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Música & Literatura: o Sagrado Vivenciado Marcos Ferreira Santos' A consciência de estar só é sempre, na penumbra, a nostalgia de ser dois ." Bachelard, 1970 Dedicado a Angelica y Soledad, desde Ias Piedras y crepusculos de Sevilla Desde há muito vimos tangenciando as questões relacionadas com uma fenomenologia do Sagrado, seja no âmbito dos desejos de pesqui- sas mais individuais, seja no âmbito dos desdobramentos das pesquisas desenvolvidas pelo CICE -Centro de Estudosdo Imaginário, Culturanálise de Grupos e Educação. Algumas elaborações prelimirlares se esboçaram em nossa tese de doutoramento, ao sugerir, em sua parte final, uma ética da imagem (uma imagética, talvez...), tendo como matiz as estrutu- ras antropológicas do Imaginário (Durand, 1981) e o conceito de thean- thropia (Berdiaev, 1957), numa concepção catártica. Ali, havíamos de- nominado catarse mythopoiética (Ferreira Santos, 1998). Após o convite do Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP para conferências no SimpósioInterinstitucional Contrapontos como Sagrado, começamos a sistematizar, em outros termos, aquilo que compreendemos como experiência e/ou vivência do Sagrado em contato com outras formas de expressão. Num primeiro momento com o teatrol e, posteriormente, com a dança2. Aqui, tentamos explici- tar as características desta experiência, tendo como ponto de partida a música e a literatura. Portanto, trata-se de um esboço de reflexão antro- po-filosófica de caráter hermenêutico. Neste sentido, devemos esclarecer, desde já, que nosso "estilo" reflexivo está balizado numa Hermenêutica Mythanalítica, ou seja, numa tentativa de convergência instaurativa que articula a Filosofia das formas .Prolessor Doutor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do CICE/FEUSP. I FERRElRA SANTOS, Marcos. A Vivência Mythica no Teatro. São Paulo. PUC/Núcleo de Estudos Pós- Graduados em Ciências da Religião, Simpósio lnterinstitucional "Contrap01\tos com o Sagrado", 05 de novembro de 1999. 2 fERRElRA SANTOS, Marcos. A Dança e o Sagrado: O Arquétip/! da Bailarirla e do VelhoSábio. Fotogra- fias de Carolina Bezerra. São Paulo: PUC/Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Reli- gião, Simpósio lnterinstituciorlal "Contrapontos com o Sagrado", 08 de junho de 2000. 57

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Música & Literatura: o Sagrado Vivenciado

Marcos Ferreira Santos'

A consciência de estar só é sempre,

na penumbra, a nostalgia de ser dois ."

Bachelard, 1970Dedicado a Angelica y Soledad,

desde Ias Piedras y crepusculos de Sevilla

Desde há muito vimos tangenciando as questões relacionadas comuma fenomenologia do Sagrado, seja no âmbito dos desejos de pesqui-sas mais individuais, seja no âmbito dos desdobramentos das pesquisasdesenvolvidas pelo CICE -Centro de Estudos do Imaginário, Culturanálisede Grupos e Educação. Algumas elaborações prelimirlares se esboçaramem nossa tese de doutoramento, ao sugerir, em sua parte final, umaética da imagem (uma imagética, talvez...), tendo como matiz as estrutu-ras antropológicas do Imaginário (Durand, 1981) e o conceito de thean-thropia (Berdiaev, 1957), numa concepção catártica. Ali, havíamos de-nominado catarse mythopoiética (Ferreira Santos, 1998).

Após o convite do Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciênciasda Religião da PUC/SP para conferências no Simpósio InterinstitucionalContrapontos com o Sagrado, começamos a sistematizar, em outros termos,aquilo que compreendemos como experiência e/ou vivência do Sagradoem contato com outras formas de expressão. Num primeiro momentocom o teatrol e, posteriormente, com a dança2. Aqui, tentamos explici-tar as características desta experiência, tendo como ponto de partida amúsica e a literatura. Portanto, trata-se de um esboço de reflexão antro-po-filosófica de caráter hermenêutico.

Neste sentido, devemos esclarecer, desde já, que nosso "estilo"reflexivo está balizado numa Hermenêutica Mythanalítica, ou seja, numatentativa de convergência instaurativa que articula a Filosofia das formas

.Prolessor Doutor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do CICE/FEUSP.I FERRElRA SANTOS, Marcos. A Vivência Mythica no Teatro. São Paulo. PUC/Núcleo de Estudos Pós-

Graduados em Ciências da Religião, Simpósio lnterinstitucional "Contrap01\tos com o Sagrado", 05 denovembro de 1999.

2 fERRElRA SANTOS, Marcos. A Dança e o Sagrado: O Arquétip/! da Bailarirla e do Velho Sábio. Fotogra-fias de Carolina Bezerra. São Paulo: PUC/Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Reli-gião, Simpósio lnterinstituciorlal "Contrapontos com o Sagrado", 08 de junho de 2000.

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simb6licas (E. Cassirer), a Hermenêutica (P. Ricoeur), a Fenomenologia do ser

selvagem (Merleau-Ponty), o Racionalismo poético (C. Bachelard), a Metafí-sica existencial (C. Cusdorf), a noção de Teanthropia (N. Berdiaev e

Mircea Eliade)e as Mythocrítica e Mythanálise (C. Durand), além de umabase existencialista assentada na antropologia filosófica personalista (N .

Berdiaev e E. Mounier).

Continuando a tentativa de compreensão da experiência religio-sa, principiada pelo mitólogo romeno Mircea Eliade, em que a fenome-

nologia do sagrado aparece ...como decifração do sentido profundo de cada

hierofania e interpretação de uma forma religiosa como tal. (1993), procura-mos nos ater às provocações numinosas da música e da literatura; se-

guindo a linha de argumentação do mestre romeno, ao tentar evidenciar

que, 'no interior do mais profano, ressurge o Sagrado.Desta forma, tanto a estrutura figurativa da construção musical

como da narrativa literária possuem uma característica comum que nos

parece ser altamente significativa para uma fenomenologia do Sagrado:sua capacidade de nos introduzir em outro tempo e em outro espaço. Se

nos atermos, inicialmente, às produções mais folclóricas como as pulu-

xias, as chulas de terreiro, aS tiranas características da caatinga nordes-tina brasileira (que possuem uma herança moura no arpejo das violas ena construção melódica, devido ao intercâmbio colonialluso-ibérico) ou

mesmo nos qawali paquistaneses ou nas bases musicais das danças der-

viches no mundo árabe ou, ainda, nas elaborações ocidentais mais clás-sicas desde Bach, Monsieur Saint-Colombe até Debussy ou, então, nasinversões de Igor Stravinsky ao percurtir instrumentos de cordas e me-

lodizar instrumentos de percussão -e aqui os exemplos poderiam mul-

tiplicar-se ao infinito -teremos facilmente percebido sua capacidade de

nos seduzir no interior de sua própria estrutura musical. A experiência

musical não ocorre senão durante sua execução. Sua efemeridade, pa-

radoxalmente, garante sua permanência.A música, como exemplar obra de arte que nos atesta sua incon-

clusão, como arte em obra (Ferreira Santos, 1999), contínua abertura muitopróxima da própria construção da pessoa (prosopon = aquele que afronta

com sua presença) (Ferreira Santos, 1998) na tradição antropo-filosóficapersonalista, remete-nos ao seu tempo próprio, retirando-nos do tempo

cotidiano e cronológico. Introduz-nos no tempo próprio da obra: prelú-dio, abertura, interlúdio, tocata, fuga, fermata... Seguimos a ordem pró-

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Porto, Sanchez Teixeira, Ferreira Santos & Bandeira (or.E!s.)

pria da apresentação musical, acompanhamos suas vísceras harmônicase conflituais, suas resoluções, seus leit-motiv que se repetem e prenunciam,nas partes constituintes da obra, a obra toda. As imagens musicais suce-dem-se numa constelação que se configura, unicamente, no tempo pró-prio da obra. Mesmo na construção mais circular característica da,pro-dução musical oriental acontece o mesmo fenômeno: tal qual o círculohe.rmenêutico em que não sabemos se é o intérprete que constitui ouextrai sentidos e significados do texto ouse são os sentidos e significadosque constituem o ser do intérprete, a construção musical circular nosintroduz no turbilhão voraz do tempo primordial. Quando nos damosconta, a experiência musical, ao finalizar e continuar apenas na ressonân-cia da caixa torácica do espírito, permite-nos voltar ao tempo cotidiano ecronológico. Retomamos.

Na construção narrativa literária, podemos perceber a mesmasedução para um tempo outro. Seja na prosa, no poema, na poesia, naficção ou no romance, seguindo uma concepção catártica, teremos a se-guinte estrutura:

.Prõtase (Prótasil'): primeira parte da ação dramática, na qual o argu-mento é apresentado e se inicia o drama (equivale ao momento da repetiçãona psicanálise freudiana e à primariedade na semiótica de Peirce3 );

.Epítase (Epítasis): parte intermediária onde os incidentes prin-cipais da intriga se desenvolvem (corresponde ao momento da rememo-ração e à secundidade); e

.Catástase (Katástasil'): parte final na qual os acontecimentos seadensam, precipitam-se e se esclarecem -onde ocorre a Katharsil' (asso-cia-se ao momento catártico freudiano na perlaboração e à terceiridadepeirceana). É o momento em que a narrativa mythica ressoa na estrutu-ra de sensibilidade do ouvinte/partícipe/leitor(Ferreira Santos, 1998).

Ainda que esta concepção aristotélica tenha se tornado, com opassar do tempo, uma espécie de "camisa-de-força" na classificação decaráter taxonômico, na crítica literária e mesmo na crítica e criação tea-tral, creio que não devemos menospre.zá-la em decorrência de seus usosredutores, em detrimento de sua rica estruturaconfigurativa. Neste sen-

3 A contribuição da semiótica peirceana para avançar o próprio âmbito semiótico em direção a uma

hermenêutica profunda dá-se na valorização do interpretante (seja ele humano ou não) entre as rela-çÕes sfgnicas. As instâncias semióticas da primariedade (caráter sensorial do signo), secundidade (cará-ter relacional do índice) e terceiridade (caráter propriamente simbólico e argumentativo) fornecemuma forma de entrada no tecido imagético, que força a extrapolação dos limites de um pensamentode sobrevôo (comt> criticaria Merleau-Ponty) ou hermenêutico-redutor (C. Durand). Para além dasclassificações superficiais. esta contribuição merece uma oportuna reflexão mais detida.

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tido, a configuração catártica mythopoiética (tendo em vista a ressonân-

cia da narrativa mythica na trajetória mythica do ouvinte/partícipe/lei-tor) tem como recurso inicial na prótase a retirada do ouvinte/partícipe/leitor de seu tempo cotidiano, para introduzi-lo no tempo da obra. Aqui,ainda antes, é o próprio ator que é introduzido, ritualisticamente, nestetempo outro. Malgrado as tentativas de secularização da técnica, sejaem suas vertentes libertárias (E. Piscator, B. Brecht, Augusto Boal) ouaristocráticas (teatro anglo-saxão), a técnica apenas oculta a meta físicaprofunda que se processa na atividade teatral. Radicalizando a análise,antes ainda, é o próprio autor que é subtraído a um tempo outro aoconceber a obra. Merleau-Ponty (1992) já nos advertia muito bem: Écerto que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A

verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida.A obra exige esta vida. Somos portadores de uma obra a realizar-

se. Portadores de uma transcendência. 20 anos depois, ele próprio rea-firmaria: A transcendência, então, não domina o homem, ele é estranhamente

.\"eu portador priv!legiado. (Merleau-Ponty, 1974).Temos uma primeira evidência que a nossa entrada em um tem-

po outro da obra musical ou literária é ~lemento constituinte da própriatranscendência. Embora já tenhamos abordado este aspecto em outrasocasiões, creio ser sempre pertinente, para evitar leituras enviesadas,que tentemos uma vez mais explicitar a natureza desta transcendência.Aqui ela não tem a conotação de algo abstrato, ideal, não possui o valoridealista e espiritualista de eternidade, mas traduz-se na sua mais concre-ta acepção como via alternativa intencional, ou in-tensional4 (como, emparte, em Kant, Heidegger e Husserl), entre a ascendência ideacional(predominância platônico-idealista) e a descendência materialista (pre-dominância das determinações factuais). Assim, não se privilegia a as-cendência (a existência de um ser superior separado do humano), nema descendência (a existência humana separada do meio cósmico-socialque lhe abriga), mas, sim, a trans-cendência (Ferreira Santos, 1998), ou

seja, o caráter recíproco da constituição do humano e do Sagrado.A respeito da filosofia transcendental em Kant e seu importantís-

simo papel na revitalização das filosofias da imagem e da imaginação apartir do romantismo alemão, devemos lembrar que ...no princípio doromantismo. Kant é o primeiro a quere1; timidamente, reabilitar a imaginação. A

~n

Porto. Sanchez Teixeira, Ferreira Santos & Bandeira (or~s.)

imaginação tem um papel no sistema filosófico de Kant entre as formas a priorida sensibilidade. {Durand, 1982:43).

Se a obra musical ou literária principiam por nos remeter a umoutro tempo, também nos remetem a um outro espaço. Este ritmo ou-tro que nos temporiza no interior da obra, também nos preenche deconfigurações imagéticas. Imagem arrasta imagem e, de metáfora emmetáfora, vemo-nos como uma sintaxe de metáforas: ...as metáforas se con-vocam e se coordenam mais que as sensações, ao ponto de um esPírito poético serpura e simplesmente uma sintaxe das metáforas. {Bachelard, 1994a). Esta sin-taxe imagética re-organiza o espaço e não temos mais o controle visualdo espaço cotidiano. Por um momento -O momento eterno da obra -saímos do tempo e do espaço cotidianos. Somos subsumidos pelo ritmoe pela imagem: experiência vertiginosa. Nosso mestre elementar tam-bém concorda que:

Quando a imagem particular assume um valor cósmico, produz o

efeito de um pensamento vertiginoso. Uma tal imagem-pensamen-to, um tal pensamento-imagem não tem necessidade de contexto...

É preciso que as pessoas racionais perdoem àqueles que escutam os

demônios do tinteiro. (.Bachelard. 1989a).

Escutar os demônios do tinteiro: escutar o ritmo de seu tempo ever o espaço imagético produzido por sua tinta. O controle visual seobumbra. A flauta seduz o ouvido. O tambor percute a pulsação uteri-na. Martelo, bigorna, tímpano5servem agora a um outro ferreiro alquí-mico sonoro. Martelam imagens de uma outra dimensão.

Cabe-nos, agora. apontar uma outra característica que nos pre-para para a experiência numinosa da obra: sua repetitividade. A redun-dância, a recorrência,a ressonância da narrativa mythicajá foram trata-das por vários pesquisadores e são as bases materiais do trabalho her-menêutico mythanalítico. Mas, vale a pena reafirmar: O mundo da repeti-ção é o mundo da criação continuada. A repetição assegura a reintegração dotempo humano no interior do tempo primordial. (Gusdorf, 1953).

Se deixarmos de lado, por um momento, a obsessão ocidental-aristotélica-cartesiana em ver na repetição apenas o retorno do mesmo,o gesto mecânico e vazio de sentido do ato rotineiro, a mesmice objeti-vada; talvez possamos perceber que esta repetição que vemos na obramusical (leit-motiv ocidental ou estrutura melódico-circular oriental) e

5 Metáfora utilizando a nomenclatura dos ossos constituintes do aparelho auditivo.

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Tessituras do Imaginário: cultura & educação -UNIC -Cuiabá -CICE/FEUSP

literária é da ordem da criação continuada. É criar novamente, darvida novamente à obra, é parir filhos que nos dão luz a nós mesmos,num ato increador (Berdiaev, 1957): prenuncia, anuncia e apresentaperpetuamente. Jamais se objetiva por completo, pois isto seria deixarde criar. A criação contínua é o testemunho de que somos feitos da mes-ma matéria dos deuses, por graça e criação deles. Ao mesmo tempo,somos eles próprios: A transcendência é a identidade na diferença (Merleau-

Ponty, 1992).Daí o mundo desta repetição nos remeter ao tempo primordial.

O tempo primevo da criação original. Criação increada, acrescentaria omestre Berdiaev. A destinação do homem é sua liberdade increada. Amesma liberdade do tempo primordial. Liberdade do ventre materno.

A circularidade desta repetição é a mesma do útero, do ovo pri-mordial, da cúpula celeste, do interior da gruta... Espaço circular dotempo rítmico vertiginoso.

Vertil!em. Voral!em e Vórtice

Ao percebermos que a introdução a um tempo e espaço outros naobra musical ou literária é uma característica inicial da experiência nu-minosa através destas formas de expressão, podemos rearticular a con-cepção catártica a partir desta experiência vertiginosa do mundo darepetição, do ritmo e do espaço circular. Se nos recordarmos das estru-turas antropológicas do Imaginário em Durand (1981) e da inscrição daimagem na corporeidade presente na noção de trajeto antropológico, po-demos inferir que o primeiro constituinte da experiência numinosa nesteexercício de compreensão fenomenológica será,justamente, a vertigem:perder o controle visual e postural centrado na ascensão, característicosda estrutura de sensibilidade heróica. Vigilante constante, guerreiro solarportador da espada e do cetro monárquico: aquele que domina exata-mente pelo controle do espaço através do poder da visão. Então, pelavertigem, a visão se obumbra, o corpo se enreda no espaço e tempocirculares. A percepção se desfoca; portanto, a própria consciência sealtera para um outro estado. Instala-se no caráter increado da obramusical ou literária.

Esta vertigem está espelhada na superflcie aquosa do movimentocontínuo de fluxo e refluxo, morte e renascimento, do rio que se preci-pita sobre as pedras:

água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose onto-

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Porto. Sanchez Teixeira. Ferreira Santos & Bandeira (orgs.)

lógica essencial entre o fogo e a terra. o ser votado à água é um

ser em vertigem. Morre a cada minuto (...) o sofrimento da água

é infinito. {Bachelard, 1989a).

Embora esta perspectiva seja mais facilmente assimilada na nar-rativa mythica da literatura, que tem como suporte a palavra e a lingua-gem, não é verdade que ela não ocorra na música. Ali, principalmente,em virtude de sua arquitetura, ela nos remete ao próprio ser sem outrasmediações que não o próprio ser:

A música está por demais aquém do mundo e do designável,

para figurar outra coisa a não ser é puras do Se1; seu fluxo erefluxo, seu crescimento, sua.\' exPlosões, seus turbilhões. (Mer-

leau-Pontv, 1975).

À borda da experiência vertiginosa que a estrutura narrativa daliteratura e a harmonia conflitual da música proporcionam, somos sub-

sumidos ao segundo elemento constituinte desta fenomenologia numi-

nosa: a voragem.

Lembrando-nos uma vez mais das estruturas antropológicas pos-tuladas por Durand, a natureza da estrutura de sensibilidade mística

tem como inscrição corporal a dominante digestiva. Os símbolos da in-

versão são produzidos e constelados pela ingestão e digestão que opera-rão a eufemização da finitude. Morrer a cada minuto... passa a ser a res-posta contra a luta pela vida. Da ingestão do leite materno temos como

imagem exemplar a taça: a queda se eufemiza em descida, em mergu-lho, na dialética contido/continente. Taça que se espelha no crescente

lunar e no seio feminino. Os seios do aleitamento são também o leito do

descanso, do refúgio. Assim como no exemplar complexo de cultura

apontado por Bachelard: o comPlexo de lonas. Ele é tragado pela baleia eali habita o Sagrado. Não é devorado, mas sugado. Ao mesmo tempo,

ele próprio traga a experiência. Indelevelmente marcada no espírito.

Vive;.. Morrendo a cada minuto Não será outro o sentido desta experiência vorática. Uma vez a

consciência obumbrada pela vertigem, a obra musical e/ou literária vora

o ouvinte/partícipe/leitor que, por sua vez, alimenta-se da mesma expe-riência. A baleia numinosa é abrigada e abriga o jonas incauto em buscade Deus. Em busca de si mesmo. É a mesa da Santa Ceia, em que o pão

partilhado prenuncia a partilha da crucificação. O beijo que prenuncia,

anuncia e apresenta. O vinho que tragado, traga em sangue o corpo docordeiro. A cabeça de São joão Batista na bandeja de Salomé: depois da

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Tessituras do Imaginário: cultura & educação -UNIC -Cuiabá -CICE/FEUSP

vertigem da dança circular dos Sete V éus, a voragem da decapitação.Esta dialética recursiva da experiência vorática também já havia sido

assinalada por Merleau-Ponty ( 1992):

...o grito e a voz terminam em sons e eu os ouço. Como o cristal, o

metal e muitas outras substâncias, sou um ser sonoro, mas a mi-

nha vibração, essa é de dentro que a ouço; como disse Malraux,

ouço-me com minha garganta.

Ouvir-me com minha garganta assinala esta recíproca implicaçãodo produtor e do produzido na vibração íntima das ressonâncias. A obra,ao ser experenciada, é recriada pelos órgãos da sensibilidade que, porsua vez, são amplificados pela experiência. A voragem assume ares deturbilhão numa tempestade que, além de nos atemorizar (tremendus ter-rificus), também nos fascina (tremendusfascinans)6;

A música não está no espaço visível, mas ela o mina, ela o inves-

tiga, ela o desloca, e logo esses ouvintes, muito enfeitados, que

tomam o ar de juizes e trocam palavras ou sorrisos, sem perceberque o solo se abala sob eles, são como um equiPamento sacudido à

superfície de uma tempestade. (Merleau-Ponty, 1971 ).

Na literatura. a voragem opera o tráfego e tráfico de sentidos esignificados que vão da obra ao ouvinte/partícipe/leitor e vice-versa, atéo ponto em que já não se distingue o centro irradiador. A periferia se

dilui e o centro está por toda a parte. Permanece a pulsação em sístole/

diástole da experiência vorática:

Ma.5 o di.5curso fala em mim; ele me interpela e eu ressôo, ele me

envolve e me habita a tal ponto que não sei mais o que é de mim

e o que é dele. ..A linguagem, simples desenrolar de imagens, a

alucinação verbal, simples exuberância de centros de imagens...É a pulsação de minhas relações comigo mesmo e com outrem.

(Merleau-Ponty, 1974).

Se tentarmos visualizar num esquema simplificado estes elementosconstituintes da experiência numinosa teremos o seguinte diagrama:

6 So:gllindo a clássica definição da experiência nllminosa como Myslerium fascinosum o: Myslerium

Iremendus. se"lindo RlidolfOIto, 1912.

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Porto, Sanchez Teixeira. Ferreira Santos & Bandeira (or1!s.)

Mergulhando em profundidade na experiência estética da mÚsi-ca e da literatura em sua dimensão sagrada, aproximamo-nos do centroda experiência que é o que denominamos vórtice. Por contraposição àtradição heróico-óptica, não a denominaremos vértice -de onde ema-nam ou convergem raios em perspectiva. A compreensão aqui, no âmbi-to de uma fenomenologia do Sagrado, é de que no centro desta expe-riência a subsunção se dá de maneira inequivocada sobre a própriacorporeidade. Lembrando-nos uma última vez das estruturas antropo-lógicas do imaginário em Durand, teremos que a estrutura de sensibili-dade dramática é aquela que se inscreve no corpo através dos movimen-tos rítmicos, desde a sucção até a cópula no adulto. Em outra oportuni-dade {Ferreira Santos, 1998), tentamos evidenciar o caráter rítmico pri-mordial na pulsação cardíaca da mãe sobre o ser ainda na casa uterina,que possibilitaria constelar as imagens circulares, cíclicas, rítmicas, deconciliação de contrários etc... nas primeiras informações rítmicas queatestam a repetividade, a constância e a certeza cíclica, antes ainda dadominante copulativa. Mesmo que, simbolicamente, possamos ver estaestrutura dramática como a cópula entre a estrutura heróica e a estru-tura mística. Neste mesmo sentido, apontará Ortiz-Osés {1989:141):

Para religar ou mediar convenientemente este hiatus, o próprioautor [G.Durand] propôs afigura mítico-mística de Hermes como

intermediador dos contrários reunidos e transfigurados, conseguin-do assim sua interposição entre as superadas figuras do Prometeu

heróico (Patriarcal) e o Dioniso anti-heróico (matriarcal), qual

Herme.5 fratriarcal, andrógino e reconciliado7: Todo decifrador

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Tessituras do Imaginário: cultura & educacão".- UNIC -Cuiabá -CICE/FEUSP

dos mistérios profundos simbolizados pela Esfinge acaba, por ofí-cio e benefício, reandroginizando-se: tal parece ser o benevolente

destino de nosso ductil hermeneuta.

Desta forma, o caráter cinestésico desta sensibilidade marcará ocentro da experiência religiosa: a glossolaria, as danças circulares, o transecentrífugo, a necessidade compulsiva do corpo em acompanhar, guiar edirecionar a resposta a este estado alterado de consciência em que o serselvagem (ou pré-reflexivo, segundo Merleau-Ponty) segue a obra, sejana sua criação, na sua experiência estética ou na sua interpretação:

As idéias musicais ou sensíveis, exatamente porque são negativi-dade ou ausência circunscrita, não são possuídas por nós, pos-

suem-nos. Já não é o executante que produz ou reproduz a sona-

ta; ele se sente e os outros sentem-se a serviço da sonata, é ela que

através dele canta ou grita tão bruscamente que ele precisa pre-cipitar-se sobre seu arco para poder seguí-la. (Merleau-Panty,

1992 -grifas meus)

A idéia de possessão pela obra vai em consonância com a sentençaque Thomas Mann coloca na boca de seu personagem Tonio Kruger: ...o poeta é um maldito: a poesia o escolhe. No vórtice da experiência numino-sa, através da música e da literatura, o ser é levado ao centro do olho doturbilhão, onde, mais que sair de si, inicia a viagem para dentro de si.Ali, longe de todos e acompanhado de todo o mundo, opera-se a con-junctio (Eliade), o hieros gamós (1. Brandão), a particiPatio~ mystique (1ung),nos quais a natureza humana se reconcilia com sua matéria,divina e anatureza divina se reconcilia com sua matéria humana. Então, estamosem pleno terreno mythico, onde o mytho faz: ...vibrar e cantar em nóscertas cordas afins e descobrirmos em nossa própria consciência osfios que unemo antigo e o moderno. (Cassirer, 1997).

Esta reconciliação entre uma arqueologia e uma teleologia ope-rada no vórtice da experiência religiosa mantém e aguça o caráterparadoxal da tensão entre o homo saPiens e o homo demens. O mestreBachelard ( 1988) acrescentaria: E o que vem a ser um belo poema senãouma loucura retocada ?

O que possibilita a experiência do vórtice após a vertigem e avoragem é a natureza criativa da obra que reacende a experiência mes-ma da criação. Neste sentido, em toda obra de arte, repetimos a cria-ção primordial. Somos deuses à nossa imagem e semelhança, inscre-vendo o Ser:

~~

Porto. Sanchez Teixeira, Ferreira Santos & Bandeira (or~s.)

...a arte e a filosofia em conjunto, são justamente não fabricações

arbitrárias no universo do espiritual (da cultura), mas contatocom o Ser na medida em que são criações. O ser é aquilo que exige

de n6s criação para que dela tenhamos experiência. Fazer a análi-

se da literatura neste sentido: como inscrição do Ser: (Mer!eau-

Pontv, !992).

No vórtice não há mais mediações. Só o contato direto com opróprio Ser. O confronto é ontológico. O totalmente outro que me reen-via para dentro de eu mesmo. Daí ser a experiência sagrada capaz dasconversões {metan6ias) mais inesperadas. No interior da alma sopra oespírito da tempestade que lhe agita, tal qual a chama bachelardina deuma vela. É neste sentido que o mestre elementar sugere o destino daPhoenix a toda filosofia da ambivalência e lhe atribui como precursor opróprio Empédocles {Bachelard, 1989b). Aquele que da experiênciavertiginosa na borda do Etna é vorado e vora a experiência, no meTgu-lho no centro dos chamas. No vórtice, incendeia-se. Das cinzas, ergue-secrepuscular nas asas da Phoenix renasci da. A metamorfose é da ordemda cenestesia do Ser. Bachelard { 1990: 157), mais uma vez, assinalaria namesma direção:

...a aurora é então a cenestesia do nosso ser nascente (. ..) dentretodas as imagens, é o nascer do sol que dá uma lição instantâ-

nea. Determina um lirismo de imediato. Não sugere (...) um pa-norama, mas uma ação.

A Iniciação Theanthrópica

Colocada a experiência numinosa sob o entendimento destestrês elementos constitutivos: vertigem, voragem e vórtice; podemoscomeçar a aclarar a natureza, ao mesmo tempo, plural e única dasexperiências musicais e literárias, que nos propiciam a experiêncianuminosa. Tanto a harmonia conflitual da música como a estruturanarrativa da literatura estão sempre lastreadas no que Husserl deno-minava lebenswelt: o mundo vivido, a consistência vivencial da experiên-cia, a existência (ek-.sistência). É com base neste arcabouço vivido que asconstruções musico-literárias produzem ressonâncias específicas, asquais nos remetem às experiências vertiginosas e voráticas que, porsua vez, preparam o contato com o vórtice. Durand nos lembra em '54Fé do Sapateiro" (1995: 142):

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Mas é preci5o sublinhar aqui que toda figura de Deus, porque é

uma figura, depende por i5so mesmo da valorização estética. Se

toda obra de arte é uma teofania que ignoramos, toda figuração

religiosa, qualquer ícone, possivelmente qualquer ídolo é manifes-tado e conhecido enquanto obra de arte. Seria preciso exPlorar

essa recorrência estética, especialmente no Ocidente, como ex-

pressão artística musical.

Contraditorialmente, esta recorrência e ressonância se ancorame, ao mesmo tempo, produzem pregnância.\' simb61icas (no sentido de Cas-sirer) que vão, camada a camada, estruturando uma arquitetura da ex-periência religiosa. Para ser um pouco mais específico, chamaríamos dearché-tessitura, pois, sem dúvida, trata-se de um lastro vivencial; po-rém, pensando o ser selvagem pré-reflexivo (Merleau-Ponty), este las-tro vivido, memorial, já não se restringe à memória de um único ser,mas à memória humana: uma memória arqueológica, arquetipal. Dostraços mythicos e arquetipais desta experiência, tece-se o tecido do sen-tido e significado que irão orientar o pro-jectum existencial. Da trama eda urdidura deste tecido, as várias roupagens de um mesmo persona-gem. O colorido arlequim que oculta a mesma alma.

Mas, é preciso cuidado com uma hermenêutica precipitada queesqueça o vagar necessário para acompanhar as ressonâncias da obra edo Ser, pois uma redução ao mito, sem levar-se em conta sua natureza

arqueológica, teleológica e escatológica, ou seja, que o mytho é a articu-lação entre a arché (passado) e o presente vivido em direção a télos (futu-ro) através da narrativa dinâmica de imagens e símbolos; faria com queesta experiência se assentasse sobre uma suposta concreticidade do fe-nômenb religioso sempre oculta, para uma sociologia superficial e quebastasse encontrá-la e demonstrá-la para eliminar todas as dificuldadescartesianas de apreensão e explicação racional do fenômeno sagrado,quando. ..a teologia racional aparece então, ao final, como uma promoçãoteol6gica da razão. (Gusdorf, 1953).

Mas essa redução ao mito supõe um fundo de positividade não mí-

tico que é, assim, outro mito. É preciso compreender que mito, misti-

ficação, alienação, etc. são conceitos de segunda ordem. ..mito éuma construção. No sentido em que todo uso da função simbólica éum deles. Não é qualquer texto que pode adquirir esse poder mítico.

Cuidado com a nova Aufk1ãrung. (Mer1eau-Ponty, 1992).

Uma "ilustração da penumbra" seria tão irracional quanto a pri.

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Porto, Sanchez Teixeira, Ferreira Santos & Bandeira (orgs.

meira das luzes. Aqui trata-se, evidentemente, de uma educação de sen-sibilidade que possa reassentar o racionalismo em outras bases: um racio.nalismo poético {Bachelard) que faça uso de uma razão sensível {M

Maff"esoli), pois:

...a função simbólica deve sempre estar em avanço com relação ao

seu objeto e só encontra o real adiantando-o no imaginário. A

tarefa é, pois, alargar nossa razão para torná-la capaz de compre-ender aquilo que em nós e nos outros precede e excede a razão .

(Merleau-Ponty, 1974).

Neste mesmo sentido,

1Odos os objetos, desde que se libere seu sentido simbólico, tomam-

se signos de um intenso drama. 1Omam-se espelhos aumentadoresde sensibilidade! Nada mais no universo é indiferente, desde que

se conceda a cada coisa sua profundeza. {Bachelard, 1994b).

Alargar a razão e profundizar a sensibilidade. Eis talvez a outradivisa para os que ouviram os demônios do tinteiro. Eis talvez o para-digma de uma outra concepção de cultura que, muito mais próxima desua conotação agrária, possa germinar novos brotos hesitantes, outrasepifaniasde cor, novas fusões de Ser nos aromas que vagueiam... cultu-ra essencialmente como processo simbólico; criação, transmissão, apro-priação e interpretação de produtos simbólicos e Suas relações.

Eis porque o iniciador de cultura, ao utilizar-se dos amplificado-res semânticos da música e da literatura, é também iniciador theanthráPi-co (Berdiaev, 1957): envolve a constituição divina do homem (theos) e aconstituição humana do sagrado (anthropos), numa relação recursiva dedeterminações e aberturas. Daí o drama humano se revestir do dramamythico dos deuses. Isto possui uma função mediadora ambivalente:chama-nos a atenção para o mundo real e concreto, mas também para apossibilidade de torná-lo mais humano. Quanto mais humano, mais sa-grado. Sem esta ousadia, diz Berdiaev (1957): ...a revelação da humanida-de de Deus carece de sentido:

Deus é a maior idéia humana. A idéia do homem é a maior idéia

divina. O homem espera dentro de si mesmo o nascimento de Deus.

Deus espera dentro de Si mesmo o nascimento do homem. Sobre

esta profunda base deve colocar-se a questão da atividade..criádo-ra do homem. É um pensamento extremamente audaz o crer que

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Tessituras do Ima~inário: cultura & educacão -UNIC -Cuiabá -CICE/FEUSP

Deus necessita do homem, da resposta do homem, do ato criador do

homem. Mas, sem tal audácia a revelação da humanidade de Deus

carece de sentido (...) Ele se revela na experiência esPiritual do

homem, não na especulação teológica: o drama divino penetra odrama humano. (p. 197-8).

Neste sentido, parecem concordar também tanto o mythólogoromeno Mircea Eliade, nos seus trabalhos sobre Zalmoxis, como GilbertDurand (1982), ao comentá-los como sendo ...o deus que tem necessidadedos homens.

Esta necessidade recíproca, solidária, fraterna, ainda que audazem sua formulação teórica, aproxima a teologia da antropologia. Numaregião hespéride comum, vemos o crepúsculo silencioso dos deuses edos mortais (Eliade, 1957):

Não há como conceber uma personalidade divina antes que não setenha descoberto a individualidade do homem. Teologia e antro-

pol,ogia vão de pa1: São diferentes apenas pela aPlicação das cate-

gorias constitutivas do pensamento (. ..) de fato, não há mais cau-

.5alidade, ma.5 solidariedade. (Gusdorf. 1953).

Nesta região intermediária, andrógina, de tinturas que não nosseduzem à superfície da cor, mas que nos remetem à intimidade da subs-tância, é onde ocorre o conhecimento crepuscular (Durand, 1995), lem-brando Bachelard ( 1990a): ...todo conhecimento da intimidade das coisas éimediatamente um poema.

A respeito desta temática, Von Franz (1990:147) lembra a abor-dagem agostiniana da cognitio matutina e da cognitió vespertina, quetambém tocou jung: A apreensão matutina é um modo de conhecer em que oser humano reconhece a si mesmo na imagem do Criador,. a segunda, o conheci-mento das coisas criadas. Haveria uma gradual transformação de um modode apreensão no outro. A partir do conhecimento de si mesmo, do seuinterior, até tocar o Sagrado, e a transformação deste conhecimento emconhecimento do mundo e seus objetos, o mundo exterior. Neste senti-do, a consciência se aclara e, ao mesmo tempo (ou pouco tempo depois),

obumbra-se, obnubila-se, para em seguida aclarar-se novamente no tre-mendu.5 et fa.5cinan.5 da presença do numinoso. Lembrando Heidegger, o.5er .5e revela e .5e oculta .

Mas, lembrando também Paul Ricoeur ( 1988), é justamente dian-te do texto que se revela o Ser, não nas suas entrelinhas, embaixo, acima,ocultado ou atrás do texto. Mas, diante do texto, pois o que se revela é

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Porto. Sanchez Teixeira. Ferreira Santos & Bandeira (orQ:s.)

sempre o interpretante. Acrescentaríamos, também: diante do texto li-terário e do texto musical.

Estas gradações ontológicas {cognitio matutina e cognitio vespertina)vão se organizando num gradiente, em que é o próprio Ser que se mati-za. A concretude líquida de sua densidade espraia-se em pequenos uni-versos ontológicos, semeando a polissemia semântica. Poderíamos com-plementar com Durand {1995: 110), quando diz que ...a gnose matutinaque a inspira é uma oposição radical, tanto à unidimensionalidade cientificistacomo à unidimensionalidade teológica que é o fanatismo.

Recusando ambas as unidimensionalidades, a Obra atesta em cadaparte da criação o caráter numinoso da experiência. Tanto que: A poesiarecusa preâmbulos, princíPios, provas. Recusa a dúvida. No máximo, tem neces-sidade de um prelúdio de silêncio... {Bachelard, 1994b).

Neste prelúdio de silêncio em que, da vertigem à voragem e aovórtice, o Ser emerge outro e, ao mesmo tempo, o mesmo, fica a liçãocícera para os que, ouvindo os demônios do tinteiro, martelam outrossonhos, forjando com sophrosyne a temperança e a esperança do tempo:ensina, sensibiliza e moverás.

docere, delectare et movere

Cícero

Isto de ver se dá em cinco formas, Quando reunir em si mesmo

as cinco forma.5, o gnóstico se dá conta de que aconteceram

cinco coisas a mais, cuja explicação não se pode dar aqui e

até está proibido revelá-las, Os que queiram encontrá-las quese deixem levar por uma pessoa Perfeita e lhe perguntem, pois

'O que não foi saboreado não se pode saber',' esta é uma

condição necessária, O resto não se pode explicar com a escri-tura, (IbnAràbi, 1986:78-79).

Adendo que sugerimos para leitura ao som da voz da cantoraindiana Meeta Ravindra i, entoando "Sita Ram ", mantra predileto deMahatma Gandhi. Perceba-se, na leitura em voz alta, a experiência daglossolaria na construção poética:

7 Fundadora e articuladora da Associação Cultural Brasil-Índia. reconhecida artista que tem divulga-do a cultura indiana no Brasil. esteve presente ao lado de seu filho. Sagar Karahe (à tabla). no IIEncontro sobre Imaginário, Cultura fS Educação (FEUSP. 09/05/2000). presenteando-nos com anarrativa de sua trajetória e mantras. acompanhada da tampura. possibilitando-nos experienciara dimensão sagrada da música de que tratamos neste artigo. Meus sinceros agradecimentos eeterna gratidão. Om Namaste.

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Tessituras do Imaginário: cultura & educação -UNIC -Cuiabá -CICE/FEUSP

Oração À Nossa Senhora Do CaosRogério de Almeida

Nossa Senhora do CaosDai-me cor e coragem

Curai-me

Dai-me cruz e corpo

Coroai-meDai-me fé e fome

Forçai-meDai-me flor e febre

Fortificai-meNossa Senhora do Caos

Dai-me Deus e dinheiro

Divagai-meDai-me dor e dúvida

Destinai-meDai-me ode e ócio

Ocultai:meDai-me o que és e esperança

Esperai-meNossa ,)'enhora do Caos

Dai-me céu e .I'exo

,)'erenai-meDai-me sol e .I'ombra

,)'ondai-meDai-me som e sono

Silenciai-meDai-me são e sangue

,)'onhai-meNossa Senhora do Caos

Dai-me léu e leme

Lagrimai-meDai-me lã e lava

Lavai-me

Dai-me lua e luta

Livrai-me

Dai-me luz e luto

Levai-meNo.l'sa Senhora do CaosDai-me uso e útero

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Pnrto. Sanchez Teixeira. Ferreira Santos & Bandeira (or.1!s.)

Unificai-meDai-me nó e nuvem

Nomeai-me

Dai-me voz e vento

Velai-me

Dai-me véu e visão

Visitai-me

Nossa Senhora do Caos

Dai-me jus e jogo

Julgai-meDai-me tez e tino

1bcai-me

Dai-me rum e rumo

Ressuscitai-me

Dai-me ar e ânimo

Amai-me

Nossa Senhora do Caos

Dai.ffle mel e medo

Multiplicai-meDai-me mão e morte

Musicai-me

Dai-me pão e pena

Purificai-meDai-me paz e paciência

Perdoai-me .

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