autorização para esclarecerSteve. Loreta olhou fixamente para a filha, depois para as nuvens escurasque se aproximavam.

Continuou indecisa, para desespero de Lupe, que livrou-se das mãos deSteve e foi apanhar a sacola que estava perto dela. Virou-a sobre o convés.Steve ficou sem fala ao ver o conteúdo espalhar-se a seus pés.

Abaixou-se extasiada, admirando aquelas joias raras e valiosas.— É ouro, prata, diamantes, rubis, esmeraldas... Isto é um verdadeiro

tesouro! — exclamou ela.— Sim, Steve, é um tesouro, mas um tesouro maldito. Meus irmãos

estão presos lá embaixo agora, em um navio naufragado. Foi de lá que veiotudo isso...

— Isso explica todo o mistério, mas não justifica deixar que os doismorram lá embaixo — repreendeu-as ele. — Miguel e Chucho precisam deajuda, tanto quanto Pepe...

— Steve, é uma história longa e complicada demais para lhe contaragora. Se tivermos tempo mais tarde, eu lhe darei todos os detalhes. Oimportante agora é salvar Miguel e Chucho. Eles estão lá agora e precisamde ajuda. Só você pode tirá-los de lá. Por favor, faça isso! — suplicou agarota.

Por momentos ele ficou olhando para as lágrimas nos olhos dela.Depois, decidido, olhou ao redor. Separou algumas ferramentas. Depoisolhou o céu.

— Quanto tempo acha que aquela chuva vai demorar a chegar até nós?— indagou a Loreta.

Ela não respondeu de imediato. Ficou olhando para ele como umintruso, alguém que violava os segredos da família.

— Por favor, mãe! — pediu Lupe, desesperando-se.Loreta começou a perceber, então, toda a loucura que fora sua vida.

Estava obcecada por aquela missão a ponto de deixar que seus três filhosmorressem por um segredo.

O que lhe restaria sem eles?— Meia hora... Talvez uma hora, se o vento não estiver forte...— É bom que esteja certa, senhora. A vida de seus filhos depende

disso. — falou Steve, começando a prender ao corpo o tanque de oxigênionovamente.

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— Não chegará aqui antes de uma hora — tornou ela, agora comconvicção.

— É tempo suficiente, se tudo correr bem. Como estão eles com ostanques de oxigênio lá embaixo? — indagou a Lupe.

— Deve ter o bastante. Pepe havia substituído e pretendia levar mais.— Farei isso. Continue enchendo os tanques. Sabem em que espécie de

problema eles se metera?— Pepe nos disse que esbarrou num canhão e ele caiu na entrada da

cabine, fechando-a parcialmente. Há uma estreita passagem por ondepodem se comunicar, mas não o suficiente para que possam sair.

— Já é alguma coisa — afirmou ele, olhando para o guindaste dalancha. — Não sei como estão as coisas lá embaixo, mas nossas chances seresumem no uso do guindaste. acha que pode operá-lo corretamente, Lupe?

— Sim, eu o estava usando para trazer o resgate do cofre-forte donavio para cima.

— Desta vez será diferente. Possivelmente um peso enorme e atéacima da capacidade do próprio guindaste. Mas só saberei isso descendo lá— informou ele, indo até a plataforma de mergulho da lancha. — Revise-o,Lupe! — acrescentou, antes de mergulhar nas águas agoraameaçadoramente paradas do oceano.

A tempestade era precedida de um período de calmaria que, naquelaregião, significava um perigo adicional para os pescadores. A calmaria osimpedia de voltarem para casa, deixando-os à mercê da tempestade, comonuma armadilha e mortal.

Steve seguiu o cabo amarrado às boias, descendo cada vez mais, atéperceber a silhueta escura do navio, de lado no oceano, como um grandepaquiderme adormecido.

Foi fácil encontrar a cabine. Ao vê-lo, porém, Miguel surpreendeu-se.Fez sinal perguntando por Pepe. Steve fez o possível para explicar que

o rapaz subira rápido demais e não estava bem agora. Sempre através desinais, Steve contou-lhes que teria de tirá-los dali o mais depressa possívelpor causa da tempestade que se avizinhava.

Examinaram os três a posição do canhão, verificando se havia algumapossibilidade de empurrá-lo para fora da abertura, deixando-o cair nadireção do fundo lodoso.

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Não era uma decisão acertada. O canhão encravara-se no madeiramede tal forma que movê-lo lateralmente somente provocaria sua queda diretapara cima do cofre. Não havia como levantá-lo simplesmente e empurrá-lopara fora.

Steve mencionou o guindaste. Miguel opinou que ele não suportaria opeso. Steve deu a entender que era a única solução. Por momentos Miguel eChucho se olharam. Suas expressões eram sombrias naquela profundidade.Os dois concordaram, finalmente, com um sinal de mão.

Steve quis saber como iam com o oxigênio. Ainda lhes restava osuficiente para tentarem o resgate. Steve recomendou-lhes calma e subiupara a superfície.

— Como estão eles? — quis saber Loreta, angustiada e apreensiva.— Estão bem, na medida do possível. Para tirá-los de lá só nos resta

usarmos o guindaste. Estão mesmo numa séria armadilha. Não sei comoentraram nessa...

— E nem queria saber — disse-lhe Lupe. — Isto é parte de umatragédia, de uma grande tragédia que dizimou uma tribo inteira de ciganos.Mas não falemos nisso agora. Antes precisamos tentar salvá-los.

— Ok! Você ficará nos controle do guindaste, Lupe. Quero que estejaatenta para aquela boia ali — apontou ele.

— Sim, estou vendo. O que deverei fazer?— Quando eu a puxar uma vez, acione o guindaste lentamente. Se a

velocidade estiver demasiada, puxarei duas vezes a corda da boia e vocêreduzirá ainda mais. Se eu puxar três vezes, você deve desligarimediatamente o guindaste e travá-lo. compreendeu?

— Sim, compreendi.— Acha que pode fazer isso?— Farei, Steve. Confie em mim.— Eu confio, querida — disse ele, com convicção e carinho,

segurando o rosto dela entre as mãos e olhando-a nos olhos, transmitindo-lhe confiança.

Ele soltou-a e recuou, tropeçando no tesouro espalhado no tombadilho.— Há muito disso lá embaixo? — perguntou ele.— Um cofre enorme — informou Lupe.— Acho bom guardar isto. Pode chamar a atenção muito fácil. Há

gente que fareja isto no ar, podem acreditar! — afirmou ele, apanhando a

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ponta do cabo do guindaste.Foi para a plataforma. Olhou Lupe, sorriu para ela, depois ajeitou o

bocal do respiradouro na boca. Baixou a máscara e mergulhou.De volta ao navio naufragado, com a ajuda de Miguel ele prendeu a

ponta do cabo à parte mais pesada do canhão, a culatra, amarrando-ofirmemente.

Observou o movimento que o canhão faria, fazendo com que Chucho eMiguel também entendessem isso. Uma abertura surgiria, com amovimentação do canhão e os dois deveriam aproveitar esse momento paraescaparem daquela armadilha.

Quando teve certeza que os dois haviam entendido, afastou-se umpouco e puxou a boia, conforme combinado com Lupe. O cabo começou adistender-se lentamente, conforme suas ordens à garota.

Repentinamente, porém, alguma coisa deu errado. Ao invés decontinuar estendendo-se devagar, o cabo foi puxado violentamente, fazendoo canhão erguer-se por alguns centímetros, antes de cair de novo no seuninho de madeira.

Steve não teve tempo de entender o que se passava nem de se desviardaquele raio escuro que veio em sua direção. A ponta do cabo partidoatingiu-lhe violentamente. Ele sentiu como se os ossos de seu braço separtissem dolorosamente. Atordoado, nadou vagarosamente para asuperfície, lutando contra o desejo desesperado de chegar logo e medicar obraço que jazia imóvel e amortecido ao lado do corpo.

— O que houve? — indagou Lupe, em desespero, quando ele tentousubir sozinho na plataforma.

Ao perceber que alguma coisa estava errada, correu ajudá-lo. elegemeu, quando ela segurou-lhe o braço atingido.

— Meu Deus! — exclamou, ao ver o enorme hematoma em seu braço.— O que aconteceu, Steve?

— O cabo... Foi puxado de repente... Ele se partiu e a ponta atingiumeu braço... Não o sinto... Está amortecido agora... Deve ter se quebrado...

— Eu sabia! eu os avisei! — gritou Loreta, fora de si. — É a maldição.Eu sabia que seria impossível lutar contra ela. Estamos todos condenados.Meus filhos morrerão...

Olhando-a, o perfil recortado contra as nuvens escuras e ameaçadoras,Steve teve certeza de ver ali a materialização de maldição que ela citava.

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Pepe gemeu e tentou se erguer. Estava um tanto pálido, mas parecia

bem, o que aliviou Steve. Lupe examinou-lhe o braço. O local estavaintumescido, mas não havia sinais de fratura.

— Mantenha Pepe deitado — ordenou Steve a Loreta, que se movia deum lado para outro, como uma louca.

— Acalme-se, mãe — gritou-lhe Lupe, levantando-se e fazendo-aparar. — Não podemos nos desesperar!

— O que está havendo? — indagou Pepe, num murmúrio quaseininteligível.

— Pepe! Meu filho! Você está bem? — despertou Loreta, ajoelhando-se ao lado dele.

— Isso, mantenha-o quieto — pediu Steve. — Vou ter de mergulhar denovo — acrescentou ele, olhando as nuvens escuras que se aproximavam.

— Não pode! — exclamou Lupe, agoniada.— Preciso ir ou seus irmãos não terão nenhuma chance, Lupe. Dê-me a

ponta do cabo de novo — ordenou ele.— Mas o seu braço...— Não importa meu braço. Agora sei que ele não está quebrado e isso

me basta. Logo recupero os movimentos. O importante é descer logo paraajudar seus irmãos.

— Como veio parar aqui? — indagou-lhe Pepe, encostado ao colo damãe.

— Eu estava de passagem, foi isso — respondeu Steve, evasivamente.— Não volte lá. Você será morto também. A maldição não vai perdoá-

lo — alertou Loreta.— Não acredito em maldições, senhora. E vou precisar que vocês duas

façam esse guindaste funcionar direito desta vez. Quando eu der o sinal,façam-no puxar lentamente, ouviram? Lentamente — sublinhou ele.

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— É inútil! Não poderemos jamais vencer o poder das trevas. O ídolovai nos destruir a todos — insistiu Loreta, olhando as nuvens.

— Mas podemos ao menos tentar. Se fosse para morrer, Pepe já teriamorrido — argumentou o rapaz.

— Ele tem razão, mãe. Não podemos nos intimidar com a maldição,não depois de termos chegado até este ponto — ponderou Pepe. — Chuchoe Miguel precisam da ajuda e só ele poderá fazer isso agora.

— Pode dar conta de tudo aqui, Lupe? — indagou Steve à garota.— Sim, vá tranquilo. Não force o braço, por favor!— Eu terei cuidado — afirmou ele, apanhando a ponta do cabo do

guindaste e mergulhando de novo.Era mais difícil agora, com um braço quase imobilizado, mas Steve

usou todas as suas forças e habilidade de mergulhador experimentado.Quando chegou ao Santa Rosa e aproximou-se da abertura

parcialmente coberta pelo canhão, Miguel fez-lhe sinais desesperados deque os tanques de ar precisavam ser renovados.

Steve quis saber de quanto tempo eles ainda dispunham. Miguelsinalizou quinze minutos.

Steve pensou rapidamente no que poderia fazer. Seria arriscado tentarremover o canhão. Se alguma coisa desse errado, não haveria tempo parasubir e retornar com novos tanques. Para evitar problemas com a pressão,precisavam de um suprimento confortável de oxigênio.

Sinalizou que subiria para buscá-los, após pensar por mais algunsinstantes. Ao vê-lo, Lupe angustiou-se.

— O que houve? Eles estão bem?— Sim, está tudo sob controle. Precisam de novos tanques de ar. Pode

apanhá-los para mim?— Rápido! Aquelas nuvens estão vindo depressa demais agora —

comentou ele.Lupe trouxe dois novos tanques de oxigênio para a plataforma. Steve

continuava na água, esperando por ela. Subir na plataforma seriatremendamente penoso para ele.

— E o braço?— Amortecido ainda. Prenda as correias dos tanques umas nas outras

— pediu ele.

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Lupe afivelou os tanques entre si, depois os enroscou no braço deSteve. Ele consultou o relógio, apreensivamente. Os minutos passavamrápidos. Tinha de agir com rapidez maior.

Os primeiros raios podiam ser vistos no céu. O barulho da tempestadeindicava que seria realmente violenta. O mar começava a agitar-se.

Mergulhou rapidamente, retornando ao navio naufragado. Fez a trocados tanques de ar. Voltou a prender o cabo no canhão, desta vez com maiorcuidado.

Sinalizou aos dois rapazes e afastou-se. Deu o sinal a Lupe. O canhãocomeçou a subir lentamente, fazendo ranger o madeirame onde encaixara-se.

Instantes depois a enorme e pesada peça estava livre. Steve apressou-seem fazer escapar o cabo, fazendo o canhão descer e ir enterrar-se no lodo.

Chucho e Miguel saíram pela abertura. Sinalizaram apontando otesouro. Steve informou-os da tempestade que se avizinhava. Miguelinsistiu. O cofre estava sem a porta. Se o navio oscilasse ou se o madeiramecedesse, as joias e todo o conteúdo do cofre iriam se perder no lodo dofundo do mar.

Steve não lhe deu atenção, dando a entender que o perigo acima delesera iminente. Eles nadaram, finalmente, para a superfície.

Lupe exultou de alegria ao ver os irmãos surgiram juntamente comSteve. Loreta mal podia acreditar. Seus filhos estavam ali, diante dela, vivose a salvo.

Abraçou-os com o desespero de uma mãe. Seu olhar banhado delágrimas cruzou com o de Steve. Por momentos, um brilho novo pareciaagradecer ao rapaz.

— Nós lhe devemos a vida — falou Miguel.— Os três — lembrou Pepe. — Não teríamos conseguido sem a ajuda

dele.— Eu não queria ter me intrometido, mas fico feliz de ter passado aqui

na hora certa. Jamais foi minha intenção meter-se em seus segredos...— Acho melhor irmos embora ou a maldição do ídolo vai se

materializar naquelas nuvens escuras — comentou Loreta.O vento começava a soprar mais forte. As ondas cresciam, fazendo a

lancha oscilar. Os raios e trovões estavam próximos.

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— Ela tem razão. Vamos dar o fora daqui. Depois Steve ficará sabendode tudo — sugeriu Chucho.

— Não, acho que é justo que ele saiba de tudo agora mesmo. Afinal,emprestou-nos o barco e ainda salvou nossas vidas — discordou Miguel.

— Todos têm razão, mas acho que o melhor a fazer é dar o fora daqui— decidiu Steve, indo assumir os comandos.

As primeiras gotas de chuva começaram a tamborilar no convés. Elerumou o mais veloz que pôde na direção de San Juan, onde atracaram.

Steve acompanhou-os até a casa deles, ajudando-os a carregar Pepe. Achuva já caía forte e o vento tornava difícil a caminhada. Uma vez lá, Pepefoi posto na cama. O resultado daquela manhã de trabalho foi espalhadosobre a mesa.

— São lindas! — murmurou Lupe, apanhando um colar digno de umaprincesa e segurando-o ao redor do pescoço.

— São impressionantes... — comentou Steve.— Acho que devemos contar-lhe agora como tudo isso começou, Steve

— disse Miguel.Em rápidas palavras ele explicou-lhe todo o segredo que envolvia a

família, ligando-a ao Santa Rosa e ao ídolo que, possivelmente, talvez aindaestivesse dentro do cofre.

— É uma história fantástica, pessoal. E fica ainda mais fantásticaquando se olha para isto aqui — falou ele, apanhando uma das joias epondo-a contra a luz.

Era um rubi de rara beleza, valiosíssimo. Se aquela era apenas umaamostra do tesouro, o restante do cofre prometia maravilhas inimagináveis.

— Eu por mim deixaria tudo isso de lado e trataria de ir embora daquio mais depressa possível. Acho que vivemos muito tempo cultuandofantasmas. Não quero mais essa maldição para nós — ponderou Loreta.

— Não, mãe, não acredito mais que se trate de uma maldição. Achoque foi uma penitência que nós superamos. Todo aquele tesouro é nossarecompensa e não vamos deixá-lo lá. Acho que adquirimos o direito a ele.Já caminhamos demais por este caminho e não podemos retroceder, agoraque estávamos chegando ao fim da nossa penosa jornada. Devemos ir até ofim. Precisamos — afirmou Miguel.

— Acho que ele tem razão, se é que eu tenho o direito de opinar,pessoal — falou Steve. — Antes de qualquer coisa, precisamos nos preparar

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com Pepe e mantê-lo sob observação. Não há muito a ser feito com essatempestade lá fora, mas o estado dele ainda inspira cuidados. Felizmente éum rapaz forte e isso vai ajudá-lo. Quando a tempestade passar, iremosresgatar o conteúdo do cofre, se quiserem a minha ajuda.

— Se sobrar alguma coisa naquele cofre, com o mar agitado como está— lembrou-se Chucho.

— Sobrará, pode estar certo. O cofre está preso às boias. Se afundar,nós o localizaremos por elas. Além de tudo, o Santa Rosa resistiu porséculos e deve ter enfrentado inúmeras tempestades, com certeza maisfortes do que esta. Não será agora que ele cederá — opinou Miguel.

— O que acha, mãe? — quis saber Lupe.— Ainda não sei... Foram momentos de tensão e medo. Jamais me

senti tão desesperada e tão desamparada, vendo que poderia ficar sem vocêstrês...

— Acho que entendo o que você passou, mamãe. Eu também me sentida mesma forma. Acho que o melhor e fazer é aceitar a sugestão de Steve.Vamos cuidar de Pepe e esperar a tempestade passar. O navio esperará.Recomeçaremos tudo depois — propôs Lupe.

Todos concordaram com ela.

Carmem abriu a porta do luxuoso gabinete, fazendo um sinal para queDomingos Valejo entrasse. O rapaz alto, forte e espadaúdo pisou o tapetefelpudo da sala de Sancho Perez Y Diez, impressionado com o luxo e obom gosto.

Atrás de sua mesa, Sancho aguardava-o com curiosidade.Cumprimentaram-se. O detetive sentou-se na poltrona indicada pelomilionário.

— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Senhor Perez. O contratoque mantém com nossa agência é um dos mais curiosos que temos.Recebemos mensalmente para manter sob vigilância certa família, numailha das Bahamas...

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— Isto é correto, Domingo. Seu pai sabia de todos os detalhes dessetrabalho. Espero que o tenha passado a você.

— Infelizmente não...— Talvez seja melhor assim — falou o milionário, após refletir por

instantes. — O que tem de novo a respeito do assunto em questão?— Bem, a pessoa que mantemos na ilha, vigiando aquela família,

informou-nos que, novamente no mesmo dia do ano, eles repetiram acerimônia de ir ao mar. Espero que esteja a par dessa cerimônia.

— Sim, tem sido a mesma há mais de vinte anos...— Só que, desta vez, algo novo aconteceu. Não foi como das outras

vezes. Eles descobriram algo ao largo da ilha. Emprestaram uma lanchapesqueira, coisa que nunca haviam feito antes. Sabe o que isso podesignificar?

Naquela mistura de lenda, fantasia e história, tudo era imprevisívelpara Sancho. O que ele sabia era o que lhe haviam contado. Se havia umnavio e um tesouro, que serviam de tumba para seu famoso antepassado, eracoisa que ele jamais espera confirmar.

Tinha, porém, diante de si, agora, a oportunidade de fazer isso.— Quer que façamos mais alguma coisa? — indagou o detetive.— Não, acho que já fez o bastante. De agora em diante é comigo —

finalizou Sancho, despedindo-se do detetive.Após a saída do rapaz, ele ficou pensativo em sua poltrona. Acendeu

um charuto. Mil e uma possibilidades passavam por sua mente. Seria aquilotudo uma lenda ou realidade?

Carmem surgiu à porta, olhando-o interrogativamente.— Posso dar sequência a sua agenda, Sancho?— Dê-me alguns minutos para refletir.ela fechou a porta atrás de si e foi até a mesa dele, olhando-o com

curiosidade.— O que houve? Está de novo com aquela expressão nostálgica que

lhe aparece de tempos em tempos. O que o detetive trouxe de novo?Sancho contou-lhe o que Domingos viera informar.— O que pretende fazer?— Há quanto tempo não tiro férias?— Férias? Você? Estarei ouvindo direito?

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— Sim, querida Carmem. Você me ouviu direito. Estou pensando emalguns dias de férias, numa ilha das Bahamas. Pode mandar preparar meujato? Peça ao piloto que providencie tudo para a viagem. Vamos até SanJuan. Seria interessante que a etapa final da viagem fosse feita numhidroavião. Ele cuidará de tudo. Ligue para minha casa e mande agovernanta preparar minha mala. Quero roupas leves, para os trópicos.Depois trabalhe sobre minha agenda. Transfira tudo para a semana quevem. Trabalharei em dobro, se for preciso, mas tenho de matar esta minhacuriosidade a respeito de uma lenda ou de um pedaço da história — decidiuele, cheio de entusiasmo.

Carmem jamais o vira daquela forma. Tratou de providenciar logo oque ele pedira.

Afinal, Sancho Perez Y Diez sair de férias era um acontecimentoinusitado.

A força do vento aumentara, juntamente com a chuva. Da casa podiamouvir o estrondo das ondas, arrebentando-se na praia. Steve demonstroupreocupação.

Lupe logo percebeu e foi ter com ele.— O que foi? — indagou ela.— A lancha está no ancoradouro. Com o vento, as ondas podem virá-la

ou jogá-la contra o cais. O ideal seria tê-la deixado ao largo, onde resistiriafacilmente às ondas, sem obstáculos por perto onde chocar-se.

— Há algo que possa ser feito agora?— Não, apenas torcer para que nada aconteça a ela.—Tomara que não! Sem ela jamais poderíamos voltar ao local onde

está o Santa Rosa.Miguel e os outros também sabiam o bastante sobre o mar e sobre

barcos para entenderem o que Steve dissera. A preocupação tornou-secomum.

— E se fôssemos dar uma olhada? — sugeriu Miguel.

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— Nada há que possamos fazer, Miguel — respondeu Steve. — Comeste vento não se pode lutar.

Steve deixou a janela. A vidraça embaçada pelas gotas que o ventosoprava não lhe permitiam ver nada adiante. Um lençol de chuva tornava apaisagem semelhante e indefinida.

Foi olhar as joias, esquecidas sobre a mesa. Lupe o acompanhavasempre.

— O que pretendem fazer com isto? — indagou ele.— Pertencem a nossa tribo, vamos levá-la — informou Loreta como se

aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.— Não é o que as autoridades de San Juan pensam. Todo tesouro

encontrado nas imediações da ilha, assim como nas demais ilhas, pertencema elas. Não podem ser retirados, sabiam? — informou o rapaz.

— Loucura! Não tivemos tanto trabalho e desperdiçamos tantos anospor nada — comentou Chucho.

— Não discuto o aspecto de julgarem que o tesouro pertença a vocês,mas há Leis a serem seguidas.

— Não havia Leis quando Sancho Perez roubou o tesouro de nossosantepassados — afirmou Chucho.

— Assim como não havia quando seus antepassados roubaram dosindígenas — argumentou Steve.

Loreta aproximou-se e pôs as mãos sobre as joias.— São nossas, pode ter certeza disso! — disse ela, com absoluta

convicção.— Então tratem de pensar numa boa maneira de tirá-la daqui —

sugeriu Steve.

John Becker estava alheio ao barulho da chuva lá fora, concentrado nas

inúmeras folhas que recebera de seu escritório, pelo fax de seu iate.

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Tudo aquilo poderia parecer apenas mais uma historia de fantasia, paraatrair turistas, mas ele sentia que havia alguma coisa consistente por trás dasinformações.

Elas relacionavam diversos navios naufragados naquela região, sendoque o mais importante deles, jamais encontrado, era o Santa Rosa, com umacarga impressionante de tesouro pirateado no México por um bandidoconhecido como Sancho Perez.

As informações recebidas falavam de outros navios menores, comcargas também valiosas, mas estes haviam sido encontrados ao longo dosanos.

O Santa Rosa permanecia um mistério, desafiando a tecnologiamoderna dos caçadores de tesouro, que haviam percorrido a velha linhamarítima. Por fim, haviam cedido aos argumentos de que jamais um capitãoem sã consciência se aventuraria com uma caravela de grande portenaquelas águas rasas ao redor da ilha.

Ali o relevo era imprevisível. O Santa Rosa poderia ter se destroçadoquando do naufrágio e seus pedaços poderiam estar espalhados por todaparte, impossibilitando sua localização.

Esta localização ficava martelando sua cabeça, da mesma forma queindagava-se, sem encontrar uma resposta, o que aquela misteriosa eestranha família estivera fazendo no mar naquela manhã, antes de começara tempestade.

Acompanhara-os com seu binóculo, a bordo do iate. Vira que haviammergulhado. Viu Steve ajudando-os a levar um deles para bordo, depoismergulhando também, até que todos retornassem. Viu o guindaste sendoiçado, traçando o cesto para bordo. O que havia ali, naquele local?

A todos a quem perguntara, a resposta era a mesma. A família Garciaestava ali havia muito tempo e, de vez em quanto, ia para o mar. Nunesnuma lancha, porém.

Todos os consideravam meio malucos, mas John Becker tinha motivospara suspeitar de que havia ali algo mais interessante que apenasmaluquices.

Por que precisariam da lancha? Por que um deles havia conversadocom Rondha a respeito do iate?

— O que está lendo tão concentrado, papai? — indagou-lhe a filha,entrando na sala, onde ele lia.

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— Algumas informações que recebi.— Viu como a tempestade está forte?— Não, nem percebi.— É um homem muito distraído ou muito concentrado, pai. O mundo

está desabando lá fora. Acha que nosso iate ficará bem lá fora?— Não se preocupe quanto a isso. O capitão tomou todas as

precauções.John levantou-se e foi até a janela. Uma cortina consistente cobria a

visão do ancoradouro e da baia onde o iate estava ancorado.Ficou olhando os coqueiros dobrando-se com a força do vento e as

lufadas de água passando diante de seus olhos. A filha aproximou-se,olhando-o com curiosidade. Conhecia o pai. Sabia quando ele estavapreparando alguma coisa. Sempre ficava com aquele olhar quandoenvolvia-se num negócio vultoso.

— Você está estranho, pai — comentou ela.— Estou apenas pensando em negócios...— Foi o que percebi.O olhar dele continuava fixo no ancoradouro. Quando o temporal se

aproximava, voltou para casa, deixando o capitão tomando as providenciaspara proteger o iate.

Ficara algum tempo na janela, olhando a tempestade chegar. Vira alancha de Steve chegar e atracar no ancoradouro. Ela estiva ali, na últimavez em que olhara. Agora não conseguia vê-la, nos intervalos entre umalufada e outra de vento e chuva,

— Cadê a lancha? — indagou em voz alta.— O que disse, pai? — quis saber Rondha.— A lancha do rapaz do restaurante... Estava atracada e... Sumiu!Rondha aproximou-se da janela. A lancha fazia parte da paisagem, pois

Steve apenas a usava quando precisava abastecer seus congeladores compeixes.

— Será que afundou? — indagou ela.— Seria uma pena. Era uma bela lancha — respondeu John, pensando

na tragédia.Como todo bom negociante, as tragédias não eram para ser lamentadas,

mas analisadas em função de seu potencial de oportunidades que faziamsurgir.

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Se a tragédia atingira Steve, azar dele. O que poderia fazer? A questãoque surgiu em sua mente era que aquela família estranha precisaria de umbarco para continuar fazendo o que vinha fazendo.

Se a lancha de Steve não estava mais disponível, o iate seria a únicaopção deles.

— Conhece alguém daquela família de malucos, Rondha? — indagouele.

— Malucos? Quem é maluco?— Alguém que lhe falou a respeito de emprestar o iate.— Refere-se ao Miguel, não?— Acho que sim.— Eu o conheço, temos conversado algumas vezes. Por quê? O que

tem em mente, pai?— Talvez... Eu disse: Talvez! Talvez eles possam continuar precisando

de um barco e se a lancha do Steve não puder ser utilizada, diga a ele paracontar com o iate. Não me incomodaria em cedê-lo.

— Pai! O que está tentando fazer? — indagou ela, levementerepressiva.

— Rondha! Você me surpreende. Temos de ser solidários nas tragédias.Se eles precisarem de um barco, o iate estará à disposição deles, enquantonós estivermos aqui, de férias. Isto se chama política de boa vizinhança anós, americanos, somos especialistas nisso, não sabia? — argumentou ele,juntando os papéis que recebera do escritório e guardando-os numa pasta.

Ia sair da sala, mas parou e se voltou para a filha.— Não se esqueça! Se eles precisarem... — finalizou ele, saindo e

levando a pasta.Rondha ficou olhando a chuva e pensando na conversa que tivera com

Miguel. Será que aquela história de tesouro não era verdade? Somente algoassim justificaria aquela atitude de seu pai. Ele não se envolveria em algoque não pudesse render-lhe algum dividendo.

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A tempestade durou pouco mais de duas horas e passou tão rápidocomo tinha vindo, deixando atrás de si um rastro de destruição.

O ancoradouro fora duramente atingido. Algumas embarcações foramjogadas para a terra. Outras simplesmente se despedaçaram, chocando-secontra os muros de contenção da maré.

A lancha pesqueira de Steve sofrera um rombo no casco e adernara. Omovimento violento das ondas foi destruindo-a inexoravelmente. Ela, comooutras, estavam inutilizadas.

No mar agora calmo, com o sol brilhante sobre as ondas tranquilas,apenas o iate de John Becker quebrava a monotonia da paisagem.

Steve estava parado no que restara do ancoradouro, olhando os restosde sua lancha naufragada. Felizmente os equipamentos da família Garciahaviam sido retirados. Caso contrário, estariam inutilizados.

— Má sorte, não? — comentou John Becker, parado ao lado dele.— Foi burrice minha, mas estava tão preocupado que nem me lembrei

de tomar as devidas precauções. Você agiu certo, deixando o iate ao largo.— Meu capitão cuidou de tudo. Espero que você tenha seguro da

lancha.— Seguro? Aqui em San Juan? Está brincando.— Sério? Que prejuízo! Rapaz, eu sinto muito. Se houver alguma coisa

que eu possa fazer, é só dizer. Enquanto eu estiver aqui, pode contar comigoe com meu iate.

— Eu agradeço sua oferta, Becker. Se precisar, pode estar certo quepedirei — afirmou Steve, olhando-o com desconfiança.

Um homem como John Becker jamais fazia algo sem interesse emalgum tipo de retorno, por mais que tentassem ser gentis. Steve conheciamuito bem o tipo.

Miguel e os irmãos aproximaram-se desolados, olhando o que sobrarada preciosa lancha. Não sabiam o que dizer nem como fazer para darsequência ao resgate.

— Eu sinto muito, Steve! — comentou Miguel, em voz baixa, ao ladodele.

— Vocês não tiveram culpa, Miguel.— Eu sei, mas isso não descarta o fato de que vamos precisar de uma

embarcação para ir até o Santa Rosa. Se soubesse o quanto estou angustiadopara saber se ele ainda continua lá...

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— Entendo, meu amigo, mas terá de conter sua impaciência.— O barco do velho Andrés. Ele o vendeu. Sabe a quem? Ou onde

está?— Se olhar para aquele lado verá pedaços dele sobre os coqueiros —

ironizou Steve.Os olhos de Miguel percorreram todo o ancoradouro, de um lado para

outro. Nada restara intacto das embarcações que costumavam estar ali.Seus olhos alongaram-se na direção da provável localização do navio

naufragado. Entre o local e ele, havia uma embarcação vistosa, oscilanteserenamente no mar tranquilo. Era o iate de John Becker.

Por instantes os olhos do rapaz deliciaram-se com as linhasharmoniosas e modernas da embarcação. Depois lembrou-se de Rondha. Epercebeu o próprio John Becker ao lado deles.

Cutucou Steve ao seu lado, apontando com o queixo o iate ancorado aolargo.

O rapaz demorou algum tempo para entender o que Miguel queriadizer. Ao percebê-lo, porém, moveu a cabeça num gesto negativo.

Miguel, não satisfeito com a resposta, segurou-o pelo braço e levou-opara um lado.

— Podemos vender uma daquelas joias e dar-lhe outra lanchapesqueira. Para isso, teríamos de ir ao México ou a Miami. Nenhum de nóssuportaria tanto tempo. A segunda alternativa é tentar emprestar ou alugar oiate do Becker. Não temos tempo a perder, Steve. Sei que o Santa Rosaesteve lá durante todos esses séculos, mas eu estive nele e o sentideslizando. Aquela queda do canhão abalou um equilíbrio precário que elevem mantendo ao longo dos anos. ele pode se desmanchar a qualquermomento. As boias serão arrastadas para o fundo. Explodiram. Aquelecofre pode tombar e espalhar seu conteúdo ao lodo. Com a corrente,levaríamos anos de trabalho, com equipamentos adequados, para conseguirreunir o conteúdo de novo. Não temos alternativa! — frisou Miguel. —nem temos tempo.

— Você deve conhecer o tipo, Miguel. Não faz nada sem interesse.— Talvez pudéssemos negociar com ele.— Está disposto a ceder metade do que há no Santa Rosa?— Metade? Está maluco! Apenas aquele rubi que você viu pagaria o

aluguel de dez iates como aquele.

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— Em condições normais. Aqui valerá a lei da oferta e da procura.John Becker é um homem muito rico e tem um iate. Vocês têm muitasriquezas, mas precisam do iate. Quanto vão ceder, até ele concordar emajudá-los?

— Diabos! — praguejou o rapaz, aborrecido. — Estamos tão pertos,Steve. Perto demais para recuar.

Enquanto falava, Miguel viu Rondha entre as pessoas que observava osestragos provocados pela tempestade.

Ela era a sua única e última chance. foi até ela.— Rondha, acha que seu pai nos emprestaria o iate? — indagou ele,

segurando-a pelo braço, demonstrando toda a sua aflição.A garota olhou-o surpresa.— Fala sério?— Sim, estávamos usando a lancha do Steve, mas veja o que aconteceu

a ela...— Miguel, talvez não conheça muito bem meu pai. Ele jamais faz

alguma coisa sem visar algum lucro. É da natureza dele. Foi isso que o fezmilionário.

— Você não entende! — exclamou ele, quase em desespero, girando aoredor dela.

— Por que não me explica, então?Miguel olhou os irmãos que fitavam o mar. Não muito longe, Loreta e

Lupe, abraçadas, eram a própria imagem de desolação. Não podia admitirque chegassem tão perto para serem obrigados a desistir.

Tudo estava nas mãos de Rondha e do pai dela. Imaginou que aqueletesouro podia ser mesmo maldito. Não podia ficar em segredo. cada vezmais pessoas tomavam conhecimento de sua existência. Em breve a ilhaexplodiria em cobiça e ambição, se continuasse daquela forma.

— Oh, Deus! — exclamou ele, desesperado. — Não posso lhe contar,Rondha. Não posso lhe contar sem arriscar transformar em pesadelo emaldição o que sempre sonhamos que seria a redução de nossa família. Nãotenho outros argumentos. Só posso dizer que precisamos desesperadamentede uma embarcação grande.

A garota olhava-o surpresa e admirada. Ele fora tão veemente eapaixonado que, se dependesse dela, Miguel teria o iate naquele mesmoinstante.

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Só que não cabia a ela decidir aquilo.Levada por uma emoção incontrolável, ela o abraçou com força,

sentindo o corpo dele tremer de impaciência. Reconheceu o quanto aquiloera importante para ele e para a família dele.

— Existe um tesouro, não é verdade? — indagou ele num tom de vozque não admitia outra resposta que não fosse a verdade.

Miguel não hesitou.— Sim, existe. Um tesouro fabuloso que nós e nossa tribo buscamos

por séculos. É uma historia longa, Rondha. Daria um belo romance. Temoso suficiente para comprar cem iates como o de seu pai lá no fundo do mar,mas não podemos chegar lá se não tivermos apenas um.

Rondha sentiu-se solidária com ele. Para ela, acostumada a ter tudo, anecessidade de Miguel e de sua família tinha um significado quetranscendia tudo o que ela sabia sobre a vida e sobre as pessoas.

Nada era mais importante para ela do que o fato de que alguémfinalmente precisava e dependia dela. Alguém, no mundo, afinal, somenteconseguiria o que deseja com o auxilio de uma garota rica, mimada e quesempre tivera do bom e do melhor.

Só que havia um grande obstáculo a ser superado entre a necessidadede Miguel e o desejo dela de ajudar.

— Como? — indagou ela e seus olhos brilhantes revelaram todo o seudesejo ansioso de ajudá-lo.

Miguel sentiu a solidariedade naquele olhar. Sentiu que podia contarcom ela e que havia uma chance de tudo não estar definitivamente perdido.

Segurou a mão dela e caminhou por entre as pessoas que seamontoavam ao longo do ancoradouro, até encontrar com Steve. Pegou-opelo braço e levou-o para um lugar afastado.

— O que tem em mente, Miguel? — indagou ele, olhando para o rapaze para Rondha.

— Sabe pilotar um iate como aquele? — indagou Miguel, apontandopara o barco.

— O principio é o mesmo em todos eles.— Você tem tochas submarinas?Steve pensou por instantes. Parecia entender o pensamento de Miguel.

A ideia eram emprestarem, entre aspas, o iate, durante a noite, e resgataremo conteúdo do cofre do Santa Rosa.

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Com o auxilio da Rondha, isso não seria difícil.— Posso fazer melhor...— Como assim?— Aquele iate tem o melhor gerador que conheço. Posso montar um

sistema de iluminação do iate até o Santa Rosa capaz de fazer inveja aosdecoradores do Rockefeller Center.

— Eu sei mergulhar! — informou Rondha.— E eu também — acrescentou Steve. — Você, Chucho, Rondha e

eu...— Lupe também sabe mergulhar...— Melhor ainda. Podemos ter cinco pessoas entre o iate e o Santa

Rosa. Em uma noite poderemos esvaziar tranquilamente aquele cofre. Aquestão toda e saber se poderemos contar mesmo com o iate — disse ele etodos os olhares se voltaram para a garota.

— Disso cuido eu — garantiu ela.

A visão era fantasmagórica e irreal, à medida que mergulhavam nas

águas profundamente iluminadas. Steve havia feito um belo trabalho. Aslâmpadas especiais estavam dispostas em linha, do iate até os destroços doSanta Rosa.

O navio estava na mesma posição e o cofre não sofrera danos com atempestade, Steve, porém, ao instalar lâmpadas no interior da cabine,descobrira os pontos onde o madeirame dava mostras de poder ceder aqualquer momento.

Avisara a todos, antes que mergulhassem.— Acho que devemos reforçar a quantidade de boias prendendo o

cofre. Sugiro que ninguém esbarre em nada. Aquilo tudo me parece umcastelo de cartas. Se um pedaço de madeira ceder, todo o resto cederá junto.

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— Steve tem razão — concordou Miguel. — Estivemos lá e sentimos aprecariedade dos estragos. Estaríamos mortos, caso nosso amigo não tivessesurgido.

— Depois teremos tempo de agradecer, pessoal, principalmente aRondha, por ter conseguido o iate...

— Ah, não se esqueçam de manter as luzes do iate acesas, pôr amúsica bem alta e simular muita agitação aqui — disse ela. — Meu paiemprestou-me o iate para uma festa particular, sem a tripulação. Pode estarlá na praia, observando tudo com seu telescópio. Vai querer saber por queancoramos justo aqui, neste lugar.

— Aí já teremos terminado o trabalho — disse Miguel. — colocando oiate entre as luzes e a praia, encobrindo nosso mergulhador.

— É isso aí. Vamos trabalhar em equipe lá embaixo. Eu e Miguelficaremos no interior da cabine, apanhando o conteúdo do cofre e passando-o a Chucho, que irá acomodando tudo no cesto do guindaste. Pepe, Lupe eRondha ficarão aqui em cima, operando o guindaste e mantendo ocompressor de ar funcionando para termos sempre tanques de ar de reserva.Vai ser uma longa noite — comentou Steve.

— Ficaremos preparadas. em caso de emergência, mergulharemostambém — afirmou Lupe.

— Só em último caso — determinou Steve.Após mergulharem e chegarem aos destroços, começaram o lento e

cuidadoso trabalho de esvaziar o cofre, transportando seu conteúdo para ocesto do guindaste.

Miguel estava ansioso, enquanto fazia sua parte. Esperava encontrar aqualquer momento o famoso ídolo que tantas preocupações provocavam emLoreta, sua mãe.

À medida que o conteúdo do cofre foi sendo retirado, no entanto, nadaindicava que o ídolo estivesse ali dentro. Os minutos foram se passando.Peças e mais peças de metais preciosos foram sendo tiradas do cofre.

finalmente, Miguel teve certeza de que o ídolo não estava ali. Quandosubiram, após terem completado o trabalho de limpar o cofre, já eramadrugada.

Estavam exaustos, após tanto tempo sob a água, mudando os tanquesde oxigênio, sempre que se aproximavam do final. Ficaram algum tempoofegando, enquanto Lupe e Rondha traziam cobertores para aquecê-los.

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O conteúdo retirado do cofre estava agora espalhado pelo tombadilhodo iate. Eram peças magníficas, de ouro, prata e pedras preciosas, emtrabalhos delicados e geniais.

Loreta vasculhava-os, procurando algo que não iria encontrar ali.— Está tudo aqui? — indagou, traspassada, angustiada por não ter

localizado o ídolo.— Sim, mãe... É tudo que havia no cofre, pode ter certeza -- informou

Chucho.— E o ídolo?— Não estava lá — falou Miguel. — Retiramos tudo. Não há

possibilidade de erro.Loreta olhou o mar iluminado pelas lâmpadas instaladas por Steve.

Aquele caminho de luz que penetrava o oceano parecia, para ela, uma trilhapara o inferno.

— Não pode... Tem de estar lá... — murmurou ela.— Não está, mãe! — insistiu Miguel.— Em outro compartimento do navio... Tem de estar... Precisamos

encontrá-lo...Miguel e Chucho olharam-se. Sabiam que não haveria argumentos que

pudessem convencer Loreta a desistir da ideia. Todo o tempo, ao longo dosanos, ela não queria o tesouro, mas apenas o ídolo maldito para destruí-lo.

Se a conheciam bem, sabiam que ela não desistiria, enquanto nãotivesse o ídolo em suas mãos.

— É loucura! — opinou Steve. — Não podem voltar lá. Vão congelar.Além disso, estão muito cansados. Não sabem o estado do resto do navionem onde procurar...

— Estudamos aquele tipo de embarcação, Steve. Sabemos tudo sobreela. Se o ídolo não está na cabine do capitão, só poderá estar no porão... —ia dizendo Miguel.

— E de que é feito esse ídolo, afinal? — quis saber Steve.— Acreditamos que seja de ouro...— Grande?— Não sabemos.— Se era valioso, por que teria ficado fora da cabine do capitão? —

argumentou Steve.— Talvez pelo tamanho — ponderou Lupe.

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— Imaginem um ídolo enorme de ouro puro. Seu peso seria algoinconcebível. Se estiver no porão, possivelmente esteja coberto de lodo.

— Temos de tentar, Steve. Significa muito, não apenas para minhamãe, mas para toda a nossa tribo... Para o que resta dela, é claro. — falouMiguel.

Steve percebeu que aquilo era realmente importante para eles, muitoembora não conseguisse entender o quanto.

— Está bem! Vamos descer os três, então. Levaremos lanternasindividuais, já que será impossível iluminar todo o navio. A cautela agoradeverá ser redobrada. Não sabemos em que estado está o resto o SantaRosa.

Os preparativos foram ultimados rapidamente. Menos de meia horadepois, os três estavam mergulhando de novo, descendo para o mundosombrio, iluminado estranhamente pelas lâmpadas instaladas por Steve.

A sombra do Santa Rosa continuava tétrica, como um grande animaladormecido ou morto.

Através de sinais, os três iam se comunicando. Quando chegaram aoconvés do navio, Miguel apontou a porta que conduzia ao interior.

Abriram-na com cuidado. Quando Miguel introduziu a lanterna umacena macabra surgiu diante de seus olhos.

Ossos espalhavam-se pelo local, indicando o ponto onde diversosmarinheiros haviam morrido, talvez no afã de fugirem do interior do navio.Eram crânios que o olhavam, com suas órbitas vazias e inexpressivasaparentemente.

Foram entrando. A escada descia até os dormitórios, o refeitório edeposito de mantimentos. Os três mergulhadores foram encontrando ossoem toso o percurso.

Objetos carcomidos pelo tempo espalhavam-se, misturando a outrosincrivelmente preservados. Jarros de cerâmica finamente elaborada, algunsintactos, outros quebrados, misturavam-se a pratos de latão semidestruídos,pedaços de talheres, restos de utensílios de mesa e cozinha.

Uma fivela de prata jazia sobre os ossos de um esqueleto. Os trêspassaram, alterando, com seus movimentos, o equilíbrio precário instaladoali havia séculos.

Os ossos de um esqueleto espalharam-se. Alguns objetos levesflutuaram. As luzes das lanternas davam ao cenário um brilho estranho e

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arrepiante.Miguel continuou à frente dos três, guinado-os direto para os

depósitos. A porta foi aberta sem dificuldades. A confusão era total. Haviapedaços de madeira, restos de vegetais não identificados, garrafas, jarrosenormes ainda presos a argolas de metal por correntes enferrujadas.

Procuraram atentamente. Não havia nenhum sinal do ídolo. Tudotornava-se mais difícil porque não tinham noção do que procuravam. Tantopoderia ser um pequeno objeto, quanto um grande. Poderia também nemestar mais ali.

Foi o que Steve deu a entender, sinalizando para os dois, Miguel nãoconcordou. chucho tinha a mesma opinião de Miguel. Steve não conseguiaimaginar onde um ídolo poderia estar escondido ali.

Miguel apontou, então, os enormes jarros de cerâmica. Eram os únicosrecipientes que poderiam conter o misterioso ídolo.

Chucho apanhou um pedaço de ferro enferrujado e bateu num dosjarros, trincando-o. com esforço, conseguiu quebrá-lo. Havia milho em seuinterior.

Miguel e Steve o ajudaram, quebrando os demais. Encontraram feijão eóleo dentro dos jarros, mas nada de um ídolo. Steve apontou o relógio,mostrando que o oxigênio aproximava-se da marca da margem desegurança.

Tinham que estar sempre atentos ao fato de que precisavam subirlentamente para evitar problemas com a descompressão.

Miguel e Chucho não se conformavam por não encontrarem o ídolo.Sabiam que Loreta não aceitaria aquilo. Miguel era o mais ansioso. Pensoucom calma a respeito das plantas que estudara sobre o Santa Rosa.

Comunicou isso a Chucho. Por sinais, posicionou o local onde estavamnaquele momento. Era o primeiro nível, abaixo do convés. Além daquele,havia outro, abaixo, até o último, onde eram depositados os alimentos maispesados, o suprimento principal de água potável, o lastro e o carvão.

‘ Steve percebeu que os dois irmãos pretendiam continuar a busca,descendo ainda mais no interior do navio. Apontou de novo para o relógio.

Nesse instante, um rangido grave e prolongado fez o Santa Rosadeslizar ligeiramente, surpreendendo-os. Steve reiterou sua sugestão parasubirem. Miguel deu a entender que precisavam descer.

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A questão do ar era crucial. Não havia como contornar isso. Os doisirmãos estavam obcecados com a ideia de encontrarem o ídolo. Steve tevetrabalho para convencê-lo a subir.

— Encontraram alguma coisa? — indagou Loreta, assim que eleschegaram à plataforma instalada ao pé da escada que conduzia ao convés.

— Nada! Deve estar no último nível do porão — informou Miguel.— Vocês sentiram aquele mostro mover-se, não sentiram? —

questionou-os Steve.— Apenas acomodações naturais — tranquilizou-o Miguel.— Espero que esteja certo disso.— Não se preocupe quanto a isso. Vamos trocar os tanques de oxigênio

e descer novamente.— Estamos à beira da exaustão. Sabe o que isso pode acarretar, não?

— alertou Steve.— O risco torna-se maior, meu amigo, mas não podemos fugir disso.

Se quiser, fique. Eu e Chucho podemos fazer o trabalho sozinhos a partirdaqui.

— De jeito nenhum. Já que cheguei até aqui, quero ir até o fim —decidiu Steve.

— Como estão? — indagou Lupe, chegando com novos tanques,juntamente com Rondha.

— Exaustos, só isso — tranquilizou-a Steve.A garota olhou-o com apreensão. Estava exagerando. Não podiam

resistir tanto tempo mergulhando daquela forma. Por mais jovens eresistentes que fossem, o risco sempre existia.

— Promete que vais e cuidar — pediu ela.— Fique tranquila, Lupe — murmurou ele, acariciando suavemente o

rosto dela.— Cuidará dos meus irmãos?— São dois cabeças-duras, mas eu cuido deles, pode deixar comigo. Se

depender de mim, nada acontecerá a eles.Ela aproximou-se dele e beijou-o suavemente, sem se importar com o

olhar surpreso de Loreta, no alto da escada.Voltaram a mergulhar. Os movimentos tornavam-se cada vez mais

difíceis, mas não vacilaram, retornando ao porão do navio. Avançaram poroutra escada, descendo outro nível. Novos esqueletos e objetos

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testemunhavam a tragédia do Santa Rosa, dando a entender que tudoacontecera repentinamente.

Muitos pareciam ter sido apanhados de surpresa, em todos os cantos donavio.

Desceram, finalmente, até o último nível. Um novo rangido os fezparar, olhando-se. Era como se o velho navio estertorasse, rugindo contra atumba líquida que o prendia ao fundo, desejando novamente a liberdade dasuperfície.

Após o rangido, um ruído estranho avolumou-se. O navio parecia estarpartindo-se.

Instantes depois, tudo voltou ao silencio sepulcral de antes. Os trêscontinuaram sua busca. naquele ponto, tudo amontoava-se na lateral donavio, quase impedindo a passagem para o interior.

Uma vez lá dentro, as lanternas vasculharam o monte de entulhos.Nada visível. Repentinamente, o navio moveu-se e o entulho foi empurradocontra a entrada, fechando-a.

Os três procuraram o canto oposto daquele espaço. Uma nuvem dedetritos flutuou, obstruindo a visão. As lanternas apenas iluminavam umanévoa indefinida que lentamente foi acomodando-se novamente.

A primeira preocupação deles foi iluminar a entrada. Estava fechada.irremediavelmente fechada. Depois, iluminaram um grande objeto demadeira, que flutuou diante deles. Era uma espécie de totem, representandoum deus antigo, com uma expressão cruel e assustadora.

Miguel e Chucho assustaram-se. Steve percebeu que haviamencontrado o famoso ídolo. Isso não o preocupava de forma alguma. Aquestão era saber como iriam sair dali.

Consultou o relógio. tinham uns quinze minutos mais, antes damargem de segurança. Tinham que sair dali antes disso, mas o entulho quecobria a entrada jamais seria removido naquele espaço de tempo,principalmente ali, naquela situação, sem ferramentas e no meio líquido.

Miguel e Chucho sinalizavam, apontando o ídolo. Steve foi até ele. Amadeira estava apodrecida em alguns pontos, mas as cores vibrantes equentes ainda eram bem nítidas.

O ídolo tinha um rosto perverso. As mãos, com garras, se cruzavamsobre o peito, arrancando o próprio coração. Sob os pés, o entalhe perfeitomostrava corações humanos sendo esmagados.

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Sinalizou aos dois irmãos que o ídolo estava encontrado, mas que oproblema agora era saírem dali. Só então Miguel e Chucho pareceramcompreender o problema em que estavam metidos.

Nadaram até os entulhos. Havia de tudo ali. Quando tentaram removê-los, eles subiam no meio liquido, levantando uma nuvem de lodo, cobrindoa visão e tornando o trabalho inútil.

Recuaram até o canto onde estava o amigo. Steve deu a entender que aúnica saída era tentarem abrir uma passagem na madeira do casco.

Como o navio estava de lado, se conseguissem isso, estariam livres. Sóque, naquele ponto, a madeira era grossa e resistente para suportar toda apressão do peso da embarcação.

Com sua faca, Steve começou a escavar a madeira. Não era umtrabalho difícil, só que seria demorado pela espessura da madeira. Miguel eChucho compreenderam que aquela era a única saída.

Tiraram suas facas e começaram a ajudar Steve naquele trabalhoinsano.

Gradativamente a madeira foi sendo lascada, pedaço a pedaço. Abrirum buraco suficiente para a passagem deles era um trabalho lento ecansativo, principalmente para eles, que estavam exaustos.

No afã de saírem dali, não perceberam que aquele esforço extraconsumia importantes reservas de oxigênio.

Quando conseguiram abrir o buraco suficiente, Miguel fez sinal paraque saíssem e subissem para a superfície. Seu olhar revelou terror, quando oSanta Rosa rangeu de novo e uma grossa nuvem de detritos espalhou-se nolocal.

Steve acenou, detendo-o. Apontou o relógio. Haviam ultrapassado olimite seguro de tempo para a subida. Se o fizessem, não teriam ar para umadescompressão adequada, correndo o risco de morrerem na tentativa,principalmente no estado de exaustão em que se encontravam.

Os olhos dos dois irmãos revelaram aflição. Eles se voltaram eencaram o ídolo, que flutuava em meio aos detritos. Miguel acreditou queera a maldição materializando-se novamente. Após tentativas, elafinalmente conseguia atingi-los.

Chucho quis saber o que podiam fazer. Ficar e morrer ou subir emorrer da mesma forma.

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Miguel apontou para o alto, dando a entender que preferia morrertentando, Steve concordou com ele, mas questionou o que iria ser feito como ídolo.

Ficaria ali? E Loreta? Aceitaria isso? Eram questões que passavampelas cabeças de Miguel e Chucho.

A terrível decisão tinha de ser tomada imediatamente. Cada segundo

era extremamente precioso. Steve sabia que não conseguiriam, não comaquele nível de exaustão e com tão pouco oxigênio nos tanques.

Tentar a subida era tão mortal quanto ficar ali no Santa Rosa esperandoa morte.

Ele se voltou e olhou aquele ídolo da madeira colorida. A luziluminava a expressão cruel. Seria efeito do cansaço ou ele ria do infortúniodeles.

Steve consultou de novo o relógio. Não havia tempo. Simplesmentenão havia tempo e a sensação era angustiante, já que a decisão a ser tomadanão conduziria à salvação.

Era morrer ou morrer e isso ameaçava pô-lo em pânico, bem como osdois irmãos.

O Santa Rosa rangeu de novo, tetricamente, como a mais macabra dasgargalhadas, parecendo zombar do trágico destino dos três mergulhadoresque haviam ousado interromper o descanso de séculos daqueles cadáveresespalhados por toda parte.

Miguel sinalizou que iria subir. chucho deu a entender que iriaacompanhá-lo. Steve concordou. Afinal, nada havia que pudessem fazer.

Miguel; saiu primeiro e ajudou os outros. A fileira de lâmpadas naoutra extremidade do navio indicava o caminho para a superfície. Só que,descendo, duas lanternas indicavam que dois mergulhadores seaventuravam nas águas onde descansavam o Santa Rosa.

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Os três mergulhadores nadaram naquela direção. Erma Lupe e Rondha,trazendo tanques de reserva, para alívio deles. As garotas foram abraçadas efestejadas. Os três trocaram os tanques e começaram a subir, desta vez comalívio e segurança.

Estenderam-se, no auge da exaustão, na plataforma ao pé da escada.Loreta, apreensiva, aguardava informações. Lupe e Rondha sentiam-sefelizes por terem chegado na hora certa.

— Encontraram? — quis saber Loreta.— Está lá, o maldito! — disse Miguel ofegante.— É um ídolo de madeira, mãe. Tem a expressão mais cruel que jamais

vi. Com as mãos em garra e arranca o próprio coração, enquanto pisa emoutros. Nunca vi nada igual! — descreveu Chucho, igualmente cansado.

— Temos de destruí-lo — decidiu Loreta.Steve, com esforço, sentou-se e levantou os olhos para ela. A

expressão transtornada da mulher não o comoveu.— Desculpe-me, senhora, mas pedir que qualquer um volte lá é um

crime — afirmou ele.— Você não entende! Vivemos toda a nossa vida em função desta

missão. Aquele tesouro nada significa para nós, enquanto o ídolo continuarlá.

— Está preso no navio. Ficará lá para sempre — argumentou oamericano.

— Não, enquanto ele estiver lá, nós não podemos descansar. Aqualquer momento ele poderá ressurgir e nossa tribo será amaldiçoada paratodo o sempre por tê-lo arrancado de seu local de origem.

— Ela tem razão, Steve. É algo que precisa ser feito. Talvez você ououtra pessoa não entenda isso, mas nós, que vivemos toda uma vida parachegar a este momento decisivo, não temos outra escolha. É uma missão,entende? Uma missão que meu pai recebeu e que nós, os filhos, tivemos decontinuar, após a morte dele. É por ele e por todos os outros que tentaramantes que isto precisa ser feito. É algo que independe de você. Temos defazê-lo! — afirmou Miguel.

— E como pretende fazer isso? O ídolo não passará pelo buraco nocasco. Se não estivesse no fundo do mar, você poderia queimá-lo, já que eleé de madeira. Fora isso, como destruí-lo? — indagou Steve.

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Miguel e Chucho entreolharam-se, depois levantaram os olhos paraLoreta, que demonstrava também não ter a resposta para a questão feita porSteve.

Pepe trouxe cobertores para eles, além de café quente. Lupe cobriuSteve, depois abraçou-o para aquecer-se com ele.

— Vê alguma solução? — indagou ela, apertando-o contra ele, trêmulade frio.

— Todos vocês são tão teimosos assim? Aquele ídolo jamais sairá delá — afirmou ele.

— Pode garantir isso com absoluta certeza para mim, Steve? —questionou ela, olhando-o nos olhos.

Ele hesitou. Era o tipo de garantia que não poderia dar. Para ele, aquiloera apenas um pedaço de madeira que acabaria por desintegrar-se na águasalgada.

Para a família Garcia, no entanto, aquilo representava um perigo quedeveria ser exorcizado de suas vidas definitivamente, mesmo que issotivesse um preço alto demais.

Ele refletiu por instantes, olhando os dois irmãos deitados naplataforma. Estavam meio mortos, mas seguramente voltariam ao SantaRosa para tentar destruir aquele ídolo de alguma forma.

Junto com eles, Lupe, Pepe e Loreta, se preciso fosse, tambémmergulhariam.

— Está bem, acho que podemos fazer algo. Lá no convés, junto com asminhas coisas, há uma caixa de metal verde. Traga-a para mim — pediu elea Lupe.

A garota apressou-se em atendê-lo. Quando retornou e entregou-a,Steve abriu-a. Retirou dali um dispositivo pouco maior que sua mão.

— Sabem o que isto? — indagou.Miguel e Chucho olharam para o objeto, com alguns botões, fios e um

mostrador digital.— Se assisti aos filmes certos, isso aí tem todo o jeito de ser uma

bomba — falou Miguel.— E acertou. É um petardo de alto poder explosivo. Tenho três delas

comigo. Quando pescava na região, minhas redes enroscavam-se emdestroços de navios. eu os explodia com isto.

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— Ainda bem que sua rede jamais enroscou-se no Santa Rosa — disseLoreta.

— É, tem razão, senhora. Este lugar nunca foi mesmo muito bom parapescaria — afirmou Steve. — Ouçam o que vamos fazer. Vamos descer denovo. Acho que podemos ir eu e Miguel apenas. Vamos instalar estasbombas no ídolo, ligar o detonador, dando um tempo razoável, depoisdamos o fora daqui o mais depressa possível. O Santa Rosa vai virarfragmentos.

— Como explicaremos isso para o pessoal da ilha? — quis saberRondha.

— Diremos que houve um acidente, nada mais — sugeriu Steve. — Oque me dizem?

— Estou com você — concordou Miguel.— Eu também — ajuntou Chucho.Os três ergueram os olhos para Loreta. Ela concordou com um sinal de

cabeça.— Que Deus os acompanhe, meus filhos! — disse ela, emocionada,

confiante no fim da maldição.

Amanhecia sobre San Juan. A pequena cidade de Rosas, cheia de

turistas naquela época do ano, acordava cedo. Pessoas corriam pela praia,aproveitando o frescor da manhã. Durante a noite, haviam sido despertadaspor algo parecido com uma explosão. Mas estavam todos cansados demaisdas atividades do dia, principalmente depois da preocupação que foraaquela tempestade inesperada. Tudo era férias e lazer. Apenas os antigosmoradores olhavam o mar de forma diferente naquela manhã. Pedaços demadeira muito velha haviam dado na praia, mas isto também não era umfato inédito. Sempre, após as tempestades que revolviam o leito do oceano,pedaços de madeira das embarcações naufragadas na região acabavamchegando à praia. Despertavam um pouco de curiosidade, depois acabavamvirando lenha nas casas dos pescadores.

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O imponente iate estava ancorado ao largo. Na tarde anterior, algunsveleiros haviam chegado e agora enfeitavam a paisagem com seus longosmastros. Um hidroavião oscilava suavemente, destoando daquela paisagemmarítima. Na casa da família Garcia, seus membros, agora aumentados porRondha e Steve, estavam exaustos, mas aliviados, depois de uma longa eatribulada noite. No assoalho espalhavam-se centenas de peças de joiasraras e antigas, que contavam uma história que jamais seria decifrada. Os decontrastes e belezas extremas. Sentados ali, Rondha e Miguel tentavamseparar aquelas joias, catalogando-as. O Santa Rosa não tinha em seu cofreapenas o tesouro roubado dos ciganos. Havia também peças de ouro e prata,moedas de todos os cantos do mundo, algumas verdadeiras raridades.

— O que vamos fazer agora? — indagou Loreta, que não via maisobjetivo algum em sua vida, após a destruição daquele ídolo maldito.

Pensava agora em voltar para casa, mas já não sabia mais onde era suacasa. Seus filhos haviam nascido e criados em San Juan. Não tinham paraonde voltar, pois ali era o lugar deles.

— Sei que estamos ricos... Tão ricos que jamais entenderemos osignificado disso — falou Miguel.

— Não é difícil de supor isso, olhando para tudo isso que foi tirado doSanta Rosa — disse Steve.

— E nós concordamos que uma parte será sua, Steve — afirmouMiguel. — Rondha também merece algo. Ela e Lupe salvaram nossas vidas.jamais vi tanta coragem.

— Oh, Miguel! dinheiro nada significa para mim. Sabe o que eugostaria mesmo?

— O quê?— Ficar aqui com vocês e pesquisar todos os destroços que há na

região. Nunca me diverti tanto, pode acreditar nisso?— Se depender de mim, pode ficar o quanto quiser — disse o rapaz,

tomando as mãos dela.Loreta olhou-os. Miguel e Rondha, Lupe e Steve, uniões que ela jamais

admitiria alguns dias antes. Agora tudo mudara. A lei perdera o sentido.Eram cidadãos de San Juan. Ali tinham amigos. Ali encontraramsolidariedade em Steve e Rondha, dois desconhecidos que ela, Loreta, teriaevitado aproximarem-se de sua família.

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— Poderíamos montar uma companhia de resgate de destroços. Foicom peso na consciência que explodi o ídolo e o Santa Rosa. Havia coisasrealmente valiosas nele que poderiam ser exploradas. Da mesma forma,vamos encontrar isso nos outros naufrágios que fazem parte da históriadestas ilhas — ponderou Miguel.

— Só que há um pequeno problema — lembrou Steve. — Temos aquium verdadeiro tesouro, mas como vamos transformá-lo em dinheiro? Ogovernador da ilha vai requerê-lo todo para o museu histórico. O máximoque vocês terão será o ressarcimento de despesas, o que não vai pagar osanos todos de procura que empreenderam. Uma simples moeda, comoaquelas ali, se vendidas a um colecionador, manteria a família por um anointeiro. A questão é como tirar isto daqui.

— Talvez eu tenha a resposta — disse o cinquentão, parado na porta,surpreendendo a todos.

O sol surgia lentamente, jogando luminosidade sobre a ilha, dissipandoo temos que instalara-se no dia anterior com a tempestade. Era um novo dia,cheio de luz e calor. Os efeitos devastadores da ventania já haviam sidoconsertados. San Juan era de novo uma ilha tranquila das Bahamas, onde osturistas gastavam seus dólares e seu tempo.

— Quem é você? — indagou Loreta, olhando aquele vulto, imóvelcontra a luz do sol nascente.

— É a família Garcia, não? — indagou ele.— Sim, e você, quem é?Ele sorriu e avançou alguns passos. Tinha um rosto calmo e um sorriso

bonachão.— Sou Sancho Perez! — disse ele.— O pirata? — espantou-se Loreta.—Um descendente dele, senhora Loreta Garcia.Ela recuou, pondo-se entre o recém-chegado e o tesouro, numa ação

instintiva de defesa.— Acho que nossas famílias estão ligadas — continuou ele. — No

passado, elas se cruzaram, num encontro não muito feliz. Gostaria que nãome encarassem como um inimigo. Sou apenas um homem curioso de meupassado.

Ele avançou mais um passo, desviando-se de Loreta e olhando otesouro no assoalho.

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— É este o tesouro de Sancho Perez?— O que ele roubou de nossa tribo.— Sim, pode ser, mas estava no Santa Rosa, não?— Sim, estava — informou Steve. — Qual seu interesse em tudo isso,

afinal?— Eu compro tudo que está aí. Trago um avaliar imparcial e não

discutirei o preço.— E como vai tirar isto daqui?— Quem mais sabe do tesouro?— Só nós.— Se não contarem a ninguém, ninguém saberá.— E seu pai, Rondha? Como vai explicar tudo a ele? — quis saber

Miguel.— Direi que vocês foram ao local apenas para prepará-lo para a festa.

Não importa o que ele pense. Por mim nada saberá do tesouro.— E então, negócio fechado? — insistiu Sancho Perez Y Diez.Loreta olhou para os filhos, que aprovaram. Steve e Rondha, que até

então não faziam parte da família, também foram consultados,concordando.

— Está bem, senhor pirata. Vamos negociar! — disse Loreta,apanhando o bule e servindo uma xícara de café para o visitante.

Na praia, um turista saltitava, com uma lasca de madeira coloridacravada na sola do pé. O sangue gotejava na areia lavada pelas ondas.Acidentes assim aconteciam de vez em quando.

FIM

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L P BAÇANO Mago das Letras

5: escreveu e publicou seu primeiro livro de bolso, a novela Uma Tesepara o Amor, pela Editora Cedibra, Rio de Janeiro, passando, daí, aescrever mensalmente novelas por encomenda para essa e outras editoras.

5: teve 11 letras incluídas no LP Saudação ao Mato Grosso, da duplaEstudante & Caminhoneiro.

6: teve 6 letras incluídas no LP Oração de Um Caminhoneiro, da mesmadupla.

1: participou da Coletânea do I Concurso Nacional de Literatura daFENAE, com um conto premiado em 1º. lugar.

4: participou da Antologia Os Poetas, do V Concurso Helena Kolody dePoesia, Governo do Paraná, Curitiba – PR.

5: traduziu a obra El Contuberneo Judeo-Maçónico-Comunista, de JoséAntonio Ferrer Benimelli, em 2 volumes intitulados Maçonaria &Satanismo, para a Editora "A Trolha".

6: publicou a novela rural Sassarico, sobre o fim do ciclo do café, início darotação de culturas (soja e trigo) e surgimento dos boias-frias e editou oslivros Vida Minha, de Emília Ramos de Oliveira (biografia) e CírculoVicioso, de Arlene Cirino de Oliveira.

7: participou da coletânea Poema, Poesia... Maçom, Maçonaria,organizada por Mário Cardoso para a Editora Arte Real.

8: publicou o livro de poemas Alchimia.

9: publicou o livro Redação Passo a Passo e editou o livro URAÍ - NossaTerra, Nossa Gente, 2 volumes, de Emília Ramos de Oliveira.

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0: teve 2 letras incluídas no CD Nosso Negócio É Cantar, da dupla MárcioRogério & Luciano e 3 letras no CD Mais, do cantor Cícero de Souza.Publicou, neste ano de 2000, Brincando nos Caminhos do Senhor, revistainfantil cristã, Editora e Gráfica Cotação da Construção, Londrina – PR.

1: editou e prefaciou o livro Templários, de Lori Andrei Perez Baçan.

2: foi o autor da letra do hino da Loja Maçônica Londrina, em parceriacom o músico Wilmar Cirino.

4: organizou, editou e participou do livro I Antologia do Portal "CáEstamos Nós".

6: organizou, editou e participou do livro II Antologia do Portal "CáEstamos Nós".

7: publicou os livros A Sabedoria dos Salmos, A Sociedade Secreta dosTemplários e O Livro Secreto da Maçonaria, pela Universo dos LivrosEditora Ltda.

0: publicou os livros Manual da Futura Mamãe, Quem Disse Que CozinhaNão è Lugar de Homem e Receitas Naturais pela editora Universo dosLivros. Editou o livro de contos Solidariedade, do autor baiano JoãoJustiniano da Fonseca. Produziu, dirigiu e apresentou uma série de 7programas radiofônicos Vila das Artes, na Rádio Boa Nova FM, dePérola, PR, sobre literatura atual.

2: traduziu, editou e publicou o livro A Origem do Satanismo naMaçonaria, de Arthur Edward Waite.

2013: traduziu, editou e publicou em formato eletrônico os livros Carmila,de J Sheridan LeFanu, e Teoria da Esgrima a Cavalo, de Alex Muller,Anjos, o Caminho de Volta, Os Olhos do Carrasco e Novelas de Terror(Volumes I e II), pela Lulu Press, Inc.

5 até 2015: hoje escreveu mais de 700 livros, publicados em sua maioriaem formato de bolso, sobre os mais diferentes assuntos, como: romances,erotismo, palavras cruzadas, charadas, passatempos, literatura infantil,passatempos infantis, horóscopos, esoterismo, simpatias populares, rezas,orações, intenções, anjos, fadas, gnomos, elementais, amuletos, talismãs,

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estresse, manuais práticos, religião e outros livros de bolso com os maisdiversos temas e letras para músicas. Já editou em formato eletrônicomais de 1000 títulos, entre publicações individuais e antologias, deautores de Língua Portuguesa e Espanhola.

licou ao longo dos últimos 40 anos poemas e contos em jornais decirculação regional. Ultimamente, está revisando seu romance“Quaresma”, já concluído, tem traduzido e editado livros eletrônicos eempenhado em editar todos seus títulos em formato eletrônico para seremdisponibilizados em seu site

www.acasadomagodasletras.net.