mircea eliade - a terra, a mulher e a fecundidade

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  • 8/3/2019 Mircea Eliade - A Terra, A Mulher e a Fecundidade

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    A Terra,a mulher e a fecundidade

    83. A Terra-Mae - " ... Terra (Gala), primeiro, deu a luzurn ser igual a ela mesma, capaz de a cobrir totalmente, 0 Ceu

    (Uranos) estrelado, que ofere ceria aos deuses bem-aventuradosmorada segura para sempre." 1 Este par primordial deu origema familia numerosa dos deuses, dos ciclopes e dos outros seresmiticos (Cotos, Briareu, Giges, "seres cheios de orgulho" e quetinham cern bra90s e cinqiienta cabe9as cada urn). 0casamentodo Ceu e da Terra e a primeira hierogamia. Os deuses trataraode repeti-la e os homens, por seu turno, imita-la-ao com a mes-ma gravidade sagrada com que imitavam qualquer gesto realiza-do na aurora dos tempos.

    Gala ou Ge gozou de urn cuho muito difundido na Grecia,mas com 0 tempo foi substituida por outras divindades da Ter-ra. A etimologia parece mostrar nela 0 elemento telurico na suaforma mais imediata (cf. sanscrito, go, "terra", "lugar"; zend,gava; godo, gawi, gauja, "provincia"). Homero mal a mencio-na: uma divindade ctonica - pertencendo, essencialmente, aosubstrato pre-helenico - dificilmente encontraria lugar no seuOlimpo. Mas urn dos hinos homericos the e dedicado: "13,a Ter-ra que eu cantarei, mae universal com profundas raizes, avo ve-neravel que nutre no seu solo tudo 0 que existe... 13,stu quem daa vida aos mortais, como es tu quem lhes tira a vida ... Bem-aventurado aquele a quem tu honras com a tua benevolencia! Paraele a vida e uma gleba de boa colheita, nos campos os seus reba-nhos prosperam e a sua casa enche-se de riquezas."2 13,squilotambem a glorifica, porque e a Terra que "cria todos os seres,os nutre, e deles recebe, depois, 0 germe fecundo"3. Veremos co-

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    mo esta expressao de Esquilo e verdadeira e arcaica. Lembremosainda urn antiqiiissimo hino que, no dizer de Pausanias4, canta-yam as Pleiades de Dodona: "Zeus foi, e e sera, oh, Grande Zeus:e com a tua ajuda que a Terra nos da os seus frutos. Com justi

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    gioso. A Terra, para uma consciencia religiosa "primitiva" , e urndado imediato: a sua extensao, a sua solidez, a variedade do seurelevo e da vegetal;ao que nela cresce constituem uma unidade cos-mica, viva e ativa. A primeira valorizal;ao religiosa da Terra foi"indistinta", ou seja, ela nao localizava 0 sagrado na camada te-hirica propriamente dita, mas confundia numa unica unidade to-das as hierofanias que se tinham realizado no meio cosmico en-volvente - terra, pedras, arvores, aguas, sombras, etc. A intui-l;aoprimaria da Terra como' 'forma" religiosa pode ser reduzidaa formula: "cosmos-receptaculo das forl;as sagradas difusas". Senas valorizal;oes religiosas, magicas ou miticas das aguas se en-contram implicadas as ideias de germes, de estados latentes e deregeneral;ao, a intuil;ao primordial da Terra mostra-no-Ia comosendo 0jundamento de todas as manifestal;oes. Tudo 0 que estasobre a Terra esta em conjunto e constitui uma grande unidade.

    A estrutura cosmica dessas intuil;oes primarias quase impos-sibilita-nos de distinguir nelas 0 elemento propriamente telurico.

    Dado que 0 meio envolvente e vivido como uma unidade, so muitodificilmente se poderia distinguir nessas intuil;oes primarias 0 quepertence a Terra propriamente dita e 0 que e somente manifesta-do atraves dela: montanhas, florestas, aguas, vegetal;ao. Vma uni-ca coisa se pode afirmar com certeza acerca dessas intuil;oes pri-marias (cuja estrutura religiosa e inutil demonstrar mais uma vez):e que elas se manifestam como jormas, revelam realidades, im-puseram-se com necessidade, "impressionando" a consciencia dohomem. A Terra, com tudo 0que ela sustem e engloba, foi, des-de 0 comel;o, uma fonte inesgotavel de existencias, que se revela-yam ao homem imediatamente. .

    o que nos prova que a estrutura cosmica da hierofania da

    Terra precedeu a sua estrutura propriamente telurica - que socom 0 aparecimento da agricultura se imp6s definitivamente -e a historia das crenl;as sobre a origem das crianl;as. Antes de se-rem conhecidas as causas fisiologicas da concepl;ao, os horn enspensavam que a maternidade era devida a inserl;ao direta da crian-l;a no ventre da mulher. Quanto a saber se 0 quepenetra no ven-tre da mulher ja e urn feto - que ate ai teria vivido a sua vidapre-natal nas grutas, nas fendas, nos p0l;os, nas arvores, etc. -ou se e simplesmente urn germe, ou ainda a "alma do antepassa-do", etc., sao questoes que nao tern qualquer interesse para estecapitulo. 0import ante e a ideia de que as crianl;as nao sao con-cebidas pelo pai, mas que, num estadio mais ou menos avanl;ado

    do seu desenvolvimento, tomam lugar no ventre materna depoisde urn contato entre a mulher e urn objeto ou urn animal do meio

    cosmico envolvente.Se bem que este problema pertenl;a mais propriamente a et-

    nologia do que a historia das religioes, colocamo-Io aqui pelosesclarecimentos que pode fornecer ao nosso assunto. 0homemnao intervem na crial;ao. 0pai nao e pai dos seus filhos senaono sentido juridico e nunca no sentido biologico do termo. Oshomens nao estao ligados entre si senao pelas maes, e mesmo as-sim esta ligal;ao e precaria. Mas os homens estao ligados ao meiocosmico envolvente de maneira infinitamente mais estreita do queo possa supor uma mentalidade moderna, profana. Eles sao, nosentido concreto e nao no sentido alegorico da palavra, "genteda terra". Foram trazidos pelos animais aquMicos (peixes, ras,crocodilos, cisnes, etc.), desenvolveram-se nas rochas, nos abis-mos e nas grutas, antes de serem projetados, por urn contato ma-gico, no ventre materno; comel;aram a sua vida pre-natal nas

    aguas, nos cristais, nas pedras, nas arvores; eles viveram - sobforma pre-humana, obscura, como "almas" de "crianl;as-antepassados" - numa das zonas cosmicas mais proximas. As-sim, para so mencionar alguns casos, os armenios creem que aTerra e "0 ventre materno, donde sairam os homens"19. Os pe-ruanos creem que descendem das montanhas e das pedras20. Ou-tros povos localizam a origem das crianl;as nas grutas, nas fen-das, nas nascentes, etc. Ainda hoje se conserva na Europa a crenl;ade que as crianl;as "vem" dos mares, das nascentes, dos riachos,das arvores21.0que e significativo nessas superstil;oes e a estru-tura cosmica da Terra, podendo esta ser encontrada em todo 0meio envolvente, no microcosmo e nao apenas na regiao teltirica

    propriamente dita. "A Terra" significa aqui tudo 0 que rodeiao homem, todo 0 "lugar" - com as suas montanhas, as suas

    aguas e a sua vegetal;ao.o pai humano nada mais faz do que legitimar tais filhos por

    urn ritual que possui todas as caracteristicas da adol;ao. Eles per-tencem, em primeiro lugar, ao "lugar", quer dizer, ao microcos-mo da regiao. A mae nao fez mais do que recebe-Ios; ela"recolheu-os" e, quando muito, aperfeil;oou a sua forma huma-na. Compreende-se, entao, sem dificuldade que 0sentimento desolidariedade para com 0 microcosmo envolvente, com 0 "lugar",tenha sido urn sentimento dominante para 0 homem que se en-contrava neste estadio da sua evolul;ao mental- ou, mais exata-

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    mente, que encarava dessa maneira a vida humana. Em certo sen-tido, pode-se dizer que 0 homem nao tinha ainda nascido que elen~~ tinha ainda a consciencia da sua perten9a total a esp~cie bio-l?glca que ele r~presentava. Poder-se-ia mais propriamente con-

    slderar, a este myel, a sua vida uma fase pre-natal: 0 homem con-tinuava ainda a participar, imediatamente, de uma vida diferenteda sua, de uma vida' 'cosmico-materna" . Ele tinha, diriamos nosuma experiencia "ontofilogenetica" obscura e fragmentada' el~sentia '!ue.de~c~~diade duas ou tres "matrizes" ao mesmo te~po.

    Nao e dlflCI1compreender que tal experiencia fundamentaltenha implicado para 0 homem urn certo numero de atitudes es-pecificas para com 0 cosmos e para com os seus semelhantes Aprecariedade da paternidade humana era compensada pela s~li-d.arie~ade.que havia entre 0 homem e certas for9as ou substan-Clascosmlcas protetoras. Mas, por outro lado, esta solidarieda-de com 0 "lugar" nao podia de forma alguma prom over no ho-

    m~m 0 se~t~mento de qu~e

    um criador na ordem biologica. apal, ao le~lt1mar os seus fI1hos saidos de urn meio cosmico qual-quer, o~ amda das "almas dos antepassados", nao tinha propria-mente fI1hos, mas apenas novos membros na sua familia novosuten~ili.ospara 0 se~ trabalho e para a sua defesa. a lia~e queo.uma.a s~~ progemtura era, em todo 0 caso, per proximi. A suavida blOloglca acabava com ele, sem possibilidade de continuaratr~ves de outr?s seres, como sera 0 caso na interpreta9ao que,malS tarde, os mdo-europeus darao do sentimento de continui-dade familiar, interpreta9ao cujo fundamento assenta num du-

    pl~ fato:~a ~e~~ende~ciabiologic a direta (os pais criam 0 corpo,a substancIa da cnan9a) e a descendencia ancestral indireta (asalmas dos antepassados encarnam nos recem-nascidos)22.

    A "Terra" era, pois, nas primeiras experiencias religiosasou intui90es miticas, "0 lugar todo" que se achava a volta dohomem. Grande numero de palavras que designam a "Terra" ternetimologias que se explicam por impressoes espaciais - "lugar""largo", "provincia" (cL prithfvf, "a larga") - ou impressoe~sensoriais primarias - "firme", "0 que resta", "negro" etc.A valoriza9ao religiosa da Terra de urn ponto de vista estrita~entetelurico so mais tarde pode ter lugar: no cicIo pastoril e sobretu-do , ? O cicIo agricola, para falar a linguagem da etnologia. Ateentao, tudo 0 que se poderia chamar as "divindades da Terra"eram .mais propriamente divindades do lugar, no sentido de meiocosmlco envolvente.

    86. Maternidade ctonica - Uma das primeiras teofanias daTerra, enquanto tal, enquanto sobretudo camada telurica e pro-fundidade ctonica, foi a sua "maternidade", a sua inesgotavelcapacidade de dar frutos. Antes de ser considerada Deusa-Mae,

    divindade da fertilidade, a Terra impos-se diretaIllente como Mae,Tellus Mater. A evolu9ao posterior dos cultos agricolas, escIare-cendo com precisao cada vez mais acentuada a figura de umaGrande Deusa da vegeta9ao e da colheita, acabou por apagar ostra90s da Terra-Mae. Na Grecia, Demeter substituiu Ge. No en-tanto, restos do culto antiqiiissimo da Terra-Mae transparecemnos documentos arcaicos e etnograficos. Urn profeta indio, Smo-halla, da tribo umatilla, proibia os seus discipulos de cavarem aterra, porque - dizia - "e urn pecado ferir ou cortar, fenderou esgaravatar a nossa mae comum com os trabalhos agricolas" .E justificava assim a sua atitude antiagricola: "Pedis-me que tra-balhe 0 solo? Acaso pegaria eu numa faca para a mergulhar noseio de minha mae? Pedis-me que cave e levante pedras? Iria eumutilar a carne para chegar aos ossos? Pedis-me que corte a ervae 0 feno e que 0 venda e me enrique9a como os brancos? Mascomo ousaria eu cortar a cabeleira de minha mae?"23 Esta de-v09ao mistica pela Mae telurica nao e urn fato isolado. as mem-bros de uma tribo dravida primitiva da India central, os baiga,praticam a agricultura migratoria, contentando-se com semear ex-cIusivamente nas cinzas que ficam depois de certas areas da flo-resta terem sido queimadas. E tern todo este trabalho porque con-sideram urn pecado "rasgar 0 seio da sua mae-terra com a char-rua"24. as povos altaicos creem igualmente que e urn grande pe-cado arrancar as plantas, porque a Terra sofre exatamente comosofreria urn homem a quem arrancassem os cabelos ou a barba.

    as votiaks, que tern 0 costume de levar as suas oferendas parauma cova, abstem-se de repetir esta opera9ao no outono, pois quenesta epoca do ana a Terra dorme. as tcheremisses creem fre-qiientemente que a Terra esta doente, e evitam entao sentar-senela. E as provas da persistencia destas cren9as respeitantes aTerra-Mae nos povos nao agrarios, ou agrarios de uma maneiraesporadica, poderiam ser multiplicadas25. A religiao da Terra,mesmo que nao seja a mais velha religiao humana, como 0 creemcertos sabios, e daquelas que dificilmente morrem. Uma vez con-solidada nas estruturas agricolas, os milenios passam por ela sema modificarem. Por vezes, ela nao apresenta qualquer solu9ao decontinuidade, desde a pre-historia ate os nossos dias. Por exem-

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    88. Regenera.;ao - Urn ritual que se explica pela mesma cren-9a na Terra-Mae e a inuma9ao dos cadaveres das crian9as. Osadultos sao incinerados, mas as crian9as sao enterradas, para quevoltem ao seio da mae telurica e possam renascer mais tarde. Terra

    clauditur infans45 As leis de Manu prescrevem a inuma9ao das

    crian9as de menos de dois anos e proibem a sua incinera9ao. Oshurons da America do Norte enterram nos caminhos as crian9asmortas, a fim de que possam renascer introduzindo-se no ventre

    das mulheres que por elas passam46. Entre os andamaneses, ascrian9as sao enterradas sob a lareira, na cabana47. Ha que lem-brar tambem 0enterro "sob a forma de embriao", prMica fre-qiiente em muitos povos e a qual voltaremos quando examinar-mos a mitologia da morte48. Da-se ao cadaver uma forma em-brionaria para que a Terra-Mae possa da-Io a luz uma segundavez. Ha regiaes onde se oferecern a deusa telurica crian9as enter-radas vivas; e 0caso da GroenHlndia, onde se enterra a crian9ase 0pai esta gravemente doente; na Suecia, duas crian9as foramenterradas vivas durante uma epidemia de peste; entre os maiasfaziam-se sacrificios deste tipo quando grassava a seca49.

    Da mesma forma que se pae a crian9a no chao logo que nas-

    ce, para que a sua verdadeira mae a legitime e the assegure umaprote9ao divina, tambem se colocam no chao - a menos que seenterrem - as crian9as e os adult os em caso de doenp. Este ritoequivale a urn novo nascimento. 0enterro simbolico, parcialoutotal, tern 0mesmo valor magico-religioso da imersao na agua,o batismo ( 64). 0 doente regenera-se: nasce de novo. Para elenao e urn simples contato com as for9as da Terra, mas sim umaregenera9ao total. Esta opera9ao tern a mesma eficacia quandose trata de sanar uma falta grave ou de tratar uma doen9a de es-pirito (que apresenta para a coletividade 0mesmo perigo que 0crime ou a doen9a fisiologica). 0pecador e colocado num tonelou numa fossa feita na terra, e quando sai dali "nasceu uma se-gunda vez, do seio de sua mae"50. E por isso que, entre os es-

    candinavos, se cre que uma feiticeira pode ser salva da dana9aoeterna se for enterrada viva, e se se fizer semeadura e colheitano local onde foi enterrada51. 0mesmo se pensa acerca dascrian9as gravemente doentes: se se pudesse enterra-Ias e semearde modo que houvesse tempo de haver germinm;iio, estas crian-9as curar-se-iam. Compreende-se claramente 0sentido desta cren-9a: 0homem (0feiticeiro, 0doente) tern, deste modo, possibili-dades de nascer de novo ao mesmo tempo que a vegeta9ao.

    Urn rito aparentado com estes consiste em fazer passar acrian9a doente atraves de uma fenda da terra, ou atraves de urnrochedo furado, ou atraves do buraco de uma arvore52.Encontramo-nos aqui diante de uma cren9a urn pouco mais com-

    plexa: por urn lado, a finalidade e transferir a "doen9a" da crian9a

    ciedades primitivas (australianos e alguns povos turco-altaicos)como nas civiliza9aes superiores (Imperio dos Incas, por exem-plo)42. As crian9as abandonadas nao sao mortas, mas, entre osgregos, por exemplo, deixadas por terra. A Terra-Mae cuidaradelas: ela decidira se devem morrer ou sobreviver43.

    Uma crian9a "exposta", abandonada ao acaso dos elemen-tos c6smicos - agua, vento, terra -, e sempre como urn desafiolan9ado a face do destino. Confiada a terra ou as aguas, a crian-9a, tendo para 0futuro 0estatuto social de orfao, corre 0riscode morrer, mas tern ao mesmo tempo possibilidades de adquiriruma condi9ao diferente da condi9ao humana. Protegida pelos ele-mentos c6smicos, a crian9a abandonada torna-se freqiientemen-te her6i, rei ou santo. A sua biografia lendaria imita, assim, 0mito dos deuses abandonados imediatamente ap6s 0nascimen-to. Lembremos que Zeus, Posidon, Dioniso, Atis e inumeros deu-

    ses partilharam a sorte de Perseu, de Ion, de Atalante, de An-flon e de Zeto, de Edipo, de R6mulo e de Remo. Moises tambemfoi abandonado nas aguas, tal como 0her6i maori Massi, quefoi lan9ado ao oceano, como 0 foi 0her6i do Kalevala, Vaina-m6inen, que "flutuava nas vagastenebrosas". 0drama da crian9aabandonada e compensado pela grandeza mftica do "orfiio", dacrian9a primordial, na sua absoluta e invulneravel solidao cos-mica, na sua unicidade. 0aparecimento de tal "crian9a" coinci-de com urn momenta auroral: cria9ao do cosmos, cria9ao de urnmundo novo, de uma nova epoca hist6rica (Jam redit ed virgo ... ),de uma "vida nova" em qualquer nivel da realidade44. A crian-9a abandonada a Terra-Mae, por ela salva e criada, deixa de po-

    der partilhar0

    destino comum dos homens, porque repete0

    mo-mento cosmol6gico das origens e cresce no meio dos elementose nao no meio da familia. E por isso que os herois e os santossao recrutados entre as crian9as abandonadas: pelo simples fatode as ter protegido e preservado da morte, a Terra-Mae (ou asAguas-Maes) votou-as a urn destino grandioso, inacessivel ao co-

    mum dos mortais.

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    para urn objeto qualquer (arvore, rochedo, terra); por outro la-do, imita-se 0 proprio ato do parto (a passagem atraves do orifi-cio). Emesmo provavel que elementos do culto solar (a roda =o Sol) tenham dado a sua contribui

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    que ela nao tern repouso: 0seu destino e gerar incessantemente,e dar forma e vida a tudo 0que volta para ela inerte e esteril.As aguas encontram-se no comec,;oe no fim de to do acontecimentocosmico; a Terra encontra-se no comec,;oe no fim de toda vida.

    Toda manifestac,;ao se realiza acima das aguas e se reintegra nocaos primordial atraves de urn cataclismo historico (0 dihivio) oucosmico (mahfipralaya). Toda manifestac,;ao vital tern lugar gra-c,;asa fecundidade da Terra; toda a forma nasce dela, viva, e vol-ta para ela no momenta em que a parte de vida que the tinha sidoconcedida se esgotou; volta a ela para renascer; mas, antes de ree

    nascer, para repousar, para se purificar, para se regenerar. Asaguas precedem toda criac,;aoe toda forma; a Terra produz jor-mas vivas. Enquanto 0destino mitico das aguas e abrir e fecharciclos cosmicos ou e6nicos que se estendem por milh6es de anos,o destino da Terra e estar no principio e no fim de qualquer for-ma biologica ou pertencente a historia local ("os homens do lu-

    gar"). 0 tempo - que tern, por assim dizer, sono quando se tra-ta das aguas - e vivo e infatigavel quando a Terra gera. As for-mas vivas aparecem e desaparecem com uma rapidez fulminan-te. Mas nenhum desaparecimento e decisivo: a morte das formasvivas nao passa de urn modo - latente e provisorio - de exis-tencia, pois que a forma viva como tipo ou como especie nuncadesaparece durante 0prazo que as aguas concedem a Terra.

    90. Solidariedade cosmobiol6gica - A partir do momentaem que uma forma se destaca das aguas, toda ligac,;aoorganicaimediata entre estas e aquela se quebra: entre 0pre-formal e aforma ha urn hiato. Esta ruptura nao se verifica quando se trata

    de formas geradas pela Terra e da Terra: estas permanecem soli-darias com a sua matriz, de que alias so se destacam provisoria-mente, e a qual regressam para repousar, para se fortificar e, fi-nalmente, para reaparecer em pleno dia. E por isso que ha entrea Terra e as formas organicas por ela geradas urn lac,;omagicode simpatia. Em conjunto elas constituem urn sistema. Os fiosinvisiveis que ligam a vegetac,;ao,0reino animal e os hornens deuma certa regiao ao solo que os produziu, no qual vivem e doqual se alimentam, foram tecidos pela vida que palpita tanto namae como nas suas criaturas. A solidariedade que existe entre 0tehirico de urn lado, 0vegetal, 0animal e 0humano do outro,e devida a vida, que e a mesma por toda a parte. A sua unidade

    e de ordem biologica. E sempre que qualquer dos modos destavida e manchado ou esterilizado por urn crime contra a vida to-dos os outros modos san atingidos, em virtude da sua solidarie-

    dade organica.

    Urn crime e urn sacrilegio que pode ter conseqiiencias muitograves a todos os niveis da vida, pelo simples fato de que 0san-gue vertido "envenena" a Terra. E a calamidade manifesta-se naesterilidade dos campos, dos animais e dos homens. No prologode Edipo-Rei, 0sacerdote lamenta-se por causa das desgrac,;asquecairam sobre Tebas: "A cidade morre nas sementes frutiferas daterra, nos rebanhos de bois, nas crianc,;as nos ventres dasmaes... "64 Urn rei sabio, urn reino fundado na justic,;agarantem,pelo contrario, a fertilidade da terra, dos animais e das mulhe-res. Ulisses confessa a Penelope que e porque ele tern fama deborn rei que a terra da frutos, que as ovelhas dao a luz, que 0mar pulula de peixes65.Hesiodo formula nestes termos esta con-cepc,;aorustica de harmonia e de fertilidade antropocosmicas:"Aqueles que, tanto para 0estrangeiro como para 0cidadao, pro-nunciam sentenc,;asretas e nunca se afastam da justic,;aveem pros-perar a sua cidade e, dentro dos seus muros, a populac,;aotornar-se feliz. Nas suas terras espalha-se a paz que alimenta os jovens,e Zeus onividente nao lhes reserva a guerra dolorosa. Nunca des-tes atos de justic,;ase seguira fome nem desgrac,;a... a terra oferece-lhes uma vida de abundancia; nos montes cresce0carvalho, nosramos deste nasce a bolota e no tronco vivem as abelhas; 0peloabundante das suas ovelhas torna-as mais pesadas; terao filhosque se parecerao com eles; terao prosperidades sem fim, e nuncaterao de partir para 0mar, pois que 0solo fertillhes oferece osseus frutos. "66

    91. Gleba e mulher - A solidariedade reconhecida entre afecundidade da gleba e a da mulher constitui urn dos trac,;osmar-cantes das sociedades agricolas. Durante muito tempo os gregose os romanos assimilaram gleba e matriz, ato gerador e trabalhoagricola. Encontramos esta assimilac,;ao,por outro lado, em mui-tas civilizac,;6ese ela deu origem a grande numero de crenc,;asede ritos. Esquilo, por exemplo, diz-nos que Edipo "ousou lanc,;arsemente no solo sagrado onde se tinha gerado e plantar nela urntronco sangrento"67. Em SMocles abundam as alus6es aos"campos paternos"68, ao "lavrador, senhor de urn campo lon-

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    ginquo, que ele so visita uma vez no tempo das sementeiras"69.Dieterich, que junta a estes textos classicos imimeras outras refe-rencias, estuda tarnbem a freqiiencia do motivo arat-amatnos poe-tas latinos7o. Mas, como seria de esperar, a assimila9ao da mu-

    Iher e do campo lavrado, do ato gerador e do trabalho agricola,e uma intui9ao arcaica e muito difundida. E preciso distinguir,nesta sintese mitico-ritual, diversos elementos: identifica9ao damulher e da terra aravel; identifica9ao do falo e da charrua; iden-tifica9ao do trabalho agricola e do ato gerador.

    E preciso dizer, no entanto, que, se bem que a Terra-Maee a sua representante, a mulher, desempenhem urn papel prepon-derante neste conjunto ritual, ja nao tern nele urn papel exclusi-vo. Nao ha lugar aqui so para a mulher ou a terra; mas tambempara 0 homem e 0 deus. A fertilidade e precedida de urn hieroga-mia. Urn velho sortilegio anglo-saxao contra a esterilidade doscampos reflete admiravelmente as esperan9as que as sociedades

    agricolas poem na hierogamia: "Salve, Terra, mae dos homens,se fertil no abra90 do deus e enche-te de frutos para servir 0 ho-mem."7l Em Eleusis, 0 mista pronunciava a formula agricola ar-caica: "Faz chover! - da frutos!", olhando primeiro para 0 ceue depois para a terra. E provavel que esta hierogarnia entre 0 Ceue a Terra tenha sido 0 modelo primordial tanto da fecundidadedos campos como do casamento humano. Urn texto do AtharvaVeda72 compara os noivos ao Ceu e a Terra.

    92. A mulher e a agricultura - Admite-se, normalmente, quea agricultura tenha sido uma descoberta feminina. Ocupado emperseguir a ca9a ou em apascentar 0 gado, 0 homem estava sem-

    pre ausente. Pelo contrario, a mulher, ajudada pelo seu espiritode observa9ao, limit ado mas penetrante, tinha ocasiao de obser-var os fenomenos naturais de sementeira e de germina9ao e detentar reproduzi-los artificialmente. Por outro lado, pelo fato deser solidaria com outros centros de fecundidade cosmica - a Ter-ra, a Lua - a mulher adquiria 0 prestigio de poder influir nafertilidade e de poder distribui-la. E assim que se explica 0 papelpreponderante desempenhado pela mulher nos come90s da agri-cultura - sobretudo no tempo em que esta tecnica era apanagiodas mulheres -, papel que continua a desempenhar em certasciviliza90es73.Assim, em Uganda, uma mulher esteril e conside-rada perigo sa para a horta e 0 marido pode pedir 0 divorcio ale-

    gando este motivo de ordem economica74. Encontra-se a mesmacren9a no que diz respeito ao perigo que a esterilidade fe.mininapode representar para a agricultra na tribo Bhantu, na India75.Em Nicobar, diz-se que a colheita sera mais abundante se as se-

    menteiras tiverem sido feitas por uma mulher gravida76. Na Ita-lia do SuI, cre-se que tera born result ado qualquer trabalho em-preendido por uma mulher gravida e que tudo 0 que seja semea-do por ela crescera como cresce 0 feto no seu ventre77. No Bar-neu, "as mulheres desempenham 0 papel principal nas cerimo-nias e nos trabalhos relativos a cultura do arroz. Os homens co-laboram apenas no corte de silvas e urzes e em alguns trabalhosfinais... Sao as mulheres que escolhem e conservam as sementes...Parece que se sente nelas uma afinidade natural com as semen~esde que elas dizem estar gravidas. Par vezes, vao passar a nOltenos campos de arroz, na epoca em que ele cresce. A ideia delase provavelmente, aumentar a sua propria fertilidade ou a do ar-

    , . . t' t"78

    roz; mas a este respelto mostram-se mUlto re lcen es .Os indios do Orenoco deixavam as mulheres 0 cuidado de

    semear 0 milho e de plantar raizes, porque "assim como as mu-Iheres sabiam conceber e parir, assim tambem os graos e raizesque elas semeavam e plantavam davam frutos muito mais abun-dantes do que se tivessem sido semeados ou plantados pelos ho-mens"79. Em Nias, uma palmeira-de-vinho plantada por umamulher da mais seiva do que outra plantada por urn homem80.As mesmas crenps sao encontradas na Africa, entre os ewe. NaAmerica do SuI entre os jibaros, por exemplo, cre-se "que asmulheres exerce~ uma influencia especial, misteriosa, no cresci-mento das plantas cultivadas"8l. Esta solidariedade entre a mu-

    Iher e 0 campo fertil conservou-se mesmo depois de a agriculturase ter tornado uma tecnica masculina e de 0 arado ter tornadoo lugar da enxada primitiva. Tal solidariedade explica grande nu-mero de ritos e de cren9as, que examinaremos ao mesmo tempoque as "representa90es rituais agrarias" ( 126).

    93. Mulher e solo arado - A assimila9ao entre a mulher ea terra lavrada e encontrada em muitas civiliza90es e conservou-se nos folclores europeus. "Eu sou a terra", confessa a bem-arnada numa can9ao de arnor egipcia.0Videvdtitcompara a terrainculta a uma mulher sem filhos, tal como, nos contos, a rainhaesteril se lamenta: "Sou como urn campo onde nada cresce! "82

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    Pelo contnirio, num hino do seculo XII, a Virgem Maria e glorifi-cada como terra non arabilis quaefrueturn parturiit. Baal era cha-mado "0marido dos campos"83. Quanto a identificac;:aoda mu-lher e da gleba, era freqiiente entre todos os povos semitas 84.Nos

    textos isHimicos,a mulher e chamada "campo", "vinha", etc. "Asvossas mulheres sao, para vos, como campos.' '85Os hindus assi-milavam campo cultivado e vulva (yom), sementes e semen viril86."Esta mulher e como urn terreno vivo: homens, lanc;:ainela a se-mente!"87 As leis de Manu tambem sustentam que "a mulher po-de ser considerada urn campo e 0homem a semente" (IX, 33).Narada faz 0seguinte comentario: "A mulher e 0campo eo ho-mem e 0que da a semente. "88 Urn proverbio finlandes diz que"as moc;:astern 0 seu campo no proprio corpo"89.

    Evidentemente, a assimilac;:aoda mulher a terra anivel implicaa do falo a enxada e a da lavra ao ato gerador. Estas simetrias antro-poteluricas so foram possiveis nas civilizac;:6esque conheciam tanto

    a agricultura como as causas reais da concepc;:ao.Em algumas lin-guas austro-asiciticas, a palavra lak designa igualmente 0falo e a

    enxada. Przyluski sugeriu que e urn vocabulo austro-asiatico seme-lhante que seencontra na origem dos termos sanscritos ltingCtla(cau-da, enxada) e linga (orgao gerador do macho)90.A identidade falo-arado foi mesmo representada plasticamente91. A origem desta fi-gurac;:aoe muito mais antiga: num desenho da epoca dos cassitasque representa uma charrua acham-se marcados os simbolos con-

    jugados do ato gerador92. Intuic;:6esarcaicas deste tipo dificilmentedesaparecem nao so da linguagem popular corrente, mas tambemdo vocabulario dos gravadores de sinais. Rabelais consignou a ex-pressao "membro que se chama 0lavrador da natureza"93.

    Enfim, para mencionar alguns exemplos de identificac;:aodotrabalho agricola ao ato gerador, lembremos 0mito do nascimen-to da heroina de Rarnayana, Sita. Seu pai, Janaka ( =progenitor),encontrou-a num campo quando lavrava e chamou-Ihe Sita, "ter-reno anivel"94. Urn texto assirio fez chegar ate nos a prece dirigi-da a urn deus cujo "arado fecundou a terra"95.

    Muitos povos primitivos ainda hoje usam, para frutificar aterra, amuletos magicos que representam os orgaos geradores96.Os australianos praticam urn curiosissimo ritual de fecundac;:ao:armados com flechas que trazem a maneira de urn falo, danc;:ama volta de urn fossa semelhante ao orgao gerador feminino: porfim, espetam paus na terra97. Ra que lembrar igualmente a es-

    treita ligac;:aoexistente entre mulher e erotismo, de urn lado, elavra e fertilidade da terra, de outro lado. Assim, e conhecidoo costume que manda que sejam moc;:asnuas que abram com 0arado os primeiros sulcos98, costume que nos lembra a uniao

    exemplar da deusa Demeter com Jasao, no comec;:oda primave-ra, na terra recem-semeada99. Todas essas cerim6nias e lendasdeixarao transparecer a sua significac;:aoquando estudarmos a es-trutura da religiosidade agraria.

    94. Sintese - Nos conjuntos miticos e rituais que revimosa terra e valorizada em primeiro lugar porque tern uma capaci-dade infinita de produzir frutos. E por isso que, com 0tempo,a Terra-Mae se transforma insensivelmente numa mae das semen-tes. Mas os vestigios da teofania telurica nunca desaparecem dafigura das "Maes", das divindades teluricas. Para dar so urn

    exemplo, nas figuras femininas da religiao grega - Nemesis, asErinias, Temis - reconhecem-se atributos originais de Terra-Mae.E Esquilo, em Eunenides, suplica primeiro a Terra e depois a Te-mis. E verdade que Ge ou Gala e, por fim, substituida por De-meter, mas a consciencia da solidariedade entre a deusa dos mon-tes e a Terra-Mae nao se perde entre os helenos. Eurfpedes, nas

    BaeanteslOO, ao falar de Demeter, diz: "Ela e a Terra ... Da-Iheo nome que quiseres!"

    As divindades agrarias substituem arcaicas divindades telu-ricas, mas sem que esta substituic;:aoimplique a abolic;:aode to-dos os ritos primordiais. Atraves da "forma" das Grandes Deu-sas agricolas pode-se reconhecer a presenc;:ada "Senhora do Lu-gar", a Terra-Mae. Mas 0perfil das novas divindades torna-semais preciso, a sua estrutura religiosa torna-se mais dinamica. Es-sas divindades comec;:ama ter uma historia patetica, a viver0dra-ma do nascimento, da fertilidade e da morte. A passagem daTerra-Mae a Grande Deusa agricola e a passagem da simplicida-de ao drama.

    Desde a hierogamia cosmica do Ceu e da Terra ate a maismodesta pratica que atesta a santidade telurica, encontra-se sem-pre a mesma intuic;:aocentral, que se repete como tema condu-tor: a Terra produz formas vivas, ela e uma matriz que procriaincansavelmente. Qualquer que seja a estrutura do fen6meno re-ligioso provocado pela epifania teluric a - "presenc;:a sagrada" ,divindade ainda amorfa, figura divina bem definida ou, por ulti-

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    mo, "costume" resultante de uma recorda