museus virtuais e cibermuseus

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1 Museus virtuais e cibermuseus: A Internet e os museus 1 Rosali Henriques Os museus e a Internet A Internet é algo ainda muito novo, pois a proliferação de seu uso começou efectivamente na década de 90 do século XX. Em termos históricos é um tempo muito curto. No entanto, já é possível verificar algumas transformações ocorridas em várias áreas do conhecimento em decorrência do advento da Internet. Hoje, é quase impossível pensar num mundo sem a sua presença, mesmo que boa parte de seus usuários viveram sua infância, adolescência e juventude sem usá-la. A Internet está revolucionando a forma como as pessoas se comunicam. E isso não se passa de forma diferente na sua relação com a museologia. Os museus, como qualquer instituição, estão presentes na rede mundial de computadores. A criação de sites de museus proliferou a partir da década de 90, com o avanço da Internet, mas muitos museus ainda nem possuem sites institucionais. E muito deles possuem sites cujo único objetivo é apenas disponibilizar informações de contato da instituição. Assim como uso da Internet pelos museus ainda é algo recente, as discussões sobre este uso também o são. Em 1991, realizou-se em Pittsburgh, na Pensilvânia a primeira conferência sobre o uso da hipermídia e da interatividade nos museus. Mais conhecida pela sigla ICHIM - International Conference on Hypermedia and Interactivity in Museums - esta conferência tem se realizado bianualmente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa para discutir as questões sobre o uso das novas tecnologias nos museus 2 . O objetivo dessas conferências é promover o potencial da multimédia interativa nos programas dos museus. Nesse sentido também, em 1993, o MDA - Museum Documentation Association - organizou em Cambrigde um congresso sobre Museus e Interactividade. Este congresso deu ênfase ao uso da multimídia nos museus 3 . Em relação ao uso da Internet pelos museus, os primeiros debates surgiram em 1997 quando se realizou em Los Angeles, na Califórnia, a primeira conferência sobre museus e Internet. Chamadas de Museums and Web, estas conferências são realizadas anualmente nos Estados Unidos ou Canadá e têm como objetivo reunir os profissionais dos museus, principalmente aqueles ligados às áreas de novas tecnologias, para discutir as questões pertinentes ao uso da Internet pelos museus 4 . Em relação às discussões institucionais, é preciso verificar que o ICOM não possui um comitê específico sobre Internet e interatividade nos museus, por isso, as discussões 1 - Este artigo é parte da dissertação de mestrado em Museologia cujo título é “Memória, museologia e virtualidade: um estudo sobre o Museu da Pessoa”, defendida em 2004, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, de Lisboa. 2 - As informações sobre todas as conferências já realizadas encontram-se no site da instituição Archives & Museums Informatics, no endereço http://www.archimuse.com/conferences/ichim.html . 3 - O MDA é uma organização, criada na Inglaterra em 1977. Tem como objetivo desenvolver atividades de discussão, publicação e formação na área de documentação museológica. Mais informações sobre suas atividades podem ser obtidas no site do MDA: http://www.mda.org.uk . 4 - Os programas das discussões, bem como a publicação dos papers das conferências podem ser consultados no site http://www.archimuse.com/conferences/mw.html .

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A Internet é algo ainda muito novo, pois a proliferação de seu uso começou efectivamente na década de 90 do século XX. Em termos históricos é um tempo muito curto. No entanto, já é possível verificar algumas transformações ocorridas em várias áreas do conhecimento em decorrência do advento da Internet. Hoje, é quase impossível pensar num mundo sem a sua presença, mesmo que boa parte de seus usuários viveram sua infância, adolescência e juventude sem usá-la.

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    Museus virtuais e cibermuseus: A Internet e os museus1 Rosali Henriques

    Os museus e a Internet A Internet algo ainda muito novo, pois a proliferao de seu uso comeou efectivamente na dcada de 90 do sculo XX. Em termos histricos um tempo muito curto. No entanto, j possvel verificar algumas transformaes ocorridas em vrias reas do conhecimento em decorrncia do advento da Internet. Hoje, quase impossvel pensar num mundo sem a sua presena, mesmo que boa parte de seus usurios viveram sua infncia, adolescncia e juventude sem us-la.

    A Internet est revolucionando a forma como as pessoas se comunicam. E isso no se passa de forma diferente na sua relao com a museologia. Os museus, como qualquer instituio, esto presentes na rede mundial de computadores. A criao de sites de museus proliferou a partir da dcada de 90, com o avano da Internet, mas muitos museus ainda nem possuem sites institucionais. E muito deles possuem sites cujo nico objetivo apenas disponibilizar informaes de contato da instituio.

    Assim como uso da Internet pelos museus ainda algo recente, as discusses sobre este uso tambm o so. Em 1991, realizou-se em Pittsburgh, na Pensilvnia a primeira conferncia sobre o uso da hipermdia e da interatividade nos museus. Mais conhecida pela sigla ICHIM - International Conference on Hypermedia and Interactivity in Museums - esta conferncia tem se realizado bianualmente nos Estados Unidos e em alguns pases da Europa para discutir as questes sobre o uso das novas tecnologias nos museus2. O objetivo dessas conferncias promover o potencial da multimdia interativa nos programas dos museus. Nesse sentido tambm, em 1993, o MDA - Museum Documentation Association - organizou em Cambrigde um congresso sobre Museus e Interactividade. Este congresso deu nfase ao uso da multimdia nos museus3.

    Em relao ao uso da Internet pelos museus, os primeiros debates surgiram em 1997 quando se realizou em Los Angeles, na Califrnia, a primeira conferncia sobre museus e Internet. Chamadas de Museums and Web, estas conferncias so realizadas anualmente nos Estados Unidos ou Canad e tm como objetivo reunir os profissionais dos museus, principalmente aqueles ligados s reas de novas tecnologias, para discutir as questes pertinentes ao uso da Internet pelos museus4.

    Em relao s discusses institucionais, preciso verificar que o ICOM no possui um comit especfico sobre Internet e interatividade nos museus, por isso, as discusses

    1 - Este artigo parte da dissertao de mestrado em Museologia cujo ttulo Memria, museologia e

    virtualidade: um estudo sobre o Museu da Pessoa, defendida em 2004, pela Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologia, de Lisboa. 2 - As informaes sobre todas as conferncias j realizadas encontram-se no site da instituio Archives

    & Museums Informatics, no endereo http://www.archimuse.com/conferences/ichim.html. 3 - O MDA uma organizao, criada na Inglaterra em 1977. Tem como objetivo desenvolver atividades

    de discusso, publicao e formao na rea de documentao museolgica. Mais informaes sobre suas atividades podem ser obtidas no site do MDA: http://www.mda.org.uk. 4 - Os programas das discusses, bem como a publicao dos papers das conferncias podem ser

    consultados no site http://www.archimuse.com/conferences/mw.html.

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    sobre as novas tecnologias nos museus so efetuadas pelo seu comit de documentao, o CIDOC International Committee for Documentation, atravs de um grupo de trabalho especfico sobre o uso da Internet. Criado em 1992 durante o encontro do ICOM em Qubec, este grupo de trabalho comeou a produzir durante o encontro na Noruega, em 1995, um documento sobre o uso de multimdia nos museus5. Em 1996 o documento foi finalizado e traa algumas diretrizes sobre este novo desafio para os museus. O objetivo esclarecer questes fundamentais sobre multimdia e a preservao do patrimnio atravs do uso das novas tecnologias nos museus. No entanto, diz muito pouco sobre o uso da Internet nos museus.

    A Internet possibilitou transformar tomos em bits. Ou seja, matria palpvel (objetos) em cdigo binrio. Nesse sentido, os museus passam a trabalhar com referncias patrimoniais digitais na Internet. E, portanto, passveis de serem trabalhadas de vrias formas. Alm disso, a Internet possibilitou aos museus interagir de forma globalizada, alterando a noo de tempo e de espao. Ou seja, o museu na Internet nunca fecha.

    Na Internet possvel abrir mo da exposio tridimensional tradicionalmente usada pelos museus como forma de divulgao de seu acervo, criando novas perspectivas de apresentao do acervo. Alm disso, a Internet possibilita visitas virtuais, podendo atrair mais pblico para a visita real. Ou seja, alm de ser um carto de visitas do museu, a Internet possibilita o acesso ao patrimnio de uma forma mais ampla.

    Atualmente um grande nmero de museus possui sites institucionais. Como qualquer instituio do sculo XXI, os museus tambm buscam levar ao grande pblico informaes sobre o contedo do seu acervo e sobre as atividades culturais desenvolvidas em seu espao. Assim, o uso da Internet como meio de divulgao e comunicao possibilitou aos museus uma interao maior com os utilizadores. Alm da criao de sites com informaes sobre o contedo de seu acervo, os museus utilizam tambm dos meios de comunicao prprios da Internet: e-mails, boletins, etc., para divulgar o trabalho desenvolvido. Segundo Maria Lusa Bellido Gant (2001), os museus transformaram a Internet em um espao para a apresentao de seus boletins, folhetos e catlogos, facilitando a divulgao de suas actividades.

    Uma questo que se coloca como a Internet usada pelos museus. Mais do que um veculo de comunicao, a Internet permite uma maior interao com o pblico, mas tambm com os especialistas. Alm do uso como uma ferramenta de marketing, a Internet possibilita a montagem de redes de conexo entre vrias instituies afins e com objetivos convergentes. Este uso pode ser feito atravs de listas de discusses, fruns, rede de comunicao, etc., pois a Internet possibilita uma troca de experincias entre os profissionais dos museus de forma mais rpida e consistente. Nesse sentido, a troca de informaes e discusses sobre temas no mbito da museologia, atravs da criao de redes de informao uma ferramenta que pode ser usada na Internet.

    Outras formas de uso da Internet pelos museus so colaboraes multi-institucionais. Nesse caso, a instituio responsvel pelo projecto convida outras instituies a participarem com contedos especficos, criando exposies permanentes na Internet. Um exemplo disso a exposio Museus e Milnio, promovida pelo Museu da Civilizao de Qubec em 2000. Naquele ano, o Museu da Civilizao convidou vrias

    5 - O documento final produzido pelo grupo de trabalho pode ser encontrado no site do CIDOC, pelo

    endereo http://www.willpowerinfo.myby.co.uk/cidoc/multi1.htm.

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    instituies museolgicas de todo o mundo para criar contedos ou expor contedos dos seus acervos relativos ao sculo XX. O resultado uma exposio de contedos culturais e patrimoniais de vrios museus no mundo. Nesta exposio colaboraram doze museus de vrias partes do mundo: Frana, Estados Unidos, Sua, Sucia, Eslovnia, Brasil, Canad, Madagscar, Itlia e Alemanha. Este tipo de colaborao, embora mais raro, de fundamental importncia, pois permite que os museus usem a Internet no seu melhor: criando laos virtuais com outras instituies. Infelizmente, a maioria dos museus ainda no viram a potencialidade de utilizar a Internet para este tipo de colaborao inter-institucional. Para estas instituies, a Internet serve apenas como um grande painel para afixar suas informaes institucionais, e no como uma ferramenta de troca e entrelaamento de referncias patrimoniais.

    Figura 1 - Pgina principal da exposio Museus e Milnio

    Fonte: http://www.mumi.org

    Tipos de sites de museus Os museus esto acessveis na Internet sob mais variadas formas, mas existem trs tipos bsicos de sites, baseadas na tipologia criada em 1996 por Maria Piacente, citada por Lynne Teather (1998)6. Em sua tese de Masters of Arts nos Estados Unidos, Piacente enumera trs categorias de websites de museus. A primeira categoria de sites o folheto eletrnico, cujo objetivo a apresentao do museu. Este tipo de site funciona como uma ferramenta de comunicao e de marketing. O utilizador tem acesso histria do museu, aos horrios de funcionamentos e s vezes ao corpo tcnico do museu. o tipo mais comum em quase todos os museus. Alguns so mais bem elaborados, dependendo dos recursos existentes no museu, mas todos tm como objetivo principal ser uma apresentao visual, tal como um folheto, do museu. Nesse caso, a Internet funciona como uma forma de tornar o museu mais conhecido e tambm possibilitar um acesso mais fcil pelos utilizadores da rede mundial de computadores.

    Sabemos que a escolha de sites mais elaborados, tanto do ponto de vista do design quanto da navegao, depende dos recursos humanos e financeiros disponveis da

    6 - PIACENTE, Maria. Surfs Up_: Museums and the world Wide Web, MA Research Paper, Museum

    Studies Program, University of Toronto, 1996. Infelizmente no tivemos acesso s informaes originais.

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    instituio. Os custos de manuteno de um site mais simples, que no necessita de uma base de dados, podem ser suportados por qualquer instituio, mesmo porque existem muitos servidores que oferecem hospedagem gratuita para este tipo de site. Por isso, queremos crer que a escolha de um tipo de site mais simples dependa mais do tipo de recursos que o museu tenha, do que por uma deciso da instituio.

    Para Maria Piacente, a segunda categoria de site seria museu no mundo virtual, ou seja, neste tipo de site a instituio apresenta informaes mais detalhadas sobre o seu acervo e, muitas vezes, atravs de visitas virtuais. O site acaba por projetar o museu fsico na virtualidade e muitas vezes apresenta exposies temporrias que j no se encontram mais montadas em seu espao fsico, fazendo da Internet uma espcie de reserva tcnica de exposies. Alm disso, muitos deles disponibilizam bases de dados do seu acervo, mostrando objetos que no se encontram em exposio naquele momento ou mesmo disponibilizam informaes sobre determinado assunto.

    Nesta categoria podemos encontrar alguns sites de museus brasileiros e portugueses. Entre eles destacamos o site do Museu Nacional de Arqueologia, tutelado pelo Instituto Portugus de Museus de Portugal. Alm de todas as informaes pertinentes a um site de museu, o MNA possui uma visita virtual ao seu acervo, onde possvel conhecer todas as seces expositivas do museu. Alm disso, algumas peas do acervo foram seleccionadas e podem ser visualizadas em trs dimenses. possvel comprar online os produtos da loja do museu, ou seja, o site tambm presta servio de e-commerce para o museu7. O site do MNA no se restringe s atividades do Museu mas tambm um site de informaes e referncias sobre arqueologia em Portugal. Premiado pela Unesco em 2002 com Web Art d'Or, de melhor site de museus do mundo, o Museu Nacional de Arqueologia um bom exemplo de um site de museu no mundo virtual.

    Figura 2 Pgina de entrada do site do Museu Nacional de Arqueologia

    Fonte: http://www.mnarqueologia-ipmuseus.pt/

    7 - A palavra e-commerce designa o comrcio eletrnico realizado atravs da Internet. Para ser um e-

    commerce no basta apresentar os produtos, preciso que o utilizador possa comprar os produtos sem a necessidade de se deslocar ao museu.

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    A terceira categoria a de museus realmente interativos. Neste tipo de site, pode at existir uma relao entre o museu virtual e o museu fsico, mas so acrescentados elementos de interatividade que envolvem o visitante. s vezes, o museu reproduz os contedos expositivos do museu fsico e em outros casos, o museu virtual bem diferente do museu fsico. O que torna estes museus interativos a forma como eles trabalham com o pblico. A interatividade a alma desse tipo de site de museu, pois permite que o pblico possa interagir com e no museu. Neste caso, importante salientar que o museu na Internet no perde as suas caractersticas essenciais e que pode adquirir novas facetas. Ou seja, os objetivos do site no so necessariamente diferentes do museu fsico, mas um complemento dele. Conforme veremos depois, esta categoria de site na verdade um museu virtual e no um site.

    Figura 3 Pgina de entrada do Museu Virtual Sagres

    Fonte: http://sagres.mct.pucrs.br

    Um bom exemplo de um website de um museu que trabalha com interatividade o caso do Museu de Cincia e Tecnologia de Porto Alegre, cujo formato virtual tem o nome de Sagres. Ligado Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, o Sagres possui contedos e formatos diferentes do museu fsico. A idia original no foi reproduzir o museu fsico, mas trabalhar os contedos do museu de forma ldica, criando outras atividades de interao que o museu fsico no possibilita. No projeto do Sagres, a idia bsica a interao do pblico. Os internautas podem fazer pesquisas sobre cincia e tecnologia e brincar com os seus conhecimentos dessas disciplinas. Segundo Ana Bertoletti e Antnio Costa (1999), o sistema um ambiente de educao e procura adaptar os seus contedos s caractersticas dos utilizadores.

    Utilizamos esta tipologia apenas para distinguir a forma como os museus trabalham a Internet. No entanto, preciso deixar claro que um site de museu no , necessariamente, um museu virtual. Ele apenas um site de museu.

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    Sobre o conceito do museu virtual O conceito de museu virtual ainda algo muito novo na museologia. Ele surgiu a partir da dcada de 90 do sculo XX. Antes disso, o uso da Internet estava restrito ao ambiente acadmico. Foi somente com a proliferao da Internet comercial, a partir de 1994, que os museus comeam a apresentar-se de forma virtual.

    Para Anna Lisa Tota (2000), os museus virtuais online so na sua maioria, aproximaes imperfeitas dos museus fsicos. Nesse sentido, Pierre Lvy afirma que o que comummente chamado de museu virtual nada mais do que um catlogo na Internet.

    Os museus virtuais, por exemplo, no so muitas vezes seno maus catlogos na Internet, enquanto que o se conserva a prpria noo de museu enquanto valor que posta em causa pelo desenvolvimento de um ciberespao onde tudo circula com fluidez crescente e onde as distines entre original e cpia j no tm evidentemente razo de ser. (LVY, 2000: 202)

    A questo levantada por Lvy importante, na medida em que a discusso sobre os museus virtuais ainda incipiente. Lvy nesta afirmao d uma pista de como os especialistas poderiam trabalhar a questo dos museus virtuais, discutindo a prpria noo de valor e de conservao de patrimnio. Nesse sentido, a maioria dos museus virtuais, est mais preocupada em apresentar e justificar sua faceta virtual atravs de representaes, do que utilizar as potencialidades que a Internet oferece para a interaco com o utilizador.

    Mas ainda h pouca discusso terica sobre os museus virtuais. Segundo Weiner Schweibenz (1998) o conceito de museu virtual est em constante construo e fcil confundirmo-nos com as outras denominaes, tais como: museu eletrnico, museu digital, museu online, museu hipermdia, meta-museu, museu ciberntico, cibermuseu e museu no ciberespao. Por se tratar de uma temtica ainda muito nova na museologia, no h um consenso em relao ao que considerado museu virtual e o que seria apenas um site de museu. A maioria dos autores que trabalha com a questo aponta para uma definio ligada virtualizao dos objetos e sua apresentao online, sem uma discusso mais profunda sobre os aspectos tericos deste tipo de abordagem.

    Entre estes autores que trabalharam sobre a questo dos museus virtuais, destaca-se Bernard Deloche, que discute a questo sob um prisma filosfico. Em sua obra Le muse virtuel, publicada em 2001, Deloche estuda a questo da virtualidade no processo museolgico. Debruando-se basicamente sobre os museus de arte, Deloche estuda o que ele chama de tripla reciprocidade da arte. Para ele, a arte est ligada a trs termos fundamentais: o esttico, o museal e o virtual. O esttico teria como processo o sentir, o museal expor e o virtual substituir. Para Deloche (2001: 17), o virtual onipresente e possibilita a emergncia de uma outra cultura, pois o virtual alargou o campo da expografia.

    O museu virtual permite a dessacralizao da arte, do objeto sensvel, mas no deve-se, afirma Deloche (2001), fazer do museu um depsito de arte mas tambm temer a fetichizao da arte pelos museus. Para este autor, o museu tem uma dupla funo esttica: comunicar e analisar, pois o museu um lugar privilegiado de experincias sensoriais.

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    Em relao questo do museu virtual, Deloche afirma que o museu um templo da imagem, utilizando o conceito de museu paralelo, ou seja, o museu virtual aquele que existe na virtualidade, quase que como um substituto, um museu sem lugar e sem paredes. No entanto, para ele, no h incompatibilidade entre o museu paralelo e o fsico, a que ele d o nome de institucional.

    Em relao posio de Deloche sobre os museus virtuais, discordamos quando ele diz que o museu virtual um museu substituto. No nosso entendimento, o museu virtual, sendo uma vertente virtual de um museu fsico, no um museu substituto. Ele pode sim, ser um museu complementar, pois pode existir fisicamente e ter uma vertente virtual. Nesse sentido, o museu virtual pode ser to ou mais eficaz quanto o museu fsico, mas no o substituir, sim uma nova perspectiva de interao com o patrimnio.

    Tanto Antonio Battro (1999) quanto Bernard Deloche (2001) trabalham com a concepo de museu virtual, baseados no conceito de museu imaginrio defendida por Andr Malraux. Malraux (2000) propunha a criao de um museu imaginrio que serviria para abrigar todas as obras de arte do mundo, devidamente fotografadas. Esse museu, segundo Malraux, seria um espao da memria viva. Assim, cada pessoa poderia ter o seu prprio museu imaginrio. O museu virtual uma espcie de um museu imaginrio porque ao mesmo tempo que trabalha com a reproduo, prioriza o uso da imagem como referncia patrimonial. Nesse sentido, El museo virtual es mucho ms que poner fotos en Internet de las reservas, colecciones permanentes y muestras temporarias. Se trata de concebir un museo totalmente nuevo8 (BATTRO, 1999). Nesse sentido, o museu virtual no a reproduo de um museu fsico, mas um museu completamente novo, criado para traduzir as aes museolgicas no espao virtual. O museu imaginrio proposto por Malraux tambm um museu novo, criado por cada um de ns, com as imagens que selecionamos e reproduzimos dos museus fsicos. Nesse sentido, o museu imaginrio de Malraux tambm um museu virtual, pois cada pessoa poderia ter o seu prprio museu de reprodues.

    Bernard Deloche diferencia o museu virtual do cibermuseu. Para ele, o museu virtual um museu paralelo, aberto s novas sensaes. Os sites ou os CD-ROMs dos museus so, para ele, cibermuseus, pois modificam ou complementam o museu fsico. J o museu virtual uma nova concepo do mesmo patrimnio, apresentada de forma virtual.

    Partindo do conceito proposto por Bernard Deloche, entendemos o conceito de museu virtual, distinguindo-o dos sites de museus ou cibermuseus. Os cibermuseus so reprodues online do acervo ou parte do acervo de um determinado museu. O museu virtual um espao virtual de mediao e de relao do patrimnio com os utilizadores. um museu paralelo e complementar que privilegia a comunicao como forma de envolver e dar a conhecer determinado patrimnio. No nosso entendimento, s pode ser considerado museu virtual, aquele que tem suas aes museolgicas, ou parte delas trabalhadas num espao virtual. Nesse caso, chamaremos de cibermuseus aqueles sites de museus que no se enquadram nessa concepo de museu virtual.

    8 - Traduo livre: O museu virtual muito mais do que por fotos na Internet das reservas, colees

    permanentes e exposies temporrias. Trata-se de conceber um museu novo.

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    Entendemos que a virtualidade no necessariamente ligada Internet, pois os museus virtuais podem s-lo, mesmo sem estarem online, atravs de CD-ROMs, quiosques, exposies fsicas, performances, etc. Os museus virtuais so aqueles que trabalham o patrimnio, atravs de aes museolgicas, mas que no necessariamente tm suas portas abertas aos utilizadores em seu espao fsico.

    Em relao ao conceito do museu virtual preciso esclarecer que o museu virtual pode ter duas configuraes: vertentes virtuais de determinado museu fsico, ou seja, podem ser uma outra dimenso do museu fsico (como o Sagres, por exemplo) ou museus essencialmente virtuais. Nesse caso, a existncia de um museu virtual no pressupe a existncia de um museu fsico9. No primeiro caso, os museus virtuais so complementos do museu fsico, pois podem trabalhar suas aes museolgicas de forma diferente em suas duas vertentes. Nesse sentido, o processo museolgico muito enriquecedor, pois o pblico ter duas abordagens diferentes de um mesmo patrimnio: uma abordagem presencial e uma abordagem remota.

    No segundo caso, as aes museolgicas so efetuadas, na sua maioria, no seu espao virtual, ou seja, no um museu a ser visitado pelo pblico em seu espao fsico. Isso, no entanto, no invalida algumas aes museolgicas fora do seu espao virtual e do espao fsico, mas a essncia das suas atividades museolgicas concentra-se no seu espao virtual.

    Para explicar um pouco mais esta viso de museu virtual, temos o exemplo um projeto de musealizao de um patrimnio, que embora no se auto-denomine museu virtual cumpre as funes do que seria um museu virtual nessa concepo. Trata-se do Projeto Portinari. O Projeto Portinari foi criado em 1979, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro e tem como objetivo catalogar, preservar e divulgar as obras do pintor brasileiro Cndido Portinari. O trabalho efetuado pela equipe do projeto no se restringe ao site, mas abrange uma srie de atividades ligadas ao esplio do pintor, tais como exposies, pesquisas e inventrio das obras localizadas, pesquisa sobre a autenticidade das obras, recolha de depoimentos, criao de contedos para escolas, etc.

    A existncia da Internet deu ao projeto um novo flego, pois permitiu que um maior nmero de pessoas tenha acesso s informaes recolhidas pela equipe. O site, criado em 1998, a face mais visvel do projeto. Nele, possvel consultar as rplicas digitais das obras j localizadas e catalogadas e conhecer um pouco mais sobre a vida e a obra de Portinari10. O site tem uma seo especfica para o trabalho com as crianas. Nela pode-se encontrar sugestes de atividades para os professores desenvolverem com seus alunos na sala de aula. A ideia trabalhar o contedo do site de forma ldica e atraente para o pblico infanto-juvenil.

    O que torna o site do projeto um museu virtual no o fato de dizer ou no que um museu virtual, mas a forma como ele trabalha o patrimnio virtualmente. As aes museolgicas efetuadas pelo projeto Portinari, algumas delas virtuais, fazem com ele

    9 - Aqui devemos deixar claro que a no existncia do museu fsico no pressupe a existncia somente

    do site, pois o museu pode ter um endereo fsico, mas o que o torna virtual a forma como so desenvolvidas suas aes museolgicas, ou seja, elas so efetuadas no espao virtual e no no espao fsico. O museu virtual, essencialmente virtual, no abre suas portas para o atendimento ao pblico em seu espao fsico. 10

    - Boa parte das obras de Cndido Portinari encontra-se nas mos de colecionadores particulares.

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    possa ser considerado um museu virtual. Para ser um museu virtual no basta ter as reprodues das obras de arte, devidamente catalogadas, e apresent-las ao pblico, mas fazer atividades onde o pblico possa interagir com estas referncias patrimoniais.

    Figura 4 Pgina principal do Projeto Portinari

    Fonte: http://www.portinari.org.br/

    Uma outra questo que pertinente quando discutimos o conceito de museu virtual entender a concepo utilizada por alguns sites de museus, inclusive alguns museus virtuais, de que um museu um edifcio que comporta uma coleo, para deleite de seu pblico. Esta uma concepo de museu enraizada no sculo XIX e que o movimento da Nova Museologia questionou, contrapondo-a com uma nova concepo de museu que se baseia no patrimnio, de uma comunidade, estabelecida num determinado territrio. Ao reproduzir a configurao de um edifcio, com todas as suas caractersticas, o museu virtual est reforando o conceito de museu existente na mentalidade da maioria das pessoas. Mesmo projetos de museus essencialmente virtuais, como o caso do Museu Virtual de Arte Virtuais, criado com j com este objetivo, continuam a reforar essa idia11.

    O design do MUVA, construdo provavelmente em VRML, reproduz as divises fsicas de um museu tradicional12. Ao entrar no site, o utilizador tem a sensao de visitar um edifcio de um museu com os espaos fsicos necessrios: recepo, escadas, corredores, salas para exposies individuais, exposies coletivas, etc. Maria Lusa Bellido Gant (2001: 252) chega mesmo a afirmar que o MUVA, enquadra-se na tipologia mais avanada dos museus virtual, pois () se estructura como un autntico[sic] museo, con seis plantas, todas ellas navegables, vestbulo, passilos,

    11 - O MUVA Museu de Artes Virtuais, mantido pelo jornal El Pas, um museu virtual com

    reprodues de obras de arte uruguaia. 12

    - VRML - Virtual Reality Modeling Language - uma linguagem vectorial utilizada em desenhos 3D e multimdia.

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    escaleras, ascensores13. Discordamos dessa autora nesse aspecto, primeiro porque um museu virtual j um autntico museu, ou seja, ele no precisa reproduzir fisicamente um museu para ser considerado um autntico museu virtual. E em segundo lugar, uma visita virtual no faz dele um museu virtual, pode ser apenas um bom site de museu. No se pretende aqui questionar a utilizao do MUVA, recorrendo ao edifcio para mostrar que um museu virtual, mas sim a idia de que para ser um museu virtual autntico necessrio reproduzir um museu fsico.

    Figura 5 - Recepo do MUVA

    Fonte: http://www.elpais.com.uy/muva/

    No nosso entender, um dos mritos dos museus virtuais, alm de poderem interagir de forma mais dinmica com os utilizadores, questionar o conceito de que para ser museu necessrio ter um edifcio. Nesse sentido, os museus virtuais ou os sites de museus que tm essa opo de apresentao continuam a reforar esta idia, podendo tornar-se simulacros de museus. O que podemos definir como museu virtual aquele que faz da Internet espao de interao atravs de aes museolgicas com o seu pblico utilizador. Os museus virtuais so livres, no entanto, para utilizar metforas que lhes apetecer para a navegao, utilizando de plantas baixas ou desenhos simulando edifcios de museus. No entanto, preciso deixar claro que a existncia de um museu no pressupe necessariamente um espao fsico, mesmo que simulado virtualmente.

    Consideraes finais A Internet trouxe para a museologia uma nova perspectiva. No s porque permitiu potencializar o acesso aos museus de forma mais ampla, mas tambm por dar oportunidade aos museus de sarem de seus muros. As aes museolgicas dos museus, exercidas atravs da Internet podem ter um alcance muito maior do que aquelas que so exercidas em seu espao fsico, pois elas podem abranger um pblico muito maior. Os museus que sabem tirar proveito de todas as possibilidades que a Internet oferece, criando seus prprios museus virtuais, conseguem ir alm de suas fronteiras. Alm disso, a possibilidade de uma interao maior com o pblico a grande vantagem da criao de museus virtuais, sejam eles representaes virtuais de museus j existentes ou criados especialmente para a rede mundial de computadores.

    13 - Traduo livre: () se estrutura como um autntico museu, com seis andares, todos eles navegveis,

    recepo, corredores, escadas, elevadores

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    Em nosso entendimento, boa parte dos muselogos e especialistas de museus ainda no est ciente da revoluo que a Internet pode fazer pelos museus. Talvez isso explique a falta de interesse em utilizar todas as possibilidades que a Internet oferece, criando sites apenas informativos, trabalhando a Internet apenas como se fosse apenas um folheto eletrnico do museu. No estamos aqui fazendo juzo de valor sobre aqueles sites que so apenas informativos, pois sabemos que uma srie de fatores responsvel pela escolha de determinado tipo de site, entre elas, a econmica, mas alertamos para o fato de que a maioria dos profissionais dos museus ainda no vem a Internet como uma ferramenta que pode fazer do museu uma instituio mais dinmica e mais interativa.

    Alm disso, como vimos, muitos autores ainda vem o museu virtual como um simulacro de um museu fsico, ou seja, esto arraigados no conceito de museu como um espao de exposio de determinada coleo. E isso, infelizmente, restringe o uso da Internet pelos museus, tornando seus sites, mesmo aqueles mais interessantes e atrativos, apenas sites de museus e no museus virtuais.

    Referncias bibliogrficas

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