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ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014
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DANÇANDO A OBSCURIDADE: O ESPAÇO MÍTICO, A SENSIBILIDADE E A CRIAÇÃO EM DANÇA
CONTEMPORÂNEA
Luiz Felipe Ferreira da Rocha (UFRN)*
Orientador(a): Dra. Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio (UFRN)
RESUMO: Solo cultivado pelos nossos antepassados, o espaço mítico é palco para imagens que dançam no âmago do humano, nele, os segredos da existência se revelam, a obscuridade do corpo se manifesta. Esta pesquisa é antes de tudo um convite, não apenas à sua visitação, mas à vivência sensível do corpo que nos possibilita dançar com tais imagens. Neste estudo, refletimos sobre essa sensibilidade do corpo, que nos possibilita participar do espaço mítico e constituí-lo como espaço potencial para a criação artística em dança.
PALAVRAS-CHAVE: Dança Contemporânea. Processo de Criação. Espaço Mítico. Sensibilidade.
DANCING THE OBSCURITY: THE MYTHIC SPACE, THE SENSIBILITY AND THE CREATION IN
CONTEMPORARY DANCE
ABSTRACT: Land cultivated by our ancestors, the mythic space is the stage for images
dancing in the human core, there, the secrets of existence are revealed, the obscurity of the body manifests. This research is first of all an invitation to the sensitive experience of the body that allows us to dance with such images. In this study, we reflect on the sensibility of the body, allowing us to participate in the mythic space and set it as a potential for artistic creation in dance.
KEYWORDS: Contemporary Dance. Creation Process. Mythic Space. Sensibility.
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Introdução ao Processo
O presente artigo está situado numa discussão acerca do mito, que em sua
obscuridade e potencialidade simbólica, nos serve como impulso para se pensar o corpo
e criar artisticamente em dança sob uma perspectiva sensível, ou melhor, sob uma
perspectiva da atitude fenomenológica proposta pelo filósofo francês Merleau-Ponty.
Trata-se do relato de um processo de criação vivido junto a Aviva Cia de Dança, que
culminou na obra artístico-coreográfica “A Carne que Sou”, e que inspirada no mito de
Adão, respira seus sentidos próprios para cada corpo que a criou, desatando reflexões
sobre a condição humana, sua revelação nos mitos, e seu possível desvelar em dança.
A supracitada Cia de dança, fundada em 2008, foi a primeira companhia de dança
contemporânea cristã do estado do Rio Grande do Norte. Formada atualmente por quatro
dançarinos, dentre os quais não apenas estou situado, mas venho atuando também como
diretor artístico e coreógrafo desde o seu nascimento. Temos por objetivo a pesquisa e
formatação de trabalhos artístico-coreográficos conceituais, proporcionando um diálogo
entre religião, filosofia, arte e cultura, e é justamente a partir de nosso foco de atuação
que nos lançamos a trabalhar artisticamente com o mito de Adão.
Na contemporaneidade, normalmente, o termo “mito” é empregado pejorativamente
na designação do ficcional, ou seja, do não real. Tudo que não é selado pelo paradigma
da ciência clássica1 pode ser classificado como “mito”, uma tolice indigna de qualquer
atenção ou consideração. Vivemos em um mundo técnico-científico, numa sociedade
iluminada pelo rigor da lógica racional, no que diz respeito à abordagem da realidade.
Nessa incandescência, o mito, portador de uma dimensão obscura, que envolve o
mistério, abriga em si as dualidades e integra uma lógica que é circular e não linear,
simplesmente não se encaixa, sendo ele majoritariamente considerado um conhecimento
hierarquicamente menor do que aquele proposto pela ciência tradicional. No entanto,
longe de desprezos, nesta pesquisa o mito ocupa um lugar central, para nós, ele é pura
realidade.
1 O conhecimento científico nessa perspectiva é entendido como aquele capaz de conceder explicações
universais e inquestionáveis para os fenômenos por intermédio de um sujeito que, destacado do mundo, é capaz de abarcar a realidade na sua totalidade, por meio da experimentação e da observação do objeto investigado, definindo-o. (TIBÚRCIO, 2005, p. 35).
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O mito é aqui contemplado como via de acesso à verdade, não uma verdade
explícita à razão discursiva, tampouco uma verdade absoluta que anule outras
possibilidades do conhecer e as sublinhem como mentirosas e ineficientes, mas uma
verdade que nos abraça e nos oferece sentidos para a vida, bem como, faz emergir de
nós sentidos próprios capazes de nos direcionar na existência.
Para os estudiosos da mitologia, tais como Joseph Campbell (2002) e Mircea
Eliade (1972), o mito é “vivo”, uma estrutura livre e fluente, vital à humanidade e de
funções irrevogáveis. Em linhas gerais, ele nos referencia e atribui valores a um mundo
no qual estamos situados, bem como nos oferece modelos de conduta, sustentam e
validam organizações sociais, sem falar de sua dimensão pedagógica, que nos oferece
profunda sabedoria para a vida. “O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização
humana” (ELIADE, 1972, p. 23). Nessa perspectiva, a mitologia é comtemplada, não
como uma evasão da realidade, fábula, ou fantasia, mas uma realidade viva, uma via
através da qual nos situamos no mundo e atribuímos-lhe sentido.
Rubem Alves (1988), teólogo e filósofo brasileiro, a partir de sua encantadora rotina
noturna de contar estórias para sua filha antes de dormir, nos confidencia sua dificuldade
em esclarecê-la quanto a veracidade de seus contos. Segundo ele, quando ela o
questionava se as estórias eram verdadeiras, ele sabiamente respondia, que:
“(...) as estórias são como os sonhos. Criaturas de um outro mundo, obscuro e encantado. À noite, quando as luzes se apagam, elas emergem das profundezas escuras do nosso interior, como as estrelas que só aparecem quando o brilho do sol se vai (...)” (ALVES, 1988, p. 13).
A metáfora utilizada pelo autor traduz, poeticamente, o nível de verdade que está
nos mitos ao considerá-los como possibilidade orientadora da vida, um norte na jornada
da existência e na exploração do mundo. Não eram as estrelas que guiavam os
navegadores em alto mar, que bravamente se lançavam na tentativa de arrotear um
mundo desconhecido e selvagem?
É essa obscuridade, que nos possibilita orientações indisponíveis à luz da lógica
racional, linear e discursiva, que buscamos criar artisticamente em dança. Mais que
dançar na escuridão, dançar a obscuridade é poetizar o infinito ressonado pelas
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pulsações do corpo, é atentar à presença revelada de seus saberes, é buscar sentidos
para a existência.
Aventurar um olhar sobre o mito de Adão sob uma perspectiva fenomenológica nos
dilata possibilidades para estendê-lo como pano de fundo em produções artístico-
científicas, ou quaisquer outras produções que visem à construção de conhecimento
acerca do humano, nos elevando a um grau de consciência constituída a partir do
mesmo, ou seja, uma consciência mítica.
Merleau-Ponty esclarece que a consciência mítica, sem dúvidas, não é uma
consciência de coisa, subjetivamente, podemos compreendê-la como um fluxo que não
para e não conhece a si mesma, e objetivamente, sabemos que não se ocupa em
estabelecer diante de si, termos que se definem por sua quantidade de propriedades
isoláveis e articuláveis. De forma alguma a consciência mítica se arrebata a si mesma em
cada uma de suas pulsações. “Ela não toma distância em relação aos seus noemas, mas
se passasse com cada um deles, se não esboçasse o movimento de objetivação, ela não
se cristalizaria em mitos” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.392-393).
O filósofo lança um olhar crítico ao pensamento moderno, que se recusa a tornar o
espaço geométrico imanente ao espaço mítico, negando-se a situar a experiência como
verdade no que rejeita a submissão de toda experiência a uma consciência absoluta da
própria experiência, pois, esta, compreendida como verdade se tornaria incompreensível
em sua variedade. Para o filósofo, “a consciência mítica é aberta a um conjunto de
objetivações possíveis” (1994, p.392), e é justamente a partir de um olhar lançado sobre o
conteúdo simbólico do mito adâmico, numa postura atenta aos sentidos e significados
expirados pelo corpo a partir de suas experiências, de seu mundo vivido, que uma
possível objetivação se estrutura e funda o processo de criação que originou a obra
artístico-coreográfica “A Carne que Sou”.
A fenomenologia, que desata esta possibilidade, aciona um espírito contemplativo
despreocupado com a ilusão da verdade, comprometido com a incessante busca.
Atentamo-nos, assim, para um tipo de intuição fenomenológica e para o reconhecimento
de que esta tem orientado e fundamentado nosso investigar:
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(...) a intuição que faz sobressair o que já está aí, para melhor percebê-lo. Não se trata de utilizar a imaginação apenas do ponto de vista poético, místico ou psicológico, como de costume. Trata-se, portanto, de dar-lhe um novo significado, um novo interesse epistemológico, a partir das possibilidades sensíveis (NÓBREGA, 2010, p.40).
“A Carne que Sou” é a obra proposta por minha dissertação de mestrado, em
andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGArC- UFRN), uma criação artística em dança a partir do
mito de Adão, que visa a exploração de sua potencialidade simbólica e ostenta sua
ressignificação nos corpos dançantes. Mas como tal criação iria acontecer? Por meio de
quais condutas criadoras? Através de qual percurso metodológico?
De fato, coreografar me era uma atividade comum, numa tradicional perspectiva,
ou seja, criar determinada coreografia, sequências de movimento, e simplesmente
orientar os dançarinos em relação à sua perfeita execução, porém essa dinâmica de
criação, com a qual eu estava acostumado, não se encaixava em minhas pretensões
como pesquisador. Fui então levado a questionar o meu fazer artístico, o que me projetou
para uma nova fase de trabalho. Ora, se meu objetivo era, por meio de uma experiência
estética, possibilitar que os corpos dançantes revisitassem o mito adâmico com novos
sentidos e significados, era necessário que o processo de criação oportunizasse tal feito,
mais que isso, era necessário que eu estivesse disponível e aberto a ouvi-los.
Optamos por um processo colaborativo de criação, uma experiência nova tanto
para mim, que estava acostumado com a posição de um coreógrafo transmissor de
sequências prontas de movimentos, como para os dançarinos, que estavam habituados a
memorizar e executar tais sequências. Nessa nova proposição, nós quatro, integrantes da
Aviva Cia de Dança, fomos convidados a oferecer à obra nossas próprias impressões,
sentidos e participação ativa no processo de criação. Assumimos todos, portanto, o papel
de dançarinos-criadores. Cientes de que o novo implica em desafios e que este nos
convida a um estado de atrevimento, retirando-nos de nossa área de conforto diante das
inéditas possibilidades, é que nos lançamos como Cia a desbravar caminhos
desconhecidos de criação. Porém, por onde começar?
O Processo de Criação
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Em nosso primeiro encontro, achamos por bem, pelo fato de estarmos envolvidos
artisticamente com um mito de tamanho alento para nós cristãos e que narra a criação do
primeiro corpo, experienciá-lo de forma sensível, conhecê-lo de outra forma, para que a
partir daí, alguma rota de criação pudesse emergir.
Iniciamos tal vivência com uma oração, em forma de círculo, de olhos fechados e
mãos dadas, convidamos o Deus Criador a se fazer presente em nosso meio. Uma
atmosfera sagrada e ritualística nos envolveu e se expandiu, tomando conta de toda a
sala de ensaio na qual estávamos. Aqui, contatamos uma possibilidade de adentrar nesse
universo mítico que nos é constitutivo. Pedi para que os dançarinos-criadores
procurassem um espaço na sala onde poderiam desenvolver nosso momento e se
deitassem, relaxassem, desatando todo nó de tensão e se entregando totalmente à
gravidade. Coloquei um fundo musical tranquilo que eu havia preparado junto com o
restante da Cia, no qual uma doce voz melodiava sobre um amor que faz, desfaz e refaz,
que com um suave dedilhar de violão, referia-se ao próprio Deus.
Após um tempo de relaxamento, passei a orientá-los oralmente nessa vivência, que
estava intimamente relacionada ao nascimento de Adão. Pedi que se imaginassem terra,
que se sentissem terra, e provocava-lhes o imaginário a partir de questões que pudessem
orientá-los, tanto na busca por outros estados do corpo, como na composição de imagens
que miticamente os representassem, tais como: Que tipo de terra você é? Qual é a sua
cor? Qual a sua consistência? Você é úmida ou seca? Como é o lugar onde você está?
Algo cresce em você? As imagens constituídas nessa etapa da vivência direcionariam as
qualidades de movimento de cada dançarino-criador na segunda etapa a partir de suas
próprias referências, ou seja, da imagem que cada um compôs em decorrência dos
estímulos oferecidos.
Num segundo momento, passei a estimulá-los oralmente em relação ao instante da
criação, do nascimento e, ao movimento. Pedi que imaginassem que eles estavam sendo
movidos por algo, uma força, uma energia, que os estava levantando e moldando em
corpo. Minhas questões então mudaram de foco, passei a lançar perguntas relacionadas
a esse momento, tais como: O que você sente em relação a essa força? Como essa força
te move, de dentro para fora, ou de fora para dentro? Você está sendo moldado em corpo
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num único todo, ou está sendo moldado por partes? Se for em partes, qual está sendo
moldada primeiro?
As movimentações de cada dançarino-criador eram oriundas das imagens
construídas no correr da vivência por parte de cada intérprete, uma transposição de
míticas imagens no mover de corpos dançantes. Eles estavam investidos nesse momento
com tamanha intensidade e entrega, de forma que duas das dançarinas-criadoras
começaram a chorar.
Chegamos então ao ponto em que a terra já havia sido totalmente esculpida em
corpo. Pedi que sentissem os pulmões se descolando, o fôlego de vida preenchendo-os, o
hálito divino em suas entranhas, o coração batendo, o corpo nascendo. Nesse momento
houve, além do choro, manifestações notáveis, tais como fortes inspirações, tosses, e
gritos. Num instante mítico, sagrado, divino, renascemos corpo.
Após um instante de recomposição, sentamo-nos em círculo e dialogamos sobre
aquela vivência, compartilhamos em detalhes nossas experiências. Foi interessante notar
como cada dançarino-criador elaborou sua auto-imagem mítica como terra, matéria-prima
do corpo e da vida, como cada um sentiu de forma única aquele momento.
Consideramos então a importância da vivência que tivemos, ou seja, a relevância desse
caminho sensível através do qual reencontramos o mito de Adão. Mas a fim de enfatizá-lo
ainda mais em sua significância, achamos por bem, também, refletir e relatar a forma
como outrora o percebíamos, a maneira como ele estava em nós-corpos antes dessa
experiência sensível. Combinamos então que em nosso próximo encontro traríamos um
depoimento escrito sobre nossas anteriores impressões e compreensões a respeito desse
mito.
Em nosso segundo encontro, iniciado também com uma oração em grupo, os
depoimentos que escrevemos foram compartilhados e percebemos o quão contrastantes
eram as duas perspectivas, no que diz respeito às possibilidades de se compreender o
mito adâmico: aquela que nós carregávamos em nós a partir de impressões anteriores e
aquela que nos arrebatou em nosso primeiro dia de processo criativo a partir de
possibilidades sensíveis. Após socializarmos nossas reflexões acerca de nossas
vivências anteriores relacionadas a Adão, decidimos ler em grupo toda a crônica do
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primeiro homem, presente no livro bíblico de Gênesis, capítulos 1, 2 e 3, e permitir-lhe um
novo olhar, mais abrangente, permissivo, dilatado e tolerante à novas propostas, que
comportasse impressões como as que tivemos em nosso primeiro encontro. Após essa
leitura em grupo, esboçamos em um quadro algo que poderíamos chamar de mapa de
sentidos.
Esse mapa de sentidos foi constituído a partir de uma estrutura inicial onde as
principais relações de Adão, em sua trama, estavam delineadas, ou seja, a relação dele
com Deus, seu criador, com o Jardim do Éden, onde habitava, o mundo, e a relação com
Eva, sua companheira idônea, o outrem. A partir daí, um por vez, os dançarinos-criadores
se dirigiam ao quadro e acrescentavam algo: uma palavra, uma relação, uma associação,
uma interpretação, enfim, o que lhes tocava. Nosso objetivo era, justamente, extrair dessa
dinâmica, uma compreensão, um mapa que nos indicasse a forma como esse mito estava
por nós sendo compreendido enquanto grupo, bem como, identificar e delimitar elementos
simbólicos que pudessem conduzir nossa reflexão teórica e processo de criação cênica.
O supracitado mapa aponta os símbolos percebidos, suas estruturas e esquemas,
a maneira como estes se relacionam uns com os outros e ganham significado, ou como
analogicamente se relacionam com elementos interpretativos que surgem a partir das
experiências do vivido. Sendo assim, cada interprete-criador, ao perceber, realizar
associações, interpretações, mapeia não apenas o mito em si, mas o mito por ele
percebido e significado, os sentidos que emergem do corpo.
Três símbolos específicos se destacaram quanto à consistência das reflexões por
eles suscitadas: a terra, o corpo do outro e a árvore. Neles um caminho para a criação se
fundou, pois os elegemos como fios condutores de nosso processo. Laboratórios de
pesquisa de movimento foram então realizados a partir de cada símbolo, dos quais foram
extraídos os elementos necessários para a criação da obra artístico-coreográfica “A Carne
que Sou”. São estas reflexões tecidas a parir de cada símbolo, bem como estas vivências
em laboratórios de composição coreográfica que pretendo, em brevidade, relatar neste
escrito.
Uma das relações mais interessantes apontadas pelos dançarinos-criadores foi a
cumplicidade entre o homem e a terra, na compreensão de um corpo que é natureza e
que surge, principalmente, a partir da leitura do segundo capítulo da narrativa, no que diz
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respeito a passagens como: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e
soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente”
(GÊNESIS, 2;9). “Depois que formou da terra todos os animais do campo e todas as aves
do céu, o Senhor Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome
que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (2;19), é um outro versículo
que nos revela a relação do homem com a terra e aponta que não apenas o ser humano
foi levantado da terra, mas também todos os animais, ou seja, eles compartilham com o
homem da origem.
Merleau-Ponty (2000) nos propõe uma natureza viva, e compreende que sua
relação com o ser humano é recíproca e de mútuo pertencimento. Nessa perspectiva, a
natureza é “o nosso solo, não aquilo que está diante, mas o que nos sustenta” (p.4). Para
o filósofo, a natureza é um objeto enigmático, que não é inteiramente objeto, nem está
inteiramente diante de nós. Sua dinâmica relação com o humano possibilita que a própria
natureza nos traga importantes revelações sobre a nossa relação para conosco e para
com os demais seres (MENDES e NOBREGA, 2004).
O mito nos dimensiona justamente essa relação porosa de cumplicidade e partilha
entre o homem e o mundo, através da qual estes se abrem à extensão um do outro,
compreendendo que a natureza à qual Merleau-Ponty dirige atenção, consiste justamente
nesse elo existente entre o corpo e o corpo do mundo, num entendimento de mundo para
além dos conceitos físico-químicos ou biológicos. Um mundo carnal, entrosamento
pulsante de corpos conectados por um extensivo sensível comum a todos.
O Adão que da terra foi levantado, por nós lido, revela-se carne, uma carne que se
estende à carne do mundo, à carne do Éden, e abre-se à extensão dessa mesma carne
que dele advém, à carne dos acontecimentos que determinam a profundidade de sua
expressão, carne que dá nome à nossa obra.
É pela compreensão de que esta leitura relacionada à Adão e seu Paraíso, ao
homem e seu mundo, revela-se a nós por inferência de um simbolismo no qual a “terra” é
batida pelos nossos próprios sentidos e significados, que reconhecemos seu papel, não
apenas na narrativa mítica, mas sua importância no desencadeamento de uma série de
reflexões que em muito interessam ao nosso investimento artístico. Optamos, assim, por
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laboratórios de composição que a incorporassem enquanto estímulo sensível para a
criação, um propulsor na pesquisa de movimento.
Na praia de Barreta, praia tranquila siuada no litoral sul do Rio Grande do Norte,
distante de áreas urbanas, e portanto, com pouco fluxo de pessoas, desenvolvemos por
três dias nossos laboratórios de pesquisa de movimento relacionados à “terra”. Nossas
atividades iniciavam-se por volta das 16:30h, e seguiam até o escurecer, ou seja, algo em
torno das 18h, portanto, nossos laboratórios aconteciam na viração do dia, horário que o
mito nos indica como momento sagrado de encontro entre Adão e seu Criador.
Depois de orarmos face ao mar e de nos deixarmos envolver por uma atmosfera
sagrada, nos deitamos na areia da praia e tentamos resgatar um pouco do que tinhamos
vivenciado em nosso primeiro encontro. A pele que com a terra se relacionava, se
relacionava com tudo que ela representava, símbolo encharcado de sentidos que lhe
haviam sido regados no espaço mítico. Foram desses laboratórios que extraímos certas
matrizes de movimento, que foram posteriormente trabalhadas em sala de ensaio e
desenvolvidas em células coreográficas, as quais vieram a originar uma primeira parte do
espetáculo.
Houve uma intenção da qual todos os dançarinos-criadores compactuaram nos
laboratórios que foram realizados na praia, uma vontade inexplicável de adentrar ao solo,
buscar certo conforto uterino, uma sensação de saudade. Pés e mãos enterravam-se na
areia, rostos ao chão em procura de alento, consolo. Peso, gravidade, empurrava-nos
contra o solo de forma prazerosa, enquanto uma respiração curta, diminuída, mas
distribuída por todo corpo, nos dimensionava um infinito que nos era extensão. Uma
integralidade, inteireza, arrebatava os corpos, que sem fronteiras, tudo possuíam, bem
como se sentiam possuídos pelo tudo, pelo cosmos, por Deus.
Outros estímulos, que não a terra, findaram por enriquecer nossos laboratórios em
Barreta, o vento que soprava, e que apesar do peso e da gravidade com os quais
estávamos conectados, revelava-nos a leveza nos grãos de areia que eram por ele
levados. O sol e sua energia, calor que nos amornava, o cheiro e o som do mar, que
ecoavam seus mistérios nos potentes estrondos das ondas que quebravam, foram
estímulos que percebemos e para os quais não tivemos como nos fechar. O produto
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resultante desses laboratórios foi o solo “Adamah”2, solo este que abre nossa obra
artístico-coreográfica.
O mapa de sentidos que foi desenhado pelos dançarinos-criadores nos permite
refletir, nesse processo de criação, não unicamente sobre a relação de um corpo diante
do mundo, mas de um corpo diante de outro corpo. Esse corpo fenomenal, ou seja, esse
corpo aberto ao mundo e em circuito com ele, revela-se dilatado ao outro nessa
verdadeira tessitura do mundo. Vejamos uma passagem da crônica da criação que nos
remeteu a tal relação:
Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Todavia não se encontrou para o homem alguém que o auxiliasse e lhe correspondesse. Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e levou até ele. Disse então o homem: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada” (GENESIS, 2; 20-23).
A partir da descrição do nascimento de Eva, presente no segundo capítulo de
Gênesis, podemos lançar um olhar, não unicamente sobre esse ser constituído pelo seu
relacionamento com o mundo, mas sobre esse ser que, sendo corpo, rasga-se a constituir
outros corpos que lhe correspondam, sobre esse Adão que se rasga a constituir Eva e a
reconhece como prolongamento de sua própria existência corporal.
Merleau-Ponty (1994) pode nos nortear no que diz respeito à compreensão dessa
relação entre corpos, pois para o filósofo, o corpo insiste-se potência de certas condutas,
sendo ele portador de certo poder sobre o mundo. É pelo corpo que percebemos o corpo
do outro, de forma que ao fazê-lo, encontramos como que um miraculoso prolongamento
de nossas próprias intenções, pois da mesma forma que a reunião das partes de meu
corpo constituem um único sistema, o corpo do outro e o meu são um só, compõem um
único fenômeno, a existência anônima, fazendo dos dois corpos sua habitação em um só
tempo.
2 Segundo a Bíblia de estudos de Genebra (1999), o nome Adão no idioma hebraico gera um jogo de
palavras: “homem”, em hebraico, “adam”, e “terra”, em hebraico, “adamah”, demonstrando a conexão próxima do homem com o solo do qual foi levantado.
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É em decorrência desse entendimento relacionado ao corpo diante de mim, ao
outrem, e que no mito adâmico não apenas percebemos, mas passamos a refletir a partir
da criação de Eva, que nos lançamos na exploração de uma segunda referência sensível
nos laboratórios de pesquisa de movimento, “o corpo do outro”. O contado da pele do
outro com a minha se presentificou, nesse processo criativo, como provocação de
movimentos, impulso dinâmico para o criar.
Se em nossos primeiros laboratórios de pesquisa de movimentos a “terra” era
nosso elemento propulsor, o “corpo do outro” agora passava a ser a excitação de nossa
sensibilidade na elaboração de novas matrizes. De semelhante forma, a atmosfera mítica
sempre era invocada por meio de momentos de oração e conexão com o sagrado a cada
encontro. Admirar o corpo do outro, tocá-lo, nos colocava em encontro com Eva, com
esse corpo, que por mais que esteja fora do meu, não deixa de ser eu. Corpo que me
constitui, e em uma interessante reversibilidade, é constituído por mim. Foram três dias de
laboratórios realizados no Departamento de Artes da UFRN, momentos de riqueza ímpar
no que concerne à exploração de uma existência única da qual nós comungamos, a
exploração das tensões espaciais, nos remetia a esse interessante desejo dos corpos em
se adentrarem. As matrizes de movimento que foram extraídas dessas vivências foram
amadurecidas em células coreográficas e, posteriormente, passaram a integrar a obra “A
Carne que Sou” através do duo, “Costela”.
No que diz respeito à “árvore”, nosso terceiro e último símbolo, eleito por mérito do
mapa de sentidos para trabalharmos em laboratórios de composição cênica, foi instigante
aprofundarmo-nos nas concepções por ela suscitadas. A árvore proibida, nomeada
também de árvore do conhecimento do bem e do mal, nos remete ao conhecimento
advindo das experiência vividas, pois foi através da degustação do fruto proibido, ou fruto
do conhecimento, que Adão e Eva passaram a enxergar o mundo de outra forma, com
olhos agora abertos. A transição de referências, a ressignificação de todas as coisas a
partir das experiências, fazem-nos saltar de mundo em mundo, tal como Adão e Eva, que
ingressaram numa realidade situada entre dualidades, bem e mal, certo e errado, luz e
trevas, bênção e maldição.
A árvore nos remete, antes de tudo, a um mundo cultural, pois Eva foi quem
primeiro comeu do fruto proibido, no entanto, sob sua petição, Adão também o comeu, ou
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seja, houve, por parte de Adão, uma retomada de comportamento, atitude, ou ação
tomada por Eva. Vale salientar que para Merleau-Ponty (1994), o corpo do outro é o
primeiro dos objetos culturais, tendo em vista que este é portador de determinada conduta
e forma de se mover no mundo. Segue trecho da narrativa mítica:
Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se (GÊNESIS, 3; 6-7).
Realizamos então um único laboratório de pesquisa de movimentos relacionado à
arvore. No Departamento de Artes da UFRN, colocamo-nos a observar as árvores, os
movimentos que elas faziam pelo soprar do vento, se tornaram o estímulo sensível para
nossa investigação de movimentos. Em sala de ensaio nos colocamos a explorar tais
imagens, movimentos ondulatórios e torções predominaram a constituição das matrizes
oriundas dessa vivência. Tais matrizes, após serem amadurecidas e tornadas em células
coreográficas, passaram a compor a obra por inferência de um solo, que chamamos de
“Raiz”.
Tendo esse mito como fio orientador dos nossos laboratórios de composição, com
base nos elementos simbólicos (terra, corpo do outro e árvore) extraídos do mapa de
sentidos construído pelos dançarinos-criadores, elaboramos, como produto desses
experimentos, dois solos e um duo. Por fim, como um entrelaçamento dessas
experimentações, montamos um trio em que vivenciamos uma dinâmica relação que
entrecruza esses elementos pinçados da narrativa mítica e nos sensibiliza quanto ao
nosso papel na trama da existência. Trio que desnuda essa identidade móvel, ou seja,
desnuda esse corpo que ao mesmo tempo em que é terra e nutre as árvores, é árvore
nutrida pela terra, gera frutos, frutos consumidos pelo próprio corpo faminto de vida, de
experiências, ou seja, desnuda essa metamórfica característica do humano que o situa no
mundo e o coloca em troca com ele.
Breves Considerações
Segundo Moura (1988), o mito é justamente essa estrutura indivisa que constitui ao
mesmo tempo ciência e prática, saber e emoção, arte e culto, um sistema inatingível se
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nos limitarmos unicamente à racionalidade, pois se assim o fazemos, despojamos-lhe de
sua unidade fundamental, sendo este universo unicamente acessível através de um
caminho, aquele que vem das origens míticas, caminho no qual “fundamos a confiança
nas fontes inspiradoras das expressões culturais de arte e de religião, que a ciência não
matou” (p.54). No espaço cênico, para nós que tecemos a criação artística a partir desse
processo, a eternidade se reinstaura, um arrebatamento nos toma e nos atenta à
presença de tudo em tudo, nos envolve e funde a todas as coisas, une-nos. É pela
dança, que aqui, uma ponte é edificada e um convite de regresso é lançado. Sigamos
rumo a um espaço-tempo paradisíaco de humanidade sonhada, inteira.
Trata-se de um investimento no qual entrelaçam-se corpo, dança e mito, numa
tessitura que permita novos olhares e propicie novas possibilidades para o criar a partir de
uma matriz da qual florescemos. Essa matriz não é imóvel e esgotável, lembremos que:
(...) o cristianismo alimentou mais de uma filosofia, independentemente do eventual privilégio de uma delas, que ele por princípio não comporta expressão filosófica única e exaustiva, e que nesse sentido, sejam quais forem as suas aquisições, a filosofia cristã nunca é coisa feita” (MERLEAU-PONTY, 1991, p.160).
O filósofo nos possibilita refletir sobre o cristianismo enquanto construção simbólica,
portanto aberta a diferentes interpretações, no que é atravessado por olhares ancorados
em diferentes referências culturais. Referenciemo-nos no corpo e em sua poesia,
dancemos, pois, a coisa não feita e a façamos na sensibilidade, na obscuridade que
revela nossa humanidade. Que possamos ouvir o que o corpo tem a falar na
contemporaneidade, o que ele tem a dançar, e possamos cingir esta fala, esta dança, de
novos interesses artísticos e epistemológicos.
Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem. Mares pequenos - mares grandes. In: MORAIS, Regis de. As razões do mito. Campinas/SP: Papirus, 1988.
BÍBLIA DE ESTUDOS DE GENEBRA. São Paulo e Barueri, Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
CAMPBELL, Joseph. MOYERS, Bill D. FLOWERS, Betty S. O poder do mito. 20. edição. São Paulo: Palas Athena, 2002. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
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MENDES, Maria Isabel Brandão de Souza. NOBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo, natureza e cultura: contribuições para a educação. Revista Brasileira de Educação [online]. 2004, n. 27, pp. 125-137.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Natureza: notas: cursos no Collége de France. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
__________. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
__________. Signos. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MOURA, Tarcísio. O mito, matriz da arte e da religião. In: MORAIS, Regis de. As razões do mito. Campinas/SP: Papirus, 1988.
NOBREGA, Terezinha Petrucia da. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010.
TIBÚRCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio. A poética do corpo no mito e na dança butô: por uma educação sensível. Natal, RN: 2005. 163 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Educação.
*Luiz Felipe Ferreira da Rocha é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGArC-UFRN). Membro do Grupo de Pesquisa em Corpo,
Dança e Processos de Criação (CIRANDAR). Diretor, coreógrafo e dançarino na Aviva Cia de Dança.