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105 Mulheres alencarianas e mulheres contemporâneas diferenças e semelhanças Eliene Vargas 1 Teresinha do Carmo Marques da Rosa 2 Resumo: Neste ensaio, comparamos as mulheres em textos literários dos séculos XIX, XX e XXI, analisando diferenças e semelhanças. São diversos os aspectos que demonstram que essas mulheres foram e continuam submissas; mudam os fatores, mas a escravidão se perpetua. Diante disso, estudamos a mulher do século XIX que se apresenta como divina, resignada e de sentimentos puros. De outra parte, a mulher do século XXI é superpoderosa, maravilhosa e independente. Ambas vivem em épocas diferentes, porém sempre preocupadas com a sociedade. Neste sentido perguntamos sobre a relevância das mulheres terem conquistado tanta independência e estarem, nos dias de hoje, tão presas a conceitos de beleza. Palavras-chave: Mulheres independência escravidão diferenças- semelhanças Abstract: In this article we compared the women in certain works, pointing their differences and similarities. There are various aspects that the women in the 20 th and the 21 st centuries are submissive to some extent factors change, but the slavery continues. Before this we explicit that woman of 21 st century presents like divine and abdicate, with simple feeling and woman of the 21 st century is powerful, wonderful and independent. Both lived in different times, however they are always worried with society. We discussed the importance of woman having won so much independence and the fact of being stuck to the concept the beauty. Keywords: Women independence slavery similarities differences. Introdução Este texto, apresenta uma reflexão sobre a identidade da mulher no Século XIX, em textos de José de Alencar e a concepção de mulher nos textos de Martha Medeiros e Heloneida Studart nos Séc. XX e XXI. Nossa proposta é apontar as características dessas mulheres, a partir de cenários em que mudam apenas os fatores que determinam a submissão e a escravização do sujeito feminino na sociedade. Procura-se salientar que as mulheres do séc. XIX, representadas nos romances alencarianos, eram preparadas apenas para o casamento e para os afazeres do lar, sendo submetidas à escravidão doméstica. Já a mulher do séc.XXI, aparentemente tão independente, continua sendo escrava; agora de um padrão de beleza e de uma estética do físico perfeito que condicionam sua vida. Esta imagem está no centro das questões que pretendemos abordar neste artigo. 1 Aluna do curso de Letras da FACOS Faculdade Cenecista de Osório. 2 Professora Orientadora.

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Mulheres alencarianas e mulheres contemporâneas – diferenças e semelhanças

Eliene Vargas1

Teresinha do Carmo Marques da Rosa2

Resumo: Neste ensaio, comparamos as mulheres em textos literários dos séculos XIX, XX e XXI, analisando diferenças e semelhanças. São diversos os aspectos que demonstram que essas mulheres foram e continuam submissas; mudam os fatores, mas a escravidão se perpetua. Diante disso, estudamos a mulher do século XIX que se apresenta como divina, resignada e de sentimentos puros. De outra parte, a mulher do século XXI é superpoderosa, maravilhosa e independente. Ambas vivem em épocas diferentes, porém sempre preocupadas com a sociedade. Neste sentido perguntamos sobre a relevância das mulheres terem conquistado tanta independência e estarem, nos dias de hoje, tão presas a conceitos de beleza. Palavras-chave: Mulheres – independência – escravidão – diferenças- semelhanças Abstract: In this article we compared the women in certain works, pointing their differences and similarities. There are various aspects that the women in the 20

th and the 21

st centuries are submissive

to some extent factors change, but the slavery continues. Before this we explicit that woman of 21st

century presents like divine and abdicate, with simple feeling and woman of the 21st century is

powerful, wonderful and independent. Both lived in different times, however they are always worried with society. We discussed the importance of woman having won so much independence and the fact of being stuck to the concept the beauty. Keywords: Women – independence – slavery – similarities – differences.

Introdução

Este texto, apresenta uma reflexão sobre a identidade da mulher no Século XIX, em

textos de José de Alencar e a concepção de mulher nos textos de Martha Medeiros

e Heloneida Studart nos Séc. XX e XXI. Nossa proposta é apontar as características

dessas mulheres, a partir de cenários em que mudam apenas os fatores que

determinam a submissão e a escravização do sujeito feminino na sociedade.

Procura-se salientar que as mulheres do séc. XIX, representadas nos romances

alencarianos, eram preparadas apenas para o casamento e para os afazeres do lar,

sendo submetidas à escravidão doméstica. Já a mulher do séc.XXI, aparentemente

tão independente, continua sendo escrava; agora de um padrão de beleza e de uma

estética do físico perfeito que condicionam sua vida. Esta imagem está no centro

das questões que pretendemos abordar neste artigo.

1 Aluna do curso de Letras da FACOS – Faculdade Cenecista de Osório.

2 Professora Orientadora.

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Mulheres alencarianas

As personagens criadas por José de Alencar - Carolina, de A VIUVINHA; e Carlota,

de CINCO MINUTOS, ficaram marcadas por suas características de sentimento

absoluto e pelo comportamento idealizado através da irrefutável dignidade e total

nobreza de caráter.

Carolina, moça jovem que fica viúva um dia após seu casamento, permanece de luto

e só volta a frequentar a sociedade depois de uma demorada reclusão, e mesmo

assim continua vestindo-se somente de preto como um escudo contra qualquer tipo

de sedução. Isso a impede de corresponder a qualquer um dos rapazes que a

cortejam.

[...]o vestido preto era o símbolo de uma decepção cruel; era a cinza de seu primeiro amor; era uma relíquia sagrada que respeitaria sempre. Enquanto ele a cobrisse parecia-lhe que nem uma feição penetraria o seu coração e iria profanar o santo culto que votava a imagem de seu marido.

3

Aqui se reforça o engrandecimento moral desta mulher cuja honra e valores são

sobre-humanos. A personagem de Carolina demonstra que a mulher servia somente

para o casamento e para os filhos e ela, que perdera seu marido, deveria se resignar

e aceitar o luto para o resto de sua vida.

Carlota, a personagem de Cinco minutos, ama um homem platonicamente, pois

sabe - se fadada à morte e, para não vê-lo sofrer, impõe-se o sacrifício de nunca ser

amada por ele.

Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão porque fugia, porque se ocultava [...] Que sublime abnegação, minha prima! E como eu me sentia pequeno e mesquinho à vista desse amor tão nobre!

4

Mais uma vez Alencar faz uma exaltação ao sentimento de nobreza - que amor tão

puro abdica de tudo, abre mão de sua própria concretização para não ver a pessoa

amada sofrer? Novamente coloca a mulher como um ser divino, capaz dos mais

nobres sentimentos. Essa mulher alencariana é perfeita, imaculada e condenada a

essa imagem quase intocável.

3 ALENCAR, 1829-1877, A Viuvinha, p. 56

4 ALENCAR, 1829-1877,Cinco Minutos, p. 46

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Mulheres do século XXI na crônica de Martha Medeiros e na crítica de

Heloneida Studart

A mulher do século XXI, descrita pela escritora Martha Medeiros em sua crônica

“Mulher Imperfeita”, renega essa idealização de sentimentos, esse estereótipo de

perfeição.

Por mais disciplinada e responsável que eu seja, aprendi duas coisinhas que operam milagres. Primeiro: a dizer NÃO.Segundo: a não sentir um pingo de culpa por dizer NÃO.Culpa por nada, aliás.Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero.Pois inclua na sua lista a Culpa Zero. Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os outros. Seu pai e sua mãe, acredite, não tiveram essa expectativa: tudo o que desejaram é que você não chorasse muito durante as madrugadas e mamasse direitinho.Você não é Nossa Senhora.Você é, humildemente, uma mulher.

5

Heloneida Sturdart, por sua vez, em seu livro Mulher Objeto de cama e mesa,

constata6: “Mulher feia é como sucata: não tem lugar no mercado.” A autora refere-

se aqui aos condicionamentos estéticos e sociais a que estão submetidas as

mulheres da modernidade, quais sejam - sem curvas perfeitas, sem corpo malhado,

sem um rosto lindo e se não for “gostosa” a mulher não se sente valorizada. Nesse

cenário, a mulher tornou-se um objeto sexual e é o único ser racional que precisa

abonar as suas teorias com um rosto bonito e um belo par de pernas. “O corpo da

mulher serve para vender tudo até amortecedor de automóvel”. Heloneida salienta

ainda “O homem envelhece com dignidade e a mulher com terror e insegurança.

Dois objetos da sociedade de consumo (feitos para se deteriorar depressa) ela é o

que mais cedo entra em obsolescência.”

Mulheres independentes?

Comparando os textos de Alencar e de Martha, é quase melancólico o quadro de

mudanças e de “evolução” que vem ocorrendo na vida das mulheres. Caberia a

mulher do século XXI tanta resignação e abdicação como às mulheres do século

5 MEDEIROS, Martha. Mulher Imperfeita.

6 STUDART, 1974.

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XIX? Quando o casamento e a maternidade deixaram de ser prioridades no

universo feminino?

Hoje a mulher sabe dizer “não”, não quer ser chamada de boazinha, quer ser um

sujeito social, quer ter vontades próprias. E será mesmo que essa mulher - tendo

que ser bonita, elegante, gostosa, magra e independente economicamente - não se

parece com a mulher do Séc. XIX, criada para o casamento, para cuidar dos filhos e

do marido, ou seja, educada para ser escrava da vida doméstica?

Existem semelhanças entre essas mulheres? Não seriam todas escravas de

modelos condicionantes de identidade – a primeira é uma peça que compõe a

engrenagem familiar, presa aos valores morais; a segunda é um objeto de desejo e

de consumo, escravizada pelos parâmetros de beleza e de perfeição física.

As mulheres do Séc. XXI, supostamente tão independentes, estão subjugadas a

padrões de beleza que ameaçam sua saúde física, mental e afetiva. Não pode ser

gorda, porque pode ser excluída nas vagas de empregos. Se não usar a roupa da

moda pode ser excluída do convívio de suas amigas que só pensam “que roupa eu

vou usar na festa de sábado?”

Do luto dramático e exagerado de Carolina aos excessos de exposição do corpo

feminino associado à venda de automóveis e de bebidas nos dias de hoje, há muito

que se analisar sobre a questão de gênero. Assim se apresenta o tema em Martha

Medeiros.

A mulher moderna anda muito antiga. Acredita que, se não for super, se não for mega, se não for uma executiva ISO 9000, não será bem avaliada. Está tentando provar não-sei-o-quê para não-sei-quem. Precisa respeitar o mosaico de si mesma, privilegiar cada pedacinho e si.Se o trabalho é um pedação de sua vida, ótimo!Nada é mais elegante, charmoso e inteligente do que ser independente. Mulher que se sustenta fica muito mais sexy e muito mais livre para ir e vir. Desde que lembre de separar alguns bons momentos da semana para usufruir essa independência, senão é escravidão, a mesma que nos mantinha trancafiadas em casa, espiando a vida pela janela.Desacelerar tem um custo.Talvez seja preciso esquecer a bolsa Prada, o hotel decorado pelo Philippe Starck e o batom da M.A.C.Mas, se você precisa vender a alma ao diabo para ter tudo isso, francamente, está precisando rever seus valores. E descobrir que uma bolsa de palha, uma pousadinha rústica à beira-mar e o rosto lavado (ok, esqueça o rosto lavado) podem ser prazeres cinco estrelas e nos dar uma nova perspectiva sobre o que é, afinal, uma vida interessante’.

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A mulher sobre-humana de Alencar continua, porém com outras conotações. Hoje,

tem que fazer um esforço imensurável para trabalhar fora, cuidar da casa, educar os

filhos, pagar as contas, namorar, viajar e, mais que tudo, tem que estar “linda” e de

bom humor sempre, enfim é um esforço realmente extraordinário. Assim fica difícil

afirmar que somente as mulheres do século XIX é que eram submissas e escravas

de estereótipos. Nesse sentido, para que a independência feminina realmente

aconteça, talvez as mulheres de hoje tenham que quebrar alguns espelhos... e

algumas balanças.

Referências

ALENCAR,José de. A Viuvinha. São Paulo: Moderna, 1993.

ALENCAR, José de. Cinco Minutos. Porto Alegre: L&PM, 1999.

MEDEIROS, Martha. Mulher Imperfeita. Disponível em: <http://chadascincodiario

virtual.blogspot.com/2010/05/homenagem-martha-e-todas-as-mulheres.html. Acesso

em 18 de maio de 2010.

STUDART, Heloneida. Mulher Objeto de Cama e Mesa. Petrópolis: Vozes, 1974.